Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1080/19.0T8GDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM MOURA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
PROPOSTA RAZOÁVEL
PRIVAÇÃO DO USO DE VIATURA AUTOMÓVEL
Nº do Documento: RP202101111080/19.0T8GDM.P1
Data do Acordão: 01/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Um pedido de indemnização não quantificado por desconhecimento da extensão do dano, provado este, não impõe uma condenação genérica e se for fixado um montante determinado não estaremos perante uma condenação ultra petitum.
II – Frustrando-se o acordo com o lesado, que rejeita a “proposta razoável de indemnização” que a empresa seguradora está obrigada a apresentar-lhe (uma vez assumida a responsabilidade pelas consequências do acidente), já não poderão ser convocadas as normas do regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (SORCA) aprovado pelo Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, em particular as do seu artigo 41.º que regulam a situação de perda total do veículo interveniente no acidente, antes se aplicando, em toda a sua plenitude, as regras gerais sobre o conteúdo e o cálculo da indemnização contidas no Código Civil, mormente as dos artigos 562.º e seguintes.
III - A indemnização específica (o mesmo é dizer, a reconstituição natural) só será de excluir, por excessivamente onerosa, quando a sua exigência atente gravemente contra os princípios da boa-fé.
IV - O n.º 3 do artigo 41.º do SORCA prevê a possibilidade de deduzir no valor da indemnização por perda total do veículo o valor do respectivo salvado “caso este permaneça na posse do seu proprietário”, expressão que aponta para a necessidade de uma manifestação de vontade do lesado de ficar, definitivamente, com o salvado, pois não pode fazer-se recair sobre ele o risco da sua venda.
V – Não cumpre a obrigação de indemnizar por perda total do veículo a seguradora que coloca à disposição do lesado menos de metade do seu valor venal.
VI - A lesada que ficou privada do uso da sua viatura automóvel, e não lhe foi disponibilizado veículo de substituição, tem direito a ser indemnizada por esse dano enquanto o responsável não lhe entregar o valor indemnizatório que permita repor a situação patrimonial que tinha no momento anterior à lesão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1080/19.0T8GDM.P1
Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Gondomar (J1)

Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
1. Configuração da acção
B…, devidamente identificada nos autos, intentou, em 18.03.2019, a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra C…, S.A. (entretanto integrada, por fusão, na C1…, S.A., que assumiu as obrigações daquela), peticionando a sua condenação:
a) a pagar-lhe uma indemnização no montante de € 22.158,59, acrescido de juros de mora vincendos desde a citação até efectivo e integral pagamento;
b) a pagar-lhe «todos os danos ocorridos em consequência do acidente supra relatado, que actualmente não são susceptíveis de contabilização (os danos referentes a paralisação e perdas de vencimento) e que devem ser apurados em sede de execução de sentença.»
A indemnização peticionada visaria reparar danos patrimoniais que alega ter sofrido em consequência de acidente de viação ocorrido em 24.10.2018, na Avenida …, em Gondomar, em que foram intervenientes os veículos automóveis, ligeiros de passageiros, de matrículas ..-SB-.. (da marca “Volvo”, modelo …), de que é proprietária e que estava estacionado do lado direito da faixa de rodagem daquela artéria, e ..-NU-.. (da marca “Audi”, modelo ..), pertencente a E… (e, na altura, conduzido pela sua filha F…), o qual transferira para a “C…, S.A.” a responsabilidade decorrente de danos causados a terceiros em virtude da circulação dessa viatura com a celebração de contrato de seguro titulado pela apólice n.º ………..
A condutora do “Audi ..” assumiu a culpa na produção do acidente (fê-lo, expressamente, na declaração amigável de acidente automóvel) e também a ré aceitou a culpa da condutora do veículo do seu segurado, assumindo a responsabilidade de reparar os danos causados pelo NU.
Em consequência da colisão, o seu “Volvo …” sofreu danos de tal modo extensos que ficou impossibilitado de circular e foi estimado (pelo responsável da oficina reparadora G… e pelo perito nomeado no âmbito da IDS) em €12.032,17 o custo da sua reparação.
A ré considerou excessivo o custo da reparação da viatura e optou por considerar a sua perda parcial, mas não lhe fez uma proposta razoável de indemnização, pois o seu valor venal é de € 17.000,00.
Está privada do uso do veículo desde o acidente, privação que fez com que sofresse vários prejuízos, designadamente a perda de rendimentos do trabalho, pois exercia a actividade de podologista e para as suas deslocações a casa dos clientes utilizava a viatura sinistrada.
Pretende, pois, ser ressarcida de todos os danos patrimoniais sofridos.

2. Oposição da ré
A ré apresentou contestação, defendendo-se por impugnação.
Aceitou a culpa da condutora do veículo NU (do seu segurado) na eclosão do acidente em causa e, considerando que o valor da reparação do “Volvo …” ascendia a € 12.032,71, que o seu valor de mercado, antes do acidente, era de € 12.500,00 e que a melhor proposta de aquisição da viatura com danos (“salvados”) era de € 6.555,00, propôs-se pagar à autora a indemnização de € 5.945,00, posteriormente aumentada para € 6.320,00, mas esta não aceitou a proposta.
Dado que o custo da reparação, adicionado do valor do salvado, é superior ao valor de substituição da viatura da autora, era-lhe juridicamente inexigível que pagasse esse custo, atento o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 153/2008, de 06/08, e o veículo deve ser considerado perda total.
Considerando que entre a data do sinistro (24.10.2018) e a data (13.11.2018) em que foi colocada à disposição da autora o valor da indemnização mediaram, apenas, 20 dias, é esse período que tem de ser tido em conta na determinação da indemnização por privação do uso da viatura.
Impugna os demais danos alegados pela autora, nomeadamente as quantias de € 1.575,00 (€ 350,00 x 4 meses e 15 dias), a título de compensação pela perda de clientes e de € 750,00 pela perda da oportunidade de cumprir um contrato que lhe foi proposto, ambas em consequência directa e necessária da privação do uso da viatura.

3. Saneamento e condensação
Tendo dispensado a audiência prévia, a Sra. Juiz fixou o valor da causa (em € 22.158,59), proferiu despacho saneador tabelar, fixou o objecto do processo e enunciou os temas de prova, sem reclamações, admitiu a produção dos meios de prova indicados pelas partes e designou data para a audiência final.

4. Audiência final e sentença
Realizou-se a audiência final, em duas sessões, após o que, com data de 12.08.2019, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Nos termos e fundamentos expostos, decide o Tribunal julgar a presente ação parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência,
- condenar a Ré a pagar à Autora B… a quantia de € 11.585,97 (onze mil, quinhentos e oitenta e cinco euros e noventa e sete cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal fixada para os juros civis a cada momento devidos, calculados desde a citação da Ré para os termos da presente até integral e efetivo pagamento da quantia devida;
- condenar a Ré a pagar à Autora B… a quantia diária de € 15,00 (quinze euros) desde 19 de março de 2018 (inclusive) até entrega da indemnização à Autora, acrescida de juros de mora à taxa legal fixada para os juros civis a cada momento devidos, calculados desde a data de 19 de março de 2019 até integral e efetivo pagamento da quantia devida;
- absolver a Ré do demais peticionado pela Autora.
Custas a cargo das partes na proporção do respetivo decaimento, nos termos do artigo 527.º do Código de Processo Civil.»

