Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JOSÉ MANUEL CORREIA | ||
Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO ABANDONO DO SINISTRADO | ||
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Nº do Documento: | RP20250410130/24.3T8ESP.P1 | ||
Data do Acordão: | 04/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA A SENTENÇA | ||
Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - O conceito de abandono do sinistrado que, nos termos da alínea d) do art.º 27.º do D.L. 291/2007, de 21/08, confere à seguradora o direito de regresso sobre o condutor do veículo causador do acidente, pressupõe o dolo deste. II - O dolo, por seu turno, pressupõe, não só que o lesante tivesse consciência de que causara o acidente e que neste houvesse vítima(s), mas, também, que tivesse querido ou aceite ou que se tivesse conformado com o resultado da falta de assistência à(s) vitima(s). III - Não há abandono do local relevante à luz do referido preceito por falta de dolo do lesante se este se retirou do local depois de interlocução com a filha do lesado, no âmbito da qual esta, na presença e com o conhecimento daquele, pediu, por via telefónica, a obtenção de socorro ao INEM. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 130/24.3T8ESP.P1 - Recurso de apelação Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo de Competência Genérica ..., ... Recorrente: A... - Companhia de Seguros, S.A. Recorrido: AA .- Sumário ………………………… ………………………… ………………………… * * * .- Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, I.- Relatório .- A... – Companhia de Seguros, S.A. instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA, pedindo que, pela sua procedência, fosse o Réu condenado a pagar-lhe a quantia pecuniária de € 30.000,00, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, a apurar, desde a primeira interpelação do Réu, até efetivo e integral pagamento. Para tanto, e em síntese, alegou o seguinte. No exercício da sua atividade, celebrou com BB um contrato de seguro, pelo qual assumiu a responsabilidade civil por danos emergentes da circulação do veículo automóvel com a matrícula ..-..-RZ. No dia 08-07-2021, pelas 17h10, na Rua ... da cidade ..., ocorreu um acidente de viação no qual interveio o referido veículo, na altura conduzido pelo Réu, sendo que tal acidente ficou a dever-se a culpa exclusiva deste. Logo após o embate, o Réu, dentro do veículo, pôs-se em fuga, abandonando o local, sendo que só no dia seguinte compareceu na esquadra da PSP ..., onde se identificou e assumiu ter intervindo no acidente. Participado o sinistro e, em ação judicial, reclamados os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo lesado CC, condutor e proprietário do outro veículo nele interveniente, a Autora, em cumprimento da transação alcançada naquela ação e a título de regularização do sinistro, pagou àquele, no dia 28-09-2023, o valor acordado de € 30.000,00. Tendo o acidente ficado a dever-se a culpa exclusiva do Réu e tendo este abandonado o local e o sinistrado logo após o embate, assiste-lhe, nos termos do disposto no art.º 27.º, n.º 1, al. c) da D.L. n.º 291/2007, de 21-08, direito de regresso sobre o Réu, direito esse que, pela presente ação, pretende exercer. * Válida e regularmente citado, contestou o Réu, defendendo-se por impugnação motivada.Assim, e em síntese, não pondo em causa a ocorrência do sinistro, negou que o tivesse causado, contrapondo que o mesmo ficou a dever-se à desatenção do condutor do outro veículo que nele interveio. Negou, também, que tivesse abandonado o sinistrado, retorquindo que, após o embate, saíu da viatura, falou com a filha do mesmo que seguia no veículo, certificou-se do estado de saúde do primeiro, verificando que estava ou aparentava estar bem, sendo que não falou com ele porque a filha não o deixou sair do veículo. Acrescentou que, em conjugação de esforços com a filha do lesado, telefonou para o INEM, certificou-se de que a ambulância vinha a caminho para prestar auxílio e retirou-se do local pois, no seu entender, ninguém estava em perigo e, sabendo não ter regularizada a inspeção periódica do veículo que conduzia, receou a PSP. Concluiu, assim, pela improcedência da ação. * Realizada a audiência prévia, nela foi proferido:.- despacho a fixar em € 30.000,00 o valor da causa; .- despacho saneador tabelar; .- identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova; .- apreciados os requerimento probatórios das partes. * Teve lugar a audiência de discussão e julgamento.* Seguidamente, foi proferida sentença, julgando a ação totalmente improcedente e, consequentemente, absolvendo o Réu do pedido.* Inconformada com esta decisão, dela veio a Autora interpor o presente recurso, pugnando pela sua revogação e pela sua substituição por outra que julgasse a ação procedente e condenasse o Réu no pedido.Para o efeito, formulou as seguintes conclusões: 1.- Em virtude da transferência de responsabilidade pelo sinistro supra descrito, a Recorrente procedeu à regularização dos danos decorrentes do mesmo, tendo despendido o montante de 30.000,00€. 2.