Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3318/22.8T8AVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: AÇÃO DE DIVÓRCIO
UTILIZAÇÃO DA CASA DE MORADA DA FAMÍLIA
DECISÃO PROVISÓRIA
CRITÉRIO ATENDÍVEL
Nº do Documento: RP202406203318/22.8T8AVR-A.P1
Data do Acordão: 06/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Como o art.º 931.º, n.º 9, do CPC permite, na acção de divórcio, a regulação provisória de utilização da casa de morada da família, mas não estabelece o critério que deve presidir à atribuição, é aplicável, com as devidas adaptações, o critério da atribuição do direito ao arrendamento da casa de morada da família previsto no artigo 1793º do CC, devendo o juiz deve levar em consideração todas as circunstâncias que se mostrem relevantes para a decisão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2024:3318.2.8T8AVR.P1


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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:



I. Relatório:
AA, contribuinte fiscal número ...67, titular do cartão de cidadão n.º ...26, residente em Ílhavo, instaurou processo especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra o marido BB, contribuinte fiscal número ...70, titular do cartão de cidadão n.º ...43, residente em Ílhavo, pedindo a dissolução do casamento e que seja fixado o regime provisório de utilização da casa de morada de família atribuindo-a em exclusivo à autora e à filha.
No decurso do processo as partes acordaram a conversão do divórcio para mútuo consentimento, mas não a atribuição da casa de morada de família, tendo os autos sido convertidos em divórcio para mútuo consentimento e prosseguido apenas decisão sobre a questão de atribuição da casa de morada de família.
Realizado julgamento foi proferida sentença, decretando-se o divórcio e decidindo-se «nos termos do artigo 990º do C.P.C. atribuir à autora a casa de morada de família sita na Rua ..., Ílhavo, até à partilha desta, sem fixar uma compensação ao réu, porque este vai habitar a casa do casal, sita em ...».
Do assim decidido, o réu interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. Do erro de julgamento da matéria de facto:
A) Dos factos provados constantes da douta sentença, não consta a matéria à qual o réu respondeu, sobre a sua situação económica e bem assim, sobre a situação económica da autora
B) Efectivamente, conforme as declarações prestadas pelo réu/recorrente, resultou provado que o réu não tem um rendimento fixo, fazendo uns “biscates” em reparações automóveis, que em alguns meses nem sequer chegam para a sua sobrevivência, sendo que, a autora aufere um pouco mais do que o ordenado mínimo nacional.
C) Pelo que, nos termos do disposto no nº1, alínea c) do artigo 640º do CPC deveriam ter sido dados como provados, os seguintes factos: - O réu não tem rendimento fixo, fazendo uns “biscates” em reparações de automóveis, que lhe rendem em alguns meses 200,00€ e noutros meses 100,00€; - A autora é operária fabril, auferindo mensalmente um pouco mais do que o ordenado mínimo.
D) Outrossim, também não se refere nos factos provados que, apesar de o armazém ser contíguo ao imóvel de ..., é dele independente, com entradas e números diferentes, conforme resulta das declarações do réu BB, que se encontram gravadas no dia 17.01.2024, com início às 10:45 e fim às 11:04:
E) Pelo que, nos termos do disposto no nº1, alínea c) do artigo 640º do CPC deveria ter sido dado como provado, o seguinte facto: - O armazém contíguo ao imóvel de ... tem entradas e números diferentes, sendo independente daquele.
F) Por outro lado, a Meritíssima Juiz a quo, deu como provado que “21- O imóvel do casal, em ..., Aveiro, referido em 5), é ocupado pelo réu, que lá trabalha diariamente no Armazém a exercer a sua profissão de mecânico, e onde já vinha pernoitando quando o casal residia junto em Ílhavo.” Sendo que, salvo devido respeito pelo Tribunal, da prova produzida não se pode retirar tal afirmação. Efectivamente, o que o Réu afirmou em audiência de julgamento foi que, vai todos os dias ao imóvel de ..., porque é o seu património e tem lá coisas suas, mas não, que lá trabalha todos os dias e muito menos que lá pernoita, ou pernoitava.
G) Pelo que, o facto 21 deveria ter a seguinte redacção: - O Réu vai ao armazém contíguo ao imóvel de ... todos os dias, pois é o seu património e tem lá coisas suas.