5. Impugnação da sentença
Inconformada com a sentença, a ré dela interpôs recurso de apelação, com os fundamentos explanados na respectiva alegação, que condensou nas seguintes conclusões:
«1 – O objecto primordial do presente recurso é a veemente impugnação da decisão proferida quanto à circunstância de não se ter dado como provado o valor venal do veículo, a perda total do veículo, a apresentação de uma proposta razoável de indemnização e que a Apelada jamais solicitou uma viatura de substituição à Apelante - atento o errado julgamento dos mesmos.
2 – In casu, resulta com cristalina clareza dos meios de prova produzidos que tais factos deveriam merecer uma resposta de Provado.
3 – A prova produzida, em concreto, o confronto do i) depoimento da testemunha H… (Depoimento gravado no Habillus Media Studio, no dia 16 de Setembro de 2019, com início de gravação às 11:08:46 e fim de gravação às 11:23:58) com ii) os documentos 4, 6 e 7 juntos com a contestação impõe que se considere como provado que, à data do sinistro, o veículo de matrícula ..-SB-.. tinha um valor venal de € 12.500,00.
4 – A Autora/Recorrida apenas discute o montante da indemnização em dinheiro pela perda do seu veículo, pelo que aceita a situação de perda total do seu veículo de matrícula ..-SB-...
5 – A Autora/Recorrida celebrou um contrato de crédito pessoal para aquisição do veículo de matrícula ..-SB-...
6 – O valor em dívida, no âmbito do empréstimo contraído pela Autora/Recorrida para aquisição do veículo com a matrícula ..-SB-.., não foi peticionado nos presentes autos.
7 – Não foi por o valor proposto pelas seguradoras ser justo ou injusto que a Autora/Recorrida o recusou.
8 – A Autora/Recorrida recusou a proposta apresentada pela Ré/Recorrente porque essa proposta não permitiria liquidar o empréstimo contraído para adquirir o veículo com a matrícula ..-SB-.. e, cumulativamente, adquirir um novo veículo automóvel.
9 – A Ré/Recorrente não pode ser condenada a pagar o valor ainda por liquidar no contrato de empréstimo celebrado pela Autora/Recorrida para adquirir o veículo com a matrícula ..-SB-...
10 – A Ré/Recorrente não pode ser prejudicada pela posição que a Autora/Recorrida tomou – recusa da proposta razoável apresentada pela Ré/Recorrente – com base numa dívida não integralmente liquidada e que não foi aqui reclamada.
11 – Do confronto do i) depoimento da testemunha H… (supra identificada) com ii) os documentos n.ºs 4 e 12 juntos com a contestação, resulta provado que a Ré apresentou proposta razoável de indemnização à Autora com o valor global de € 12.875,00.
12 – A obrigação da Apelante colocar à disposição da Apelada um veículo de substituição, de características semelhantes, cessou no momento em que a congénere colocou à disposição o pagamento da indemnização – in casu 13.11.2018
13 – Mesmo que se mantenha o critério fixado na douta sentença recorrida, o valor deverá ser reduzido a € 315,00, no pressuposto do pagamento diário de € 15,00 durante 21 dias.
14 – No entanto, a Apelante entende que, independentemente da aplicação do regime da perda total, sempre cumpria à Apelada a prova de que, efectivamente, teve danos e, bem assim, a recusa da Ré em conceder um veículo de substituição – o que não aconteceu.
15 – A Apelada teve à sua disposição um veículo automóvel, emprestado por uma pessoa amiga, que foi posteriormente adquirido pelo seu companheiro em Março de 2019, que permitiu substituir o veículo sinistrado desde Novembro de 2018.
16 – Do confronto do i) depoimento da testemunha H… (supra identificada) com ii) as declarações de parte da Autora/Recorrida (Depoimento gravado no Habillus Media Studio, no dia 22 de Outubro de 2019, com início de gravação às 09:39:51 e fim de gravação às 10:43:04), resulta provado que a Apelada nunca solicitou à Ré/Recorrente qualquer viatura de substituição.
17 – Assim, não deveria a Apelante ter sido condenada num qualquer valor a título de privação.
18 – E, a ter sido, o valor de € 15,00 mostra-se excessivo, mostrando-se equitativo o valor de € 10,00.
19 – A proposta de trabalho apresentada à Autora/Recorrida na sua área de podologia, com um valor estimado de retribuição entre € 600,00 a € 900,00, foi apresentada em Fevereiro de 2018 ou Fevereiro de 2017, ou seja, muito tempo antes do acidente dos presentes autos.
20 – Assim, a título de lucros cessantes, Apelante apenas poderia ser condenada no valor máximo de € 100,00.
21 – A Ré/Recorrente indicou, nos termos legais, os concretos meios probatórios que impõem diversa decisão dos pontos da matéria de facto impugnados.
22 – Ao decidir como fez, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 562º e segts. do Código Civil, o disposto nos artigos 41º e 42º do DL 291/2007 e, bem assim, o disposto nos artigos 411º, 413º e 414º, todos do CPC, impondo-se a revogação nos termos aqui peticionados.
23 – Por fim, convirá referir que douta sentença recorrida, por ter condenado “ultra petitum”, enferma da nulidade preceituada na al. e) do artigo 615º, n.º 1 do CPC.
24 – A sentença recorrida, para além de ter condenado a Ré a pagar à Autora a quantia de € 2.190,00 [€ 15,00 x 146 dias] para ressarcimento do dano pela privação do uso do veículo entre 24.10.2018 até 18.03.2019, período já liquidado, condenou ainda a Ré a pagar à Autora a quantia diária de € 15,00 desde 19.03.2019 (inclusive) até efectiva entrega da indemnização fixada.
25 – Ao condenar a Ré nos termos em que o fez o Tribunal a quo condenou em quantidade superior e em objecto diverso do que foi pedido, pelo que violou claramente o disposto no n.º 1 do artigo 609.º do CPC, de onde resulta que a sentença é, nessa parte, nula, atento o disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. e) do CPC.»

Remata a sua alegação pedindo a revogação da sentença recorrida.
A autora contra-alegou, pugnando pela confirmação do decidido.
O recurso foi admitido (com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo).
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
Importa frisar este ponto: são as conclusões que balizam os limites da intervenção do tribunal ad quem e nestas pode o recorrente restringir o objecto do recurso que definiu no “corpo” da motivação.
Vem isto a propósito da impugnação da decisão da matéria de facto que, como mais adiante veremos, nas conclusões tem um âmbito bem mais restrito que o enunciado nas alegações.
Nesse segmento, a recorrente imputa ao tribunal erro na apreciação da prova.
Em matéria de direito, alega que, mesmo sem alteração factual, impõe-se outra solução jurídica, designadamente quanto à indemnização, por privação do uso do veículo, arbitrada à autora, que, na sua perspectiva, não é devida.
Além disso, a recorrente argui a nulidade da sentença porque teria condenado em objecto diverso do que foi pedido.
São, assim, questões a apreciar e decidir (por esta ordem):
- se a sentença recorrida está afectada da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Civil;
- se o tribunal a quo fez incorrecta apreciação e valoração da prova, assim incorrendo em erro de julgamento quanto à matéria de facto, impondo-se uma alteração da decisão;
- se, seja em resultado de uma alteração factual que se imponha, seja em face dos factos considerados provados, a subsunção jurídica efectuada merece reparo e deve ser modificada.

IIFundamentação
1. Fundamentos de facto
Delimitado o thema decidendum, atentemos na factualidade que a primeira instância deu por assente, bem como a que considerou não provada.

A) Factos provados
a) No dia 24 de outubro de 2018, cerca de 01h 30m, na avenida …, Gondomar, sentido …/…, ocorreu um acidente de viação no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, marca Audi, modelo .., com a matrícula ..-NU-.. propriedade de E… e conduzido pela sua filha F…, titular da licença de condução n.º P-…….. e; o veículo ligeiro marca Volvo, modelo, com a matrícula ..-SB-.., propriedade da Autora B…, titular da licença de condução n.º P-……. (resposta ao artigo 1.º da petição inicial).
b) Sucede que o veículo com a matrícula ..-NU-.., conduzido por F…, entrando em despiste e embateu violentamente no veículo de marca Volvo …, com a matrícula ..-SB-.., propriedade da Autora (resposta ao artigo 2.º da petição inicial).
c) Que se encontrava imobilizado/estacionado na avenida …, Gondomar (resposta ao artigo 3.º da petição inicial).
d) Por causa do embate referido em b), o veículo da Autora sofreu danos, cuja reparação foi orçada por estimativa na quantia de € 12.032,17 (resposta ao artigo 10.º da petição inicial e aos artigos 14.º e 30.º da contestação).
e) O salvado foi avaliado em € 6.555,00 (resposta aos artigos 14.º, 31.º e 38.º da contestação).
f) Na data do sinistro o veículo da Autora tinha o valor venal de € 14.923,95 (resposta ao artigo 17.º da petição inicial).
g) Por causa do embate referido em b), o veículo da Autora ficou impossibilitado de circular (resposta ao artigo 12.º da petição inicial).
h) A Autora exerce a atividade de podologista licenciada, como trabalhadora independente (resposta ao artigo 18.º da petição inicial).
i) Prestando serviço domiciliários nas áreas dos distritos do Porto e Aveiro (resposta aos artigos 19.º e 33.º da petição inicial).
j) O veículo identificado em a) consubstanciava o único meio de transporte da Autora para se deslocar ao domicílio dos seus vários clientes (resposta ao artigo 20.º da petição inicial).
k) Até à data do acidente a Autora utilizava diariamente o veículo identificado em a) na sua atividade, nomeadamente, para se deslocar ao domicílio dos seus clientes (resposta aos artigos 39.º e 40.º da petição inicial).
l) O veículo identificado em a), também servia a Autora para outras atividades da sua vida diária (resposta ao artigo 21.º da petição inicial).
m) Por causa do referido em g), a Autora recorreu ao auxílio de terceiros para se deslocar e a transportes públicos (resposta aos artigos 22.º e 41.º da petição inicial).
n) Por causa do referido em m), a Autora gastou a quantia de € 127,92 para manutenção de um veículo que lhe foi emprestado (resposta ao artigo 24.º da petição inicial).
o) Por causa do acidente referido em a), a Autora adiou consultas que teve de remarcar e falhou algumas, tendo deixado de auferir a quantia de € 100,00 (resposta ao artigo 36.º da petição inicial).
p) A Autora recebeu no dia 10 de outubro de 2018 uma proposta de trabalho na sua área de podologia, onde teria de se deslocar em novembro a Viseu com um valor estimado de retribuição entre € 600,00 a € 900,00 (resposta ao artigo 34.º da petição inicial).
q) Por causa do acidente referido em a) a Autora não pode celebrar o contrato referido em p), perdendo o ganho da quantia de € 750,00 (resposta ao artigo 35.º da petição inicial).
r) Após o acidente referido em a), a viatura da Autora foi rebocada para a G… e, posteriormente foi rebocada para uma garagem onde se encontra aparcada, este último reboque custou a quantia de € 49,20 à Autora (resposta aos artigos 2.º e 26.º da petição inicial).
s) A Autora continua a pagar a quantia mensal de € 234,20 para amortização do empréstimo que celebrou para aquisição do veículo identificado em a), apesar de não utilizar a viatura (resposta ao artigo 32.º da petição inicial).
t) Por carta datada de 13/11/2018, a congénere da Ré comunicou à Autora que colocavam à sua disposição a quantia de € 5.945,00 para regularização do sinistro (resposta aos artigos 44.º, 54.º, 57.º e 66.º da contestação).
u) Por meio de contrato de seguro válido e eficaz à data referida em a), titulado pela apólice n.º ………., a Ré assegurou o risco da circulação automóvel do veículo com a matrícula ..-NU-.. (resposta ao artigo 42.º da petição inicial).

