Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
710/20.6T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DA LUZ SEABRA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RECUSA
DECISÃO JUDICIAL
CESSAÇÃO ANTECIPADA DO PROCEDIMENTO DE EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INCUMPRIMENTO
DEVERES
Nº do Documento: RP20240710710/20.6T8STS.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A decisão de recusa da exoneração do passivo restante é uma decisão vinculada, no sentido de que só pode ser recusada a exoneração se ocorrerem alguns dos factos que permitem a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
II - Segundo o artigo 243º nº 1 al. a) do CIRE do CIRE, para que a recusa da exoneração do passivo restante se considere justificada, ter-se-ão de verificar os seguintes requisitos cumulativos: i) incumprimento pelos insolventes da obrigação de informação sobre os seus rendimentos e/ou de entrega à fiduciária da parte dos seus rendimentos objecto de cessão; ii) incumprimento imputável aos insolventes a título de dolo ou grave negligência; iii) que desse incumprimento decorra, em termos de causalidade adequada, prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
III - Incumprindo os insolventes, de forma reiterada e ostensiva, os deveres de informação e, ainda, o dever principal e elementar de entrega do rendimento disponível, esse incumprimento traduz-se em condutas que só um cidadão particularmente displicente e descuidado cometeria, consubstanciando erros indesculpáveis (grave negligência), tornando, pois, justificada a recusa da exoneração do passivo restante, sendo certo que daquela não entrega do rendimento disponível decorre, de forma inelutável, prejuízo para a satisfação dos credores, que se viram impedidos de, à custa de tais valores, serem, total ou parcialmente, pagos, não sendo de exigir, para este efeito, que o prejuízo seja tido como significativo ou particularmente relevante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 710/20.6T8STS.P1- APELAÇÃO


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Sumário (elaborado pela Relatora):
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I. RELATÓRIO


1. AA e BB apresentaram-se à Insolvência em 26.2.2020, declarando pretender a exoneração do passivo restante.

2. Por sentença proferida em 28.02.2020, Ref. Citius 412757987, já transitada em julgado, foi decretada a Insolvência de AA e BB.

3.  O pedido de exoneração do passivo restante foi liminarmente admitido por despacho proferido em 8.05.2020, Ref. Citius 414071505.

4. O fiduciário apresentou o primeiro relatório em 10.09.2021, no qual comunicou que os insolventes tinham a entregar o valor de €1.890,00.

5. O segundo relatório do fiduciário foi apresentado em 1.06.2022, tendo comunicado que os insolventes não haviam entregue o valor de €1452,44, estando em dívida o total de €3.342,44.

6. Por decisão proferida em 27.01.2023, Ref. Citius 457111928 foi recusada a exoneração do passivo restante, tendo o seguinte teor:
“Pelo exposto, e com os fundamentos explanados, decide-se não exonerar os insolventes AA e mulher BB do passivo restante e, em consequência não se determina a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam nesta data.
Custas a cargo dos insolventes
Notifique.”

