Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1973/21.5T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA OLÍVIA OLIVEIRA
Descritores: DECISÃO ANTECIPADA DO MÉRITO DA CAUSA
SOLUÇÕES PLAUSÍVEIS DAS QUESTÕES A DECIDIR
Nº do Documento: RP202407101973/21.5T8AVR.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Para poder proferir-se decisão antecipada de mérito devem os autos reunir os factos necessários às diferentes soluções plausíveis das questões a decidir.
II – Estando tais factos apenas parcialmente assentes a decisão de mérito será precoce, por violadora do artigo 595º, número 1 b) do Código de Processo Civil, o que não determina a sua nulidade, mas a sua revogação com vista ao prosseguimento dos autos para saneamento e julgamento da causa.
II - O pagamento de prestações de mútuo destinado a obras por apenas um dos mutuários não se confunde com o pagamento das referidas obras.
III – Pelo mútuo as coisas mutuadas tornam-se propriedade do mutuário pelo que sendo usado dinheiro mutuado a ambos os membros de uma união de facto para custeio de obras em imóvel de um deles deve considerar-se que tais obras foram feitas com dinheiro comum.
IV – Sem embargo, caso se comprove que todas as despesas decorrentes do pagamento do mútuo foram já integralmente suportadas por apenas um dos mutuários poderá concluir-se não estarem verificados os requisitos do enriquecimento sem causa.

(da responsabilidade da relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo número 1973/21.5T8AVR.P1 Juízo Central Cível de Aveiro, Juiz 2

Recorrente: AA

Recorrida: BB

Relatora: Ana Olívia Loureiro

Primeira adjunta: Ana Paula Amorim

Segunda adjunta: Teresa Maria Sena Fonseca

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

1.  AA propôs ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB, pedindo o seguinte:

“Deve a presente ação ser julgada procedente por provada e declarar-se que:

1. Entre A. e R. existiu União de Facto (…).

2. O prédio urbano descrito sob o nº ...90/1999027, e inscrito a favor da R. foi titulado exclusivamente a favor dela, Ré, por acordo entre ela Ré, e o pai dela, sem oposição do A., por forma a que aquele financiasse aquisição, com intuito de Banco 1... confiar que o terreno pertencia, de facto a uma das partes, o que possibilitaria o financiamento adequado, tendo a transmitente acedido e acordado a titular a favor de quem lhe pediu que fosse feito;

3. A R. visava assim salvaguardar de terceiros a garantia do pai, reforçando a sua própria garantia a favor do seu pai;

4. Esse negócio esconde efetivamente um negócio dissimulado, em que A. e R. são efetivos comproprietários;

5. Sempre o seriam comproprietários, por força da acessão industrial imobiliária, que se invoca subsidiariamente, por força da construção e em resultado da edificação e incorporação de uma moradia unifamiliar, nos termos efetivamente licenciados para habitação própria de A. e R. e seu filho, com efeitos que se retroagem à data da incorporação nos termos da lei.

6. Pelo que, por consequência, deve declarar-se que a descrição predial, corresponde hoje a um imóvel devidamente licenciado, a descrever nesse prédio da conservatória, devendo pois cancelar-se a descrição atual e a inscrição exclusivamente a favor da Ré, devendo um tal imóvel figurar a favor da Ré e do A, em partes iguais, correspondentes aliás a idêntica proporção na contratação do mútuo com Banco 1...;

7. De todo o modo, mesmo que por mera hipótese e sem conceder, isso não fosse procedente por provado, sempre deve declarar-se que o A. tem direito às correspondentes benfeitorias sobre esse imóvel, tanto mais restituiu ao progenitor da Ré, a parte do preço por este adiantado na aquisição do solo, e edificou a construção na exata medida da Ré, obrigando-se para com a credora bancária nos mesmos termos do contrato de mútuo e, por via disso, deve ordenar-se o cancelamento da inscrição a favor da Ré, devendo ser descrito como casa de habitação, nos precisos termos em que foi edificada e licenciada, e em seu lugar, alterada a descrição atual, deve inscrever-se em partes iguais para Autor e Ré.

8. Para o caso de improceder o pedido de acessão, sempre deve ser pago ao Autor todos os direitos que resultam de benfeitorias realizadas na coisa e por via dela, bem como demais direitos que prevaleçam para partilha, em resultado da cessação da União de Facto, e sempre a título ainda de enriquecimento sem causa justificativa, que se invoca ainda subsidiariamente.”

Para sustentar tais pedidos alegou, em suma, que viveu em união de facto com a Ré entre 2014 e fevereiro de 2020 e que na pendência desse relacionamento a Ré adquiriu, mediante escritura pública um imóvel destinado a construção, negócio que diz ter sido simulado por ter sido pretensão de ambos Autor e Ré a compra conjunta desse imóvel pelo qual pagaram o montante de 25.000 € que foi mutuado ao casal pelo pai da Ré, mútuo que afirma que o casal já liquidou em parte. Alegou que apenas a Ré figurou como adquirente na escritura de aquisição para reforçar a garantia do mutuante e “por forma a garantir o reembolso do preço adiantado pelo pai da R., A. e R. aguardaram decisão da Instituição de Crédito Banco 1... (doravante Banco 1...) que financiaria a construção da habitação”. Daí concluiu que deve ser julgado válido o negócio, a que chama de dissimulado, pelo qual afirma que ambos (Autor e Ré) adquiriram o imóvel à vendedora do mesmo.

Subsidiariamente alega que ambos contraíram empréstimo bancário com vista à construção de habitação própria nesse terreno, construção essa que diz estar praticamente terminada afirmando que decorre das regras da experiência que a mesma tem valor muito superior ao do terreno em que foi erigida e para a qual afirmou ter contribuído “com o produto do seu trabalho e com a mão de obra doméstica e outra à execução e ao acompanhamento de obra”. Desta alegação conclui que, também por via da acessão industrial imobiliária, deve ser reconhecido como comproprietário do imóvel, o que invoca subsidiariamente.

Por fim e ainda subsidiariamente, afirma que a Ré está enriquecida à sua custa tendo direito a ser ressarcido pelas benfeitorias realizadas no imóvel, a título de enriquecimento sem causa, sem contudo, indicar qual a medida desse enriquecimento, afirmando apenas que sempre lhe seriam “devidas benfeitorias correspondentes à valorização que aportou para  a coisa, tendo em conta o que gastou nela”, sem indicar que quantia foi essa.

2. A Ré contestou impugnando a versão dos factos alegados pelo Autor e concluiu pela total improcedência da ação e sua absolvição do pedido, alegando que o imóvel é da sua exclusiva propriedade, adquirido com dinheiro que lhe foi doado pelo seu pai e que tem sido ela a custear todos os encargos com o imóvel e quem procedeu ao pagamento das prestações devidas pelo crédito bancário (celebrado em 26 de dezembro de 2019 e cuja primeira prestação se venceu em fevereiro de 2020, já após a separação do casal) destinado às obras, motivo pelo qual nenhum enriquecimento existe da sua parte à custa do Autor que nada pagou. Afirmou, ainda, que tendo sido ela a custear todas as despesas destinadas à aquisição do terreno e ao licenciamento e execução das obras o Banco, a seu pedido, já autorizou a desvinculação do Réu do mútuo destinado a tais obras, o que o Réu não aceitou com o intuito, que ora se manifesta com a propositura desta ação, de obter à custa da Autora injusta vantagem patrimonial. Pede a condenação do Autor como litigante de má-fé.

3 - Por despacho proferido no dia 30 de maio de 2022 foi deferida a retificação do pedido formulado pelo Autor no ponto 6º, passando a ter o mesmo a ter seguinte redação:

“Pelo que, por consequência, deve declarar-se que a descrição predial, corresponde hoje a um imóvel, moradia, devidamente licenciada, a descrever nesse prédio da conservatória, por alteração da correspondente descrição, por averbamento da construção (que em vez de terreno terá que dar lugar a moradia), devendo pois cancelar-se a inscrição, como atualmente se encontra, isto é, exclusivamente a favor da Ré, devendo um tal imóvel figurar a favor da Ré e do A, em partes iguais, (correspondentes aliás a idêntica proporção na contratação do mútuo com a Banco 1... e edificação).”

4 - Foi proferido despacho de aperfeiçoamento da petição inicial em que o Tribunal considerou que o Autor “não identifica qual é o negócio dissimulado, o que deve concretizar” bem como que “não alegou (…) os factos constitutivos da acessão, desde logo porque alega que o imóvel onde foram efetuadas as obras também lhe pertence, em compropriedade”.

5 - O Autor não respondeu no prazo indicado, tendo o tribunal reiterado tal convite e fixado novo prazo para o pretendido aperfeiçoamento a que, novamente, o Autor não respondeu.

6 – Foi, por isso, agendada a realização de uma audiência prévia com as finalidades previstas pelo artigo 591º, n.º 1, alíneas a) e c) do Código de Processo Civil e nela, novamente, o Autor foi convidado a suprir as já antes apontadas insuficiências do seu articulado, para o que pediu e lhe foi concedido novo prazo.