- Não obstante a responsabilidade estar transferida para a Recorrida e uma vez satisfeita a indemnização devida, tem a mesma direito de regresso contra o Apelante porquanto abandonou o sinistrado, condutor do veículo HG. 3.- O direito de regresso da Recorrente tem consagração legal no artigo 27.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, sendo aplicáveis os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual: o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. 4.- Assim, e tendo em consideração a factualidade dada como provada na douta Sentença, resulta evidente que estão preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual. 5.- A MMª Juíza do Tribunal “a quo” entende que o Apelado não abandonou o sinistrado e alicerçou o seu entendimento nas declarações de parte do próprio. 6.- As declarações de parte não são mais que o depoimento de uma parte no processo, com evidente interesse na causa e, como tal, o que decorre desse depoimento obriga a uma confirmação exógena, através de outros meios de prova. 7.- Atento o depoimento das testemunhas CC, DD e EE, gravados em acta no dia 31.09.2024, é impossível considerarem-se como provados os factos 28, 30, 31, 32 e 33. 8.- Somente as declarações do mesmo corroboram a matéria de facto dada como provada na contestação. 9.- Na sequência do depoimento das testemunhas CC, DD e EE, devem ser aditados os seguintes factos à matéria de facto dada como provada: .- A PSP demorou 10 minutos a chegar ao local do acidente após o mesmo ter eclodido; .- Quando a PSP chegou ao local o Apelante já se havia ausentado mesmo; .- Após o embate, o Réu, após sair do veículo, abandonou o local; .- Antes de abandonar o local o Réu não cuidou de saber sobre o estado de saúde dos intervenientes no acidente, designadamente os que ocupavam o veículo HG. 10.- Está provado que, após o embate, o Recorrido abandonou o local do sinistro, não prestando auxílio aos demais intervenientes. 11.- O simples ato de abandono do sinistrado acarreta dolo, ainda que possa ser direto, necessário ou eventual, razão pela qual o próprio artigo 27º/1, alínea d), do DL 291/2007 não menciona como requisito para exercer o direito de regresso o dolo; 12.- A Mmª Juíza do Tribunal “ a quo” fez uma incorreta seleção da matéria de facto, não sendo a mesma consentânea com a prova produzida considerada na sua globalidade. 13.- A Mmª Juíza do Tribunal “a quo” fez uma incorreta aplicação do disposto no art.º 27º, n.º 1 al. d) do DL 291/2007. 14.- Deve a matéria de facto selecionada ser alterada e em consequência ser a decisão do Tribunal “a quo” revogada por outra onde seja feita a correcta e devida apreciação da prova produzida, com a condenação do Apelante ao pagamento de uma indemnização à Apelada no valor de 30.000,00€. * O Réu respondeu ao recurso interposto pela Autora, batendo-se, sem formular conclusões, por que fosse julgado improcedente e, consequentemente, por que fosse mantida a sentença proferida.* O recurso foi admitido em 1.ª instância como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e assim recebido nesta Relação, que o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.* Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.* * * II.- Das questões a decidir O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente. Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC). Neste pressuposto, as questões que, neste recurso, importa apreciar e decidir são as seguintes: i.- da impugnação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida no sentido: i.i.- da consideração como não provados dos factos constantes do elenco de factos provados sob os n.ºs 28, 30, 31, 32 e 33; i.ii.- da inclusão no elenco de factos provados de factos não considerados pelo tribunal a quo; ii.- do direito de regresso da Apelante. * * * III.- Da Fundamentação III.I.- Na sentença proferida em 1.ª Instância e alvo deste recurso foram considerados provados os seguintes factos: Da petição inicial 1.- A Autora, no exercício da sua atividade, no âmbito do ramo automóvel, celebrou com BB um contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatório, titulado pela apólice n.º ...81, em virtude do qual foi transferida para a Autora a responsabilidade civil por danos emergentes de viação automóvel do veículo de matrícula ..-..-RZ, ligeiro de passageiros, da marca RENAULT .... 2.- No dia 08.07.2021, pelas 17h10, ocorreu um acidente de viação, na Rua ..., em ..., no qual foi interveniente o Réu, que conduzia o veículo seguro ..-..-RZ e o veículo de matrícula ..-..-HG, propriedade de CC e conduzido por este no dia do sinistro. 3.- O local onde ocorreu o sinistro trata-se de uma reta em toda a sua extensão, composta por duas vias de trânsito de sentidos opostos, e atravessada por várias outras artérias da cidade, ladeada de habitações e estabelecimentos comerciais. 4.- O pavimento encontrava-se em bom estado de conservação e seco no dia do sinistro. 5.- A faixa de rodagem de onde provinha o Réu tem boa visibilidade. 6.- Era dia quando o sinistro ocorreu. 7.- O limite de velocidade previsto para o local é de 50 km/h. 8.- O tempo estava seco. 9.- Nas circunstâncias de tempo e lugar descritos em 2, o Réu tripulava o veículo seguro pela Autora na mencionada via, no sentido Este/Oeste, atrás do veículo de matrícula HG. 10.