7. Inconformados com a decisão que recusou o pedido de exoneração do passivo restante, os insolventes interpuseram recurso de apelação da decisão, formulando as seguintes
CONCLUSÕES
1º-O Douto Despacho não faz a correta aplicação do direito aos factos.
2º -A verificação da violação da condição prevista no artº 239º, nº 4, al. a), do CIRE - entrega ao fiduciário a parte dos rendimentos objeto de cessão - só por si não conduz ao preenchimento do requisito constante do nº 1, a), do art.º 243º do mesmo Código, sendo exigido que o devedor tenha atuado com dolo ou negligência grave e por esse facto tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
3º - Por despacho inicial datado de 08.05.2020, foi proferido Despacho inicial de exoneração do passivo restante.
4º - Sucede que a recorrente atravessou uma fase complicada em termos pessoais e de saúde, o que a levou a estar muito pouco    contactável, com as consequências que ora se vislumbram.
5º - Com efeito, na sequência da sua situação financeira e consequente insolvência, o aqui requerente ficou desempregado, andando á «deriva» durante muito tempo, o que originou o seu Divórcio.
6º - Ou seja, ficou sem emprego, sem casa e sem família.
7º - Esta situação infelizmente teve a sua consequência em termos de saúde, uma vez que o aqui requerente atravessou um período de enorme depressão, que se manifestou até em alguns atos impensados, nomeadamente de «não-aceitação do divórcio», o que ainda criou outros problemas.
8º - É neste contexto que tem de se encarar o comportamento dos insolventes, que apesar de tudo quiseram e querem cumprir, mas que lamentavelmente não podem, porque não têm!
9º - As causas  que fundamentam a cessão antecipada do procedimento de exoneração, por dever ser recusada a exoneração, vêm estatuídas nas alíneas do nº 1 do art. 243º.
10º - Ao caso importa considerar a alínea a), a qual se refere a comportamentos do devedor, ocorridos no período de cessão, que envolvem violação culposa ou com grave negligência das obrigações que lhe são impostas pelas alíneas do nº4 do art.239º,desde que daí resulte prejuízo para a realização dos créditos sobre a insolvência.
11º-No caso em apreço a cessação antecipada do procedimento de exoneração foi declarada com fundamento na violação pela insolvente da obrigação que sobre o mesmo impendia e contida no art. 239º, nº 4, alínea a), do CIRE, ou seja, «não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;»
12º - Escreveu-se na decisão recorrida:
«Do exposto e não estando em causa apenas os deveres de informação, apresentação e colaboração, mas também o dever de entregar aos credores todo o rendimento superior ao valor fixado no deferimento liminar da exoneração do passivo restante, dever que o devedor não cumpriu e cuja violação traz maiores prejuízos aos credores. Nessa conformidade, em face do supra exposto, conclui-se que os insolventes violaram os deveres para que lhes fosse concedido o beneficio da exoneração do passivo restante e que eles próprios aceitaram cumprir.»
13º - É certo que os insolventes estão em incumprimento.
14º - Todavia, entendemos, salvo melhor opinião que tal incumprimento não foi o verdadeiro fim da conduta dos insolventes – e, portanto, que o dolo não é direto – tem-se por certo, a presença, no caso de um dolo eventual: o não cumprimento surge como uma aceitação do risco.
15º - Ora, a verificação da violação dessa obrigação, só por si não conduz ao preenchimento do requisito constante da alínea a) do nº 1 do art. 243º, pois é exigido que o devedor tenha atuado com dolo ou negligência grave e por esse facto tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
16º - Escreveu-se a este propósito no acórdão da Relação de Coimbra de 03.06.2014
«A violação, com dolo, da obrigação que vincula o insolvente há-de provocar um resultado: a afectação relevante da satisfação dos créditos da insolvência. Não é suficiente um qualquer prejuízo, como sucede, por exemplo, para a cessação antecipada do procedimento de exoneração: deve tratar-se de um prejuízo relevante (artºs 243 b) e 246 nº 1, in fine, do CIRE). Realmente, ao passo que para a cessação antecipada do procedimento de exoneração se reclama que da violação dolosa ou negligente de qualquer obrigação do insolvente resulte simplesmente um prejuízo para a satisfação dos créditos sobre aquele, para a revogação da exoneração a lei é, no tocante ao dano resultante da conduta dolosa do insolvente para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, nitidamente mais exigente: esse prejuízo deve ser relevante.
A relevância desse prejuízo deve ser aferida, como regra, de harmonia com um critério quantitativo, portanto em função do quantum do pagamento cos créditos sobre a insolvência. Mas a essa aferição não deve ser estranha a natureza do crédito e a qualidade do credor. Na verdade, na valoração da relevância do prejuízo, não há-de ser indiferente, a par do quantum da insatisfação dos credores da insolvência, o facto de o crédito insatisfeito ter, por exemplo, natureza laboral e por titular um trabalhador, ou de se tratar de uma entidade de reconhecida- ou presumida- solvabilidade económica, como por exemplo, uma instituição bancária ou um segurador, em que os custos do incumprimento são uma variável tomada em linha de conta na estrutura dos preços oferecidos no mercado. A isto pode obtemperar-se que a avaliação da relevância do dano a partir do valor do rendimento disponível cedido e do seu cotejo com o valor dos créditos- e da qualidade destes e do respectivo credor- terá como consequência, sempre que o rendimento cedido seja diminuto, em termos absolutos, ou por comparação com o valor dos créditos sobre a insolvência, a atribuição á obrigação de entrega imediata do rendimento disponível ao fiduciário de uma natureza puramente semântica, já que a sua violação, por mais intenso que seja o dolo do devedor, nunca seria susceptível de fundamentar – por falta de preenchimento do requisito do prejuizo relevante – a revogação da exoneração. Dito por outras palavras: se o valor diminuto do rendimento objecto da obrigação de dare que vincula o exonerado impedir, em caso de violação da obrigação de entrega, a revogação da exoneração, o despacho inicial redunda, logo, de certo modo, verdadaeira e materialmente, numa concessão dessa mesma exoneração.
Desde que, nesta hipótese, o insolvente sempre estará subtraído à revogação da exoneração–por ausência do preenchimento do requisito da relevância do dano - o cumprimento ou não cumprimento da obrigação de entrega do rendimento disponível será de todo indiferente; quer cumpra quer não – ainda que com dolo grave – sempre estará excluída a revogação da exoneração e a consequente reconstituição dos créditos extintos (art.º 246 nº 4 do CIRE). Mas isto só será assim, por regra, no tocante a actos de incumprimento esporádicos ou isolados, dado que, no caso de não cumprimento reiterado, sem a alegação de um motivo justificante, a acumulação do débito – dado o arco temporal de duração do período da cessão –acabará por redundar em dano relevante para os credores do insolvente, de todo incompatível com a cláusula de merecimento que se entende subjazer à concessão da exoneração.
Mas aquela consequência corresponde inteiramente à lógica da exigência da relevância do prejuízo e pode explicar-se por uma ideia ou princípio de proporcionalidade- que possui um clrao fundamento constitucional e é, por isso, transversal a toda a ordem jurídica- e que encontra, mesmo no plano estrito do direito privado, inúmeras concretizações, de que são meros exemplos, entre muitos outros, a recusa ao credor do direito potestativo de resolução do contrato com base numa falta leve ou insignificante do devedor, o apelo ao abuso do direito, sempre que se verifique uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências nefastas para o respectivo sujeito passivo ou para terceiros, portanto, em que é patente um desequilíbrio no exercício de posições jurídicas ou o princípio da proporcionalidade da penhora ( art. 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa).
A gravidade das consequências para o devedor da revogação da exoneração- com a consequente vinculação à satisfação integral de todos os créditos sobre a insolvência, só detida pelo prazo ordinário da prescrição- impõem, por aplicação de um princípio de proporcionalidade ou razoabilidade, que aquela revogação só possa fundamentar-se numa conduta dolosa do devedor que seja causa de um dano relevante para os seus credores, objectivamente imputável àquela conduta.
O pensamento da lei é, assim, em traços largos, este: o comprometimento da finalidade da exoneração do passivo restante- a concessão ao devedor insolvente de um fresh start, de uma nova oportunidade, a reabilitação económica do devedor e a sua reintegração plena na vida económica, liberto das grilhetas do passivo que sobre ele pesava- só deve ocorrer quando a violação das obrigações a que o insolvente está vinculado durante o período da cessão, cause aos credores um dano relevante, grave ou significante.»
17º-É certo que o incumprimento dos insolventes não deixa causar um prejuízo aos credores.
18º - Todavia, no presente processo foram apreendidos e vendidos todos os bens dos insolventes, não sendo este um processo onde os credores não receberam.
19º - Mas este dano, se tivermos em conta o valor do rendimento disponível e o valor global dos créditos sobre a insolvência, bem como a qualidade dos credores afetados – na sua maioria instituições  de crédito, não pode ser qualificado de relevante.
20º- Entendemos que a decisão de cessação antecipada do procedimento de exoneração tem uma consequência demasiado gravosa para os insolventes, quando comparada com o prejuízo causado aos credores, considerando o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente consagrado no artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
21º- O Douto Despacho recorrido, viola por errada interpretação a aplicação do disposto nos artigos 239º e 243 do CIRE e art.º 18º CRP.
Concluíram, pedindo que seja dado provimento ao recurso e seja revogado o douto despacho recorrido.