7 – A 06-02-2023 o Autor juntou requerimento em que concretizou que o negócio dissimulado por ele referido na petição inicial foi a aquisição em conjunto com a Ré do imóvel em discussão nos autos e sustentando que o pedido de reconhecimento da compropriedade com base na acessão industrial imobiliária a favor do casal foi deduzido subsidiariamente pelo que apenas terá de ser apreciado caso não proceda o reconhecimento da compropriedade do imóvel com base na simulação relativa, caso em que a obra que diz ter ajudado a custear teria sido erigida em terreno alheio, por, nesse caso, ser apenas da Ré.

7 – Por despacho de 13-03-2023 foi afirmado que o Autor continuava a não alegar factos necessários à simulação arguida e que uma vez que o mesmo defendia ser comproprietário do imóvel onde está a ser feita construção não pode afirmar-se que ocorreu acessão industrial imobiliária por a mesma exigir que a construção tenha sido feita em terreno alheio. Anunciou-se, nessa sequência, a intenção de ser proferida decisão de mérito em saneador-sentença, “por falta de preenchimento dos pressupostos legais da simulação e da acessão, mesmo após a resposta ao despacho de aperfeiçoamento”. Foi facultado prazo às partes prazo de contraditório sobre tal pretensão do Tribunal.

8 – Ambas as partes se pronunciaram no sentido de não se oporem a que a decisão fosse proferida de imediato.

O Autor reiterou as alegações de direito antes feitas e sublinhou que ocorreu simulação relativa da compra e venda do imóvel em que a Ré interveio como única compradora, o que foi feito com o acordo do Autor, porque a “(…) Ré visava assim salvaguardar de terceiros a garantia do pai, tornando o património em apreço apenas por si dominado, e fortalecendo a garantia do próprio progenitor.”.

A Ré remeteu para o seu articulado de contestação pugnando pela improcedência da ação.

9 – A 17-07-2023 foi proferida sentença em que se enumeraram os factos julgados provados bem como os que foram alegados pelo Autor em sustentação da sua pretensão e se encontram controvertidos, tendo-se concluindo que os mesmos não são bastantes à procedência de qualquer das suas pretensões pelo que foi a Ré absolvida de todos os pedidos.

II - O recurso:

É desta sentença que recorre o Autor, pretendendo a sua revogação com a consequente declaração de procedência da ação.

Para tanto, alega o que sumaria da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:

“1. A douta sentença em recurso faz um percurso jurídico, muito idêntico ao que consta da petição inicial, mas conclui em sentido diferente, por fazer um juízo probatório consistente em meras ilações que não são prova.

2. Contudo, mesmo havendo identidade jurídica da aplicação feita pelo Autor com aquela que é produzida pela Sentença, esta extravasa quer fundamentos invocados na pi, quer com os factos nela vertidos.

3. Parece configurar uma sentença apressada para estatística, não obedecendo a critérios essenciais que resultem de uma adequada interpretação de preceitos.

4. Exemplo disso é a fundamentação à luz dos critérios que regulam a União de Facto em que reconhece mesmo, tal como o Autor, que se não trata de nenhum património comum, em que, para efeitos de divisão, se confere ser pela ação de divisão de coisa comum.

5. Mas logo depois, por virtude do Direito da União de Facto, nega a sentença, porque já não sobreviveu a União, poder o Autor pedir reconhecimento de direito de compropriedade com fundamento de que é titular do direito apenas quem ficou titular por escritura pública durante a União.

6. Na União de Facto não existe similitude jurídica com o casamento mas por via disso os Unidos, lá por estarem Unidos, também não prescindem nem dos seus direitos nem do reconhecimento judicial deles.

7. Assim, uma eficaz tutela jurisdicional efetiva e o principio da igualdade de Unidos na relação da União, aliás protegida por lei, têm como corolários que em igualdade a qualquer cidadão a quem a Ordem jurídica confere direitos e estipula deveres, é exigível que pode o Autor reivindicar metade do valor de um prédio se tendo pago ao financiador, pai da Ré, e estando obrigado a cumprir obrigações financeiras com banco financiador, esse direito, por algum instituto jurídico, como simulação de negócio ou acessão industrial imobiliária lho conferissem enquanto cidadão.

8. Ademais, como aliás escreve a Sentença, a proteção dos unidos de facto passa pela atribuição de algumas faculdades e alguns direitos, tais como regime idêntico ao dos casados em termos de IRS, artigo 3º, alínea d) daquela Lei e artigo 14º, nº1, do DL 198/2001, de 3 de Julho (CIRC), se assim o entenderem. O que é vedado é considerarem os bens como património comum, o que o Autor respeitou, pedindo uma tutela diferente.

9. Ou seja, mesmo não tendo um património comum conjugal, pode ter uma compropriedade ser declarada, até porque, diga-se, é o instituto jurídico que lhe permite até forçar divisão na União, desde que faça prova dos respetivos requisitos jurídicos inerentes a algum desses institutos.

10. Isto não é afastado pela aplicação do regime da compropriedade, que implica a intervenção de ambos os conviventes de facto no momento da aquisição do bem, como decorre do disposto no artigo 1403.°, n.° 1, do CC., ao contrário do que ocorre na comunhão conjugal em que, por força do art. 1730°, n.°1, do CC, os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer disposição em sentido diverso.

11. Se o Autor, para obter financiamento para construção de moradia para os Unidos, obteve em conjunto com a Ré, financiamento do próprio pai desta relativamente a terreno e que isso foi combinado entre Autora e Ré e combinado com a vendedora de imóvel, para possibilitar aquele financiamento bancário de valor significativo, do facto de não existir prejuízo para terceiros ou para algum desses, não afasta o carácter fraudulento de negócio sustentado por via da simulação relativa.

12. Mesmo que esses factos não se pudessem considerar fraudulentos, para efeitos de simulação relativa, na medida em que não há efetivo prejuízo para terceiros, mas apenas prejuízo para o Autor, essa simulação, mesmo que inocente, é protegida pela lei, como negócio que Autor e Ré sejam efetivamente comproprietários do imóvel.

13. Se esse imóvel vem a ficar em nome exclusivo da Ré mas foi pago pelo pai dela, a quem Autor e Ré devolveram o respetivo valor, e se sobre ele, obtido financiamento bancário por Instituição Financeira que o concedeu depois de avaliar a solvabilidade das partes, sobretudo do Autor com recibos de remuneração acima da média enquanto motorista, pode o Autor em ação própria fazer pedido que lhe confira o carácter de propriedade correspondente a metade do valor do solo em que se edifica casa.

14. Não se exige que os terceiros tenham sido enganados com o contrato celebrado. Apenas é necessário que do contrato resulte uma intenção, uma conjetura de engano, de ilusão para terceiros. E isto está subjacente a exemplos aflorados por Manuel de Andrade em Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, pag.173, Almedina, 1972. “Mas a simulação pode ainda ser feita não com o intuito de prejudicar, mas só com o de enganar terceiros, e temos a simulação inocente. Nesta, a intenção é apenas defender direitos próprios ou alheios (ut tuentur sua vel aliena..), ou conseguir satisfação para algum outro interesse não ilegítimo dos próprios simuladores ou de terceiro.

15. É proibido ao tribunal fazer inferências de factos que apenas a prova permitiria se, decidindo do mérito da ação, a julga como improcedente com fundamento em factos não provados e com fundamento nessas inferências, quando, no máximo, apenas poderia julgar inepta a petição.

16. Por via da contratação de mútuo, apenas possível por força dos salários acima da média, do Autor, foi possível obter meios financeiros para construção de moradia de Autor e Ré.

17. A moradia não tem que estar finalizada por obras para ser considerada enquanto tal para efeitos de Acessão Industrial Imobiliária.

18. Para isso, o banco, Banco 1..., disponibilizou avultado montante empregue na edificação, sendo que o terreno foi pago por Autor e Ré ao pai desta. Nesse sentido, não é fundamento jurídico para sustentar condição de aquisição por acessão industrial imobiliária dizer-se, como faz a douta sentença, que essa aquisição não é automática, quando sabemos que é direito potestativo e que deve funcionar automaticamente logo que fixado o valor de imóvel adquirido ou logo que pago, como foi, a quem mutuou o valor para ser adquirido pelos unidos.

19. Do facto de o imóvel ter ficado em nome da filha do mutuante (do dinheiro da aquisição do terreno) esse facto foi assim por acerto entre todos, incluindo vendedora desse terreno, e na mais completa boa-fé do Autor, que nunca se convenceu que a moradia não seria a sua morada na União.

20. Por outro lado, a simples contração de mútuo, em que ocorreu transferências financeiras da credora do mútuo para os devedores em montante muito superior ao valor do terreno, por isso mediante prévia avaliação da Banco 1... antes de disponibilizar montantes, para poder transferir valor em função das obras realizadas, é já por si causa suficiente para presumir que aquele automatismo se verificou, até porque se o dono do terreno é a Ré, ela é devedora ao Autor de toda a diferença entre o que devia pagar por ela e o que foi pago pelo Autor ainda à financiadora, em montante elevado, no caso milhares de euros acima do valor do terreno.