- Sem que nada o fizesse prever, e quando se aproximava do número de porta ...57, o Réu, condutor do veículo seguro, embateu na retaguarda do veículo HG, quando ambos estavam em movimento, na via destinada ao trânsito. 11.- No veículo HG seguia, ainda, a passageira DD. 12.- Ambos acabaram por imobilizar os veículos na via, após o embate. 13.- No dia seguinte ao acidente, o réu compareceu na esquadra da PSP ..., onde se identificou e assumiu que tinha embatido na traseira do HG. 14.- O Réu informou as autoridades que: “Descia a Rua ... quando o mercedes parou e eu embati na traseira do mesmo. Atrapalhado falei com a senhora chamamos os bombeiros depois sai do local do acidente em pânico não o devia ter feito mas estou com problemas pessoais estou arrependido”. 15.- À data do acidente referido em 2, o veículo seguro tripulado pelo réu não tinha inspeção periódica válida. 16.- Como consequência direta e necessária do acidente referido em 2, o condutor do HG acabou por ser transportado para o hospital, com queixas de cervicálgia e dorsalgia. 17.- Após ser submetido a exames médicos e TAC, foi detetada uma fratura da 5ª vértebra dorsal e foi-lhe prescrito um colar cervical. 18.- Tendo ficado internado, com indicação para cirurgia. 19.- CC, foi intervencionado no dia 18.07.2021 – artrodese da coluna dorsal D3-D7, com material de osteossíntese. 20.- Manteve-se internado em recuperação, tendo sido submetido a vários tratamentos e medicamentos, tendo tido alta hospitalar no dia 23.07.2021. 21.- Continuando os tratamentos em consultas externas. 22.- CC, condutor do veículo de matrícula ..-..-RZ, tinha, à data do acidente referido em 2, 78 anos de idade e uma vida ativa, cultivando um pequeno terreno, onde plantava e colhia legumes e frutos. 23.- Após alta hospitalar, esteve dependente da ajuda de terceira pessoa para realização de higiene e para se vestir, durante várias semanas, assim como não conseguiu cuidar da casa e da horta. 24.- CC, condutor do veículo ..-..-RZ, intentou ação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação contra a aqui Autora, por conta do contrato de seguro que segurava o veículo causador do sinistro. 25.- Na ação referida em 24., que correu termos sob o n.º 475/23.0T8ESP, Juízo de Competência Genérica ... – ..., o ali Autor pedia a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), acrescida de juros, à taxa legal em dobro, desde a citação até efetivo e integral pagamento e, ainda, na quantia diária de € 100,00 (cem euros), desde 26.08.2021 até decisão final. 26.- Na ação referida em 24., os ali Autor e Ré apresentaram transação, a qual foi devidamente homologada por sentença já transitada em julgado, com o seguinte teor: “1. CC, reduz o pedido para a quantia de € 30.000,00, (trinta mil euros). 2. Com o recebimento da quantia supra referida, o autor, considera-se integralmente indemnizado de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, presentes e passados, sofridos em consequência do sinistro dos presentes autos, dando dele plena quitação, nada mais tendo a reclamar da ré A... – Companhia de Seguros, SA”. 3. A ré A... – Companhia de Seguros SA, obriga-se, nesta data a pagar a quantia de € 30.000,00, (trinta mil euros), a processar através de transferência bancária da titularidade do autor CC. …”. 27.- O montante referido em 26 foi pago a CC, por transferência bancária, no dia 28.09.2023. Da contestação 28.- Após o embate, o Réu saiu da sua viatura indo ao encontro da viatura em que embatera. 29.- O Réu falou com a filha do condutor sinistrado que seguia na viatura. 30.- O Réu certificou-se do estado do condutor, verificando que o mesmo estava consciente, aparentando estar bem. 31.- O réu não falou com o condutor sinistrado porque a filha não o deixou sair da viatura. 32.- O réu ouviu a filha do sinistrado telefonar para o INEM e certificou-se que a ambulância vinha a caminho para prestar os devidos auxílios. 33.- O réu só se retirou do local por entender que não estava ninguém em perigo e sabia não ter a inspeção periódica da viatura. 34.- Correu termos nos serviços do Ministério Público ... inquérito crime sob o n.º ..., pela eventual prática de um crime de omissão de auxilio praticado pelo aqui Réu e relativamente ao acidente de viação em causa nos autos. 35.- No inquérito referido em 34., a 27.10.2022, foi proferido, pelo Ministério Público, despacho de arquivamento por “carência de indícios, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal”. * Na mesma sentença não foi considerado provado que: Da petição inicial a.- Que aquando do acidente descrito em 2. dos factos dados como provados, a intensidade do tráfego na hora do sinistro era reduzida. b.- Que nas circunstâncias de modo, tempo e lugar dadas como provadas no ponto 2, o réu tripulava o veículo de forma desajustada e em excesso de velocidade, colocando em risco os utentes da via e os peões que se encontravam na berma. c.- Que, após breves instantes da imobilização do veículo referida em 12., o Réu pôs-se em fuga, dentro do veículo, abandonando o local, sem mais. d.- Que o condutor do veículo ..-..