8. Não foram apresentadas contra-alegações.

9. Foram observados os Vistos.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
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A questão a decidir é a seguinte:
- Se deve ser concedida a exoneração do passivo restante aos insolventes.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
A. Os requerentes foram declarados insolventes por sentença de 28.02.2020.
B. Em 08.05.2020 foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante e os insolventes notificados para cumprir as obrigações que lhe são impostas pelo art. 239.º, n.º 4 do CIRE, sob pena de cessação antecipada do procedimento de exoneração nos termos do artigo 243.º do CIRE.
C. À data da insolvência, o devedor marido AA encontra-se a laborar, auferindo mensalmente uma remuneração de 900,00 € e a devedora BB estava desempregada não auferindo qualquer tipo de rendimento.
D. No âmbito do presente processo de insolvência não foi aprendido qualquer bem imóvel ou móvel.
E. O passivo reclamado foi cerca de €11.500,00.
F. No despacho liminar de exoneração do passivo restante determina-se que durante os 5 anos de período de cessão ali previsto, o rendimento disponível que os insolventes, no seu conjunto (sociedade conjugal) venham a auferir acima de dois salários mínimos nacionais (2 SMN) se considere cedido ao Fiduciário, cabendo-lhe ainda cumprir as obrigações previstas no n.º 4 do art.º 239.º, sob pena de cessação antecipada do respectivo procedimento.  Tal valor deve ser reportado a 12 meses do ano civil e ser aferido mensalmente.
G. Em 9.10.2021 foi junta a primeira informação anual da qual resulta que os Insolventes tinham que ceder ao Fiduciário a quantia de 1.890,00.
H. Os insolventes foram notificados para proceder a essa entrega e não entregaram e em 9.12.2021 vieram informar que não poderiam entregar toda a quantia e que o fariam em prestações mensais e sucessivas, não tendo invocado qualquer razão.
I. Só depois do convite do tribunal é que os mesmos vieram concretizar esse plano prestacional em 24 prestações.
J. Em 4.5.2022 foi proferido o seguinte despacho: O tribunal nada tem a opor à regularização proposta, sendo que o valor devido à fidúcia deverá ser todo entregue até ao fim do período de cessão, o qual ocorrerá em 08.05.2023 (em face do encurtamento de tal período operada pela Lei 9/2022, de 11.01).
K. Os insolventes não procederam ao pagamento das prestações.
L. Em 1.6.2022 foi junta a 2º informação anual da qual resulta que relativamente ao 2.º ano do período de cessão, os Insolventes têm a ceder ao Fiduciário a quantia de 1.452,44€ que desde já ficam notificados na pessoa da sua Il Mandatária
Mais se informa que se encontra em dívida à Fidúcia a quantia de 3.342,44 €, relativa ao montante apurado no 1.º ano do período de cessão, 1.890,00 €, acrescido do montante apurado no 2.º ano do referido período
M. A credora A..., SARL, face ao incumprimento dos Insolventes às obrigações advenientes do período de cessão, vem requerer que seja proferido despacho de cessação antecipada do procedimento exonerativo, com todas as consequências daí advenientes.
N. Notificados desta posição os insolventes vieram requerer que o Sr. Fiduciário fizesse novo cálculo do valor que os mesmos tinham que entregar a título de fidúcia.
O. Em 30.01.2023 foi proferido despacho do qual resulta o seguinte (…) concede-se uma última oportunidade aos devedores de comprovarem nos autos o pagamento da quantia global de rendimento disponível a ceder (€ 3.342,44), notificando os devedores (diretamente para a morada constante dos autos e através de mandatário) para em 30 dias proceder à regularização dos montantes que deveriam ter sido objeto de cessão, juntando comprovativo aos autos e justificar a razão pela qual não entregaram qualquer prestação para regularizar o rendimento disponível que se encontrava em dívida, sob pena da sua omissão ser suscetível de determinar a cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante, nos termos do art. 243.º CIRE ou o indeferimento da exoneração, a ponderar a final.
P. Em 3.3.2023 os insolventes vieram informar que estavam a ultimar esforços no sentido de liquidar o valor em dívida à Fidúcia até Maio de 2023, altura em que termina o período de Exoneração Provisória.
Q. Mas em 29.9.2023 vieram informar que não poderiam proceder ao pagamento alegando que (…) neste contexto que tem de se encarar o comportamento dos insolventes, que apesar de tudo quiseram e querem cumprir, mas que lamentavelmente não podem, porque não têm! Acresce que no presente processo foi apreendida e vendida a sua casa, não sendo este um processo onde os credores não receberam. Com efeito, os insolventes pagaram, cumpriram e nesta parte tal situação também terá de ser valorada a favor do insolvente.
R. E que valor em causa não pode ser apelidado de relevante, e por outro lado, não se pode afirmar que foram causados aos credores prejuízos na satisfação dos seus créditos.
S. Em 22.11.2023 foi proferido o seguinte despacho:  Em face do teor da última exposição remetida aos autos por parte dos insolventes, notifique-se estes para, em dez dias:
 - demonstrarem os seus rendimentos mensais durante este último ano (3.º ano);
- comprovarem documentalmente a alegada situação de desemprego e de doença alegados
T. Os insolventes foram notificados e nada vieram juntar e não justificaram essa omissão.
U. Numa última derradeira hipótese foram os insolventes notificados para, em 10 dias, entregarem ao Sr. Fiduciário o valor de €3.342,44, sob pena de lhe ser indeferido o pedido de exoneração do passivo restante.
V. Os insolventes não procederam a qualquer entrega.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.