H) Outrossim, deveria também constar dos factos provados que: - O réu não se opõe a que a autora e a filha residam no imóvel de ..., após retirar de lá as suas coisas pessoais.
2. Do erro de julgamento da matéria de direito
I) Refere a douta sentença que “A necessidade da casa (ou a «premência», como vem a dizer a jurisprudência; melhor se diria a premência da necessidade) é assim, o factor principal a atender. Na avaliação da premência da necessidade da casa deve o tribunal, atender a dois aspectos à «situação patrimonial» dos cônjuges ou ex-cônjuges, de saber quais os rendimentos e proventos de um e de outro. No que se refere ao «interesse dos filhos», há que saber a qual dos cônjuges ou ex-cônjuges ficou a pertencer a guarda dos filhos.”
J) Ora, de facto, resultou provado nos presentes autos que a autora tem mais condições económicas que o réu, sendo que e, conforme a douta sentença “Na avaliação da premência da necessidade da casa deve o tribunal, atender a dois aspectos à «situação patrimonial» dos cônjuges ou ex-cônjuges, de saber quais os rendimentos e proventos de um e de outro.” Logo, teria de resultar que, atendendo à situação patrimonial, o réu tem mais necessidade da casa do que a autora
K) Por outro lado, “No que se refere ao «interesse dos filhos», há que saber a qual dos cônjuges ou ex-cônjuges ficou a pertencer a guarda dos filhos.”
L) Ora, se é verdade que a guarda da filha do casal ficou a pertencer à autora, também não é menor verdade que a filha do casal, se encontra a residir, a maior parte do tempo, em ..., onde estuda, só estando com a mãe em alguns fins de semana. Pelo que, por este prisma não se verifica que a autora necessite mais da casa de morada de família do que o réu. Pelo que, por este prisma não se verifica que a autora necessite mais da casa de morada de família do que o réu. Casa esse, de onde, aliás, o réu nunca saiu.
M) Outrossim, também conforme douta sentença, “Haverá ainda que considerar as demais «razões atendíveis»: como a idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro, o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência.”
N) Ora, a outra casa existente é do casal, portanto, qualquer um deles pode nela residir, sendo que, ao contrário do facto dado como provado em 21, o réu não trabalha lá, mas apenas guarda, no armazém contíguo à referida casa, alguns objectos pessoais, que, está na disponibilidade de tirar no caso da autora para lá ir residir.
O) Assim, não se vislumbra com que fundamento poderá a Meritíssima Juiz a quo entender que a autora tem mais necessidade da casa de morada de família do que o réu, que sempre nela viveu e de onde nunca saiu, ao invés da autora, que já há mais de 1 ano lá não vive.
P) De facto, não existe nenhuma razão de necessidade imperiosa para que o réu deixe a casa onde sempre viveu, para ir viver para a casa de ..., quando a autora pode perfeitamente ir para lá morar, sem que tal lhe cause qualquer transtorno.
Q) Já o réu teria de mudar todas as suas coisas da casa onde sempre viveu, o que, lhe causará um grande transtorno.
R) Pelo que, conjugando a matéria de facto, com a de direito, deveria a Meritíssima Juiz a quo ter decidido atribuir a casa de morada de família ao réu, até á partilha, sem fixar compensação à autora, porque esta poderia habitar a casa do casal em ....
S) Ao decidir de forma diversa, violou a douta sentença o disposto no artigo 1793º do CC.
Nestes termos, nos melhores de direito e sempre com o douto suprimento de V. Exas., deve conceder-se provimento ao presente recurso de apelação e, em consequência, deve revogar-se a douta sentença proferida, pelo Tribunal a quo, decidindo-se, nos termos do artigo 990º do CPC atribuir ao réu a casa de morada de família, sita na Rua ..., ... Ílhavo, até à partilha, sem fixar compensação à autora, porque esta poderia habitar a casa do casal em ....
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.


II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. Se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada.
ii. Se a casa de morada de família deve ser atribuída ao réu.



III. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
O recorrente impugnou a decisão sobre a matéria de facto, reclamando a sua modificação.
Mostram-se cumpridos de modo satisfatório os requisitos específicos desta impugnação, consagrados no artigo 640.º do Código de Processo Civil.