B) Factos não provados

1) Na data do sinistro o veículo da Autora tinha o valor venal de € 17.000,00 (resposta ao artigo 17.º da petição inicial).
2) Na data do sinistro o veículo da Autora tinha o valor venal de € 12.500,00 (resposta aos artigos 31.º e 32.º da contestação).
3) A Autora paga a quantia mensal de € 50,00 pelo parqueamento da sua viatura (resposta ao artigo 27.º da petição inicial).
4) Por causa do facto provado o), a Autora deixou de auferir a quantia de € 350,00 (resposta ao artigo 36.º da petição inicial).
*
Suscitada em recurso a nulidade da sentença, cabe ao juiz do tribunal a quo, imediatamente antes de ordenar a sua subida, pronunciar-se sobre a nulidade arguida (artigos 617.º, n.º 1, e 640.º, n.º 1, do CPC).
Assim fez a Sra. Juiz, proferindo o seguinte despacho:
«Nos termos e para os efeitos do artigo 617.º, n.º 1 e n.º 5 do Código de Processo Civil, este Tribunal de 1.ª instância julga improcedente a nulidade invocada pela Ré, pois não se mostra violado o disposto no artigo 609.º, n.º 1 do mesmo diploma legal. Com efeito, o Tribunal fixou um quantitativo diário inferior ao peticionado pela Autora, liquidado pela Autora e, por outro lado, o dano da privação do uso do veículo foi julgado verificado (quer para o pedido específico, quer para o genérico), o cálculo diário é a fixar com base na equidade conforme tudo foi explicado na sentença, logo, inexiste fundamento legal para relegar para execução de sentença a liquidação de um pedido genérico, cujo critério a utilizar é a equidade, tal como prevê o artigo 609.º, n.º 2, última parte. É que o pedido foi formulado (não existe condenação sem pedido) e, a quantificação diária (com base na equidade) até foi fixada em montante inferior ao liquidado pela Autora (não existe quantificação para além do pedido), isto é, não se verifica a primeira parte do artigo 609.º, n.º 1 e, por último, não faz qualquer sentido relegar para execução de sentença um pedido genérico cujo critério de fixação é a equidade, tal como prevê o artigo 609.º, n.º 2 “Se não houver elementos para fixar o objeto ou quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo da condenação imediata na parte que já seja líquida” que é o que acontece quando o critério a utilizar para a fixação a quantidade seja a equidade.
Finalmente, o Tribunal não condenou em objeto diferente do pedido, pois a Autora pediu a condenação da Ré numa obrigação pecuniária, cujo quantitativo relegou para execução de sentença, todavia, sempre se trata de uma obrigação pecuniária, o que está em causa é a quantidade e, não o objeto.»
Como se pode constatar, a improcedência da arguição de nulidade está, suficientemente, fundamentada e dispensaria outras considerações.
Ainda assim, aditaremos as seguintes:
A recorrente alega que o Tribunal recorrido condenou em quantidade superior e em objecto diverso do que foi pedido (conclusão 25.ª).
Ora, além de um pedido concreto e determinado (condenação da ré a pagar-lhe uma indemnização no montante de € 22.158,59, acrescido de juros de mora vincendos, correspondente ao valor do “Volvo …” que, face à extensão dos danos sofridos, foi considerado como perda total), a autora formulou um pedido genérico: a condenação da ré a pagar-lhe uma indemnização, a apurar “em sede de execução de sentença”, pelos demais danos patrimoniais sofridos em consequência do acidente, designadamente os da privação do uso do seu automóvel e da perda de retribuições.
Quando o autor pede uma indemnização que não quantifica (i.e. cujo quantitativo não precisa) por não conhecer, ainda, toda a extensão do dano, formula um pedido genérico (artigo 556.º, n.º 1, al. b), do CPC).
Mas um pedido de indemnização genérico, uma vez provado o dano, não impõe uma condenação genérica e se for fixado um montante determinado não estaremos perante uma condenação ultra petitum.
No caso, procedeu-se à fixação equitativa da indemnização (a ré foi condenada a pagar à Autora B… a quantia diária de € 15,00 desde 19 de março de 2018 até entrega da indemnização à Autora, acrescida de juros de mora) e essa opção foi assim justificada:
«A Autora pede a condenação da Ré a pagar a quantia de € 2.456,74 para ressarcimento do dano de privação do uso do veículo até á propositura da ação, todavia, não explica o critério que utilizou para o cálculo que fez para assim liquidar o pedido e; ainda pede a condenação da Ré pelo dano de privação do uso do veículo da Autora a liquidar em execução de sentença. Nesta conformidade, o pedido encontra-se liquidado desde a data de 24 de outubro de 2018 a 18 de março de 2019, ou seja, 146 dias.
Tendo em consideração os factos julgados como provados, na sequência da jurisprudência supra transcrita, uma vez que a Autora não procedeu ao aluguer de um veículo a indemnização é fixada com recurso à equidade, que no caso em apreço a quantia de € 15,00 julga-se equilibrada a quantia diária de € 15,00 para ressarcir a Autora da falta diária do seu veículo, sobretudo para o exercício da sua profissão que consiste em fazer consultas ao domicílio.
Nesta conformidade, € 15,00 diários x 146 dias (desde 24/10/2018 até (18/03/2019) = € 2.190,00, quantia a que se condena Ré para ressarcimento do dano da privação do uso do veículo entre 24 de outubro de 2018 a 18 de março de 2019, período já liquidado.
Acrescida, ainda, da quantia de € 127,92, comprovadamente gasta pela Autora por causa da privação do uso do seu veículo.
A Autora também pede a condenação da Ré a pagar a quantia a apurar em sede de execução de sentença pelos danos sofridos pela privação do uso do veículo.
Inexiste fundamento para deduzir um pedido genérico.
Com efeito, e à semelhança das ações de despejo nas quais se condena o arrendatário a pagar a renda mensal até à entrega do arrendado, a lógica nesta ação é semelhante, é só fixar a quantia diária cuja condenação se impõe à Ré desde o dia 19 de março de 2019 (inclusive) até que a Ré entregue a indemnização à Autora para que esta possa adquirir um veículo para substituir o veículo que foi destruído, sendo que a Autora nada fez que não fosse estacionar o seu veículo.
Desta forma, uma parte do pedido genérico deduzido pela Autora a fls. 8, sob a alínea b), fica já decidido e liquidado não havendo necessidade de remeter para sentença a sua liquidação, aliás, nem poderia, pois trata-se da fixação da indemnização com base na equidade nos termos do artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil.
Logo, inexiste fundamento legal para relegar para execução de sentença o montante a fixar a título de indemnização, quando a fixação do montante em causa tem como critério a equidade.
E, nem sequer impressiona que a quantia já devida seja de € 2.190,00 para o ressarcimento do dano da privação do uso de veículo, porquanto decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 13/07/2017, com o n.º de processo 188/14.3T8PBL.C1.S1, com o n.º convencional 2.ª SECÇÃO, relatado pela Exma. Sra. Conselheira Maria da Graça Trigo, disponível para consulta in www.dgsi.pt “Compreendendo-se o período de privação do uso do veículo entre 04/01/2013 e a data da entrega efetiva da indemnização pela perda total do veículo (que se desconhece se já ocorreu), uma vez que o valor acumulado da indemnização pela privação de uso ascenderá presentemente a um nível extremamente elevado e desproporcionado, tanto em relação ao valor devido pela perda total do veículo sinistrado, como em relação ao preço de um veículo novo nos últimos anos em que foi o mesmo produzido, deve o valor da indemnização a atribuir ter como limite máximo este último valor” (sublinhado nosso)
Nesta conformidade, o limite máximo da indemnização a fixar pela privação do uso do veículo reporta-se ao preço do veículo da Autora identificado no facto provado a) em estado de novo produzido nos últimos anos, que não é seguramente inferior nem igual ao seu valor venal, sendo que a indemnização fixada nem sequer atinge tal valor venal.
Este pedido procede parcialmente, impondo-se a condenação da Ré a pagar a quantia já liquidada desde 24 de outubro de 2018 até 18 de março de 2019 de € 2.190,00 (dois mil, cento e noventa euros) + € 127,92 (cento e vinte e sete euros e noventa e dois cêntimos), num total de € 2.317,92 (dois mil, trezentos e dezassete euros e noventa e dois cêntimos).
A este montante acresce juros de mora, à taxa legal para os juros civis, a contar da data da citação da Ré para os termos da presente ação até integral e efetivo pagamento, de harmonia com o disposto nos artigos 804.º, 805.º, n.º 2, alínea b) e n.º 3, 806.º, n.º 1 e n.º 2 e 559.º, todos do Código Civil, tal como peticionado.
Mais se impõe a condenação da Ré, atento o pedido genérico formulado, a pagar à Autora a quantia diária de € 15,00 (quinze euros) desde 19 de março de 2019 (inclusive) até efetiva entrega da indemnização ora fixada.»
Sendo este um campo em que domina o princípio do dispositivo (que veda ao juiz a interferência na circunscrição do thema decidendum), tem-se vindo a assistir a uma atenuação da rigidez da regra estabelecida no n.º 1 do artigo 609.º do CPC[1] e quando o juiz se defronta com o dilema condenação genérica/fixação equitativa da indemnização, a opção «deve dirimir-se a favor do meio que dê mais garantias de se ajustar à realidade. Por isso, se for previsível que o valor exato do dano será apurado com prova complementar, deve preferir-se a condenação genérica; já se, apesar de provado o dano, não for previsível que possa determinar-se o seu montante exato com recurso a prova complementar, deve fixar-se logo a indemnização com recurso à equidade»[2].
Ora, afigura-se indiscutível que numa eventual liquidação a efectuar no seguimento de uma condenação genérica, não se alcançará maior exactidão e rigor na determinação do dano.
Há elementos bastantes para determinar os limites, mínimo e máximo, do juízo de equidade e por isso andou bem a Sra. Juiz ao optar pela condenação num valor indemnizatório determinado em detrimento de uma condenação genérica.
Também não há condenação em objecto diverso do que a autora pediu e por isso é, manifestamente, improcedente a arguição de nulidade da sentença.
*
Foquemo-nos, então, na impugnação da decisão sobre matéria de facto.
O recorrente que pretenda impugnar, com sucesso, a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de cumprir (“sob pena de rejeição”) vários ónus de especificação (artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil):
- dos concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido, obrigação que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida[3];
- das concretas provas (constantes do processo ou que nele tenham sido registadas) que impõem decisão diversa da recorrida, ónus que se cumpre com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe outra decisão[4];
- da decisão (diversa da recorrida) que, na sua óptica, se impõe quanto a cada um dos pontos de facto que considera mal julgados.
Além disso, o recorrente tem de expor a(s) razão(ões) por que, na sua perspectiva, as provas impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se-lhe que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado e que explicite os motivos dessa imposição. É essa explicitação que constitui o cerne do dever de especificação.
Sobre as exigências da motivação do recurso quanto à impugnação da decisão de facto, tende a consolidar-se e tornar-se pacífico o entendimento de que a rejeição do recurso que impugna a decisão sobre matéria de facto só se justifica verificada alguma destas situações:
- falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b), de CPC;
- falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (artigo 640.º, n.º 1, al. a), do CPC), pela importante função delimitadora do objecto do recurso que essa especificação desempenha;
- falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados;
- falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
- falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação[5].
No corpo da sua alegação, a recorrente defende que a prova produzida impõe que se considerem provados os seguintes factos:
• O veículo ligeiro marca Volvo, modelo …, com a matrícula ..-SB-.., propriedade da autora B…, do ano de fabrico de 2013, com 196.542 km marcados no conta-quilómetros tinha, na data do acidente, o valor de mercado de € 12.500,00;
• A autora aceitou que o seu veículo, no seguimento do sinistro, ficou em situação de perda total;
• A Ré apresentou uma nova proposta de indemnização à Autora com o valor global de € 12.875,00 [€ 6.320,00 (indemnização) + € 6.555,00 (salvado)]; e
• a Autora jamais requereu à Ré a disponibilização de um veículo de substituição;