O CIRE consagrou algumas medidas inovadoras quanto aos devedores singulares insolventes, sendo caso paradigmático a possibilidade de exoneração do passivo restante, figura que não é aplicável às pessoas colectivas.
Decorre do disposto no art. 235º do CIRE que, se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste (redação introduzida pela Lei nº 9/2022 de 11/1), desde que verificado o condicionalismo previsto nos preceitos subsequentes.
Foi propósito assumido pelo legislador que, após a liquidação do seu património no processo de insolvência ou após o decurso de três anos após o encerramento do processo, o devedor tenha a possibilidade de um «fresh start», de recomeçar de novo, sem o peso das obrigações que ainda permaneçam por liquidar.
No preâmbulo desse diploma legal fez-se constar que o Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência (…).
Tal como escreve Assunção Cristas, “apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao pagamento aos credores durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente. O objectivo é que o devedor pessoa singular não fique amarrado a essas obrigações.“ [1]
A exoneração do passivo restante permitirá ao devedor, sob certas condições e em função do seu comportamento sério e honesto no denominado período da cessão, “a possibilidade de não viver o resto da vida (ou, pelo menos, até ao decurso do prazo de prescrição) sob o peso de dívidas que tornariam impossível o retomar de uma vida financeiramente equilibrada. “
Essa exoneração do passivo restante inicia-se com o denominado despacho inicial, que determina a obrigação de cessão do rendimento disponível pelo período de três anos após o encerramento do processo (artigo 237º, al. b) do CIRE), e por regra seguir-se-á o denominado despacho de exoneração, que determinará a final, a concessão da exoneração, decorrido o mencionado prazo e a verificação do integral cumprimento de todas as obrigações constantes do despacho inicial (arts. 237º, al. b), 244º e 245º n.º 1 do CIRE).
A decisão final sobre a concessão ou não da exoneração só virá, portanto, a ter lugar depois de decorrido esse período (sem prejuízo da sua cessação antecipada, nas condições previstas no artigo 243º do CIRE), na decisão final do incidente de exoneração, conforme prevê o artigo 244º do mesmo CIRE.
Relativamente a esta última decisão final, prevê o artigo 244º do CIRE, o seguinte:
1 – Não tendo havido lugar a cessão antecipada, ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respectiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.
2 – A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.
Deste modo, o juiz, para efeitos de recusa da exoneração do passivo restante do devedor, está vinculado pelos fundamentos e pelos requisitos previstos nas alíneas a), b) e c), do antecedente artigo 243º do CIRE.
 “O juiz do processo não tem, em sede de decisão final após o decurso do período da cessão, um poder discricionário quanto à concessão ou recusa da exoneração, antes vinculado, pois que deve atribuí-la ou não, consoante a avaliação que faça, à luz dos elementos colhidos nos autos ou de outras diligências de instrução que julgue pertinentes, quanto à verificação ou não de algum dos fundamentos e requisitos previstos nas alíneas a) a c), do n.º 1, do artigo 243º, do CIRE. “[2]
Os pressupostos exigidos pelo referido preceito legal para a recusa da exoneração do passivo restante, mantiveram-se os mesmos, apesar das alterações introduzidas pela Lei nº 9/2022 de 11/1, que entrou em vigor a 11/4/2022 e, que de acordo com o art. 10º nº 3 se aplica aos processos pendentes.
Preceitua aquele art. 243º do CIRE, no que para aqui importa, o seguinte:
1 – Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se ainda estiver em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do nº 1 do art. 238º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
Da sentença recorrida não consta de forma expressa em qual das referidas hipóteses incorreram os insolventes para lhes ter sido recusada a exoneração do passivo restante, dela podendo ler-se, depois de considerações gerais sobre a figura da exoneração do passivo restante, que, no caso concreto “(…) atento teor da informação dada pela Sra. Fiduciária, contrariamente à posição do devedor, concluímos que não se mostram verificados os pressupostos contemplados no artigo 237.º do CIRE.
(…) Do exposto e não estando em causa apenas os deveres de informação, apresentação e colaboração, mas também o dever de entregar aos credores todo o rendimento superior ao valor fixado no deferimento liminar da exoneração do passivo restante, dever que o devedor não cumpriu e cuja violação traz maiores prejuízos aos credores.
Nessa conformidade, em face do supra exposto, conclui-se que os insolventes violaram os deveres para que lhes fosse concedido o beneficio da exoneração do passivo restante e que eles próprios aceitaram cumprir.
Assim, impõe-se concluir pelo indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante da insolvente.”
Ora, não estando referenciada a violação pelos insolventes do previsto nas alíneas b), e) e f) do art. 238º do CIRE, nem tendo sido feita menção a qualquer decisão proferida no incidente de qualificação da insolvência, nem isso decorrendo da factualidade apurada e vertida na sentença recorrida, a decisão recorrida de recusa da exoneração do passivo restante não terá tido por fundamento qualquer uma das situações previstas no art. 243º nº 1 al. b) e c) do CIRE.
Resta-nos a hipótese vertida no art. 243º nº 1 al. a) do CIRE, a qual remete para a violação de alguma das obrigações impostas aos devedores pelo art. 239º nº 4 do CIRE.