No tocante às profissões da autora e do réu existe de facto prova suficiente que permite que elas sejam julgadas provadas. Não assim no tocante aos respectivos rendimentos, seja por não estarem documentados (no caso da autora) seja porque tratando-se de um trabalho por conta própria não pode o seu montante ser apurado apenas pelas declarações interessadas do próprio, manifestamente comprometido com a afirmação de um valor que favoreça a sua posição nos autos (no caso do réu).
Por isso, decide-se julgar provado o seguinte facto:
«A autora é trabalhadora por conta de outrem com a categoria de operária fabril e o réu trabalha por conta própria como mecânico de automóveis».
Pretende igualmente que se julgue provado que o armazém e a casa anexa sitos em ... têm entradas diferentes e são espaços independentes.
Pese embora estejamos perante um facto apenas afirmado em juízo pelo próprio recorrente, uma vez que o facto em si mesmo é objectivo, constatável mediante mera observação e insusceptível de controvérsia, cremos dever considerar aquele meio de prova suficiente para julgar provado o seguinte facto:
«O armazém e a casa sitos na Rua ..., em ..., têm entradas e números de policia diferentes entre si, e permitem utilizações independentes.»
O recorrente impugna a decisão de julgar provado o ponto 21 onde se julgou provado que o réu ocupa o imóvel de ..., trabalhando diariamente no armazém e pernoitando na casa.
Salvo melhor opinião, desde que devidamente escutado, designadamente nos silêncios e ajustamentos das afirmações, o depoimento de parte do réu permite perfeitamente julgar provado este facto, quando conjugado com os demais depoimentos produzidos.
Sendo o réu mecânico de automóveis, trabalhando por conta própria e possuindo um armazém onde pode desenvolver essa actividade profissional para angariar o rendimento de que necessita para viver, seria totalmente contrário às regras da experiência que não o usasse para essa finalidade e para a qual certamente foi comprado o imóvel.
Por outro lado, se a casa de habitação tanto tem condições para ali se viver que o réu até a emprestou a terceiros durante algum tempo, e se o réu durante a crise do casamento passou a pernoitar fora da casa de morada de família onde se encontrava a autora e a filha comum, também seria contrário às regras da experiência que não fizesse uso desta casa que pertence ao casal.
A decisão do tribunal a quo é por isso correcta.
O último facto objecto da impugnação do recorrente é absolutamente anódino para a apreciação do mérito do incidente em causa.
A partir do momento em que as partes não estão de acordo sobre a atribuição da casa de morada de família é totalmente irrelevante o que cada um pensa sobre isso porque a decisão cabe ao tribunal, estejam ou não as partes de acordo com a utilização que o tribunal venha a decidir.
Por conseguinte, tal facto não será aditado à fundamentação de facto.


IV. Fundamentação de facto:
Encontram-se julgados provados em definitivo os seguintes factos:
1- A autora e o réu contraíram casamento católico, sem convenção antenupcial, no dia 6 de Fevereiro de 2000, na paróquia de Ílhavo, freguesia ... (...), concelho de Ílhavo.
2-Desse casamento nasceu uma filha comum, CC, em ../../2004.
3- Desde que casaram, a autora e o réu mantiveram vida em comum, como marido e mulher, partilhando habitação entre si e, desde o seu nascimento, com a filha comum, tendo em 6 de Agosto de 2008 adquirido, com recurso a empréstimo bancário, uma moradia na Rua ..., ... Ílhavo, na qual constituíram a sua casa de morada de família.
4- Tal imóvel acha-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... (...), concelho de Ílhavo, sob o artigo n.º ...50 (anteriormente n.º 5065), e está registado na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo sob a descrição n.º ...96.
5- Em 10/2/2020, o réu adquiriu o prédio urbano composto de casa de rés-do-chão destinada a habitação, armazém e logradouro, sito na Rua ..., ..., em ..., concelho de Aveiro, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ...61, descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o número ..., onde passou a exercer a sua actividade profissional de mecânica.
6- A relação conjugal entre a autora e o réu foi-se degradando.
7- No dia 31 de Agosto de 2022, houve um desentendimento do réu com a autora.
8-A filha chamou a GNR que se deslocou à casa de morada de família e aconselhou ambas a saírem de casa temporariamente, por razões de segurança.
9-A autora apresentou queixa-crime contra o réu, que deu origem ao processo de inquérito com o NUIPC 245/22.2GAILH, a correr termos na 3ª Secção do DIAP de Aveiro.