21. Pelo que nenhuma dúvida se manifesta ou que seja causa de impedimento à verificação daquele automatismo e do direito potestativo de aquisição originária, que é a Acessão Industrial Imobiliária.

22. Se o Autor pede na ação que, para o caso de não proceder acessão, devem ser pago a ele pela Ré as benfeitorias no montante devido pela construção, correspondentes a metade da casa, não pode o tribunal invocar que o que o Autor pede são benfeitorias mas decide absolver do pedido a Ré sem cuidar de fazer prova desse valor.

23. O que aliás diga-se constitui mesmo nulidade de sentença, por contradição entre os fundamentos e a decisão.

24. Tendo o Autor pedido que, se não procedesse Acessão, deve proceder pagamento de benfeitorias, a ação não pode ser julgada de mérito.

25. Ademais, é uma violência jurídica, que a ordem jurídica não quer, que o Autor se mantenha ligado a um contrato de crédito de que não se pode exonerar, vivendo a Ré exclusivamente na casa a que se refere o empréstimo, sem ter titulo legitimo que lhe confira possibilidade de ficar a residir na casa de família e, mesmo que o tivesse, tinha ela que repor ao Autor o que foi por si despendido, em dinheiro e trabalho próprio nessa construção.

26. Se a casa é coisa distinta do solo, a verdade é que como prédio dele não tem autonomia, pelo que ou paga o que é devido ao Autor e obtém autorização do banco para exonerar o Autor, ou reconhece o direito do Autor a metade, até como obrigação futuro que sempre teria que liquidar.

27. Se o Autor está assim obrigado não pode dizer-se que não ocorre transferência patrimonial entre ele e a Ré, quer relativamente ao passado quer relativamente ao futuro e que essa transferência, se improcedesse acessão ou simulação, confere ao Autor direito de ser ressarcido a título de enriquecimento sem causa.

28 Foram assim violadas as regras processuais, do CPC, relativas:
a) ao direito à ação – artigo 2º nº 2.
b) ao direito a não ser alvo de decisão surpresa sem conhecer das razões para isso (art. 3 nº 3).
c) ao direito de responder às exceções perentórias que não se verificam (artigo 576 nº 3), e diga-se nem tendo havido qualquer convite nesse sentido.
d) o artigo 595 nº 1, alínea b, por se entender que não se pode conhecer imediatamente do mérito da causa, por o estado do processo o não permitir, havendo ainda necessidade de (mais provas). e) o artigo 697 nº 2, na medida em que se não dá por provados quaisquer factos.
e) o artigo 609 nº 2: por não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, e mesmo assim o tribunal condenou sem remeter as partes no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida. Bem como sobre isso o artigo 610 nº 1, já que “O facto de não ser exigível, no momento em que a ação foi proposta, não impede que se conheça da existência da obrigação, desde que o réu a conteste, nem que este seja condenado a satisfazer a prestação no momento próprio”.
f) O artigo 615 nº 1 alíneas b) e c), por não especificar fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão (nula), existindo ainda contradição entre os fundamentos e a decisão (Acordão STJ de 09.02.2017 - Ocorre a nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. c) do CPC quando os fundamentos referidos pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente, não se verificando quando a solução jurídica decorreu de interpretação dos factos, diversa da pretendida pelo arguente).
g) Neste último caso de oposição ainda porque apesar de reconhecer que é pela compropriedade que se opera divisão entre unidos, não reconhece a possibilidade de valer o direito em ação para o efeito. Por outro lado, reconhece direito a benfeitorias, mas conclui pela sua inaplicabilidade no caso concreto.

29. Do ponto de vista substantivo,

1. por referência às normas do CC:

a) O artigo 240 nº 1, e 241 nº 1; b) Os artigos 1340º, nºs 1, 2 e 3.

c) O artigo 473.

2. Por referência ao artigo 16 nº 4 do regime das obrigações hipotecárias, em conexão com o citado artigo 19, DL nº 59/2006, de 20 de março, que estabelece o regime aplicável às obrigações hipotecárias e às instituições de crédito hipotecário (com atual regime no DL n.º 31/2022, de 06 de maio, REGIME JURÍDICO DAS OBRIGAÇÕES COBERTAS)”.


*

A Ré contra-alegou sustentando a confirmação da sentença recorrida para o que percorreu, acompanhando-os, os fundamentos da mesma.

II – Questões a resolver:
Em face das conclusões do Recorrente nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões objeto do recurso:
1 - A violação do artigo 3º, número 3 do Código de Processo Civil por a sentença recorrida constituir uma decisão surpresa; no caso de assim não se entender,
2 - A nulidade da sentença por falta de fundamentação e por contradição entre os seus fundamentos e a decisão; no caso de não ocorrer,
3 – A necessidade de produção de prova sobre factos relevantes à decisão antes de conhecido o mérito; no caso de não se verificar,
4 – A compropriedade do Autor e da Ré sobre o imóvel por esta adquirido por via:
a) da validade de negócio dissimulado; ou, subsidiariamente,
b) por via de acessão industrial imobiliária; assim não se entendendo,
5 – O direito do Autor a indemnização a título de enriquecimento sem causa por benfeitorias feitas no imóvel da Ré.

IV – Fundamentação:

Foram os seguintes os factos selecionados pelo tribunal recorrido como relevantes para a decisão da causa:

“1.º Autor e ré são progenitores de CC, nascido no dia ../../2017 (fls. 15 verso e 16);

2.º O exercício provisório das responsabilidades parentais, foram reguladas no âmbito de um processo de regulação das responsabilidades parentais que correu seus termos pelo Juízo de Família e Menores de…, …, com o n.º …53/20…., por despacho proferido no dia 15 de Setembro de 2020 (acta de fls. 16 verso a 18);

3.º Encontra-se inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...25, freguesia ... e ..., concelho ..., um imóvel identificado como “terreno para construção” com a área de 1116 m2, inscrito na matriz no ano de 2020 e provindo do anterior artigo ...62, com o valor patrimonial apurado em 2019 de € 28.630,00, averbado como proprietária plena em nome da ré BB (fls. 18 verso e 19);

4.º O imóvel identificado no ponto anterior está descrito na CR Predial sob o n.º ...7 (fls. 19 verso a 20);

5.º Pela AP. ...67 de 2017-02-02 foi registada a aquisição do imóvel em favor da ré por compra a DD (fls. 19 verso a 20);

6.º Pela Ap. ...13 de 2029-12-27 foi registada uma hipoteca em favor da Banco 1... S. A. para garantia de um crédito com o capital de € 140.000,00 tendo como Processo: 1973/21.5T8AVR Referência: 127185191 Tribunal Judicial da Comarca de sujeito passivo – devedor hipotecário – a ré, hipoteca constituída para garantia de um empréstimo concedido pelo mutuário ao autor e à ré (fls. 19 verso a 20);

7.º A compra referida no ponto 5º foi objecto de escritura pública de compra e venda outorgada no dia 30 de Janeiro de 2017, junta aos autos de fls. 20 verso a 22 e da qual consta que a ré comprou a DD e marido, EE o imóvel identificado nos pontos 3º e 4º pelo preço de € 25.000,00 recebidos pelos vendedores;

8.º Da escritura consta ainda que pelos outorgantes foi mencionado que o negócio que precedeu a compra e venda foi objecto de intervenção imobiliária (fls. 20 verso a 22)

9.º Com data de 16 de Dezembro de 2019 foi outorgado entre a Banco 1... S. A., na qualidade de mutuante e o autor e a ré, na qualidade de mutuários, um contrato de mútuo cuja cópia consta dos autos de fls. 22 verso a 24 e documento complementar de fls. 24 verso a 34;

10.º Pelo contrato identificado no ponto anterior foi mutuado ao autor e à ré a quantia de €140.000,00 de que ambos se confessaram devedores, crédito destinado à construção de um imóvel para habitação própria e permanente dos mutuários, tendo a ré constituído em favor da entidade bancária e para garantia do capital emprestado, hipoteca sobre o imóvel identificado nos pontos 3º e 4º; (fls. 22 verso a 24);

11.º O crédito foi concedido pelo prazo de 40 anos a ser pago em prestações mensais e sucessivas (fls. 24 a 34 e 34 verso a 35);

12.º Autor e ré tiveram um relacionamento como se de marido e mulher se tratassem, em comunhão de cama, mesa, em tudo semelhante aos unidos pelo casamento, durante pelo menos Março de 2014 a Fevereiro de 2020;

13.º Com data de 30 de Outubro de 2019 uma sociedade de construção enviou um “email” para a autora, tendo por assunto “Contrato de empreitada”, no qual referia estar a enviar o orçamento final e anexos para análise e em 29-10-2019 enviou novo email com o contrato para ser analisado e verificado, orçamento que identifica como cliente a ré, no valor global de € 116.500,00, IVA incluído (fls. 37 verso a 40);

14.º A ré paga os encargos fiscais relativos ao imóvel (documentos de fls. 60 a 61 verso e relativos aos anos de 2020 e 2021)

15.º E as despesas com os encargos da escritura de compra e venda (fls. 58 a 50 verso)

16º A ré procedeu ao pagamento das despesas relacionadas com o processo camarário de licenciamento, de fornecimento de electricidade (fls. 65 a 72)

17.º É a ré quem procede ao pagamento das prestações do contrato de mútuo e prémios relativos aos contratos de seguro de vida (admitido pelo autor e constante de fls. 72 verso a 95 e não impugnados pelo autor), sendo que a primeira prestação venceu-se em 19-02-2020 (fls. 72 verso) mês em que a relação de união de facto entre autor e ré cessou;

18.º Na Petição Inicial o autor alegou em termos factuais e com interesse para a decisão dos autos o seguinte:

“(…)2. Essa relação, que se manteve por seis anos, entre período temporal de Março de 2014 a Fevereiro de 2020, começou por ter habitação na Avenida …, na freguesia ..., concelho de ... e daí saíram para outro local arrendado na mesma freguesia.