Segundo esse preceito legal, durante o período de cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer qualquer pagamento aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
Conforme defende de forma consistente a Doutrina e Jurisprudência, estando em causa a violação pelo insolvente de alguma das obrigações que para si decorrem do preceituado no artigo 239º, do CIRE, não basta, para efeitos de recusa da exoneração, a mera demonstração do incumprimento, sendo, ainda, necessária, a verificação cumulativa, de um elemento subjectivo- dolo ou negligência grave- e, um elemento objectivo- prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência e decorrente, em termos causais, daquele incumprimento.
Entre outros, na Doutrina mencionamos L.Carvalho Fernandes, J. Labareda, CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 867, L. Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3ª edição pág. 333 e Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6ª edição., pág. 329.
Na jurisprudência, entre outros, os Ac STJ de 9.04.2019, proferido no Proc. Nº 279/13.8TBPCV.C1.S2, Ac RG de 16.03.2023, proferido no Proc nº 2338/13.8TBGMR.G1 , Ac RP de 22.11.2021, proferido no Proc. Nº 783/08. 0TBMCN.P1, Ac RP de 12.09.2023 proferido no Proc. Nº 2614/18.3T8STS.P2 ( no qual a ora Relatora foi adjunta)  todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Tal como defendem Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões “trata-se de uma decisão vinculada, só podendo ser recusada a concessão de exoneração se se verificar algum dos factos que permitem a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
(…) Os fundamentos de recusa encontram-se, pois, todos relacionados com a verificação de um comportamento culposo do devedor antes ou depois da declaração de insolvência e do procedimento de exoneração.”[3]
Da embora parca fundamentação jurídica vertida na sentença recorrida acima citada, conjugada com a factualidade que ali se deu como provada e que não foi impugnada, depreende-se que o tribunal recusou a exoneração do passivo restante aos Apelantes quer porque considerou violados os deveres de informação, apresentação e colaboração, quer porque também considerou violado o dever de entregar aos credores todo o rendimento superior ao valor fixado no deferimento liminar da exoneração do passivo restante, e que tal violação traz maiores prejuízos aos credores.
Efectivamente no art. 239º nº 1 al. a) do CIRE está consagrado que, durante o período da cessão, o devedor fica obrigado a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado e, na al. c) está consagrado o dever de entrega imediata ao fiduciário, quando por si recebida, da parte dos seus rendimentos objecto de cessão.
Ora, segundo o 243º nº 1 al. a) do CIRE do CIRE, para que a recusa da exoneração do passivo restante proferida nestes autos se considere justificada, ter-se-ão de verificar os seguintes requisitos cumulativos:
i)incumprimento pelos insolventes da obrigação de informação sobre os seus rendimentos e/ou de entrega à fiduciária da parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
ii) incumprimento imputável aos insolventes a título de dolo ou grave negligência;
iii) que desse incumprimento decorra, em termos de causalidade adequada, prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Resulta à saciedade da factualidade apurada a violação objectiva dos deveres de informação perante o tribunal e mormente do dever de entrega imediata da parte dos rendimentos objecto de cessão durante todo o período em que a mesma decorreu, pois que ficou provado que em 9.10.2021 foi junta a primeira informação anual da qual resulta que os Insolventes tinham que ceder ao Fiduciário a quantia de 1.890,00 (ponto G) dos factos provados), tendo sido os insolventes notificados para proceder a essa entrega sem que o tivessem feito e apenas em 9.12.2021 vieram informar que não poderiam entregar toda a quantia e que o fariam em prestações mensais e sucessivas, não tendo invocado qualquer razão ( al. H) dos factos provados).
Só depois do convite do tribunal é que os mesmos vieram concretizar esse plano prestacional em 24 prestações (al. I) dos factos provados), tendo sido em 4.5.2022 proferido o seguinte despacho: O tribunal nada tem a opor à regularização proposta, sendo que o valor devido à fidúcia deverá ser todo entregue até ao fim do período de cessão, o qual ocorrerá em 08.05.2023 (em face do encurtamento de tal período operada pela Lei 9/2022, de 11.01)( al. J) dos factos provados) sem que apesar disso os insolventes tenham procedido ao pagamento das prestações ( al. K) dos factos provados).
Novamente, em 1.6.2022 foi junta a 2º informação anual da qual resulta que relativamente ao 2.º ano do período de cessão, os Insolventes tinham a ceder ao Fiduciário a quantia de 1.452,44€, tendo sido notificados que se encontrava em dívida à Fidúcia a quantia de 3.342,44 €, relativa ao montante apurado no 1.º ano do período de cessão, 1.890,00 €, acrescido do montante apurado no 2.º ano do referido período ( al. L) dos factos provados).
Em 30.01.2023 foi proferido despacho no qual foi concedida uma última oportunidade aos devedores de comprovarem nos autos o pagamento da quantia global de rendimento disponível a ceder (€ 3.342,44), tendo sido notificados os devedores para em 30 dias procederem à regularização dos montantes que deveriam ter sido objeto de cessão, juntando comprovativo aos autos e justificarem a razão pela qual não entregaram qualquer prestação para regularizar o rendimento disponível que se encontrava em dívida, sob pena da sua omissão ser suscetível de determinar a cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante, nos termos do art. 243.º CIRE ou o indeferimento da exoneração, a ponderar a final ( al. O) dos factos provados).