-HG cuidava da casa e da esposa, que tinha a doença de Parkinson. e.- E que, após a alta hospitalar, deixou de tomar conta da esposa, de caminhar à beira-mar assim como de ir às compras, por não poder carregar sacos. * * * III.II.- Do objeto do recurso 1.- Da impugnação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida 1.1.- Da consideração como não provados dos factos provados com os n.ºs 28, 30, 31, 32 e 33 Insurge-se a Apelante contra a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida, designadamente, no que diz respeito à consideração como provados dos factos vertidos nos n.ºs 28, 30, 31, 32 e 33 do elenco correspondente, os quais, na sua ótica, deviam ter sido julgados não provados. Os factos em apreço são do seguinte teor: “28.- Após o embate, o Réu saiu da sua viatura indo ao encontro da viatura em que embatera. 30.- O Réu certificou-se do estado do condutor, verificando que o mesmo estava consciente, aparentando estar bem. 31.- O réu não falou com o condutor sinistrado porque a filha não o deixou sair da viatura. 32.- O réu ouviu a filha do sinistrado telefonar para o INEM e certificou-se que a ambulância vinha a caminho para prestar os devidos auxílios. 33.- O réu só se retirou do local por entender que não estava ninguém em perigo e sabia não ter a inspeção periódica da viatura.” Tais factos, como resulta da sua leitura, dizem respeito à conduta do Apelado logo após o embate e antes de se ter ausentado do local. Sobre eles, há que dizer o seguinte. .- Quanto aos factos provados com os n.ºs 28 e 30, é indesmentível que o Réu/Apelado saíu da sua viatura logo após o embate. Tratou-se, com efeito, de facto explícito no depoimento prestado pela testemunha DD (filha do lesado CC e que seguia como passageira no veículo conduzido por este) e nas declarações de parte do Apelado AA. E trata-se, outrossim, de uma realidade que, num certo ponto de vista, está em linha com a constante do facto provado n.º 29, que a Apelante, no seu recurso, não impugna. Já quanto ao mais que consta dos factos em apreço, isto é, que o Apelado tenha ido ao encontro da viatura em que embatera e que se tenha certificado do estado do condutor, verificando que este estava consciente, aparentando estar bem, é algo que, da prova produzida em julgamento, não se pode ter por demonstrado. Com efeito, segundo a testemunha DD, logo após o embate a preocupação do Apelado foi a de retirar o seu carro (o do Apelado) do local onde se encontrava, o que a testemunha “não deixou”. Outrossim, a testemunha teria pedido ao Apelado para telefonar aos “bombeiros”, mas, porque, entretanto, lhe tivesse perguntado se já o fizera e ele respondesse que não, foi a própria quem acabou por fazer o telefonema. Referiu, ainda, que, depois, “o senhor desapareceu”, sem lhe dizer que se ia “embora” e sem perguntar se “precisava de alguma coisa”. Finalmente, à pergunta da Sr.ª Juíza que presidiu ao julgamento sobre se o Apelado foi ver o lesado e se se aproximou do carro deste, a testemunha respondeu “acho que não”. Ou seja, a testemunha, pessoa desinteressada no desfecho da causa, pôs em causa que o Apelado tivesse manifestado preocupação expressa pelo estado do lesado e adotado uma conduta proativa no sentido de o averiguar e deu a conhecer que, pelo contrário, não só, numa primeira abordagem, o que fez foi colocar a hipótese de retirar o seu veículo do local, como, depois, o que fez foi ausentar-se do local sem dizer que o ia fazer. Ou seja, uma postura de alheamento relativamente à situação do sinistrado. Esta versão dos acontecimentos está, por outro lado, em sintonia com o estado de espírito do Apelado no momento. Com efeito, como o próprio fez constar do auto de participação do sinistro elaborado pela PSP, o Apelado entrou em “pânico”. Por outro lado, como, quer o declarante, quer a testemunha EE (agente da PSP que acorreu ao local e elaborou o dito auto) referiram em julgamento, quando aquele se ausentou do local, fê-lo a pé, deixando para trás o veículo e o seu documento de identificação no interior. Finalmente, só no dia seguinte é que compareceu na esquadra da PSP para prestar declarações sobre o acidente (e, ainda assim, nem sequer o terá feito por sua livre iniciativa, já que, como revelado pela testemunha EE, teria sido esta que, depois de se inteirar da identificação do lesado, contactou um número de telefone que apurou e, sendo atendido por uma senhora, comunicou-lhe que o Apelado o deveria fazer). O Apelado estaria, assim, num estado de perturbação perfeitamente compatível com a descrição do seu comportamento feita pela testemunha DD, com o que sai reforçada a credibilidade do depoimento desta. A versão dos acontecimentos narrada pela testemunha está, ainda, em sintonia com a descrição que a própria deles fez ao agente de PSP que elaborou o auto de participação do sinistro, ou seja, e como consta desse auto, que o Apelado “abandonou o local do acidente para parte incerta, sem nunca se ter inteirado do estado físico dos quatro ocupantes do veículo (sendo dois menores de idade) no qual embateu”. De referir, ainda, que, no auto de participação do acidente dos autos, aquilo que o Apelado, logo no dia seguinte ao acidente de viação, dele