(…)

5. Durante a União de Facto, A. e R. adquiriram com vista ao fortalecimento da União e para edificação de lar da família (…) um prédio urbano destinado a construção (…) inscrito na matriz predial urbana sob o art. ...25 (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o número ... (…90) (…)

6. Esse terreno com a área urbana de 1.116. metros quadrados, permitia uma área de implantação de 150 m2, uma área bruta dependente de 80 m2 e uma área bruta de construção de 230 m2.

(…)

8. Contudo, compulsada a certidão de registo predial, tal prédio encontra-se unicamente registado a favor da R., através da AP. ...67, de 2017/02/02.

9. Na realidade, essa inscrição a seu favor, apenas motivada pela titulação do acto de aquisição exclusivamente em nome da R., devia na verdade, ter sido titulado a favor dos unidos, que o negociaram e pagaram em conjugação de esforços.

10. (…) essa titulação resultou por terem combinado entre si e com a vendedora, que a referida titulação seria celebrada exclusivamente a favor da R.;

11. Isto porque, havia sido o pai da R., entretanto falecido, quem adiantou com o pagamento do preço pago à vendedora, mas com obrigação de os unidos lhe restituírem o valor da mesma (25.000,00€), pese embora as negociações tenham sido efectivamente celebradas entre os unidos e a vendedora, com a intermediação de uma sociedade de mediação imobiliária;

12. (…) por forma a garantir o reembolso do preço adiantado pelo pai da R., A. e R. aguardaram decisão da Instituição de Crédito Banco 1... (…) que financiaria a construção da habitação, o que efectivamente veio a acontecer.

13. Pressuposto desse financiamento ou da obtenção desse financiamento, um dos mutuários teria de ser proprietário do referido terreno; (…)

14. Com o contrato de empreitada orçado em 116.500,00 € (cento e dezasseis mil e quinhentos euros), acrescido de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros), respeitantes ao preço pago pela aquisição do referido lote de construção, A. e R. recorreram, assim, a um financiamento de valor aproximado aos montantes necessitados (…)

15. (…) a aquisição e titulação do prédio urbano exclusivamente a favor da R., garantiria só por si, a confiança do progenitor desta para adiantar o valor do preço do citado lote para construção.

16. Para além disso, a titulação em exclusivo em nome da R., foi acordada entre ambos os unidos, por esta se sentir mais confiante relativamente ao A.;

17. Em consequência do financiamento concedido pela Banco 1... e assim que possibilitada a utilização de parte do capital mutuado (com a disponibilização das primeiras tranches), A. e R. ordenaram à Banco 1..., em 27/01/2020, uma transferência a favor do progenitor no valor de 10.000,00 € (dez mil euros), da conta à ordem titulada por aqueles, junto da Banco 1..., com o n.º de conta ...00 para a conta à ordem titulada por FF (pai da R.), igualmente junto da Banco 1... (…)

18. Acordado estava também que o progenitor receberia de forma semelhante os restantes 15.000,00 € (quinze mil euros), isto é, por retiradas da conta da Banco 1... associada ao contrato de mútuo, contudo, fruto de desavenças entre unidos, após Fevereiro de 2020, tal obrigação passou para a R., quem passou a movimentar os montantes disponibilizados exclusivamente a seu belo prazer e sabe-se que a movimentar valores para conta própria, nomeadamente pagar ao seu pai a quantia remanescente, o que se crê tenha sido efectuado (…)

19. Simultaneamente, contrataram a execução de projeto de moradia habitacional, que sujeitaram a aprovação do órgão camarário competente e do processo de financiamento, tendo aberto conta conjunta para esse efeito.

20. No Documento Particular Autenticado, o contrato de mútuo com hipoteca (…) a finalidade daquele consagra serem solidariamente devedores A. e R. com o intuito de construírem habitação própria permanente.

21. Construção que adjudicaram e que se encontra praticamente terminada.

22. Nesse terreno foi feita escavação para abertura de caboucos de fundações, às cotas previstas no projeto para implantação de obra, que foi devidamente incorporada. O betão armado foi fornecido e aplicado como consta no orçamento, incluindo ainda fornecimento e execução de paredes exteriores e interiores e cobertura.

23. Fizeram-se instalações técnicas e redes de drenagem de águas residuais domésticas, e instalação de telecomunicações e rede elétrica. Executaram-se pavimentos e revestimentos.

24. E pese embora tal obra ainda não esteja finalizada, os trabalhos em falta importam valor residual em face do mútuo acordado e face ao valor final de tal obra ou do valor do terreno.

25. Sendo pois notório, e das regras da experiência, que tal obra tem hoje um valor acrescido em muito superior ao valor inicial do terreno escavado, que está titulado em nome da R.

26.º. Durante a União de facto era o A. que pagava a renda do imóvel onde viviam (…) Contribuindo cada um (…) com o produto do seu trabalho e com a mão de obra doméstica e outra à execução e ao acompanhamento de obra, bens para consumo doméstico e bens de lazer, cultura e satisfação pessoal de todo o agregado familiar.  (…)

28. Torna-se necessário fixar direito porquanto é fácil desde logo concluir ter havido simulação no acto de titulação de aquisição do respectivo terreno e determinar ainda responsabilidades muito em função também da partilha do património comum, que é necessário realizar e pode e deve ser feita com fundamento principal nesta ação.

29. Sendo pois essencial perceber que o A. é legitimo comproprietário de tal prédio, que perdeu a natureza de terreno sendo agora imóvel para habitação. Isto porque invoca simulação relativa que se reconduz a que se determine que o A. é igualmente legítimo proprietário, a título da acessão industrial imobiliária, o que se invoca subsidiariamente.

30. Verificando-se todos os requisitos para tanto, incluindo ter feito construção em terreno titulado em nome alheio, a R., pessoa distinta dele, a ele unida de facto no entretanto e dele desunida mais tarde. O que releva é que essa incorporação e aquisição se dá durante a União.

58.º Havendo apenas de ver declarado que o terreno foi efectivamente adquirido por A. e R., devem ser cancelada a inscrição somente a favor da R. e, consequentemente, ser reconhecido o A. como comproprietário em igual proporção.

59.º Tudo isto sem que ainda se reconheça a existência de acessão imobiliária, em consequência da incorporação efectuada por ambos, de boa fé, no referido terreno.

19.º No requerimento de resposta ao despacho de aperfeiçoamento alegou, em termos factuais e com interesse, o seguinte:

“I – Da simulação relativa:

1. Da intenção de enganar terceiros como pressuposto da simulação: (…)

b) Alegou-se no ponto 5 da petição que durante a união de facto, A. e R. adquiriram com vista ao fortalecimento da união e para edificação de lar da família, no mesmo ano, aliás, em que esse menor nasceu, um prédio urbano destinado a construção.

c) Alegou-se depois nos pontos 9 e 10 e 11:

“9. Na realidade, essa inscrição a seu favor, apenas motivada pela titulação do acto de aquisição exclusivamente em nome da R., devia na verdade, ter sido titulado a favor dos Unidos, que o negociaram e pagaram em conjugação de esforços.”

10. De facto, essa titulação resultou por terem combinado entre si e com a vendedora, que a referida titulação seria celebrada exclusivamente a favor da R.

11. Isto porque, havia sido o pai da R., entretanto falecido, quem adiantou com o pagamento do preço pago à vendedora, mas com obrigação de os Unidos lhe restituírem o valor da mesma (25.000,00€), pese embora as negociações tenham sido efectivamente celebradas entre o os Unidos e a vendedora, com a intermediação de uma sociedade de mediação imobiliária”.

12.Ou seja, por forma a garantir o reembolso do preço adiantado pelo pai da R., A. e R. aguardaram decisão da Instituição de Crédito Banco 1... (doravante Banco 1...) que financiaria a construção da habitação, o que efectivamente veio a acontecer.