Apenas em 3.3.2023 os insolventes vieram informar que estavam a ultimar esforços no sentido de liquidar o valor em dívida à Fidúcia até Maio de 2023, altura em que terminava o período de Exoneração Provisória (al. P) dos factos provados), no entanto em 29.9.2023 vieram informar que não poderiam proceder ao pagamento alegando que (…) neste contexto que tem de se encarar o comportamento dos insolventes, que apesar de tudo quiseram e querem cumprir, mas que lamentavelmente não podem, porque não têm! Acresce que no presente processo foi apreendida e vendida a sua casa, não sendo este um processo onde os credores não receberam. Com efeito, os insolventes pagaram, cumpriram e nesta parte tal situação também terá de ser valorada a favor do insolvente (al. Q) dos factos provados).
Mais alegaram que o valor em causa não pode ser apelidado de relevante, e por outro lado, não se pode afirmar que foram causados aos credores prejuízos na satisfação dos seus créditos (al. R) dos factos provados).
Em 22.11.2023 foi proferido o seguinte despacho: Em face do teor da última exposição remetida aos autos por parte dos insolventes, notifique-se estes para, em dez dias:
- demonstrarem os seus rendimentos mensais durante este último ano (3.º ano);
- comprovarem documentalmente a alegada situação de desemprego e de doença alegados ( al. S) dos factos provados).
Acontece que os insolventes foram notificados e nada vieram juntar e não justificaram essa omissão ( al. T) dos factos provados).
Numa derradeira tentativa para os insolventes cumprirem as suas obrigações,  foram estes notificados para, em 10 dias, entregarem ao Sr. Fiduciário o valor de € 3.342,44, sob pena de lhe ser indeferido o pedido de exoneração do passivo restante e, novamente, remetendo-se ao silêncio, os insolventes não procederam a qualquer entrega ( al. U) e V) dos factos provados).
Os Apelantes invocaram nas Conclusões 4º a 8º circunstâncias pessoais que alegadamente terão estado na base da falta de resposta às notificações do tribunal que lhes solicitou informações às quais não deram resposta apesar de expressamente advertidos que lhes estava a ser concedida uma derradeira oportunidade de justificarem as aludidas omissões, circunstâncias essas que também não encontram respaldo na factualidade vertida na sentença recorrida.
Ora, tal como escrevem Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões em anotação ao art. 243º do CIRE, “o devedor tem o ónus de colaborar neste processo, sob pena de, não o fazendo, a exoneração ser recusada. É o que sucede se não fornecer os elementos solicitados pelo tribunal (…)”[4]
Também, contrariamente ao sustentado pelos Apelantes na Conclusão 11º não podemos afirmar que a recusa da concessão da exoneração do passivo tenha sido declarada com fundamento apenas na violação da obrigação contida na alínea a) do art. 239º nº 4 do CIRE, desde logo porque, como os Apelantes admitem, violaram de forma inequívoca a obrigação principal de entrega imediata ao fiduciário da parte dos seus rendimentos objecto de cessão- art. 239º nº 4 al. c) do CIRE. 
Admitindo que estão em incumprimento, insurgem-se os Apelantes quanto ao preenchimento do requisito da actuação com dolo ou negligência grave, no entanto, de forma anacrónica na Conclusão 14º afirmam que “tal incumprimento não foi o verdadeiro fim da conduta dos insolventes- e, portanto, que o dolo não é direto”- para logo de seguida afirmarem que “tem-se por certo, a presença, no caso de um dolo eventual: o não cumprimento surge como uma aceitação do risco”.
Em nenhum momento se afirmou na sentença recorrida, nem isso decorre da lei, que seja necessário que a violação das obrigações impostas aos insolventes durante o período de cessão contantes do art. 239º nº 4 do CIRE tenha de ser cometida com dolo directo para que se conclua pela recusa da exoneração do passivo, podendo sê-lo desde que o incumprimento seja cometido com qualquer tipo de dolo e mesmo com negligência grave.
A culpa é um nexo de imputação que liga o facto ilícito à vontade do agente cujo conteúdo se traduz num juízo de censura dirigido ao agente por ter actuado de uma certa forma quando podia e devia tê-lo feito de modo diverso.
Como refere Assunção Cristas, “De acordo com os ensinamentos tradicionais, que distingue entre culpa grave, culpa leve e levíssima, a negligência grave ou grosseira corresponderá à conduta do agente que só seria susceptível de ser realizada por pessoa especialmente negligente, actuando a maioria das pessoas de modo diverso. “[5]
No mesmo sentido refere I. Galvão Telles, o seguinte: “ Quer a culpa grave, quer a culpa leve correspondem a condutas que uma pessoa normalmente diligente – o bonus pater familias – se absteria. A diferença entre elas está em que a primeira só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser cometida. A culpa grave apresenta-se como uma negligência grosseira (…).
A culpa levíssima, essa seria a que apenas uma pessoa excepcionalmente diligente conseguiria evitar. “[6]
Também Ana Prata defende que culpa grave é o mesmo que “negligência grosseira, erro imperdoável, desatenção inexplicável, incúria indesculpável – vistos em confronto com o comportamento do comum das pessoas, mesmo daquelas que são pouco diligentes”.[7]
Apurado o circunstancialismo vertido na fundamentação de facto da decisão recorrida, afigura-se-nos que podemos afirmar que os insolventes podiam e deviam ter cumprido pontual e correctamente a entrega dos valores estabelecidos na decisão que fixou o rendimento objecto de cessão, e de forma voluntária e consciente, não entregaram quantias que bem sabiam que não podiam fazer suas.