fez constar foi que, após o embate, falou com a filha do sinistrado, que foram chamados os bombeiros e que, depois, saíu do local do acidente “em pânico”. Ou seja, nenhuma referência fez ao facto de ter indagado do estado do condutor do veículo, como seria natural que o fizesse se realmente o tivesse feito, dado a natureza do seu comportamento. A realidade de facto aqui em apreço surge, assim, posta em causa por tais elementos probatórios. O Apelado, nas declarações de parte que prestou, não só negou que não tivesse indagado do estado do lesado, como, pelo contrário, referiu que, quando saíu do veículo, aproximou-se para ver o “senhor António”, passando pela porta deste e que quando estava a falar com a sua filha, do lado do pendura, viu o estado em que o mesmo se encontrava”. Tais declarações não podem, contudo, ser valoradas. Na verdade, e desde logo, foram contrariadas, como se viu, pelo depoimento da testemunha DD. O cuidado e, sobretudo, o pormenor do comportamento que o declarante afirmou ter levado a cabo não é, por outro lado, consentâneo com o estado de espírito de perturbação em que, como se viu, se encontrava. Não é consentâneo, também, com a dinâmica que os acontecimentos tomaram, na certeza de que, como referido pela testemunha DD, esta, após o embate, retirou as crianças que seguiam no banco traseiro do veículo, pediu ao declarante para telefonar, o que fez com que este se dirigisse ao seu veículo para pegar no telemóvel e, não tendo este efetuado o telefonema, a própria testemunha teve de o fazer. Ou seja, toda uma sucessão ‘vertiginosa’ de ocorrências incompatível com a suposta realidade estática descrita pelo Apelado. Finalmente, a versão do declarante revelou-se inconsistente, se não mesmo sem credibilidade, não só por tudo quanto acaba de ser dito, como, também, pelas contradições em que, ao longo do tempo, incorreu no que diz respeito a um aspeto tão singelo como o do motivo que o levou a ausentar-se do local. Isto é, se, no auto de participação da PSP, assinalou que agiu como agiu porque ficou “atrapalhado”, que entrou em “pânico” e que tinha “problemas pessoais”, no inquérito criminal instaurado já referiu, como o próprio reconhece no art.º 23.º da sua contestação, que o fez “porque não tinha a inspeção periódica em dia” e quis “evitar problemas com a polícia”, para, em julgamento, referir que, afinal, tudo se deveu à “ansiedade” de que padece. Ou seja, três explicações distintas para a mesma realidade. Não há, pois, como valorar a versão dos factos narrada em julgamento pelo declarante, de resto… parte manifestamente interessada na causa. Relativamente aos factos em apreço, concluímos, pelo exposto, que, além do primeiro período do facto provado n.º 28, tudo o mais que deles consta resultou contrariado pelo depoimento da testemunha DD, por si e conjugado com as regras da experiência da vida, impondo-se, por isso, a consideração como não provada da factualidade correspondente. A impugnação da Apelante procede, pois, nesta medida. .- A propósito do facto provado n.º 31, que o Réu/Apelado não falou com o lesado é, também, um dado indesmentível, já que, além de implícito no depoimento da testemunha DD, foi por aquele explicitamente reconhecido nas declarações que prestou. Mas que não o tivesse feito porque a filha do lesado, a testemunha DD, o não tivesse deixado sair da viatura, foi algo que não resultou demonstrado. Desde logo, nenhuma das testemunhas ou o próprio declarante o atestou. Depois, não se vê em que medida é que a permanência do lesado no interior do veículo fosse fator impeditivo de o Réu/Apelado falar com ele, se, na realidade, este o tivesse querido. Pelo exposto, há que manter como provada a realidade constante do primeiro período do facto em apreço, mas considerar não provada a restante factualidade que dele consta, procedendo, nesta medida, a impugnação da Apelante. .- A realidade constante do primeiro período do facto provado n.º 32, assim como que o Réu ouviu a filha do sinistrado telefonar para o INEM, foi confirmada pela própria testemunha DD. Na verdade, a instância da Sr.ª Juíza que presidiu ao julgamento, a testemunha reconheceu expressamente que quando a própria telefonou ao INEM o Réu/Apelado “estava à sua beira” e que, por conseguinte, ele “sabia que a testemunha tinha ligado ao INEM”. Mas quanto à parte restante do facto, assim como que o Apelado se tivesse certificado de que a ambulância vinha a caminho para prestar os devidos auxílios é algo que não pode ser tido como provado. Na verdade, a única pessoa que depôs nesse sentido foi o declarante, aqui Apelado, AA. Segundo o mesmo, quando a testemunha DD terminou a chamada para os bombeiros perguntou-lhe se “a ambulância vinha a caminho” e, porque esta lhe tivesse dito que sim, “foi-se embora”. Acrescentou que, quando saíu, ainda “ouviu a ambulância ou o carro de socorro”, cuja “sirene” reconheceu. O facto de o declarante ter perguntado à testemunha DD se o socorro já vinha a caminho foi, contudo, contrariado por esta testemunha, a qual, como se viu já, quer logo após o acidente, nas declarações que prestou à PSP, quer no próprio julgamento, depôs no sentido do alheamento