13.Pressuposto desse financiamento ou da obtenção desse financiamento, um dos mutuários teria de ser proprietário do referido terreno.

d) Assim, o Autor entende que configura simulação inocente, isto é, sem intenção de causar prejuízo, mas tão só obter financiamento, que não teriam se não tivessem o imóvel, ou pelo menos não teriam em condições tão favoráveis, tendo, com isso, enganado a Instituição de Crédito.

e) Além de que na verdade não foi a Ré que pagou o preço do terreno, mas o seu pai, com obrigação desse montante lhe ser restituído. Ou seja, em vez de o terreno ficar em nome do pai, que pagou o seu preço, ficou logo em nome da filha deste, quando na realidade é dos dois.

f) Na verdade, sob o ponto 13 da PI escreveu-se:

“13. Pressuposto desse financiamento ou da obtenção desse financiamento, um dos mutuários teria de ser proprietário do referido terreno; “

g) Acresce ainda a alegação da matéria dos pontos n.ºs 15 e 16 e 38, 39, 42 e 43:

“15. De facto, a aquisição e titulação do prédio urbano exclusivamente a favor da R., garantiria só por si, a confiança do progenitor desta para adiantar o valor do preço do citado lote para construção.

16. Para além disso, a titulação em exclusivo em nome da R., foi acordada entre ambos os Unidos, por esta se sentir mais confiante relativamente ao A.”

38. Quanto ao intuito de enganar terceiros, quer o pai da Ré quer a Ré queriam salvaguardar património e evitar segurar cobrança própria, caso o A não viesse a liquidar. (…)

42.A Ré visava assim salvaguardar de terceiros a garantia do pai, torando património apenas por si dominado, e fortalecendo a garantia do próprio progenitor.

43.Um tal negócio esconde, contudo, o real negócio, em autêntica simulação relativa, que se reconduz ao reconhecimento da real compropriedade de A. e Ré.”

II – Da Acessão Industrial Imobiliária:

6. Alegou o Autor:

“29. Sendo, pois essencial perceber que o A. é legitimo comproprietário de tal prédio, que perdeu a natureza de terreno sendo agora imóvel para habitação. Isto porque invoca simulação relativa que se reconduz a que se determine que o A. é igualmente legítimo proprietário, a título da acessão industrial imobiliária, o que se invoca subsidiariamente.

30. Verificando-se todos os requisitos para tanto, incluindo ter feito construção em terreno titulado em nome alheio, a R., pessoa distinta dele, a ele unida de facto no entretanto e dele desunida mais tarde. O que releva é que essa incorporação e aquisição se dá durante a União.”

7. Ou seja, alegou incorporação feita por ele Autor em terreno apenas em nome da Ré, incorporação essa de valor muito superior, na medida em que onde estava um terreno está hoje uma casa de valor muito superior.

8. Alegou-se que tal foi feito de forma consentida com a Ré, isto é autorizada por ela, consequentemente de forma voluntária a substituir o terreno por uma casa, à custa de materiais pagos por ambos, com mão de obra de terceiros, pago por ambos, e realizada ainda pelo Autor:

9. Alegou-se no ponto 50 da PI: “O que A. e R. fizeram não é acessório do bem terreno, mas uma alteração profunda na sua natureza, marcada pela finalidade da construção. Não foi construído um armazém, ou arrecadação, mas uma moradia habitacional, dotada das exigências legais e técnicas para o efeito. Uma habitação que assume uma finalidade social principal, de relevante interesse pessoal e coletivo, numa sociedade que elege políticas sociais como finalidades sociais constitucionalmente consagradas.

51. Ou seja, a incorporação realizada modificou a finalidade de terreno, dando-lhe estatuto de casa, prédio urbano edificado, apesar de ainda ter tal obra que ser finalizada:

10. Alegou-se ainda:

55.O que a União de Facto, através dos unidos queria, era ter aí a morada de família dos unidos e adquirir moradia, só possível com esse terreno, mesmo que estivesse apenas em nome da R., mudando-lhe a natureza para imóvel destinado a habitação, o que foi feito.

56. Estamos, pois até perante uma manifestação de vontade clara e até expressa a partir dos documentos de licenciamento e outorga de contrato de mútuo com aquela finalidade.

57. A União de facto expressou na pessoa dos unidos e declarantes, não sendo estorvo a isso o terreno estar em nome de um deles, adquirido na constância dessa União, no pressuposto que com o mútuo, a habitação sempre seria de ambos.

Termos em que, porque o pedido de acessão é subsidiário, deve ele ser mantido, para ser apreciado como fundamento aquisitivo, caso improceda o pedido principal de simulação relativa.”


*

1 – Da alegada falta de contraditório.

Sustenta o apelante que a decisão recorrida violou o seu direito “a não ser alvo de uma decisão surpresa”. 

Apenas nas conclusões de recurso (conclusão 28, alínea b)) o Apelante invoca a violação do artigo 3º, número 3 do Código de Processo Civil. Nada é dito no corpo das alegações sobre tal matéria.

O histórico do processo supra sumariado demonstra à saciedade que na tramitação dos autos o Tribunal facultou (abundantemente) ao Autor a possibilidade de se pronunciar sobre o entendimento preconizado desde o primeiro convite ao aperfeiçoamento, tendo esse convite sido proferido depois de demorada e completa afirmação do direito que se entendeu poder ser aplicável e em face do qual se julgou que a petição inicial necessitava de ser completada. Tal convite não obteve qualquer resposta da parte do Autor e, ao contrário do que seria devido, o Tribunal reiterou-o, facultando ao Autor novo prazo para o mesmo efeito o que, de novo, não mereceu qualquer resposta. Anunciou-se, então, a designação da audiência prévia também, e de novo, com o fim de poder vir a ser suprida a insuficiência ou imprecisão dos articulados e, no decurso da mesma o Autor requereu prazo para se pronunciar por escrito, o que foi deferido, tendo só então o mesmo tomado posição sobre o teor dos anteriores convites ao aperfeiçoamento.

Alega agora o Apelante (conclusão 28º, alínea d)) que não lhe foi facultado o “direito de responder às exceções perentórias que não se verificam (artigo 576º, nº 3), e diga-se nem tendo havido qualquer convite nesse sentido.”

O Recorrente não indica a que exceções perentórias se refere e a que pretenderia responder.

Todavia, prescreve o artigo 3º, número 4 do Código de Processo Civil “às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia (…)”

No caso, não tendo sido deduzida reconvenção a contestação foi o último articulado admissível (cfr. artigo 584º número 1 do Código de Processo Civil) pelo que podia e devia o Autor ter respondido ao que entendia poder consubstanciar matéria de exceção na audiência prévia, o que não declarou pretender fazer, como da respetiva ata emerge, não tendo o mesmo que ser expressamente convidado para o efeito já que tal prerrogativa decorre da lei.

Depois da audiência prévia e da pronúncia escrita do Autor ao convite ao suprimento da insuficiência do seu articulado e da subsequente resposta da Ré, foi proferido despacho em que se facultou às partes prazo para se pronunciarem sobre a possibilidade de ser de imediato decidido o mérito da ação. Tal despacho adiantou de forma adequada o sentido da decisão (em consonância com o que já fora dado a conhecer nos convites ao aperfeiçoamento), tendo o Autor (como a Ré) usado desse prazo para esgrimir os fundamentos de direito pelos quais entendia que a ação deveria ser julgada procedente. Nessa resposta o Autor manifestou ter compreendido claramente os pressupostos e sentido da decisão que o Tribunal pensava proferir e teve ensejo de exercer contraditório sobre todas as questões a que entendia ter direito a pronunciar-se.

O histórico do processado revela, assim, o cumprimento do princípio do contraditório como previsto no artigo 3º, número 3 do Código de Processo Civil[1].

A decisão proferida assentou sobre os mesmos considerandos de direito que já haviam sido enunciados no convite ao aperfeiçoamento e que tinham sido, depois, sumariados no despacho que facultou contraditório sobre a possibilidade de conhecimento imediato do mérito da ação e demonstrou ter atendido ao contraditório exercido já que acolheu a defesa do Autor sustentada na subsidiariedade da invocação da acessão industrial imobiliária.

Não ocorreu, assim e manifestamente, qualquer violação do disposto no artigo 3º, número 3 do Código de Processo Civil.

2 – A nulidade da sentença.

O apelante invoca a nulidade da sentença por violação das suas alíneas b) e c) (conclusão 28 g)) mas na alínea 2 das conclusões afirma também que a sentença extravasa o princípio do pedido. Ficamos sem perceber se o Apelante entende que a sentença foi além do pedido, se omitiu o conhecimento e a enunciação dos factos e do direito que fundamentam a decisão ou se, afinal, a mesma tem fundamentação, mas a mesma está em oposição com a decisão.