10- O requerido foi sujeito a primeiro interrogatório nesse inquérito, onde é imputado a este que:
“No dia 31 de Agosto de 2022 o arguido e as ofendidas encontravam-se a almoçar e o mesmo questionou a AA acerca de onde tinha depositado o seu salário, mostrando- se desagradado com tal facto. Em acto imediato, começou a ficar agressivo, levantou-se da mesa, pegou na caneca que estava em cima da banca e mandou-a para o chão partindo-a. O arguido foi na direcção da mala da ofendida AA e espalhou todo o seu conteúdo no chão. A ofendida AA, ao vê-lo fazer isso, dirigiu-se aquele para lhe retirar a mala, sendo que o mesmo agarrou-a pela tshirt e pelo ombro, levantando o braço para lhe bater. De imediato a ofendida CC, ao assistir a tal comportamento, colocou-se no meio daqueles, de forma a impossibilitar o arguido de agredir a mãe, o que conseguiu. Em simultâneo a ofendida AA desequilibrou-se e agarrou-se a t-shirt do arguido, rasgando-a. Em acto imediato o arguido agarrou a filha pelo braço, encostou-a à parede levantou o punho cerrado para lhe bater, acabou por baixá-lo e não fazer. A ofendida AA, ao vê-lo levantar o braço e punho para a filha CC pegou num vaso, e em acto imediato o arguido ao vê-la, pagou também noutro. Ambos colocaram os vasos no chão. De seguida, o arguido foi para o quarto dizendo em voz alta e com foros de seriedade para a ofendida AA “Se ficar sem nada, mato-te“.
11- No âmbito desse inquérito foi aplicada ao réu a medida de coacção de proibição de contactos com a autora e com a filha, que ainda se mantém.
12-A autora e a filha CC fizeram perícias médico-legais, nesse inquérito onde consta: a) quanto à autora, em equimose arredondada violácea no membro superior direito e duas equimoses arredondadas no membro inferior direito; b) quanto à filha CC, um eritema no membro superior esquerdo.
13-Nesse dia 31/08/2022, a autora e a filha saíram de casa e foram viver para casa da mãe da autora, DD, sita na Rua ..., ... Ílhavo, gratuitamente.
14-Em 7/11/2022 no processo principal foi regulado o exercício das responsabilidades parentais tendo a filha ficado a residir com a progenitora e o pai com uma obrigação de pagar uma prestação de alimentos à filha no valor mensal de 250,00€.
15-A filha CC continua a frequentar o 1º ano da licenciatura em solicitadoria, na Escola Superior ..., que integra o Instituto Politécnico ....
16-A filha CC altera a residência entre a casa da avó materna com a residência num quarto que arrendou em ..., onde se encontra a estudar no ensino superior.
17-Desde o dia 31/08/2022 que a autora e o réu não voltaram a fazer vida em comum, mantendo-se a requerente e a filha a residir em casa da mãe da requerente.
18-A requerente e a filha repartem um quarto que a mãe e avó lhes disponibilizou na sua habitação
19-Muitas vezes a requerente pernoita no sofá, para que a filha CC possa ter mais privacidade e condições para estudar no quarto, quando não está em ....
20- A filha não tem um quarto para ela na casa da avó, onde possa estudar e ter privacidade.
21- O imóvel do casal, em ..., Aveiro, referido em 5), é ocupado pelo réu, que lá trabalha diariamente no Armazém a exercer a sua profissão de mecânico, e onde já vinha pernoitando quando o casal residia junto em Ílhavo.
22- A casa de ... tem três quartos e condições de habitabilidade, tendo o réu emprestado a um casal que tinha chegado do Brasil.
23-O casal chegou a viver com a filha de ambos, durante 5 anos, na casa da mãe da autora, e também lá residia a mãe da autora e um tio da autora, entretanto já falecido.
24-A casa da mãe da autora, viúva, é uma vivenda tipo T3, na qual, neste momento, apenas reside a mãe da autora, a autora e a filha quando vem ao fim de semana.
25- A autora trabalha na zona de Ílhavo.
26- A autora é trabalhadora por conta de outrem com a categoria de operária fabril e o réu trabalha por conta própria como mecânico de automóveis.
27- O armazém e a casa sitos na Rua ..., em ..., têm entradas e números de policia diferentes entre si, e permitem utilizações independentes.