e como factos não provados (descritos nas alíneas f), j), p) e q) do elenco de factos considerados provados):
• Na data do sinistro o veículo da Autora tinha o valor venal de € 14.923,95;
• O veículo identificado em a) consubstanciava o único meio de transporte da Autora para se deslocar ao domicílio dos seus vários clientes:
• A autora recebeu no dia 10 de Outubro de 2018 uma proposta de trabalho na sua área de podologia, onde teria de se deslocar em Novembro a Viseu com um valor estimado de retribuição entre € 600,00 a € 900,00; e
• Por causa do acidente referido em a) a Autora não pode celebrar o contrato referido em p), perdendo o ganho da quantia de € 750,00.
Porém, nas conclusões que formulou a recorrente restringe (pelo menos, tacitamente) o âmbito da impugnação, limitando-a a três pontos concretos da matéria de facto:
- o valor venal do veículo da autora imediatamente antes do acidente (conclusão 3.ª);
- a proposta de indemnização que apresentou à autora (conclusão 11.ª) e
- a autora não lhe solicitou um veículo de substituição (conclusão 16.ª).

Pelas razões já aduzidas, são esses - e apenas esses - os pontos de facto sobre os quais terá de incidir o julgamento deste tribunal de recurso.
O n.º 1 do artigo 662.º do CPC põe a cargo da Relação o dever de alterar a decisão sobre a matéria de facto sempre que «os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa» e este preceito (em conjugação com o artigo 640.º, n.º 1) tem sido interpretado no sentido de que, por um lado, à segunda instância não cabe proceder à reapreciação da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, pois duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no tribunal de recurso, e por outro que, se não basta que as provas, simplesmente, permitam, ou até sugiram, conclusão diversa daquela que foi a conclusão probatória a que se chegou na primeira instância, também não se exige um erro notório, ostensivo na apreciação da prova para que a Relação deva proceder à alteração desse segmento da decisão.
A argumentação da recorrente para obter a pretendida alteração da decisão de facto assenta, essencialmente, naquilo que foram as vicissitudes e incidências do chamado “procedimento de regularização de sinistros” previsto e regulado nos artigos 31.º e seguintes do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto (que aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel – SORCA).
Trata-se de um «procedimento pré judicial de regularização do sinistro automóvel, que se consubstancia na apresentação ao lesado de “proposta razoável de indemnização” pela empresa de seguros»[6] e visa «garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel» (citado artigo 31.º).
Alega a recorrente que resulta da prova produzida que apresentou (à recorrida) proposta razoável de indemnização com o valor global de € 12.875,00 e que, no momento em que esse valor foi colocado à disposição da lesada (em 13.11.2018), cessou a obrigação de colocar à disposição desta um veículo de substituição, de características semelhantes ao sinistrado (conclusões 11.ª e 12.ª). Aliás, nunca a autora requereu à ré a disponibilização de um veículo de substituição e, também por isso, não lhe é devida qualquer indemnização pela privação do uso da sua viatura.
A recorrente acaba por pedir que a sentença recorrida seja substituída por acórdão que a condene «de acordo com os critérios previstos no n.º 3 do artigo 41º do citado Decreto-Lei nº 291/2007 de 21 de Agosto, ou seja, o valor venal deduzido do valor do salvado. O mesmo é dizer, € 12.500,00 - € 6.555,00 = € 5.945,00».
Com todo o respeito devido, a recorrente parece estar equivocada quanto aos critérios de cálculo da indemnização devida ao lesado, pelo que se justifica uma breve incursão pelo direito.
Escusado seria dizer (não fora a argumentação da recorrente que associa consequências negativas para a autora pelo facto de esta não a ter aceite) que a “proposta razoável de indemnização” que a empresa seguradora está obrigada a apresentar ao lesado (uma vez assumida a responsabilidade pelas consequências do acidente) não tem que ser por este aceita e, se a rejeitar, já não poderão ser convocadas as normas do SORCA, em particular as do seu artigo 41.º que regulam a situação de perda total do veículo interveniente no acidente.
Frustrando-se o acordo com o lesado, aplicam-se em toda a sua plenitude as regras gerais sobre o cálculo da indemnização contidas no Código Civil, mormente as dos artigos 562.º e seguintes[7].
Ora, como é bem sabido, da conjugação dessas normas (sobretudo as dos artigos 562.º e 566.º, n.º 1) «resulta uma clara primazia da reconstituição in natura sobre a indemnização em dinheiro, o que quer dizer que é primordialmente através da reparação do objecto destruído ou da entrega de outro idêntico que se estabelece a obrigação de indemnização»[8].
Em termos práticos, isso significa que a lesada tinha o direito de exigir da seguradora ré a reparação da sua viatura automóvel danificada no acidente, não lhe podendo ser oposta a excessiva onerosidade da reconstituição natural.
Sem menosprezar a importância da proporcionalidade entre o valor de mercado da coisa danificada e o custo da sua reparação, o entendimento, praticamente, uniforme é o de que só perante uma manifesta desproporção entre o interesse do lesado à total reparação do veículo, quando possível, e o custo que tal representa para a seguradora é que poderá ser afastada a obrigação da reconstituição natural[9].
A indemnização específica (o mesmo é dizer, a reconstituição natural) só será de excluir, por excessivamente onerosa, quando a sua exigência atente gravemente contra os princípios da boa-fé[10].
Considerando o custo (por estimativa) da reparação da viatura da autora (€ 12.032,17) e o valor venal que a própria recorrente atribuiu ao veículo antes do acidente (€ 12 500,00), é evidente que não se verificava a excessiva onerosidade da reparação, como esta alega.
O que aconteceu foi que, em face desses valores, a recorrente, considerando verificada a hipótese legal da alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do SORCA (o valor estimado para a reparação dos danos resultantes do acidente, adicionado do valor do salvado, ultrapassava 120% do valor venal do veículo), concluiu que não estava obrigada a custear a reparação do veiculo da autora, por excessivamente onerosa.
No entanto, as três alíneas do n.º 1 daquele artigo contemplam hipóteses que interessam para se considerar verificada a situação de perda total do veículo que justifica a substituição da indemnização específica pela indemnização pecuniária e, como já se assinalou, tal ocorre no âmbito do procedimento pré-judicial de regularização do sinistro que pode culminar, ou não, num acordo.
Em todo o caso, a autora aceitou que ocorria a situação de perda total da sua viatura automóvel (se bem que por considerar que a reparação não garantia que as condições de segurança não ficariam afectadas) e optou pela indemnização pecuniária, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a indemnização de € 17.000,00, montante que, na sua perspectiva, corresponde ao seu valor venal.
Frequentemente, a expressão “valor venal” é utilizada como sinónimo de “valor comercial” ou “valor de mercado”, ou seja, como valor que o proprietário obteria com a alienação do veículo.
No entanto, o valor venal há-de corresponder ao “valor de substituição” do veículo totalmente perdido, que «será o valor pecuniário de um veículo de substituição de características semelhantes ao sinistrado no momento anterior ao acidente, por forma que com esse valor o lesado possa adquirir no mercado (normalmente mercado de ocasião ou mercado de usados) um veículo que lhe permita continuar a circular e assim satisfazer as necessidades do giro pessoal-familiar ou giro profissional, o seu verdadeiro interesse (inter est: quid entre o sujeito e o objecto). Deste modo (mas só deste modo) se reconstituirá a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização…» (João Calvão da Silva in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 137.º, pág. 64).
Esse era o entendimento já firmado na jurisprudência: que a reposição da situação patrimonial do lesado só se alcançará com o valor que a este custaria a compra de um veículo com as características do acidentado (naturalmente, antes do acidente); é esse entendimento que está agora consagrado no n.º 3 do artigo 41.º do SORCA ao dispor que “o valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente”.
Um último ponto que importa abordar quando se opera a indemnização por equivalente pecuniário do valor venal do veículo em caso de perda total é o da dedução do valor dos salvados.
O instituto da compensatio lucri cum damno indica-nos que assim deve ser.
Vejamos se a regra tem plena aplicação no caso que se julga.
A recorrente alega que, logo em 13.11.2018, o valor da indemnização foi colocado à disposição da autora, mas, em rigor, a realidade é bem diversa do alegado.
O que a recorrente disponibilizou à autora no âmbito do procedimento de regularização do sinistro foi a quantia de € 5.945,00 (al. t) do elenco de factos provados), considerando que o valor do salvado era de € 6.555,00 e, uma vez que este estava na posse da autora, deduziu esse valor ao montante de € 12.500,00, fazendo recair sobre a lesada o risco da sua venda ou, nas impressivas palavras do acórdão desta Relação de 03.04.1995, quis impor à lesada «o ónus de comercializar a “sucata”».
O n.º 3 do artigo 41.º do SORCA prevê a possibilidade de deduzir no valor da indemnização por perda total do veículo o valor do respectivo salvado “caso este permaneça na posse do seu proprietário”, expressão que aponta no sentido de que é preciso uma manifestação de vontade do lesado de ficar, definitivamente, com o salvado.
No caso, não existiu essa manifestação e, mesmo que se defenda que o valor do salvado pode ser descontado no valor da indemnização se o lesado não declarar que prescinde da propriedade daquele[11], não se vislumbra motivo algum para exigir uma declaração formal, explícita, bastando que tal decorra, inequivocamente, do comportamento do lesado.
Ora, a autora pediu a condenação da ré, não só a pagar-lhe, a título de indemnização pela perda total do seu veículo, o montante que considerava ser o seu valor venal (€ 17.000,00) como ainda o reembolso da despesa que alegou suportar (€ 50,00 por mês) com a guarda (parqueamento) da viatura, o que bem revela o seu propósito de não manter a posse do salvado.
Na sentença recorrida, apesar de se ter considerado ser «previsível que passado mais de um ano da colocação do salvado em bolsa com a fixação do valor através da proposta mais elevada de € 6.555,00, a Autora já não consiga vender o salvado pelo preço de € 6.555,00», assim mesmo, deduziu esse montante no valor da indemnização de € 14 923,85 (correspondente ao valor venal apurado do veículo sinistrado) que era devido à lesada, decisão que não merece o nosso aplauso, pois acabou por beneficiar indevidamente a ré, mas com a qual a autora se conformou.
Regressando à impugnação da decisão sobre matéria de facto, vejamos como está justificado na sentença recorrida ter-se dado como provado que o valor venal do veículo da autora, antes do acidente, era de €14.923,85:
«No que tange ao facto provado f) e aos factos não provados 1) e 2), o Tribunal assentou a sua convicção no documento que se encontra junto aos autos de fls. 63 a fls. 65 que consubstancia a apólice que titula o contrato de seguro celebrado entre a Autora e a companhia de seguros I…, que inclui coberturas de danos próprios sendo que em dezembro de 2017 o veículo da Autora foi avaliado em €14.923,85.
A Autora em sede de declarações de parte referiu que na altura do sinistro efetuou simulações para apurar o valor do seu veículo e que se cifrava entre os € 15.000,00 e os € 16.000,00 mas sem contabilizar os extras que o veículo tem, mais esclareceu os elementos e características que introduziu no procedimento das simulações para apurar o valor do veículo.
As suas declarações encontram-se corroboradas pelos documentos juntos aos autos a fls. 12/verso e a fls. 13, todavia, a Autora tinha aceite fixar o valor do seu veículo em € 14.923,85 em sede de contrato de seguro com coberturas de danos próprios.»
A recorrente entende que o depoimento da testemunha H… e os documentos juntos com a contestação sob os n.os 4, 6 e 7 (não impugnados pela autora) impõem decisão diversa da recorrida, concretamente, que o valor de substituição do “Volvo …” da autora era de € 12.500,00.
A testemunha é (era) gestora de sinistro ao serviço da Companhia de Seguros I…, S.A. (que interveio no âmbito da Convenção IDS – indemnização directa ao segurado), sendo o seu local de trabalho em Lisboa, e, como esclareceu, não teve qualquer contacto com a viatura em causa. Os valores que referiu não resultam de qualquer averiguação que tenha efectuado ou do seu conhecimento pessoal directo, mas do que lhe foi transmitido. Sobre o valor venal do veículo sinistrado, ainda referiu que esse valor é determinado por consulta das tabelas legais, mas é sabido que não existem tais tabelas. Existem, sim, tabelas que se orientam por padrões médios de depreciação, mas que não têm em conta a situação específica do veículo. Acabou por esclarecer que o valor venal do veículo da autora é o que foi indicado pelo gabinete de “peritagem” da companhia de seguros. Como é que esse “gabinete de peritagem” chegou a esse valor? Não sabemos, mas não é difícil perceber que foi pela consulta do site especializado de que foram extraídas as cópias dos anúncios de venda de veículos juntos com a contestação como documentos nos 6 e 7. Ou seja, as provas que, na óptica da recorrente, impõem decisão diversa da recorrida acabam por se cingir aos tais anúncios para venda de veículos que constam do “J…”. As características dessas viaturas anunciadas para venda são, realmente, muito idênticas às da viatura da autora e o preço indicado é de € 12.500,00, mas também a autora recorreu ao mesmo tipo de pesquisa e o preço mencionado é de € 15.585,00.
Isto para dizer que as informações assim obtidas têm um valor indicativo, não devem ser menosprezadas, mas, por si sós, não impõem decisão diferente.
Decisivo na formação da convicção do tribunal quanto ao valor venal do veículo da autora acabou por ser o documento (apólice de seguro que titula o contrato de seguro celebrado com a “I…, S.A.”) oferecido pela autora, considerado «o único elemento fiável» para esse fim. Aquela empresa seguradora avaliou o veículo da autora em € 14.923,95 para o efeito de cobertura de danos próprios da sua segurada e é sabido que as seguradoras não inflacionam esses valores.
Argumenta a recorrente que não interveio nesse contrato em que foi fixado aquele valor, pelo que não está obrigada a acatá-lo. Mas também a autora é alheia à Convenção IDS no âmbito da qual a “I…, S.A.” atribuiu ao seu veículo o valor venal de € 12.500,00 e a recorrente defende que essa avaliação deve impor-se à lesada.
A questão não pode colocar-se nesses termos, mas antes em saber como devem ser valorados esses elementos probatórios, ou melhor, se há algo a censurar no processo probatório que culminou com a decisão de facto que a recorrente contesta.
Ora, afigura-se perfeitamente razoável e justificada a opção do tribunal de reconhecer o teor da apólice do seguro como o elemento mais fiável para determinar o valor venal do veículo da autora.
Quando muito, as provas indicadas pela recorrente poderiam sugerir decisão diversa da recorrida, mas seguramente não a impõem.
Passemos ao segundo ponto de facto que é objecto da impugnação.
A recorrente pugna pela inclusão no elenco de factos provados do seguinte (alegado no artigo 19.º da contestação):
• A Ré apresentou uma nova proposta de indemnização à Autora com o valor global de € 12.875,00 [€ 6.320,00 (indemnização) + € 6.555,00 (salvado)];