Prevê o artigo 615º número 1 a que a sentença é nula quando não especifique os seus fundamentos de facto e de direito e pela alínea c), também se comina com nulidade a sentença quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

De uma leitura (ainda que desatenta) da sentença recorrida decorre manifestamente que a mesma não omitiu a fundamentação de facto a que alude o artigo 607º, número 3 tendo sido, de forma destacada, enumerados os factos julgados provados “documentalmente e por acordo das partes” entre eles se fazendo ainda constar os factos que foram articulados pelo Autor que se encontram controvertidos por forma a concluir pela improcedência dos pedidos.

Após, e embora a união de facto entre Autor e Ré não tenha sido invocada como causa de pedir para a procedência da declaração de compropriedade do imóvel que foi adquirido pela Ré, discorre-se, na sentença recorrida, sobre o regime legal da união de facto para concluir (como o Autor fizera, aliás), que da união de facto não decorre necessariamente a existência de um património comum citando a propósito jurisprudência e doutrina pertinentes

A sentença aborda, de seguida, cada uma das causas de pedir alegadas pelo Autor e conhece de todos os pedidos formulados indicando as normas jurídicas aplicadas e a interpretação que delas se fez, mais uma vez citando doutrina e jurisprudência.

É, assim, manifesto que não ocorre o vício previsto na alínea b) do número 1 do artigo 615º.

Já o vício previsto na primeira parte da alínea c) do número 1 do artigo 615º verifica-se sempre que a fundamentação de facto e de direito da sentença proferida apontam num certo sentido e, depois, surge um dispositivo que não se coaduna de todo com as premissas, sendo assim um vício lógico na construção da sentença. Na segunda parte da referida alínea prevê-se que o mesmo vício possa decorrer de alguma ambiguidade ou obscuridade que tornem a decisão ininteligível.

O raciocínio lógico dedutivo expresso na sentença é claro e compreensível e o Apelante bem demonstra tê-lo compreendido ao longo das suas alegações.

O Apelante sequer concretiza, aliás, nenhuma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, isto é, que torne incompreensível o raciocínio e/ou os argumentos que foram aduzidos para chegar à mesma.

Assim, também não se verifica o vício previsto na segunda parte da alínea em causa.

Vamos agora à alínea d) do mesmo artigo 615º, número 1 do mesmo Diploma cuja aplicação o Apelante não invoca explicitamente, mas que, a ser verdade o que o mesmo afirma na alínea f) da conclusão 28º poderia estar verificado. Existe tal nulidade, como ali se prevê, “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”. Com tal expressão, na sequência do previsto no artigo 608º do Código de Processo Civil pretende referir-se a discussão e análise jurídica, em sede de fundamentação de direito da respetiva peça processual, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que caiba ao juiz conhecer oficiosamente[2].

Afirma o Recorrente que foram violados os artigos “609 nº 2: por não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, e mesmo assim o tribunal condenou sem remeter as partes no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida. Bem como sobre isso o artigo 610 nº 1, já que “O facto de não ser exigível, no momento em que a ação foi proposta, não impede que se conheça da existência da obrigação, desde que o réu a conteste, nem que este seja condenado a satisfazer a prestação no momento próprio.”.

Não é fácil apreender o que pretende o Recorrente afirmar já que da sentença não resultou qualquer condenação, antes uma absolvição total dos pedidos de condenação apenas tendo procedido a pretensão de reconhecimento da união de facto entre as partes. Também não se percebe o que pretende o Apelante quando afirma que foi violado o artigo 610º, número 1 do Código de Processo Civil já que não foi feito qualquer pedido de condenação em obrigação não exigível. De todo o modo, tendo o tribunal Recorrido concluído pelo não reconhecimento ao Autor de qualquer dos direitos que se arrogava, não há qualquer omissão de pronúncia por não se ter relegado para momento posterior a liquidação da condenação já que a decisão foi de absolvição.

Como tal, não se verifica a nulidade em apreço.

De tudo o exposto resulta, como aliás acontece com indesejável frequência, que o Recorrente pretende sustentar a nulidade da sentença em motivações que se prendem com o seu mérito confundido invalidade da sentença com erro de julgamento que entende ter ocorrido.

É inúmera a jurisprudência que contribui de forma positiva para a clarificação dessa distinção[3].
Acompanham-se a este propósito as pertinentes considerações de Abrantes Geraldes[4]  “Não se compreende a atração que é revelada em múltiplos recursos de apelação e de revista pela arguição de “nulidades” da sentença da 1ª instância ou do acórdão da Relação e que, com muita frequência apenas têm subjacente o inconformismo em relação à decisão da matéria de facto ou à respetiva integração jurídica. Se essa “técnica” se instalou numa altura em que o prazo para a interposição de recurso apenas se contava a partir da notificação da decisão sobre arguição de nulidades, visando ampliar o prazo para a interposição do recurso e subsequente apresentação das respetivas alegações, agora nenhum benefício se alcança (…).”.
A sentença em apreço elenca os factos que considera provados e fundamenta juridicamente a decisão com indicação dos respetivos pressupostos e do direito que considerou aplicável e encontra-se redigida de forma escorreita e clara que, de todo, pode qualificar-se como ininteligível.
O Recorrente, aliás, manifesta bem ter compreendido a sentença e não elenca um único facto que o Tribunal tenha omitido na decisão, nem qualquer omissão de motivação da convicção quanto a matéria de facto e nem explicita claramente qual(ais) a(s) questão(ões) que entende não ter(em) sido tratada(s).
Pelo que improcede a pretendida declaração de nulidade da sentença.


*

3 – Da insuficiência da matéria de facto para o conhecimento do mérito.

Prevê o artigo 595º, número 1 b) do Código de Processo Civil que o despacho saneador se possa destinar ao conhecimento do mérito da causa sempre que o estado dos autos o permitir, sem necessidade de mais provas. Nesse caso, como previsto no número 3 do mesmo artigo, o mesmo tem valor de sentença.

Estando controvertidos vários dos factos alegados na petição inicial – que a Ré impugnou em larga medida –, e também factos alegados na contestação e não podendo, assim, os mesmos ser dados por provados, a decisão recorrida assenta, contudo, na consideração de que esses factos, ainda que provados, não seriam bastantes à conclusão pretendida. Trata-se de uma situação de “inconcludência jurídica” tal como a qualifica Lebre de Freitas[5] que a define como a “situação em que é alegada uma causa de pedir da qual não se pode tirar, por não preenchimento da previsão normativa, o efeito jurídico pretendido, constituindo causa de improcedência da ação”. Nem sempre é fácil distinguir tais situações - de inviabilidade da ação -, das de ineptidão da petição inicial por falta ou insuficiência da causa de pedir, mas, no caso, o Tribunal decidiu do mérito da pretensão do Autor, julgando-a improcedente e absolveu a Ré do pedido.

O Autor nas suas alegações de recurso (conclusão 15) vem mesmo arguir que o Tribunal poderia julgar inepta a petição inicial por si mesmo apresentada (solução que ora bem se percebe em que medida lhe seria mais favorável já que conduziria a uma absolvição da Ré da instância e não do pedido – cfr. artigos 186º, número 1 e 278º, número 1 b) do Código de Processo Civil), mas não absolver a Ré do pedido.

É manifesto que o Tribunal recorrido conheceu do mérito por entender que os factos que julgou provados e ainda os demais, controvertidos, alegados na petição inicial não conduziam a uma qualificação jurídica que servisse de fundamento ao direito do Autor de se ver reconhecido como comproprietário do imóvel em discussão - fosse por via da declaração de nulidade, por simulação, do negócio pelo qual foi adquirido ou por aplicação do instituto da acessão industrial imobiliária -, ou ao direito do mesmo ser indemnizado com base no instituto do enriquecimento sem causa decorrente de benfeitorias feitas no referido prédio.

Como sumariado em Acórdão desta secção de 13-07-2022[6] “I - A suficiência dos elementos para proferir decisão antecipada de mérito não constitui propriamente uma questão a decidir, tal como previsto no artigo 608º do Código de Processo Civil, mas antes uma exigência legal de ordem adjetiva para que possa ser proferida decisão antecipada de mérito, exigência que terá que ser apreciada pelo julgador tendo em conta as diversas soluções plausíveis das questões decidendas.

II - Um julgamento antecipado do mérito da causa sem que se achem preenchidas as condições legais para tanto não conduz a uma decisão nula por excesso ou omissão de pronúncia, mas determina sim a ilegalidade da decisão por violação do critério legal constante da alínea b) do nº 1 do artigo 595º, do Código de Processo Civil.

III - Sendo proferida decisão de mérito na fase do despacho saneador e criticando-se esse conhecimento antecipado do mérito da causa sem produção de prova pessoal, compete ao recorrente evidenciar a existência de um outro enquadramento jurídico plausível além do adotado pelo tribunal a quo e para o qual era necessária a realização da instrução da causa, com produção das provas pessoais por si oferecidas em sede de audiência final.”.

O Apelante defende a viabilidade dos seus pedidos e a necessidade de produção de prova sobre os factos controvertidos para se poder aferir do mérito da ação.