do declarante quanto à situação do lesado. Outrossim, quanto ao facto de o declarante ter supostamente ouvido a sirene da ambulância a acorrer ao local, tratou-se de realidade desmentida ou, no mínimo, posta em causa pelo depoimento da testemunha EE e pelo auto de participação por esta elaborado. Com efeito, a testemunha (agente da PSP) chegou ao local cerca de 15 minutos depois do acidente, facto evidenciado pelo referido auto, no qual se assinalou que o acidente ocorreu pelas 17h10 e que a testemunha chegou pelas 17h25. Quando chegou ao local, já o Apelado se tinha ausentado e, como expressamente confirmado pela testemunha, o INEM ainda não se encontrava no local. Ou seja, o Apelado ausentou-se do local antes da chegada da PSP e esta, por seu turno, chegou ao local antes do INEM. É, consequentemente, de todo inverosímil que o declarante tivesse realmente ouvido a “sirene” da ambulância, tal como, em julgamento, disse que ouviu. Em suma, a realidade subjacente ao primeiro período do facto em apreço está demonstrada, mas o mesmo não acontece quanto à restante, que, como tal, deve ser considerada não provada. Procede, pois, nesta medida, a impugnação da Apelante. .- Finalmente, quanto ao facto provado n.º 33, assim como que o Réu só se retirou do local por entender que não estava ninguém em perigo e saber que não tinha a inspeção periódica da viatura, face a tudo quanto acima foi dito, além do facto – assente – de que o Réu se retirou do local, nada mais pode ser considerado provado. Na verdade, a conduta deste foi, como especialmente ressaltado pela testemunha DD, a do alheamento perante a situação do lesado. Tanto assim que teve de ser aquela testemunha a telefonar para o INEM, mesmo depois de lhe ter pedido para o fazer. Outrossim, o estado de espírito do Apelado era o de perturbação, a ponto de, logo que pôde, se ausentar do local sem o referir àquela testemunha, deixando para trás, inclusive, o seu veículo e sem aguardar sequer a chegada da própria PSP. Finalmente, quanto ao motivo de se ter ausentado do local, foram três as versões aventadas para o efeito pelo declarante ao longo do tempo, isto é, e como se viu: (i) estar “atrapalhado” e em “pânico” e ter “problemas pessoais”; (ii) não ter “a inspeção periódica em dia” e querer “evitar problemas com a polícia”; e (iii) padecer de “ansiedade”. Ou seja, toda uma realidade que, se não afasta totalmente, suscita, no mínimo, a dúvida de que o declarante tenha tido efetivamente o cuidado de laborar que ninguém se encontrava em perigo e, bem assim, que o verdadeiro motivo da sua conduta fosse o de não ter a inspeção periódica em dia. Além do facto de o Réu/Apelado se ter retirado do local, impõe-se, pois, a consideração como não provado do mais que consta do facto em apreço. * 1.2.- Da inclusão no elenco de factos provados de factos não considerados pelo tribunal a quo Pugna a Apelante, também, no pressuposto da sua relevância para a boa decisão da causa e de sobre eles ter sido produzida prova em julgamento, por que sejam aditados ao elenco de factos provados os seguintes factos: .- “A PSP demorou 10 minutos a chegar ao local do acidente após o mesmo ter eclodido”; .- “Quando a PSP chegou ao local o Apelante já se havia ausentado do mesmo”; .- “Após o embate, o Réu, após sair do veículo, abandonou o local”; .- “Antes de abandonar o local, o Réu não cuidou de saber sobre o estado de saúde dos intervenientes no acidente, designadamente os que ocupavam o veículo HG”. A respeito de tais factos, importa dizer o seguinte. Quanto aos dois primeiros, impõe-se o desatendimento da sua pretensão, por se tratar de factos instrumentais, que, nessa qualidade, não têm relevo para a definição do direito aplicável ao caso. O que relevará para o desfecho da causa será a questão de saber se o Apelado abandonou dolosamente ou não o sinistrado, sendo irrelevante, por isso, aferir o momento da chegada da PSP e se o Apelado, nessa altura, já não se encontrava no local. Tais factos até podem relevar como instrumento de aferição sobre se houve ou não abandono (por isso, são instrumentais), mas, em si mesmo considerados, são irrelevantes para a solução jurídica do caso. Quanto ao terceiro, constitui o mesmo facto manifestamente não provado, conforme, de resto, resulta da própria estrutura dada ao recurso pela Apelante, cuja posição é, por isso, contraditória. Com efeito, é um dado assente, não posto em causa pela Apelante, que o Apelado, após sair do veículo, falou com a filha do condutor sinistrado (v. facto provado n.º 29), o que, por si só, afasta que este tenha abandonado o local depois de sair do veículo. Acresce que, como se viu, valendo aqui tudo quanto se disse atrás a esse respeito, que o Apelado, tal como constava já do facto provado n.