Os insolventes adoptaram uma conduta ostensiva ou grosseiramente negligente, pois o incumprimento quer da obrigação de informação, quer o dever principal e elementar de entrega do rendimento disponível, traduzem condutas que só um cidadão particularmente displicente e descuidado cometeria, consubstanciando erros indesculpáveis.
Tal como decidido no citado Ac RG de 10.07.2019, entendimento por nós também sufragado, “a simples omissão do devedor de entregar ao fiduciário a parte dos rendimentos objeto de cessão não é fundamento bastante de recusa de concessão de exoneração do passivo restante, apenas a podendo fundamentar um comportamento doloso ou gravemente negligente do devedor.
É havida como negligência grave a “negligência grosseira, o erro imperdoável, a desatenção inexplicável, a incúria indesculpável”, vistos em confronto com o comportamento do comum das pessoas, mesmo daquelas que são pouco diligentes.”[8]
Ora, evidencia-se dos autos que é imputável aos insolventes, pelo menos a título de negligência grave, o incumprimento das obrigações impostas pelo art. 239º nº 4 al. a) e c) do CIRE.
Por último, relativamente ao requisito que desse incumprimento decorra, em termos de causalidade adequada, prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, convém salientar que, contrariamente ao defendido pelos Apelantes, para a recusa da exoneração do passivo não é necessário que esse prejuízo assuma forma relevante, o qual apenas é necessário para a revogação da exoneração, conforme previsto no art. 246º nº 1 do CIRE, sendo inócuas as citações do aresto a esse propósito reproduzido na Conclusão 16º e as considerações subsequentes por não se estar perante uma decisão de revogação da exoneração mas de recusa.
Resulta inegável que os insolventes não entregaram ao fiduciário nenhum dos valores que estavam obrigados a entregar durante o período de duração da cessão, nem se mostra justificada essa sua conduta, tendo violado de forma culposa a obrigação que sobre eles impendia, prejudicando a satisfação dos credores na estrita medida em que estes não viram satisfeitos os seus créditos como o poderiam ter sido, embora parcialmente, caso o valor em dívida de €3.342,44 tivesse sido entregue.
Não obstante, conforme já decidido no Ac RP de 12.09.2023, também subscrito pela aqui Relatora (ali como Adjunta) “ (…) a decisão de recusa da exoneração do passivo restante, à luz das disposições conjugadas dos artigos citados, pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: a) violação das obrigações impostas ao insolvente como corolário da admissão liminar do pedido de exoneração; b) que essa violação decorra de uma atuação dolosa ou com grave negligência; c) verificação de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência; d) e existência de nexo de causalidade entre a conduta e o prejuízo.
Também se nos apresenta suficientemente sedimentado o entendimento de que impende sobre o credor do insolvente ou sobre o fiduciário, sem prejuízo do dever de investigação oficiosa do tribunal, o ónus de alegação e prova dos factos de que depende a recusa de exoneração do passivo restante, por assumirem natureza impeditiva do direito (art. 342.º, n.º 2, do Código Civil).
Não custa, porém, reconhecer a especial dificuldade, tanto para os credores como para o fiduciário, em fazer prova dos pressupostos que vão além do mero incumprimento objetivo da obrigação.
E daí que o legislador tenha concebido a seguinte regra: baseando-se o requerimento de recusa da exoneração nas als. a) e b) do n.º 1 do art. 243.º, o mesmo é sempre deferido, por via do comando normativo inserto na segunda parte do n.º 3 do mesmo artigo, se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer ao tribunal, no prazo que lhe seja indicado para o efeito, informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.
A leitura conjugada do estatuído nas citadas disposições legais, leva-nos a concluir que o comportamento objetivo assumido pelo devedor, traduzido na falta de fornecimento de informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, sem apresentar justificação para tal, no seguimento de notificação para cumprimento efetuada pelo tribunal, produz efeito cominatório ou sancionatório, em termos de se considerarem verificados os pressupostos da cessação antecipada da exoneração do passivo restante.
Ou, em termos de repartição do ónus da prova nesta matéria, constatado o incumprimento objetivo da obrigação de o devedor entregar ao fiduciário, no período da cessão, certos montantes devidos, cabe ao devedor demonstrar uma causa justificada do incumprimento.”[9]
Tal leitura é a única que, a nosso ver, confere sentido e razão de ser à norma inserta na segunda parte do n.º 3 do art. 243.º, no confronto com o normativo da alínea a) do n.º 1 do mesmo artigo”, entendimento esse transponível para o caso aqui sob recurso.
Finalmente, não se vê de que modo o princípio da proporcionalidade constitucionalmente consagrado no art. 18º nº 2 da CRP possa ter sido violado com a decisão de recusa da exoneração do passivo restante, pelo contrário, tal violação porventura ocorreria caso se defendesse a posição dos insolventes, que nada tendo entregue da parte dos seus rendimentos objecto de cessão ver-se-iam livres de qualquer passivo no final do processo de insolvência, ficando os seus credores impedidos de recuperar a totalidade do valor dos seus créditos, não se afigurando serem merecedores de tal relevante benefício.
Verificados todos os requisitos legalmente exigidos para que a exoneração do passivo restante lhes fosse recusada, nenhuma censura nos merece a sentença recorrida.