Olhemos, pois, para a causa de pedir por ele articulada na petição inicial (e subsequente resposta ao convite feito em audiência prévia)  por forma a aferir se estão já assentes todos os factos necessários à decisão ou se, pelo menos, os que estão impugnados não têm que ser sujeitos a instrução por não poderem, de acordo com nenhuma solução possível de direito, conduzir à procedência de algum dos pedidos de que a Ré foi absolvida (não foi posto em crise o decidido quanto ao primeiro pedido formulado, de reconhecimento da união de facto entre Autor e Ré, pelo que nessa parte se formou caso julgado).


*

a) Começaremos por apreciar os fundamentos quer do segundo pedido do Autor (formulado de forma inadequada, mas percetível nas alíneas 2 a 4 do pedido[7]) quer da decisão que sobre tal pedido foi proferida, ou seja, debruçar-nos-emos, em primeiro lugar sobre a simulação e a falta de alegação do acordo simulatório.

Estipula o artigo 240º, número 1 do Código Civil que ocorre simulação quando “por acordo entre declarante e declaratário e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante”, caso em que o negócio simulado é nulo podendo, nos termos do artigo seguinte, ser válido o negócio dissimulado quando o haja, ou seja, quando “sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar”.

A decisão recorrida concluiu que o Autor não alegara os factos necessários a que se pudesse concluir pela existência de uma divergência entre a vontade real e a declarada e nem um conluio entre as partes do contrato com o propósito de enganar terceiros depois de enumerar (citando Pires de Lima e Antunes Varela) da seguinte forma o que considerou serem os três requisitos da simulação:

“a) a divergência entre a vontade real e a declarada;

b) acordo ou conluio (pactum simulationis) entre as partes;

c) intenção de enganar terceiros (animus decipiendi).

Ora, como afirmado na sentença recorrida, os factos alegados pelo Autor não poderiam conduzir, ainda que todos provados, à pretendida declaração de simulação desde logo porque não foi alegado pelo Autor que as partes outorgantes (das quais uma, a outorgante vendedora, sequer foi demandada) na compra e venda objeto do pedido tenham acordado em declarar vontade diversa da real com o intuito de enganar terceiros. Em nenhum momento – nem em resposta ao convite ao aperfeiçoamento -, o Autor alegou que a vendedora (que ocupa no negócio que se quer julgar nulo a posição de declaratária quanto à declaração negocial de compra por banda da Ré) tenha chegado a acordo com a declarante (compradora) no sentido de enganar terceiros tendo apenas afirmado que a mesma concordou em “titular” a venda em nome da Ré. E tanto bastava para que improcedesse tal pretensão sem que fosse necessária a produção de qualquer prova quanto à respetiva causa de pedir, dado que a mesma é manifestamente insuficiente para o pretendido efeito. Não se trata, todavia, de uma situação de ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir porque o Autor alegou os factos que, no seu entender, conduziam à pretendida conclusão de que também ele deve ser reconhecido como comprador do imóvel em causa. Nesse sentido, e mesmo depois de convidado, reiterou a alegação de um acordo entre si e a Ré e o pai desta, acordo esse motivado pela vontade de oferecer melhor garantia ao pai da Ré[8] que lhes terá mutuado o valor da compra, no sentido de apenas ela figurar como compradora na escritura de aquisição. O que sucedeu é que tais factos não consubstanciam qualquer simulação, desde logo porque não foi alegado que o alegado acordo simulatório com o fim de melhor garantir o pari da Ré foi celebrado entre a declarante e a declaratária no negócio de compra e venda que o Autor diz ter sido simulado, mas, segundo alega, tal acordo teria sido celebrado entre ele mesmo, a outorgante compradora e o pai desta.

Acresce que do que alega o Autor também não decorre qualquer intuito de enganar terceiros já que se o objetivo era, como também alega, que o imóvel ficasse em nome da Ré para que futuramente um Banco viesse a mutuar ao casal a quantia necessária a que nele fosse feita uma construção, a verdade é que o que ficou declarado na escritura de compra e venda não diverge da verdade na medida em que a Ré adquiriu, de facto, o imóvel. Ou seja, o que o Autor alega é também insuficiente para que se conclua que tenha ocorrido alguma intenção de enganar terceiros.

Se a intenção era, pelo contrário – como também afirma com muito pouca clareza -, que o pai da Ré ficasse, como mutuante, com melhor garantia, faria todo o sentido que o imóvel fosse adquirido por ambos os mutuários e não apenas pela sua filha.

Já a alegação que o Autor também faz – contraditória com a anterior - de que o imóvel teria de ficar em nome da Ré para que futuramente um banco viesse a conceder ao casal um mútuo para obras também não faz qualquer sentido já que essa exigência ficaria também cumprida se o imóvel estivesse em nome dos dois mutuários.

Donde, os factos alegados não são bastantes a que se pudesse concluir, uma vez provados, que ocorreu acordo simulatório entre declarante (Ré) e declaratária (a outorgante vendedora do imóvel) com intuito de enganar qualquer terceiro, jamais podendo conduzir a tal conclusão jurídica.

Subscrevemos o texto sumariado do Acórdão desta Relação de 09-07-2014[9]: “A falta de alegação de factos essenciais dá lugar à ineptidão da petição inicial por falta de identificação de uma causa de pedir, o que conduz à absolvição da instância, com caso julgado formal, enquanto que se a causa de pedir ficar incompleta, por não terem sido alegados todos os factos que constituem a causa de pedir (nem sequer depois de um convite ao aperfeiçoamento), o que acontece é a inconcludência do pedido, com absolvição deste, o que produz caso julgado material”.

Em conclusão, os factos alegados e julgados provados eram bastantes para que o Tribunal recorrido conhecesse do mérito do referido pedido pois deles não decorre, em qualquer solução plausível de direito, que pudesse vir a julgar-se ter ocorrido simulação na compra e venda do imóvel em causa e que, por via dela o mesmo devesse ser considerado compropriedade de Autor e Ré.


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b) Há agora que aferir se em relação à causa de pedir destinada a sustentar o primeiro pedido subsidiário o Tribunal também já dispunha dos elementos necessários, nos termos do artigo 595º, número 1 b) do Código de Processo Civil, para conhecer do seu mérito.

Por via desse pedido o Autor pretende que se declare que adquiriu, por via de acessão industrial imobiliária, a compropriedade sobre o imóvel em causa nos autos.

A sentença recorrida entendeu que o Autor reconhece que a construção não está concluída e que dos factos provados decorre que a mesma ocorreu necessariamente após a separação bem como que o Autor reconhece que desde tal separação a movimentação bancária (presume-se que do mútuo para obras que foi concedido ao então casal) foi feita pela Ré e conclui “por recurso ao artigo 351º do Código Civil” que “a habitação foi feita, na sua grande maioria, após a separação, com fundos do crédito, que têm sido liquidados pela ré e não pelo autor, factualidade que, por si só, torna o direito de compropriedade invocado pelo autor por acessão, improcedente, porque o autor quando se separou não tinha um imóvel de maior valor para incorporar, imóvel que o próprio reconhece não está acabado.”.

Daqui faz decorrer a conclusão de que de a construção não foi feita por Autor e Ré, mas apenas por esta e que a mesma ainda não existe juridicamente como coisa autónoma pelo que não pode proceder o pedido formulado nas alíneas 5 e 6 da petição inicial.

Não se acompanha este raciocínio pela seguinte ordem de razões:

1 - A conclusão ou não da obra é irrelevante para o apuramento da aquisição por acessão industrial imobiliária já que os requisitos da mesma são, como o próprio Tribunal recorrido indica e como resulta do disposto no artigo 1340º do Código Civil:

“a) a incorporação consistente no ato voluntário de realização de uma obra em terreno alheio;

b) a pertinência inicial dos materiais ao autor da incorporação;

c) a formação de um todo único do terreno e da obra;

d) o maior valor desse todo único em relação ao anterior valor do prédio;

e) a boa-fé do autor da obra, considerando-se como tal o facto de o dono da obra desconhecer que o terreno era alheio ou se foi autorizado pelo dono do terreno”.

É, assim, apenas de apurar se a obra feita (esteja acabada ou não) forma um todo com o terreno em que foi incorporada e se esse todo tem um valor superior ao que teria o terreno antes da construção sendo irrelevante se a mesma está já concluída ou não.

2 – Por outro lado o raciocínio feito na sentença não distingue, confundindo-os, o custeio da obra (pagamento de mão de obra e materiais) e o pagamento do mútuo que Autor e Ré contraíram destinado ao pagamento das obras. O Autor alega que a obra se encontra a ser feita com uso de dinheiro comum na medida em que para a sua execução foi concedido ao então casal um mútuo bancário.

Ou seja, de acordo com o estipulado no artigo 1142º do Código Civil, foi emprestada a ambas as partes uma quantia monetária com a obrigação de as mesmas a devolverem e é com uso dessa quantia que estão, pelo menos em parte, a ser custeadas as obras. Ora, nos termos do artigo 1144º do Código Civil “As coisas mutuadas tornam-se propriedade do mutuário pelo facto da entrega”. Está, assim devidamente alegado pelo Autor que a obra que diz ter aportado ao imóvel da Ré valor superior ao que este tinha anteriormente foi feita com recurso a dinheiro de ambos já que a ambos foi mutuado.