Na sentença recorrida, esse facto não consta, nem do acervo factual provado, nem dos que foram considerados não provados, omissão que só pode significar que o Tribunal não o considerou relevante para a decisão da causa.
A impugnação da decisão sobre matéria de facto não pode revelar-se uma «mera manifestação de inconsequente inconformismo», sob pena de rejeição por não satisfazer as exigências da motivação do recurso quanto a essa impugnação.
Só faz sentido impugnar a decisão de facto se o impugnante almejar, não só a alteração dessa decisão, mas também que a alteração tenha repercussão na decisão de direito, que modifique, ainda que parcialmente, a solução jurídica do caso.
Ora, a recorrente não esclarece o que pretende com esse facto e não descortinamos que consequência favorável para si poderia resultar do seu aditamento ao elenco dos factos provados.
Com aquela proposta, não pode dizer-se que ficava cumprida a obrigação de reconstituir a situação patrimonial da autora antes da lesão porque, em vez de uma proposta razoável tendo em vista um acordo, teríamos uma imposição da seguradora.
Mais ainda, como a própria recorrente admite, não foi colocado à disposição da lesada o valor indemnizatório proposto (€ 12.875,00), mas cerca de metade desse montante, sendo o restante o valor atribuído ao salvado, que a autora, em momento algum, declarou, expressa ou tacitamente, pretender que permanecesse na sua posse.
Assim, também quanto a este ponto, não procede a impugnação.
Pretende, ainda, a recorrente que seja acrescentado aos factos provados o seguinte:
• a Autora jamais requereu à Ré a disponibilização de um veículo de substituição.

As provas que, segundo a recorrente, justificam o aditamento desse facto são as declarações da própria autora (especificamente, o que disse a partir do minuto 20:43) e o depoimento da testemunha H….
No entanto, a passagem do depoimento de parte da autora que a recorrente invoca contraria a sua pretensão, pois o que aquela afirmou foi que a “I…, S.A.” (ainda quando tinha a gestão do processo de sinistro) disponibilizou-lhe um carro de substituição (apenas) por seis dias, mas teve que ir lá e fez uma reclamação por escrito.
Não disse que fez o mesmo com a ré, nem devia ser necessário fazê-lo.
O n.º 1 do artigo 42.º do SORCA estatui:
«1 - Verificando-se a imobilização do veículo sinistrado, o lesado tem direito a um veículo de substituição de características semelhantes a partir da data em que a empresa de seguros assuma a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente, nos termos previstos nos artigos anteriores.»
Por isso, a partir do momento em que assumiu a responsabilidade pela reparação dos danos resultantes do acidente, fosse qual fosse a utilização que a lesada desse à sua viatura, sabendo que esta não estava em condições de circular, era obrigação da ré disponibilizar-lhe um veículo de substituição e a autora não tinha que andar a lembrar-lhe essa obrigação.
A este propósito, a testemunha H… afirmou que achava que a Autora não pediu veículo de substituição, mas sem ter a certeza, o que, convenhamos, é bem pouco como prova do facto que a recorrente pretende seja acrescentado.
Concluindo, improcede a impugnação da decisão sobre matéria de facto empreendida pela recorrente.