V. Matéria de Direito:
A questão a decidir consiste na definição do ex-cônjuge ao qual deve ser atribuída, na sequência da dissolução do respectivo casamento por divórcio, a fruição da casa de morada de família até à partilha dos bens comuns do casal.
Na acção de divórcio e separação sem consentimento do outro cônjuge, o n.º 9 do artigo 931.º do Código de Processo Civil, na redacção em vigor, estabelece que «em qualquer altura do processo, o juiz, por iniciativa própria ou a requerimento de alguma das partes, e se o considerar conveniente, pode fixar um regime provisório quanto ... à utilização da casa de morada da família; para tanto, o juiz pode, previamente, ordenar a realização das diligências que considerar necessárias».
Esta norma permite a fixação na acção de divórcio de um regime provisório quanto à utilização da casa de morada da família, mas em rigor não estabelece o critério que deve reger essa atribuição. Daí que tenha sido entendido ser aplicável, com as devidas adaptações, o critério da atribuição do direito ao arrendamento da casa de morada da família previsto no artigo 1793º do Código Civil – assim o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.10.2016, proc. 135/12.7TBPBL-C.C1.S1, in www.dgsi.pt –.
O artigo 1793.º do Código Civil prevê a situação de a casa de morada de família constituir um bem comum dos ex-cônjuges ou próprio de algum deles e estatui a possibilidade de a mesma ser arrendada a um dos ex-cônjuges para manutenção da morada de família.
A redacção do artigo 1793.º é a seguinte:
1. Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.
3 - O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.
A utilização pelo artigo 1793.º do Código Civil do advérbio “nomeadamente” significa que o tribunal deve levar em consideração pura e simplesmente todos os critérios que se mostrem relevantes para a decisão da questão.
Os especificados na norma serão porventura os mais relevantes ou decisivos, mas não os únicos a atender, à luz, por exemplo do artigo 1105.º do Código Civil que rege para a situação de a casa de morada de família ser num imóvel arrendado e que manda o tribunal levar em conta na sua decisão a quaisquer «outros factores relevantes».
O que significa também, necessariamente, que poderão existir outros critérios com valor suficiente para afastar os especificados na norma.
Acresce que o procedimento especial para atribuição da casa de morada de família é um processo de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal está ainda subordinado ao critério de julgamento do artigo 987.º do novo Código de Processo Civil, ou seja, ao dever de julgar não segundo critérios de legalidade estrita, mas buscando em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.
Afigura-se-nos que a busca da solução conveniente e oportuna não pode descurar uma avaliação da justeza da decisão porquanto o direito não pode propender para decisões que se antevejam como injustas, como representando um benefício injusto para quem está em infracção a regras de convivência social e jurídica.
Nesse sentido escreveu Pereira Coelho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 122, pág. 137, que «a lei quererá que a casa da morada de família, decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, possa ser utilizada pelo cônjuge ou ex-cônjuge a quem for mais justo atribuí-la, tendo em conta, designadamente, as necessidades de um e de outro» (sublinhado nosso).
Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. IV, 2ª edição, página 570, afirmam que «para se saber a qual dos cônjuges deve ser concedida primazia na ocupação da casa..., a lei refere, com intenção declaradamente exemplificativa, dois factores: as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal». E mais adiante: «Não se trata, efectivamente, de um resultado do ajuste de contas desencadeado pela crise do divórcio, que a lei queira resolver ainda com base na culpa do infractor, mas de uma necessidade provocada pela separação definitiva dos cônjuges, que a lei procura satisfazer com os olhos postos na instituição familiar. E o primeiro factor que a lei manda naturalmente considerar para o efeito é o da actual necessidade de cada um dos cônjuges, tendo em conta também, se for caso disso, a posição que cada um deles fica a ocupar, depois da dissolução do casamento, em face do agregado familiar» (sublinhado nosso).
A sentença recorrida cita com inteiro acerto Pereira Coelho, loc. cit, o qual afirma que o critério da decisão «não pode ser outro senão o de que o direito ao arrendamento da casa de morada da família deve ser atribuído ao cônjuge ou ex-cônjuge que mais precise dela (...) A necessidade da casa (ou a «premência», como vem a dizer a jurisprudência; melhor se diria a premência da necessidade) é assim, o factor principal a atender. Na avaliação da premência da necessidade da casa deve o tribunal, atender a dois aspectos à «situação patrimonial» dos cônjuges ou ex-cônjuges, de saber quais os rendimentos e proventos de um e de outro. No que se refere ao «interesse dos filhos», há que saber a qual dos cônjuges ou ex-cônjuges ficou a pertencer a guarda dos filhos. Haverá ainda que considerar as demais «razões atendíveis»: como a idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro, o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência, etc.».