A questão de saber se apenas a Ré tem suportado os encargos com o pagamento do mútuo e outros (que a mesma alega na contestação mas não pode dar-se por assente com base em confissão ou documento autêntico) pode relevar para aferir se, por via desse pagamento o Autor não está efetivamente empobrecido nem a Ré enriquecida à custa dele (o que tem interesse apenas para a apreciação do segundo pedido subsidiário).

Também a alegação da Ré de que já diligenciou pela libertação do Autor da obrigação decorrente do empréstimo tendo o mesmo negado tal possibilidade apenas para poder ter fundamento para a propositura desta ação, pode também relevar para aferir se o Autor age em abuso de direito, ou seja, se, como afirma a Ré, o mesmo pretende enriquecer injustamente à sua custa.

Não tem, todavia, qualquer interesse para a decisão da pretensão do Autor de ver declarado que adquiriu em conjunto com a Ré a propriedade do imóvel por via da acessão industrial imobiliária quem tem vindo a pagar as prestações do mútuo destinado a obras já que as mesmas têm sido pagas com dinheiro comum, que a ambos foi mutuado e de que ambos são devedores.

A questão da aquisição de imóveis em regime de compropriedade por por via de acessão industrial imobiliária em situações em que dois membros de um casal constroem com recurso a dinheiro de ambos em prédio de um deles tem merecido respostas diferenciadas na doutrina e jurisprudência[10] e, como tal tem diversas soluções plausíveis de direito.

Os factos já assentes não permitem decidir a questão em apreço sendo essencial a produção de prova sobre todos os requisitos da acessão que estão controvertidos nomeadamente: - os valores do terreno antes e depois da construção feita (que o Autor alegou conclusivamente serem de grandeza diferente sendo maior o primeiro o que deve ser convidado a concretizar, convite esse que nunca lhe foi dirigido); e - o contributo do Autor para a construção por via do uso de dinheiro que é propriedade de ambos (porque a ambos foi mutuado) e por via do uso de montantes/trabalho próprio o que o Autor também alega, de novo conclusivamente, nos artigos 26º e 27º da petição inicial onde afirma quer que ambos os unidos de facto contribuíram  “com o produto do seu trabalho e com a mão de obra doméstica e outra à execução e ao acompanhamento de obra” quer que “o valor incorporado pela obra no terreno e que ficou a cargo do A. ou por força do contrato de mútuo a que se obrigou é em montante manifestamente superior ao valor do terreno”.

Ainda que conclusivamente - já que não indica os valores respetivos -, está assim alegado pelo Autor que contribuiu para a obra não só através do uso do dinheiro, comum, mutuado, como que também através do seu trabalho e de dinheiro próprio (“que ficou a cargo do Autor”).

Pelo que não poderia ter já sido julgado o mérito da pretensão de reconhecimento de aquisição do imóvel, em compropriedade, por via da acessão industrial imobiliária, cabendo fazer prosseguir os autos para apuramento dos factos controvertidos relevantes para tal pedido devendo lançar-se mão de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial nos trechos em que tais factos são alegados conclusivamente como sejam os relativos ao valor do terreno antes e depois das incorporações nele feitas por via das obras e os relativos ao valor com que o Autor contribuiu com trabalho, dinheiro (próprio e/ou comum) para tal obra[11].


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3 - Tais factos são ainda relevantes para a eventual procedência do segundo pedido subsidiário.

O mesmo encontra-se assim formulado:

“Para o caso de improceder o pedido de acessão, sempre deve ser pago ao Autor todos os direitos que resultam de benfeitorias realizadas na coisa e por via dela, bem como demais direitos que prevaleçam para partilha, em resultado da cessação da União de Facto, e sempre a titulo ainda de enriquecimento sem causa justificativa, que se invoca ainda subsidiariamente.”.

Para procedência desta pretensão, uma vez mais cabe ao Autor, uma vez que alega que a Ré está enriquecida à sua custa, concretizar e provar em que medida contribuiu para as benfeitorias feitas no imóvel daquela, o que, uma vez mais se afirma, alegou de forma conclusiva e deve ser alvo de convite ao aperfeiçoamento.

Neste caso é ainda relevante sujeitar a prova a alegação da Ré de que foi ela quem custeou todas as obras bem como a de que tem pago todas as prestações do mútuo pois, nesse caso, embora o Autor possa ter o seu património diminuído por via do débito assumido perante o banco (sendo o património a diferença entre o ativo e o passivo) pode não ocorrer qualquer enriquecimento da Ré à sua custa.

Cabe, assim, produzir prova sobre a medida do contributo de cada um dos membros do ex-casal para a construção das obras feitas no imóvel adquirido pela Ré e sobre o valor acrescido que tais obras aportaram ao imóvel, bem como sobre os demais requisitos da acessão industrial imobiliária, entre eles o do valor do imóvel sem as construções, e, subsidiariamente, do enriquecimento sem causa da Ré, nomeadamente apurando, para apreciação desta segunda questão, a medida com que a mesma vem contribuindo para o pagamento da dívida comum.

Nestes termos devem os autos prosseguir para produção de prova destinada ao conhecimento dos pedidos subsidiários, após saneamento dos autos.


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As custas do recurso devem ser suportadas por ambas as partes, dado o decaimento parcial de cada uma delas. Uma vez que apenas se mantém a decisão recorrida no que tange a um dos três pedidos objeto do recurso, fixa-se o decaimento da Recorrida em 2/3 e o do Recorrente em 1/3.

V – Decisão:

Nestes termos julga-se parcialmente procedente a apelação e revoga-se a sentença recorrida devendo os autos prosseguir para produção de prova destinada ao conhecimento dos pedidos subsidiários formulados sob as alíneas 5 a 8 da petição inicial, mantendo-se o demais decidido.

Custas por Recorrente e Recorrida, na proporção dos seus decaimentos, que se fixam em 1/3 para o Recorrente e 2/3 para a Recorrida nos termos do previsto no artigo 527º, número 1 do Código de Processo Civil.


Porto 10/7/2024

Ana Olívia Oliveira

Ana Paula Amorim

Teresa Fonseca


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[1] Tendo, aliás, sido mesmo excessiva a possibilidade dada ao Autor de responder ao convite ao aperfeiçoamento para o que dispôs de três prazos sucessivamente concedidos.
[2] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, Almedina, 4ª edição, 2019, pág. 737, em anotação ao artigo 615º do Código de Processo Civil.
[3] Convocando-se aqui apenas um acórdão, por particularmente inteligível e sucinto: Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2014, no processo 185/14. 9 TBRGR. L1 – 2, disponível em https://jurisprudencia.pt/acordao/69599/.
[4] Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª edição, página 183, nota de rodapé número 318.
[5] Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1º Volume, página 323.
[6] Disponível em: http://www.gde.mj.pt.3765/20.0T8LOU-A.P1.
[7] Inserindo no pedido várias alegações relativas à causa de pedir o Autor formula as seguintes pretensões/afirmações que pretende que o Tribunal declare:
“2. o prédio urbano descrito sob o nº ...90/1999027, e inscrito a favor da R. foi titulado exclusivamente a favor dela, Ré, por acordo entre ela Ré, e o pai dela, sem oposição do A., por forma a que aquele financiasse aquisição, com intuito de Banco 1... confiar que o terreno pertencia, de facto a uma das partes, o que possibilitaria o financiamento adequado, tendo a transmitente acedido e acordado a titular a favor de quem lhe pediu que fosse feito;
3. A R. visava assim salvaguardar de terceiros a garantia do pai, reforçando a sua própria garantia a favor do seu pai;
4. Esse negócio esconde efetivamente um negócio dissimulado, em que A. e R. são efetivos comproprietários”.
[8] O que, como também foi afirmado na sentença recorrida, é insuficiente para que se verifique o requisito do intuito de enganar terceiro.
[9] Disponível em http://www.gde.mj.16/13.7TBMSF.P1
[10] Elencadas e explanadas, nomeadamente nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29-11-2022 disponível em https://www.dgsi.pt.1530/20.3T8VNF.G1.S e de 06-05-2021 disponível em https://www.dgsi.pt/jstj 2124/15.0T8LRA.C1.S1
[11] Reitera-se que a alegação pela Ré de que tem suportado sozinha o mútuo não impede – ao contrário do decidido -, que se conclua que a obra erigida no seu imóvel foi feita (ainda que só em parte) com o dinheiro mutuado, que é comum, sendo certo que caso proceda a pretensão de aquisição em compropriedade por via da acessão industrial imobiliária a Ré tem direito a ser inteirada do valor do terreno nos termos do artigo 1340º, número 1 do Código Civil. Acresce ainda afirmar que, no caso de procedência quer desse pedido quer da pretensão de indemnização do Autor a título de enriquecimento sem causa também sempre cabe à Ré o direito a exigir do Autor metade dos valores da dívida comum que segundo alega tem vindo a suportar sozinha.