2. Fundamentos de direito
Como já ficou claro, em matéria de direito, a questão a decidir diz respeito à extensão dos danos sofridos pela autora e, consequentemente, ao quantum indemnizatório devido.
Quanto à indemnização pecuniária por perda total do seu veículo “Volvo …” em consequência dos danos que, culposamente, lhe provocou a condutora do veículo do segurado da ré, tendo ficado assente que o seu valor venal ou valor de substituição era de € 14 923,95, teria de ser este o valor a pagar pela seguradora, pois não se provou que a lesada quis que o salvado permanecesse na sua posse e a ré não podia impor-lhe o ónus e o risco da sua comercialização.
Só assim seria alcançada a reposição da situação patrimonial da autora no momento imediatamente anterior ao acidente, como exige o artigo 562.º do Código Civil.
Tendo a ré sido condenada a pagar, a esse título, a quantia de € 8.368,85, acabou por ser indevidamente beneficiada.
Quanto à indemnização por privação do uso do veículo, a recorrente defende que não é devida, aduzindo, para tanto, as seguintes razões:
- ao colocar (em 13.11.2018) à disposição da lesada o valor da indemnização que lhe foi proposto, deixou de estar obrigada a disponibilizar-lhe um veículo de substituição (conclusão 12.ª);
- a autora nunca lhe solicitou um veículo de substituição (conclusão 16.ª);
- a lesada teve à sua disposição um veículo automóvel emprestado por uma pessoa amiga, que foi posteriormente adquirido pelo seu companheiro em Março de 2019, que lhe permitiu substituir o veículo sinistrado desde Novembro de 2018 (conclusão 15.ª);
- competia à autora fazer prova de que, efectivamente, teve danos, mas isso não aconteceu (conclusão 14.ª).
Quanto aos dois primeiros argumentos, cremos ter já demonstrado que não colhem.
Não se tendo alcançado um acordo no âmbito do procedimento pré-judicial de regularização do sinistro previsto nos artigos 35.º e segs. do SORCA, é de primeira evidência que da frustração dessa tentativa não podem resultar consequência negativas para o lesado. Tanto mais que a aqui autora tinha bons motivos para rejeitar a proposta que lhe foi feita e nem sequer é verdade que tenha sido colocado à sua disposição o valor proposto como indemnização, mas apenas cerca de metade.
A ré estava obrigada a colocar à disposição da autora um veículo de substituição, mas não logrou provar (aliás, nem sequer alegou) que cumpriu essa obrigação.
O terceiro argumento não tem qualquer suporte nos factos provados.
De todo o modo, «sendo (…) inequívoco que o sistema atribui ao lesado o direito à reconstituição natural da situação, o simples facto de essa faculdade não ter sido utilizada ou, mais do que isso, o facto de o lesado ter enfrentado uma recusa ilegítima de substituição, não pode desembocar, sem mais, na total liberação do responsável. Pelo contrário, a recomposição da situação danosa reclama que, pela única via então possível, ou seja, pela atribuição de um equivalente pecuniário, o lesado consiga ser reintegrado»[12].
A circunstância de a lesada ter sido comedida nas despesas que teve de fazer para ultrapassar os constrangimentos decorrentes da privação do uso da viatura não pode servir para obstar à indemnização do dano verificado.
O tema da privação do uso da coisa como dano patrimonial autónomo foi, também, abordada de forma hialina, proficiente e convincente pelo Sr. Conselheiro A.S. Abrantes Geraldes em intervenção feita no dia 27.10.2016 no Colóquio sobre o Código Civil, no Supremo Tribunal de Justiça, que aqui, com a devida vénia, reproduzimos:
«A problemática do ressarcimento de danos invocados com fundamento na privação do uso de bens materiais surgiu essencialmente no âmbito de acções de responsabilidade civil por acidentes de viação.
Na jurisprudência nacional, até certa altura, argumentava-se da seguinte forma:
a) Ao lesado cabe a demonstração dos danos causalmente imputados à prática do facto ilícito ou do risco (art. 342.º, n.º 1);
b) Os danos não se presumem, devendo ser demonstrados por quem os invoca;
c) A responsabilidade civil não tutela danos abstractos, exigindo a sua concretização no património do lesado;
d) A mera privação do uso de um veículo automóvel (ou de outro bem material), por si, não representa um dano de natureza patrimonial;
e) Não basta que o lesado alegue e prove que ficou privado das concretas utilidades que extraía do veículo de que ficou privado, devendo demonstrar, além disso, a existência de um saldo negativo determinado através da comparação entre a situação emergente da privação do uso e aquela em que o lesado estaria se acaso a mesma não tivesse ocorrido, relevando quer os danos emergentes (despesas acrescidas causadas pela falta do veículo ou pela substituição por outro de semelhantes características), quer os lucros cessantes (benefícios ou proveitos que deixou de auferir em consequência da privação).
Isto apesar de não se poder ignorar que:
a) O lesado, por causa do acidente, tem o direito de exigir a reconstituição natural da situação, a qual pode ser alcançada mediante a entrega de um veículo de substituição ou o pagamento de uma quantia correspondente ao seu aluguer (arts. 562º e 566º do CC);
b) O veículo automóvel, quando usado quotidianamente como instrumento de trabalho ou de locomoção ou para o exercício de uma actividade lucrativa não pode deixar de constituir um elemento com relevo patrimonial a cuja falta corresponde naturalmente um determinado prejuízo;
c) Mesmo quando não lhe seja dada uma utilização profissional, o veículo constitui um bem de uso corrente, não sendo, em regra, indiferente para o seu proprietário dispor ou não dispor do mesmo para os fins que bem entender, dentro da sua esfera de liberdade e de autonomia;
d) Mesmo o não uso de um bem ainda se integra no ius utendi et fruendi que caracteriza o direito de propriedade ou outros direitos reais de gozo, correspondendo-lhe um determinado valor económico que, em última análise, pode ser quantificado com ponderação do valor locativo, do valor de amortização usado para efeitos contabilísticos ou de outras circunstâncias relevantes para a aferição de uma indemnização equitativa.
Aprioristicamente parece-me insofismável que, representando um qualquer bem de natureza patrimonial um elemento positivo na esfera do titular do direito de propriedade ou de outro direito susceptível de proporcionar o seu uso e fruição, maxime quando se trata de um bem a cujo uso corresponda um determinado valor económico, o impedimento ao seu exercício, por razões imputáveis a terceiro, importa, em regra, um desvalor que deve ser objecto de integração por um valor equivalente. Assim o procurei justificar e demonstrar em “Temas da Responsabilidade Civil – Indemnização do dano da Privação do Uso”, com argumentos diversificados, envolvendo quer a análise das pertinentes normas do Código Civil que regulam a matéria da obrigação de indemnização, quer de outras normas do mesmo diploma ou de diplomas avulsos que regulam situações paralelas em que também está em causa uma situação que na prática se traduz numa privação do uso. Nessa argumentação dei também realce aos elementos de interpretação das normas, maxime para o elemento racional ou teleológico, sem olvidar também aspectos de direito comparado.
Aquela tese eivada de um forte e incompreensível formalismo vem cedendo o lugar a uma corrente jurisprudencial que aposta na autonomização do dano da privação do uso, de tal modo que, mesmo em casos em que não se apure um aumento das despesas ou redução de proveitos, se defende o reconhecimento do direito de indemnização quantificado segundo o critério do valor locativo do bem ou, em última instância, de acordo com as regras da equidade, depois de ponderadas todas as circunstâncias envolventes. É esta a tese que agora prevalece na jurisprudência dos Tribunais Superiores, designadamente do Supremo Tribunal de Justiça, ainda que se apresente com duas variantes:
A primeira variante, para a qual a privação do uso apenas é valorada em casos em que se apure que a situação deixou de proporcionar ao titular do bem as concretas utilidades que do mesmo vinha extraindo, exigindo-se, deste modo, a alegação e prova de uma concreta utilização relevante.43