No caso dá-se a circunstância de as condições económicas de ambos os ex-cônjuges serem irrelevantes para a decisão porque eles são proprietários de duas casas de habitação, ambas estão em condições de serem habitadas e são suficientes para satisfazer as necessidades habitacionais de qualquer dos ex-cônjuges.
O critério das condições económicas não serve, com efeito, para dar ao que possui menos rendimentos a casa «melhor» e o inverso, nem para estabelecer uma espécie de compensação entre eles através da atribuição da casa, serve para verificar se algum deles não dispõe de condições económicas para obter uma habitação alternativa ...caso tenha que o fazer, o que aqui não sucede.
Por isso, no caso o critério decisivo tem de ser o do maior número de elementos da família que ficam a viver juntos, isto é, atribuir a esses elementos a casa com mais condições de habitualidade em função do número de pessoas que a irão habitar. Isso significa que tendo a filha do casal ficado a viver com a mãe e não tendo o pai outro agregado familiar consigo convivente, a casa de morada de família deve ser atribuída àquela, por ser essa a casa pertencente ao ex-casal que é mais adequada para ser a morada de duas pessoas.
A tal não obsta a circunstância de a filha se encontrar já a frequentar o ensino superior noutra cidade do país e aí se encontrar deslocada durante o tempo necessário à frequência das aulas porque isso não obsta a que a sua casa de morada de família continue a ser com a mãe e seja aí que regressa fora do tempo das aulas, necessitando de um quarto para si e de condições de tranquilidade para estudar e se preparar para os exames.
Acresce que estando a viver com a mãe e recebendo do pai apenas uma pensão, todas as despesas não cobertas por essa pensão que sempre surgem e cujo valor é sempre variável acabam por ser suportadas pela mãe, pelo que o rendimento desta acaba por ter de ser dividido por duas pessoas, enquanto o rendimento remanescente do pai é gasto exclusivamente consigo próprio.
Por fim, pode referir-se o episódio de violência que motivou o afastamento físico do casal e a fixação ao pai de uma medida de coacção de proibição de contactos com a ex-mulher a filha de ambos, o que obviamente não torna justa a atribuição ao mesmo da casa de morada de família.
Entendemos, em suma, que apontam no sentido da atribuição da casa à ex-cônjuge mulher as seguintes circunstâncias:
i) Tendo a filha ficado a viver com a mãe, elas constituem a parte do agregado familiar desfeito com maior número de elementos e que necessita de uma casa maior ou com maiores condições;
ii) A mãe contribui ainda largamente para as despesas da filha que vive consigo;
iii) Como o casal era proprietário de duas casas de habitação e cada um dos ex-cônjuges pode habitar numa delas, nenhum deles necessitará de fazer esforço financeiro para obter habitação para si;
iv) A casa situada em Ílhavo está mais próxima do trabalho e do centro de vida da autora e a casa situada em Aveiro do trabalho do réu;
v) A casa situada em Aveiro é perfeitamente adequada para o réu porque este não tem ninguém a seu cargo;
vi) O comportamento do réu traduzido na ofensa a direitos de personalidade e à dignidade pessoal da então sua mulher, justifica, do ponto de vista ético-jurídico e dos valores que devem enformar os comportamentos, que o requerido não possa sair beneficiado por esse comportamento e, sobretudo, que a vítima de violência não seja penalizada com a obrigação de ter de sair de casa para encontrar a paz e a tranquilidade que todo o ser humano aspira ter no seu lar.
Tudo sopesado, afigura-se-nos que a Mma. Juíza a quo analisou com senso e decidiu com bom critério e inteiro acerto atribuir à autora o direito à utilização da casa de morada de família até à partilha dos bens comuns do casal, pelo que a sua decisão deve ser confirmada.




VI. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.

Custas do recurso pelo recorrente, com as custas de parte devidas à recorrida a reverterem a favor do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. (artigo 26.º, n.º 7, do RCP).


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Porto, 20 de Junho de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 835)
1.º Adjunto: Isabel Rebelo Ferreira
2.º Adjunto: Paulo Dias da Silva





[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]