º 32, ouviu a filha do sinistrado telefonar para o INEM, o que evidencia que a sua saída do local não foi imediata, como pressuposto no facto que a Apelante pretende incluir no elenco de factos provados. Trata-se, pois, de facto manifestamente não provado, improcedendo, por isso, a pretensão da Apelante. Finalmente, a propósito do quarto facto, constitui ele, desde logo, não propriamente a descrição de um acontecimento ou realidade do mundo exterior, mas uma afirmação de pendor conclusivo ou valorativo, a extrair, enquanto tal, da análise da globalidade dos factos provados, em sede de subsunção desses factos ao direito aplicável e, portanto, noutra sede que não nesta. Improcede, pois, a pretensão da Apelante aqui em apreço. * * * Em suma, em face do sentido da presente decisão quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, impõe-se introduzir as seguintes alterações no elenco, no teor e na numeração dos factos provados e não provados constante da sentença recorrida: .- Factos provados (…) 28.- Após o embate, o Réu saiu da sua viatura. 29.- O Réu falou com a filha do condutor sinistrado que seguia na viatura. 30.- O réu não falou com o condutor sinistrado. 31.- O réu ouviu a filha do sinistrado telefonar para o INEM. 32.- Seguidamente, retirou-se do local. 33.- Correu termos nos serviços do Ministério Público ... inquérito crime sob o n.º ..., pela eventual prática de um crime de omissão de auxilio praticado pelo aqui Réu e relativamente ao acidente de viação em causa nos autos. 34.- No inquérito referido em 34., a 27.10.2022, foi proferido, pelo Ministério Público, despacho de arquivamento por “carência de indícios, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal”. * .- Factos não provados (…) f.- Que, na sequência do referido em 28, o Réu tenha ido ao encontro da viatura em que embatera. g.- Que o Réu se tenha certificado do estado do condutor, verificando que o mesmo estava consciente, aparentando estar bem. h.- Que o referido em 30 se tenha devido ao facto de a filha do lesado não o ter deixado sair da viatura. i.- Que o Réu, depois do referido 31, se tenha certificado que a ambulância vinha a caminho para prestar os devidos auxílios. j.- Que o Réu só se tenha retirado do local por entender que não estava ninguém em perigo e saber que não tinha a inspeção periódica da viatura. * * * 2.- Do direito de regresso da Apelante sobre o Apelado O quadro com que nos deparamos neste recurso é o seguinte. A Apelante, enquanto seguradora do ramo automóvel, celebrou com a proprietária do veículo automóvel com a matrícula ..-..-RZ um contrato de seguro, por via do qual assumiu a responsabilidade civil perante terceiros por danos emergentes da circulação daquele veículo. No dia 08-07-2021, pelas 17h10, na Rua ..., em ..., ocorreu um acidente de viação no qual intervieram o referido veículo ..-..-RZ, conduzido pelo Apelado AA e o veículo com a matrícula ..-..-HG, propriedade de CC e por este conduzido. O acidente ficou a dever-se – reconhecidamente – a facto ilícito e culposo do Apelado e dele resultaram para o lesado CC – também reconhecidamente – danos que a Apelante, por força do referido contrato de seguro, ressarciu, mediante a entrega da quantia pecuniária de € 30.000,00, em cumprimento de transação judicial obtida na ação judicial instaurada pelo lesado em vista desse ressarcimento. A Apelante, no pressuposto de o sinistro ter ficado a dever-se a culpa exclusiva do Apelado e de ter pago a sobredita indemnização com base no contrato de seguro celebrado com a proprietária do veículo causador do acidente, pretende por via desta ação ser reembolsada pelo Apelado do valor que pagou a esse título. Funda-se, para tanto, no facto de, tendo o Apelado, não só dado causa ao acidente, como, também, abandonado o sinistrado, assistir-lhe o direito de regresso previsto no art.º 27.º, n.º 1, alínea d) do Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel (doravante, RSSORCA), aprovado pelo D.L. 291/2007, de 21/08. A questão que aqui importa apreciar é, pois, a de saber se lhe assiste ou não tal direito. Dispõe o referido preceito, no que ao caso importa considerar, que, satisfeita a indemnização, tem a empresa de seguros direito de regresso contra o condutor do veículo causador do acidente que haja abandonado o sinistrado. Tal preceito corresponde ao da alínea c) do art.º 19.º do D.L. 522/85, de 31/12 - diploma que precedeu o RSSORCA e que foi revogado por este (v. a alínea a) do n.º 1 do art.º 94.º deste) – que, à semelhança do atual, conferia direito de regresso à seguradora contra o condutor que haja abandonado o veículo. Tendo por base a interpretação deste último preceito, o STJ proferiu o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 11/2015 (publicado no D.R.-1.ª Série, n.º 183, de 18-09-2015). Neste Acórdão, firmou-se jurisprudência quanto a um aspeto particular do regime decorrente daquele preceito - o de saber que danos, dos sofridos pelo sinistrado, eram abrangidos por aquele direito de regresso - que não é o que aqui está em causa; contudo, da sua fundamentação constam tomadas de posição sobre outros aspetos relevantes daquele regime que, dada a natureza do Acórdão, não podem deixar de ser aqui consideradas. É esse o caso do conceito de abandono do sinistrado nele pressuposto. Segundo o Acórdão, o conceito de abandono do sinistrado, que deve ser tido por facto constitutivo do direito de regresso da seguradora, “pressupõe necessariamente o dolo do condutor, não bastando a falta de prestação de assistência por mera negligência: a existência daquele direito de regresso pressupõe que tenha havido o abandono doloso da vítima, não bastando a falta de prestação de socorros, por simples negligência”. Acrescenta-se no Acórdão que “não pode confundir-se a figura do abandono do sinistrado com a contra-ordenação [então] prevista no art.