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V. DECISÃO:
Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos Apelantes, mantendo-se a sentença recorrida de recusa da exoneração do passivo restante aos Insolventes.

Custas a cargo dos insolventes.

Notifique.





Porto, 10 de Julho de 2024
Maria da Luz Teles Meneses de Seabra
(Relatora)
João Proença
(1º Adjunto)
Anabela Dias da Silva
(2ª Adjunta)




 (O presente Acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)

_______________________
[1] Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Revista Themis, Edição Especial, 2005, pág. 167 e Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução, 2010, pág. 133.
[2] L.Carvalho Fernandes, J. Labareda, CIRE Anotado, 3ª edição, pág 870 e, neste sentido, ainda, L. Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3ª edição, pág. 335, Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6ª edição, pág. 329 e A. Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência ”, 2015, pág. 557.
[3] CIRE Anotado, 2013, pág. 675-676
[4] Ob cit, pág. 675
[5] Ob. cit., pág. 171, nota 6
[6] Direito das Obrigações, 6ª edição, pág. 349-350
[7] Cláusulas de Exclusão e Limitação da Responsabilidade Contratual, págs. 306 a 308 e 643
[8] Proc. Nº 4201/09. 8TBGMR.G2, www.dgsi.pt
[9] Proc. Nº 2614/18.3T8STS.P2, www.dgsi.pt