A segunda variante para a qual basta que exista uma situação de privação do uso, a qual representa, por si, um prejuízo de natureza patrimonial, sujeito a quantificação, de acordo com as circunstâncias que se apurarem e, na falta de outros elementos, com recurso à equidade.44
Creio que a formulação de juízos assentes em padrões de normalidade e, se necessário, com recurso a presunções naturais ou judiciais, facilmente permite inferir que, em regra, a privação do uso comporta um prejuízo efectivo na esfera jurídica do lesado correspondente à perda temporária dos seus poderes de fruição.
Afirmada, assim, a existência de um prejuízo de natureza patrimonial correspondente ao uso que, durante um determinado período, deixou de ser fruído, tornar-se-á mais fácil percorrer a etapa subsequente atinente à quantificação da indemnização, atenta a diversidade de critérios de que os Tribunais podem fazer uso, quer por via das regras da normalidade, quer do recurso à equidade, mediante a ponderação do circunstancialismo envolvente.45
A amplitude das consequências pode variar de acordo com as específicas circunstâncias objectivas e subjectivas, mas raramente será indiferente para o interessado a manutenção do uso do bem ou a sua privação durante um determinado período de tempo por razões imputáveis a terceiro. Independentemente da função desempenhada na esfera do respectivo titular e dos prejuízos que, em concreto, possam
43 Cfr. os Acs. do STJ, de 3-5-11 e de 3-10-13 (www.dgsi.pt). É esta a tese defendida também por Paulo Mota Pinto, depois de extensa argumentação, conclui que “o dano de privação do gozo ressarcível é, assim, a concreta e real desvantagem resultante da privação do gozo, e não logo qualquer perda de possibilidade de utilização do bem, a qual pode não ser concretizável numa determinada situação”, em Interesse Contratual Positivo e Interesse Contratual Negativo, vol. I, págs. 594 a 596.
44 Cfr. os Acs. do STJ, de 5-7-07, de 8-5-13 e de 9-7-15 (www.dgsi.pt).
45 Cfr. Ac. do STJ, de 11-12-12 (www.dgsi.pt). As dificuldades que isso transporta podem ser superadas mediante considerações como a de Menezes Cordeiro quando afirma que o julgamento da equidade “será, em última análise, sempre produto de uma decisão humana que visará ordenar determinados problemas perante um conjunto articulado de proposições objectivas” (O julgamento de equidade, em O Direito, ano 122º, págs. 272 e 273).
imputar-se à privação, seguro é que a utilização ou a possibilidade de utilização do bem patrimonial reportada ao período transcorrido, jamais poderá ser “restituída” em espécie, nos termos em que para a generalidade das situações o determina o art. 566º, nº 1, do CC.
Se na ponderação dos resultados finais não deve admitir-se para o lesado um benefício indevido, também parece inadequado que seja o agente a beneficiar com uma injustificada poupança das despesas que decorre de uma tese que torne a indemnização dependente de uma mais ampla concretização dos danos.46
Mas ainda que não se admita esta solução mais favorável ao lesado, não pode negar-se, ao menos, a valia da primeira variante acima referida e que, para efeitos de ressarcimento, se basta com a demonstração da ocorrência de perda das concretas utilidades que o titular poderia extrair do bem se acaso não tivesse sido dele privado. Trata-se, aliás, de uma solução que responderá à maior parte das situações da vida corrente, na medida em que, quer por prova directa, quer através das regras de experiência, facilmente o lesado poderá demonstrar que um bem (veículo, imóvel, etc.) tinha uma determinada utilização corrente que foi impedida ou perturbada pela prática do facto ilícito de natureza extracontratual ou pelo incumprimento contratual.
Se a privação do uso de um bem durante um determinado período origina a perda das utilidades que o mesmo é susceptível de proporcionar e se essa perda não foi reparada mediante a forma natural de reconstituição (substituição), justifica-se a imposição ao responsável da obrigação de compensar o lesado na medida equivalente, passo fundamental para que se restabeleça o equilíbrio patrimonial que existiria se acaso não tivesse ocorrido o evento lesivo.
Inequívoco é que o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de fruição exclusiva que envolve até o direito de não usar, já que a opção pelo não uso ainda constitui uma manifestação dos poderes do proprietário, também afectada pela privação do bem. Neste contexto, sendo a disponibilidade material dos bens um dos principais reflexos do direito de propriedade, apenas excepcionalmente, num quadro factual mais complexo, ao qual não deverá ser alheio o sujeito passivo, será possível afirmar que a concreta privação do uso durante um determinado período».
Este entendimento tende a tornar-se orientação jurisprudencial praticamente uniforme, como se dá nota no recente acórdão desta Relação e desta mesma Secção[13], proferido no processo n.º 944/18.3 T8PFR.P1:
«Afirmou-se, entretanto, como claramente maioritária a tese da aceitação da indemnização autónoma da privação do uso, como lapidarmente se sintetiza no sumário do acórdão do STJ, de 25.09.2018 [processo n.º 2172/14.8TBBRG.G1.S1]: «A jurisprudência do STJ, depois de algumas divergências, passou a reconhecer, sem qualquer espécie de hesitação, o direito de indemnização relativamente a situações de privação do uso do veículo em que este é usado habitualmente para deslocações, sem necessidade de o lesado alegar e provar que a falta do mesmo foi causa de despesas acrescidas»[14].
Decididamente, é este entendimento que perfilhamos, pois é o único que permite se restabeleça o equilíbrio patrimonial que existiria se não tivesse ocorrido o evento danoso.
Aliás, ao contrário do que alega a recorrente, está provado que a autora sofreu, efectivamente, prejuízos em consequência da privação do uso da sua viatura, pois que:
- em consequência dos danos sofridos, o veículo da autora ficou impossibilitado de circular;
- a autora exerce a actividade de podóloga, como trabalhadora independente, prestando serviço domiciliário nas áreas dos distritos do Porto e Aveiro;
- o seu veículo automóvel era o único meio de transporte de que a autora dispunha para se deslocar ao domicílio dos seus vários clientes;
- até à data do acidente, a autora utilizava diariamente o veículo no exercício da sua actividade;
- o veículo era, ainda, utilizado pela autora noutras actividades da sua vida diária;
- a autora recorreu ao auxílio de terceiros e aos transportes públicos para se deslocar;
- a autora gastou a quantia de € 127,92 para manutenção de um veículo que lhe foi emprestado;
- por causa do acidente e dos danos provocados na viatura que a imobilizaram, a autora adiou consultas que teve de remarcar e falhou algumas, tendo deixado de auferir a quantia de € 100,00;
- por causa do acidente, a autora não pôde celebrar um contrato que lhe foi proposto em 10.10.2018 para, no mês seguinte, prestar serviços de podologia na área de Viseu, deixando de auferir a quantia de € 750,00.
A sentença recorrida fixou a indemnização pela privação do uso da viatura em € 15,00 por dia, que a recorrente considera excessiva (conclusão 18.ª) e que deveria limitar-se ao período de 21 dias.
O valor arbitrado, se peca, é por manifesta modéstia.
Se tivesse cumprido a sua obrigação de entregar à lesada um veículo com características semelhantes ao danificado, facultando-lhe a sua utilização durante o período de carência, a ré teria de despender uma quantia muito superior a € 15,00 por dia.
Por outro lado, a autora continua privada do uso da viatura por facto imputável à ré que, ao contrário do alega, não colocou à disposição da lesada um valor indemnizatório que permitisse repor a situação patrimonial da lesada no momento anterior à lesão, pelo que continua obrigada a reparar esse dano.
Por último, não é merecedora de qualquer reparo a sentença na parte em que condena em indemnização por lucros cessantes, designadamente da quantia de € 750,00 que a lesada deixou de auferir por ter sido obrigada a rejeitar um contrato de prestação de serviços de podologia na área de Viseu porque ficou sem a sua viatura automóvel.