º 89.º, n.º 2 do C. Estrada — que sanciona[va] o condutor que não aguarde no local do acidente a chegada de agente de autoridade” – podendo não haver abandono relevante para os efeitos aqui em consideração em casos em que o causador do acidente se ausente do local e que, sem que esteja posta em causa a assistência da vítima, haja justificação para tanto. Ou seja, à luz do Acórdão uniformizador, não é todo e qualquer abandono do sinistrado que, à luz do preceito em apreço, funda o direito de regresso nele conferido à seguradora, mas apenas o abandono doloso do condutor. Ora, este conceito restritivo de abandono do sinistrado tem sido acolhido, se não de forma unânime, pelo menos maioritariamente pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, exemplificando-se esta asserção com os Acórdãos do STJ de 19-09-2024, proferido no processo n.º 2473/22.1T/AVR.P1.S1; da Relação do Porto de 27-04-2017, proferido no processo n.º 10127/15.9T8VNG.P1 e de 08-01-2024, proferido no processo n.º 1585/21.3T8VFR.P1; da Relação de Coimbra de 09-04-2024, proferido no processo n.º 2467/22.7T8LRA.C1; da Relação de Évora de 14-01-2021, proferido no processo n.º 998/19.5T8ORM.E1 (todos eles disponíveis na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt). E, quer pela autoridade daqui decorrente, quer pela justeza e adequação ao regime legal em apreço, não vemos razões para nos afastarmos desta posição. O abandono do sinistrado previsto no art.º 27.º, n.º 1, alínea d) do Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel é, pois, o abandono doloso do condutor do veículo causador do acidente. O dolo do agente é aquele em que este quis diretamente realizar o facto ilícito - dolo direto -, ou previu-o como uma consequência necessária, segura da sua conduta - dolo necessário -, ou, ainda, previu a produção do facto ilícito como uma consequência possível, eventual, da sua conduta e conformou-se com ela – dolo eventual (v., neste sentido, o referido Acórdão da Relação do Porto de 27-04-2027). Comporta um elemento intelectual, segundo o qual “[o] lesante deve ter consciência de ter causado o acidente e de, através do acidente, ter causado vítimas”, bem como um elemento volitivo, segundo o qual deve ter querido, aceite ou conformado com o resultado da omissão de auxílio ao sinistrado” (v., neste sentido, o referido Acórdão do STJ de 19-09-2024). In casu, depreende-se da factualidade apurada que o Apelado, após o acidente dos autos, não permaneceu no local, dele se ausentando. Mas não se depreende, nem é possível depreender, que o tenha feito dolosamente. Na verdade, como flui dos factos provados, o Apelado, depois de embate no outro veículo, saiu da viatura que conduzia e falou com a filha do sinistrado, que seguia na viatura conduzida por este (v. factos provados n.ºs 28 e 29). No âmbito desta relação de interlocução, o Apelado ouviu a filha do sinistrado telefonar para o INEM e só depois se retirou do local (v. factos provados n.ºs 31 e 32). Ou seja, o Apelado, independentemente das razões que terão motivado o seu comportamento, só se ausentou do local depois de constatar que alguém, neste caso a filha do sinistrado, diligenciara pela obtenção de socorro. O quadro com que nos deparamos é, pois, um em que o Apelado, enquanto causador do acidente, teve consciência de que causara esse acidente e que deste resultara uma vítima - assim se afirmando o elemento intelectual do dolo -, mas em que não quis, não aceitou, nem se conformou com o resultado da falta de assistência à vitima - assim se não afirmando o elemento volitivo do dolo, na certeza de que só se ausentou do local depois de saber que a filha do sinistrado providenciara pela obtenção de socorro. Vale o mesmo por dizer, como se disse no sobredito Acórdão do STJ de 19-09-2024, que se debruçou sobre um caso com notória similaridade ao destes autos, que, “[e]m face das circunstâncias descritas, o lesante não terá sequer representado como possível o resultado da omissão da assistência e, não o tendo sequer representado como possível, não pode ter-se conformado com o resultado ilícito”. A factualidade apurada, ainda que permita sustentar que o Apelado abandonou o local do acidente após o embate, todavia, não permite sustentar que o tenha feito dolosamente, o que, em razão do que acima foi dito, veda que se reconheça à Apelante o direito de regresso sobre o Apelado que na presente ação pretende fazer valer. Improcede, pois, a apelação, com a consequente manutenção da sentença recorrida. * Porque vencida no recurso, suportará a Apelante as custas da apelação (art.ºs 527.º e 529.º do CPC). * * * IV.- Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida. Custas pela Apelante. Notifique. * * * Porto, 10 de abril de 2025 Os Juízes Desembargadores, Relator: José Manuel Monteiro Correia 1.º Adjunto: Isabel Peixoto Pereira 2.º Adjunto: Isoleta Almeida Costa (assinado eletronicamente) |