III Dispositivo
Por tudo o exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por “D…, S.A.” e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
As custas do recurso ficam a cargo da recorrente (artigo 527.º, n.os 1 e 2, do Cód. Processo Civil).

(Processado e revisto pelo primeiro signatário).

Porto, 11 de janeiro de 2021
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
___________
[1] São vários os acórdãos de uniformização de jurisprudência já proferidos pelo STJ relacionados com esta regra.
[2] A.S. Abrantes Geraldes, P. Pimenta e L.F. Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2019, pág. 729, que indicam, em abono, o acórdão do STJ de 03.02.2009.
[3] Sendo certo que, em casos-limite, a impugnação pode implicar toda a matéria de facto, nem por isso o recorrente está desobrigado de especificar os concretos pontos de facto por cuja alteração se bate (cfr. Cons. A.S. Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 163, em nota de pé de página).
Esta especificação serve para delimitar o objecto do recurso e por isso tem de constar das conclusões.
[4] O Sr. Conselheiro Abrantes Geraldes (ob. cit., pág. 170, nota de pé de página) afirma ser «infundada a rejeição do recurso da matéria de facto com fundamento na falta de indicação, nas conclusões, dos meios probatórios ou dos segmentos da gravação em que o recorrente se funda. O cumprimento desses ónus no segmento da motivação parece suficiente para que a impugnação da decisão da matéria de facto ultrapasse a fase liminar, passando para a apreciação do respectivo mérito», citando jurisprudência do STJ nesse sentido.
No Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, pág. 771, de que é autor em conjunto com Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, precisa-se que «é objecto de debate saber se os requisitos do ónus impugnatório devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões, sob pena de rejeição do recurso» e anota-se que «o Supremo tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm de reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objectividade e de certeza, com os concretos pontos de facto sobre que incide a impugnação».
[5] A.S. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5.ª edição, 168-169.
[6] Cfr. acórdão da Relação de Lisboa de 11.10.2018 (Processo n.º 7247/17.9T8LSB.L1), disponível in www.dgsi.pt
[7] Exactamente neste sentido, entre outros, o acórdão da Relação de Lisboa de 11.10.2018 (proc. n.º 7247/17.9 T8LSB.L1), disponível no mesmo sítio.
[8] L.M. Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, Almedina, 7.ª edição, pág. 403.
[9] Na ponderação do interesse do lesado, devem ser tidos em consideração, ainda, factores como o uso dado ao veículo, a possibilidade de aquisição de veículo idêntico que satisfaça de igual modo as necessidades do lesado, etc.
[10] Assim, A. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo II, Almedina, 2010, pág. 725.
[11] Assim, o acórdão da Relação de Coimbra de 10.09.2019 (proc. 5/18.5T8TCS.C1) disponível in www.dgsi.pt
[12] A.S. Abrantes Geraldes, Indemnização do Dano da Privação do Uso, Almedina, 2001, pág. 33.
[13] De que foi relator o Desembargador Carlos Querido e é subscrito pelo aqui relator, como adjunto.
[14] Já nesse sentido ia o acórdão do STJ, de 9.07.2015 [processo n.º 13804/12.2T2SNT.L1.S1], sumariado nestes termos: «A privação do uso de um veículo automóvel, em resultado de danos sofridos na sequência de um acidente de viação, constitui um dano autónomo, indemnizável na medida em que o seu dono fica impedido do exercício dos direitos de usar, fruir e dispor, inerente à propriedade que o art. 1305.º do CC lhe confere, bastando para o efeito que o lesado alegue e demonstre, para além da impossibilidade de utilização do bem, que esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava».