Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5341/23.6T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
FUNDAMENTOS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Nº do Documento: RP202407105341/23.6T8VNG.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Vem sendo entendimento aceite na jurisprudência que o requerimento de exoneração do passivo restante deve ser indeferido liminarmente verificando-se um dos fundamentos previstos no n.º1 do art.º 238.º do CIRE, e elencados num destes três grupos assim estruturados: - um que “respeita a comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram” – previsto nas alíneas b), d) e e) do n.º1 do referido artigo; - outro que “compreende situações ligadas ao passado do insolvente” – previsto nas alíneas c) e f) do n.º1 do mesmo artigo; - e ainda um outro que “configura condutas adotadas pelo devedor que consubstanciam a violação de deveres que lhe são impostos no decurso do processo de insolvência” - previsto na alínea g) do n.º1 do mesmo preceito.
II – O ónus de alegação e de prova desses fundamentos, enquanto factos impeditivos do direito, cabe aos credores e/ou ao administrador da insolvência.
III - Ao requerente que pretenda aceder ao procedimento para exoneração do passivo restante bastará, em princípio, alegar a qualidade de insolvente e fazer constar do requerimento a declaração expressa do n.º 3 do art.º 236.º do CIRE.
IV – Preceitua a al. a) do art.º 83.º do CIRE, que O devedor insolvente fica obrigado a: a) fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal.
V – A omissão total ou parcial da prestação de informações solicitadas pelo tribunal, sem o mínimo de justificação, integra a violação do dever de informação previsto na al. g) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE e constitui fundamento legal para indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 5341/23.6T8VNG.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo de Comércio de Amarante – Juiz 3
Recorrente – AA
Recorridos – Credores da insolvência de AA
Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntos – Desemb. Fernando Vilares Ferreira
Desemb. Maria Eiró

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – Nos presentes autos de insolvência intentados a requerimento de AA, que pediu a sua declaração de insolvência e formulou pedido de exoneração do passivo restante foi, em 28.06.2023 proferida sentença de onde consta, além do mais: “Pelo exposto: a) Declaro reconhecida a situação de insolvência da requerente AA e, em consequência, declaro a sua insolvência (…)”.
Após, aguardem os autos por 10 dias o decurso do prazo do contraditório quanto ao mesmo por parte de todos os intervenientes, sendo que disporão desse prazo para se pronunciarem quanto à proposta que vier a ser apresentada e quanto ao pedido de exoneração do passivo restante.
(…).
l) Relega-se para momento processual oportuno a apreciação do pedido de exoneração do passivo restante – cfr. art.º 236.º, n.º 4, do C.I.R.E. (…)
Tal decisão mostra-se transitada em julgado.

Em 13.09.2023 foi proferido despacho de onde consta, além do mais: “Notifique novamente a insolvente – pessoalmente e na pessoa da sua Il. Mandatária – nos termos determinados em 28.06.2023 para, em 10 dias, juntar aos autos cópia do seu último recibo de vencimento, devendo juntar ainda o seu certificado do registo criminal, e informar quais as despesas mensais que suporta, juntando comprovativo das mesmas, sob pena de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Notifique-a ainda para esclarecer qual o rendimento auferido pelo seu marido, juntando cópia do último recibo de vencimento do mesmo, bem como do teor dos requerimentos de 14.08.2023 e 16.08.2023 para, em 10 dias, se pronunciar quanto ao exposto pelos credores”.

Foi, entretanto, concedido à insolvente a prorrogação do prazo por si, requerido. E decorrido este, nada foi junto aos autos, pelo que, em 26.10.2023, foi proferido o seguinte despacho: “Uma vez que já decorreu o prazo requerido pela insolvente, notifique-a novamente – pessoalmente e na pessoa da sua Il. Mandatária – nos termos determinados em 28.06.2023 para, em 10 dias, juntar aos autos cópia do seu último recibo de vencimento, devendo juntar ainda o seu certificado do registo criminal, e informar quais as despesas mensais que suporta, juntando comprovativo das mesmas, sob pena de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Notifique-a ainda para esclarecer qual o rendimento auferido pelo seu marido, juntando cópia do último recibo de vencimento do mesmo, bem como do teor dos requerimentos de 14.08.2023 e 16.08.2023 para, em 10 dias, se pronunciar quanto ao exposto pelos credores”.

Em 11.11.2023, a insolvente juntou aos autos o último recibo vencimento; Registo Criminal; recibo da renda; recibo da energia elétrica e informou ainda que o marido atualmente está sem trabalhar, sem qualquer rendimento ou subsídio. E mais alegou que, “No que toca aos requerimentos apresentados pelos credores, a Insolvente atravessava uma fase mais estável, e tinha a sua mãe que a ajudava, pelo que quando contraiu os créditos fê-lo com a consciência e a responsabilidade de os cumprir. Infelizmente a sua mãe ficou doente, sem possibilidade de trabalhar e a insolvente viu também os seus rendimentos diminuírem consideravelmente, o que implicou um acumular de dividas que foi impossível liquidar, criando um verdadeiro efeito «bola de neve». Ou seja, a insolvente não pagou porque não quis, mas sim porque ficou sem possibilidade de o fazer e quando se apercebeu a situação já estava tão grave que era impossível comportar”.

Em 15.11.2023 foi proferido o seguinte despacho: “A fim de ser apreciado o pedido de exoneração do passivo restante notifique a insolvente para, em 10 dias, esclarecer qual foi a sua situação profissional entre junho de 2020 e junho de 2023, designadamente informando que rendimentos auferiu nesse período e que rendimentos foram auferidos pelo seu marido”.

Em 30.11.2023 a insolvente veio dizer aos autos que “…em 2020 já trabalhava na mesma empresa onde trabalha atualmente. Todavia, cumulava com o auxílio que dava no apoio a pessoas idosas, o que lhe permitia equilibrar o orçamento. Para além disso, a sua mãe ajudava-a no pagamento da renda. O seu marido auferia o salário em média de € 850,00 mensais”.

Em 7.12.2023 foi proferido o seguinte despacho: “A insolvente veio aos autos, em 30.11.2023, dizer que em 2020 já trabalhava na mesma empresa onde trabalha atualmente. Todavia, cumulava com o auxílio que dava no apoio a pessoas idosas, o que lhe permitia equilibrar o orçamento. Para além disso, a sua mãe ajudava-a no pagamento da renda.
E o seu marido auferia o salário em média de € 850,00 mensais. A verdade é que a mesma não comprova documentalmente tais alegações. Assim, notifique a insolvente para, em 10 dias, juntar documentos que comprovem os rendimentos que auferia com o auxílio que alegadamente dava a pessoas idosas, bem como juntar recibos de vencimento do seu marido respeitantes ao ano de 2020 e/ou declarações de IRS apresentadas quanto a esse ano e respetiva nota de liquidação”.

Depois de ter sido concedido à insolvente a prorrogação do prazo por si requerido e nada tendo sido junto aos autos, em 23.01.2024, foi proferido o seguinte despacho: “Notifique novamente a para, em 10 dias, juntar documentos que comprovem os rendimentos que auferia com o auxílio que alegadamente dava a pessoas idosas, bem como juntar recibos de vencimento do seu marido respeitantes ao ano de 2020 e/ou declarações de IRS apresentadas quanto a esse ano e respetiva nota de liquidação uma vez que já decorreu a prorrogação do prazo que requereu em 26.12.2023, com a advertência que não cumprindo o determinado será indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante por violação culposa dos deveres de colaboração e de informação”.

Nada tendo sido junto aos autos, vieram os credores A... e Banco 1... SA pedir que fosse indeferido o pedido de exoneração do passivo restante formulado.
Depois de exercido o contraditório e a insolvente ter vindo alegar que o seu comportamento omissivo se deveu a problemas familiares, em 11.03.2024 foi proferido o seguinte despacho: “Notifique novamente a insolvente para, em 5 dias, juntar documentos que comprovem os rendimentos que auferia com o auxílio que alegadamente dava a pessoas idosas, bem como juntar recibos de vencimento do seu marido respeitantes ao ano de 2020 e/ou declarações de IRS apresentadas quanto a esse ano e respetiva nota de liquidação, com a advertência que não cumprindo o determinado será indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante por violação culposa dos deveres de colaboração e de informação e que não serão deferidas quaisquer outras prorrogações do prazo uma vez que o prazo concedido para essa junção foi já largamente excedido e que não se mostra justificada qualquer razão para incumprir com essa obrigação”.

Nada tendo sido junto aos autos, em 4.04.2024 foi proferida decisão de onde consta: “Ao não dar cabal resposta às notificações que lhe foram dirigidas para junção de documentos, a insolvente agiu culposamente impedindo que o tribunal pudesse aferir se reúne ou não condições para a concessão desse benefício.
Em consequência, tendo a insolvente incumprimento com culpa grave os seus deveres de informação e colaboração, indefere-se liminarmente o benefício de exoneração do passivo restante.
Notifique”.

Inconformada com esta decisão, dela veio a insolvente recorrer de apelação pedindo a sua revogação e substituição por outra que admita liminarmente o seu pedido.
A apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:
1. O douto despacho não faz a correta aplicação do direito aos factos.
2. Dispõe o art.º 238.º, nº 1, al. g), do C.I.R.E. que “o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.”.
3. O pedido de exoneração é liminarmente indeferido nos casos taxativamente enumerados no n.º 1 do art.º 238.º do C.1.R.E., nos quais se definem, pela negativa, os requisitos de cuja verificação depende a exoneração.
4. O primeiro requisito é ordem processual (o prazo em que deve ser formulado o pedido) e os restantes, de ordem substantiva.
5. Estes últimos reconduzem-se a três grupos diferentes:
- a) o primeiro, respeitante a comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência que, de algum modo, para ela contribuíram ou a agravaram (alíneas b), d) e e) do n.º 1 do art.º 238.º do C.1.R.E.)
- b) o segundo, respeitante a situações ligadas ao passado do insolvente (alíneas c) e 1) do n.º 1 do art.º 238.º do C.LR.E.) e, finalmente.
- c) o terceiro, relacionado com condutas adotadas pelo devedor que consubstanciem violação dos deveres que lhe são impostos no decurso do processo de insolvência (alínea g) do n.º 1 do art.º 238.º do C.I.R.E.).
6. Se não houver motivo para indeferimento liminar, diz o art.º 239.º n.º 1 do Código em apreço que deve ser proferido despacho inicial que determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade (fiduciário) escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência.
7. No caso em apreço, refere-se no douto despacho em crise: “No caso em apreço, a insolvente foi pessoalmente notificada na morada que deu no processo para juntar documentos e prestar informações que eram relevantes para a apreciação do pedido de exoneração do passivo restante e foi notificada na pessoa da sua Mandatária para o mesmo efeito. A verdade é que não deu cabal resposta ao tribunal, não tendo comprovado quais foram os rendimentos que auferiu com o auxílio que alegadamente dava a pessoas idosas, nem juntou aos autos os recibos de vencimento do seu marido respeitantes ao ano de 2020 e/ou declarações de IRS apresentadas quanto a esse ano e respetiva nota de liquidação. Tal ausência de resposta advém de culpa grave da insolvente porquanto esta não alegou qualquer impossibilidade de junção dos documentos que lhe foram solicitados, sendo certo que a mesma desde há vários meses que tem vindo a requerer prazo para a junção desses documentos e informações. O prazo concedido à insolvente revela-se mais do que suficiente para que a mesma pudesse juntar os documentos e informações em falta.»
8. Ora, ainda que possa admitir-se que a requerente/recorrente nem sempre prestou as informações solicitadas, também é certo que as mesmas poderiam, parcialmente, ser obtidas por via dos elementos já constantes dos autos.
9. Por outro lado, essas omissões não chegam para se concluir que tenha havido uma intenção de, com dolo ou culpa grave, violar os deveres de informação, apresentação e colaboração, muito menos que tais omissões tivessem a finalidade de impedir o tribunal de obter elementos, dos quais decorresse o incumprimento do dever a que alude o n.º 1, da alínea d), do citado art.º 238.º do CIRE.
10. Não se afigura legítima a conclusão final de que a insolvente violou o dever previsto no art.º 83.º, n.º 1 a) do CIRE de forma grave porquanto a omissão praticada não permite ao tribunal aferir designadamente, se ocorre ou não culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art.º 186.º do CIRE.
11. Com efeito, este normativo, refere no seu n.º1 que a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave do devedor, nos três anos anteriores ao início do processo e no n.º 2, com referência à sua alínea a), acrescenta que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja pessoa singular quando os administradores tenham, além do mais, “destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor”. Finalmente, o artigo 186.º n.º 4 esclarece que o disposto no seu n.º 2 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação da pessoa singular insolvente.
12. De facto, sem mais, não pode afirmar-se que a devedora atuou com a finalidade de causar a impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas ou agravar essa situação (dolo direto), ou que, prevendo essa impossibilidade ou o seu agravamento como consequências necessárias e seguras da sua conduta (dolo necessário), ou mesmo que atuou (comportamento omissivo) não confiando que essa impossibilidade ou agravamento não viessem a ocorrer (dolo eventual).
13. Pode pensar-se que tenha havido alguma imponderação, falta de diligência e de cautela, porém à Insolvente também não foi dada a possibilidade de demonstrar que essa omissão não se deveu a mero esquecimento, ou quiçá à falta de tais elementos, sendo certo que os credores possuem na sua contabilidades dados sobre a data de constituição dos empréstimos, do início do incumprimento e dos valores exatos.
14. Mas, para além da falta de elementos fácticos dos quais se conclua a existência de dolo ou negligência grave, também não serve de argumento a conclusão constante da decisão recorrida, de que se tratou de omissão dolosa, pelo que referir que preenche a previsão do art.º 238.º, n.º 1 al. g) do CIRE, afigura-se prematura.
15. Com efeito, ainda que não seja unânime a jurisprudência, sobre a quem compete alegar e provar os requisitos a que alude o artigo 238.º, n.º 1, CIRE, enquanto factos impeditivos do direito. Para uma orientação, cabe ao devedor a prova de tais requisitos. Para outra, a que aderimos, a prova destes requisitos compete aos credores e administrador, considerando que estamos perante factos impeditivos do direito.
16. Assim, para quem conclua que não é ao devedor que cabe fazer prova dos requisitos do artigo 238.º, n.º 1, CIRE, pois estes constituem fundamento de indeferimento liminar e não factos constitutivos do seu direito, sempre seriam os credores e o administrador da insolvência, que se pretendam prevalecer do indeferimento liminar, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, CC, deveriam ter vindo aos autos elementos que inviabilizassem o deferimento do pedido de exoneração.
17. Convém não esquecer que estamos em sede de despacho de indeferimento liminar, ainda que sui generis por ser antecedido da audição de credores e do administrador da insolvência (artigo 238.º, n.º 2, CIRE), não estando o Tribunal impedido de apurar se houve da parte do insolvente a intenção de omitir informações ou falsear a verdade.
18. O incidente de exoneração do passivo restante não fica logo decidido definitivamente com o deferimento a proferir nesta fase processual e na ponderação dos interesses em conflito (devedores versus credores).
19. Como resulta do art.º 239.º/1 e 2, o despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, que a lei denomina período da cessão, o rendimento disponível auferido pelo devedor se considere cedido ao fiduciário, que distribui os rendimentos do devedor nos termos do art.º 241.º/1.
20. E mesmo antes de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, ou do fiduciário, quando o devedor incorra em alguma das situações descritas nas alíneas do n.º 1 do art.º 243.º do CIRE.
21. Nesta fase, o que se lhe faculta ao insolvente é um período experimental, como que a ver se merece que, a final, lhe seja concedida a exoneração.
22. Não estão, pois, salvo melhor opinião, provados factos que permitam concluir pela existência de dolo, culpa grave, a intenção de prejudicar os credores, a intenção de se frustrar a pagar aos credores, o prejuízo dos credores e respetivo nexo causal, e a culpa no agravamento da situação como é exigido nas diversas alíneas referidas no despacho de indeferimento.
23. Mostra-se necessária comprovação da existência de dolo ou culpa grave e que as condutas consubstanciadoras das mesmas tenham sido levadas a cabo com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições ou com o fim de evitar pagamentos aos credores, o que, no caso não se mostra de todo demonstrado.
24. Inexistem, assim, nos autos, elementos que preencham, nomeadamente, o disposto no art.º 238.º, n.º 1, al. g) do CIRE.
25. O douto despacho recorrido, viola por errada interpretação a aplicação do disposto nos artigos 238.º e 243.º do CIRE e art.º 18.º CRP.

Não há contra-alegações.

II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos:
a) AA apresentou-se à insolvência, tendo requerido que lhe fosse concedido o benefício de exoneração do passivo restante
b) Por sentença proferida em 28.06.2023 foi declarada a insolvência da requerente AA, tendo-se determinado a notificação da insolvente juntar aos autos cópia do seu último recibo de vencimento, devendo juntar ainda o seu certificado do registo criminal, e informar quais as despesas mensais que suporta, juntando comprovativo das mesmas a fim de, oportunamente, ser apreciado o pedido de exoneração do passivo restante.
c) O Banco 1... SA e a A... pronunciaram-se no sentido de ser indeferido liminarmente o benefício de exoneração do passivo restante.
d) Por despacho de 13.09.2023 determinou-se novamente a notificação da insolvente para juntar aos autos cópia do seu último recibo de vencimento, devendo juntar ainda o seu certificado do registo criminal, e informar quais as despesas mensais que suporta, juntando comprovativo das mesmas, sob pena de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, bem como para esclarecer qual o rendimento auferido pelo seu marido, juntando cópia do último recibo de vencimento do mesmo, bem como do teor dos requerimentos de 14.08.2023 e 16.08.2023 para, em 10 dias, se pronunciar quanto ao exposto pelos credores.
e) Em 29.09.2023 a insolvente requereu o prazo de 5 dias para juntar os documentos/informações solicitadas, o que foi deferido por despacho de 3.10.2023.
f) Uma vez que a insolvente não juntou aos autos os documentos/informações solicitadas no prazo que requereu, por despacho de 26.10.2023 determinou-se que a mesma fosse novamente notificada para as juntar.
g) Em 11.11.2023 a insolvente juntou aos autos o último recibo vencimento, Registo Criminal, recibo da renda e recibo da energia elétrica.
h) Por despacho de 7.12.2023 determinou-se a notificação da insolvente para juntar documentos que comprovem os rendimentos que auferia com o auxílio que alegadamente dava a pessoas idosas, bem como juntar recibos de vencimento do seu marido respeitantes ao ano de 2020 e/ou declarações de IRS apresentadas quanto a esse ano e respetiva nota de liquidação.
i) Em 26.12.2023 a insolvente requerer a prorrogação do prazo para juntar tais elementos pelo período de 10 dias, o que foi deferido por despacho de 5.01.2024.
j) Por despacho de 23.01.2024 determinou-se a notificação da insolvente para, em 10 dias, juntar documentos que comprovem os rendimentos que auferia com o auxílio que alegadamente dava a pessoas idosas, bem como juntar recibos de vencimento do seu marido respeitantes ao ano de 2020 e/ou declarações de IRS apresentadas quanto a esse ano e respetiva nota de liquidação uma vez que já decorreu a prorrogação do prazo que requereu em 26/12/2023, com a advertência que não cumprindo o determinado será indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante por violação culposa dos deveres de colaboração e de informação.
k) A insolvente foi notificada pessoalmente e na pessoa da sua Il. Mandatária desse despacho e nada comprovou ou requereu.
l) Em 12.02.2024 a A... requereu o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante atendendo ao facto de a insolvente não ter respondido às notificações que lhe foram dirigidas
m) Tal requerimento foi notificado à insolvente.
n) A insolvente em 7.03.2024 requereu que lhe fosse concedido o prazo de 5 dias para juntar aos autos os documentos/informações que lhe foram solicitadas.
o) Em 11.03.2024 determinou-se a notificação da insolvente para juntar documentos que comprovem os rendimentos que auferia com o auxílio que alegadamente dava a pessoas idosas, bem como juntar recibos de vencimento do seu marido respeitantes ao ano de 2020 e/ou declarações de IRS apresentadas quanto a esse ano e respetiva nota de liquidação, com a advertência que não cumprindo o determinado será indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante por violação culposa dos deveres de colaboração e de informação e que não serão deferidas quaisquer outras prorrogações do prazo uma vez que o prazo concedido para essa junção foi já largamente excedido e que não se mostra justificada qualquer razão para incumprir com essa obrigação.
p) A insolvente foi notificada na pessoa da sua mandatária e nada respondeu, sendo que a carta que lhe foi dirigida pessoalmente não foi por si reclamada.

III – Como é sabido o objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
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Ora, visto o teor das alegações da insolvente/apelante é questão a apreciar no presente recurso:
- saber se o indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente está ou não conforme à lei.

Vejamos.
Como é sabido, o instituto da exoneração do passivo restante é uma inovação introduzida pelo atual CIRE, explicitada pelo legislador no preâmbulo do respetivo diploma pela seguinte forma: - “O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do “fresh start” para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da “exoneração do passivo restante”.
A exoneração do passivo restante traduz-se assim num benefício privativo da insolvência das pessoas singulares, mediante a qual e, verificadas certas circunstâncias, é permitido ao devedor, ao fim de três anos, ver-se exonerado das dívidas que não foram satisfeitas (ou não foram totalmente satisfeitas) pela liquidação da massa insolvente, ou através da cessão de parte do seu rendimento aos credores, nas condições fixadas no incidente. Ou dito de outro modo, a exoneração do passivo restante constitui, para o devedor insolvente, uma libertação definitiva dos débitos não integralmente satisfeitos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao seu encerramento, nas condições previstas no incidente regulado nos art.º 235.º e seguintes do CIRE. Daí falar-se em passivo restante. Consequentemente, os credores vêm os seus créditos, no todo ou em parte, extintos por causa diversa do cumprimento. Neste sentido tem decidido a generalidade da nossa jurisprudência, tal como defendem Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, pág. 777 e segs. e Assunção Cristas, in “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante”, pág. 165 e segs.
Como se escreveu no Ac. desta Relação e secção de 19.05.2010 in www.dgsi.pt “é um instituto novo, “tributário da ideia de “fresh start”, sendo o seu objetivo final “a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, “aprendida a lição”, este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua atividade económica”. A medida “fresh start” (novo arranque) tinha sido indicada pela Comissão Europeia, no seu relatório de síntese de Setembro de 2003 (relacionado com o “Projeto Best sobre Reestruturação, Falências e Novo Arranque”) como um instrumento importante para a revitalização da economia europeia, assente num novo espírito empresarial, depois de ter constatado que, de um modo geral, os empresários que passaram por processos de falência aprendem efetivamente com os seus erros e são mais bem sucedidos no futuro”.
Ou, como se consignou no Ac. do STJ de 21.10.2010, in www.dgsi.pt, “Este “fresh start” previsto apenas para as pessoas singulares dotadas de “boa-fé” que se encontrem em situação de insolvência existe e tem tido sucesso em países como os Estados Unidos e a Alemanha, nos quais o legislador português terá ido buscar inspiração.
É crucial, no entanto, entender, que a exoneração do passivo restante não tem como principal fim a satisfação dos credores da insolvência, tal como o previsto no artigo 1.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – embora, reflexamente, não esqueça por completo esses interesses, na medida em que são impostos apertados limites para a sua admissão.
Esta medida, específica das pessoas singulares, tem como objetivo primordial conceder uma segunda oportunidade ao indivíduo, permitindo que este se liberte do passivo que possui e que não consiga pagar no âmbito do processo de falência”. Daí que se tenha de averiguar se o seu comportamento anterior ou atual pode ser reputado de lícito, honesto, transparente e pautado pela boa-fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência e consequentemente permita concluir-se que a pessoa em causa é merecedora da nova oportunidade prevista na lei.
E porque se trata efetivamente de conceder um benefício “é necessário que o devedor preencha determinados requisitos e desde logo que tenha tido um comportamento anterior e atual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa-fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, aferindo-se da sua boa conduta, dando-se aqui especial cuidado na apreciação, apertando-a, com ponderação de dados objetivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta”, cfr. Acs. desta Relação de 5.11.2007, de 9.01.2006, de 9.12.2008, in www.dgsi.pt e Assunção Cristas, in “Novo Direito da Insolvência”, RFD da UNL, 2005, pág. 264. Pois que como vem sendo insistentemente apontado, o incidente de exoneração do passivo restante não pode redundar num instrumento oportunística e habilidosamente empregue unicamente com o objetivo de se libertarem os devedores de avultadas dívidas, sem qualquer propósito mesmo de alcançar o seu regresso à atividade económica, no fundo o interesse social prosseguido, cfr. Ac. Rel. Coimbra de 17.12.2008, in www.dgsi.pt. e Catarina Serra, in “Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução”, pág. 133, que sobre este particular fala em dos ”abusos de exoneração”, sendo por isso que logo na fase liminar de apreciação do pedido se instituem os requisitos mais apertados a preencher e a provar, cfr. Assunção Cristas, in obra citada, pág. 170.
Em suma, a concessão da exoneração do passivo foi uma medida inovadora adotada no nosso ordenamento jurídico, justificada assim no preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18.03: “O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do ‘fresh start' para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em processo de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da ‘exoneração do passivo restante.
(…)
A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de três anos - designado por período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica”. Daí ter o CIRE consagrado um período de três anos, durante o qual o devedor deverá afetar o seu rendimento disponível ao pagamento das dívidas aos credores que não forem integralmente satisfeitos no processo de insolvência e findo esse período e, verificados que sejam os demais requisitos, é concedido ao devedor pessoa singular, a exoneração do passivo restante.
A exoneração do passivo restante tem o seu regime especial, aplicável à insolvência das pessoas singulares, consagrado no capítulo I do Título XII do Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa (CIRE) – art.ºs 235.º a 248.º.
Ora, de acordo com o disposto no art.º 235.º do CIRE: “Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições deste capítulo”. Ou seja, consiste na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo da insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento.
E, de acordo com o art.º 236.º n.º 1 do mesmo diploma: - “O pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação, e será sempre rejeitado se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório; o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio”. Ou dito de outro modo, o prosseguimento do incidente depende de despacho liminar, prevendo o n.º 1 do art.º 238.º do CIRE os casos em que deve ser proferido despacho de indeferimento liminar do pedido de exoneração. E no entendimento de Carvalho Fernandes e João Labareda in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado”, pág. 784, os comportamentos passíveis de censura, que são fundamento do indeferimento do pedido de exoneração, dividem-se estruturalmente em três grupos:
- um que “respeita a comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram” - alíneas b), d) e e));
- outro “compreende situações ligadas ao passado do insolvente” – alíneas c) e f);
- e o terceiro – a alínea g) – “configura condutas adotadas pelo devedor que consubstanciam a violação de deveres que lhe são impostos no decurso do processo de insolvência”.
Admitido, liminarmente, o pedido de exoneração do passivo restante, o art.º 239.º do CIRE, inserido no capítulo da exoneração do passivo restante de pessoa singular insolvente, sob a epígrafe de cessão do rendimento disponível, estatui, o seu n.º 2, que o despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o chamado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a fiduciário escolhido pelo tribunal, e afetado pelo referido fiduciário nos termos previstos no art.º 241.º do CIRE. Mas, tal como refere Menezes Leitão, in “Direito da Insolvência”, pág. 312, o despacho inicial não consubstancia a decisão relativa à exoneração do passivo restante, garantindo apenas a passagem para a fase subsequente, o período de cessão, findo o qual, e cumpridos os ónus que impendem sobre o insolvente, cfr. art.º 239.º, n.º4 do CIRE, é proferida decisão final, concedendo a exoneração do passivo restante.

Depois destas ideias gerais, retornando ao caso dos autos, como se vê, a apelante insurge-se contra a decisão de indeferimento liminar do incidente de exoneração do passivo restante.
A 1.ª indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente/apelante, que fundamentou escrevendo: “(…) a insolvente foi pessoalmente notificada na morada que deu no processo para juntar documentos e prestar informações que eram relevantes para a apreciação do pedido de exoneração do passivo restante e foi notificada na pessoa da sua Mandatária para o mesmo efeito.
A verdade é que não deu cabal resposta ao tribunal, não tendo comprovado quais foram os rendimentos que auferiu com o auxílio que alegadamente dava a pessoas idosas, nem juntou aos autos os recibos de vencimento do seu marido respeitantes ao ano de 2020 e/ou declarações de IRS apresentadas quanto a esse ano e respetiva nota de liquidação.
Tal ausência de resposta advém de culpa grave da insolvente porquanto esta não alegou qualquer impossibilidade de junção dos documentos que lhe foram solicitados, sendo certo que a mesma desde há vários meses que tem vindo a requerer prazo para a junção desses documentos e informações. O prazo concedido à insolvente revela-se mais do que suficiente para que a mesma pudesse juntar os documentos e informações em falta.
Ao não dar cabal resposta às notificações que lhe foram dirigidas para junção de documentos, a insolvente agiu culposamente impedindo que o tribunal pudesse aferir se reúne ou não condições para a concessão desse benefício.
Em suma, fundamentou expressamente a 1.ª instância a sua decisão na al. g) do n.º1 do art.º 238.º do CIRE.
Ora, ainda que não seja unânime a jurisprudência, sobre a quem compete alegar e provar os requisitos a que alude o art.º 238.º, n.º 1, CIRE, enquanto factos impeditivos do direito, entendemos que ao requerente que pretenda aceder ao procedimento para exoneração do passivo restante bastará alegar a qualidade de insolvente e fazer constar do requerimento a declaração expressa do n.º 3 do art.º 236.º do CIRE, cabendo aos credores e ao administrador da insolvência alegar e provar os factos e circunstâncias a que alude o art.º 238.º, n.º 1 do CIRE, enquanto factos impeditivos do direito, cfr. art.º 342.º, n.º 2 do C.Civil, sem prejuízo do princípio do inquisitório, cfr. art.º 11.º do CIRE. Não se pode ignorar que a al. g) do n.1 do art.º 238.º do CIRE preceitua que: “O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: - O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência”.
E segundo o disposto na al. a), do n.º 1 do art.º 83.º do CIRE “o devedor insolvente fica obrigado a fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal”.
Não se podendo, além do mais, ignorar que a falta de prestação de informações ou de colaboração é livremente apreciada pelo juiz, nomeadamente para efeito da qualificação da insolvência como culposa, cfr. art.º 83.º n.º 3 do CIRE, sendo que o incumprimento de forma reiterada dos deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do art.º 188.º do CIRE constitui presunção juris et de jure de que a insolvência é culposa.
Conforme resulta provado dos autos desde junho de 2023 até abril de 2024, o Tribunal notificou a insolvente, reiteradas vezes, para que a mesma prestasse nos autos determinadas informações, comprovando-as documentalmente, se possível fosse; informações, essas, que se mostravam necessárias, além do mais, para apurar da situação económico-financeira e profissional da insolvente e do seu marido (rendimentos e encargos normais com a sua vida diária) e consequentemente poder o Tribunal determinar com segurança e objetividade, mormente do montante do rendimento indisponível, caso o pedido de exoneração do passivo restante formulado viesse a ser liminarmente admitido e, como também resulta dos autos, a insolvente, cerca de 5 meses depois da primeira notificação para o efeito e já depois de algumas insistências por parte do Tribunal, apenas juntou aos autos o último recibo do seu vencimento, o seu Registo Criminal, um recibo da renda e um recibo da energia elétrica.
No circunstancialismo referido, é manifesto que embora a insolvente não tenha tido uma conduta totalmente omissiva, as informações que prestou nos autos foram genéricas e/ou insuficientes atento o que lhe tinha sido solicitado e para se conseguir detalhar, objetivamente, qual o necessário para se assegurar o sustento minimamente digno da insolvente e do seu agregado familiar, ilidindo da mente do julgador quaisquer dúvidas ou constrangimentos quanto à boa-fé da insolvente ao formular tal pedido, como foi trazido aos autos por alguns credores da mesma.
Ora, analisando todo o circunstancialismo provado nos autos, de onde bem se evidencia, além do mais, o injustificado arrastamento no tempo para o eventual cumprimento do solicitado pelo Tribunal, assim como, a insuficiência das informações que veio a prestar, tudo se o mínimo de justificação, e sem olvidar que a insolvente foi, por mais do que uma vez, notificada com a expressa advertência de que o incumprimento do solicitado, implicaria a prolação de uma decisão desfavorável quanto ao deferimento do seu pedido de exoneração do passivo restante, temos de concluir de que ponto de vista objetivo, a insolvente/apelante violou os deveres de informação e de colaboração como lhe era exigível ao não fornecer, nem atempadamente, nem de forma completa, todas as informações relevantes para o processo que lhe tinham sido solicitadas pelo tribunal.
Resta, pois, analisar do ponto de vista subjetivo o comportamento da insolvente/apelante e neste âmbito, como é sabido, a culpa traduz-se na censurabilidade do comportamento, pressupondo que o mesmo poderia e deveria ter sido evitado e comporta tanto o dolo, como a negligência (qualquer deles, em qualquer das suas formas possíveis), sendo apreciada pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso, cfr. art.º 487.º n.º2 do C.Civil. Sendo certo que, no que respeita ao grau de culpabilidade, tradicionalmente, a nossa Jurisprudência e Doutrina costumam distinguir três formas de culpa quanto ao seu grau, isto é, quanto à sua maior ou menor intensidade. Fala-se, assim, em culpa lata (também denominada grave ou grosseira), culpa leve e culpa levíssima, aferindo-se sob um critério de apreciação objetiva, aferindo-se pelo confronto com um tipo abstrato de pessoa. Quer a culpa grave, quer a culpa leve correspondem a condutas que uma pessoa normalmente diligente – o “bonus pater famílias” – se absteria. Entendendo-se por culpa grave a situação de negligência grosseira, em que a conduta do agente só seria suscetível de ser realizada por uma pessoa especialmente negligente, uma vez que a grande maioria das pessoas não procederia da mesma forma. Ou seja, a que consiste em não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos, em princípio adotam.
Em suma, a culpa grave apresenta-se assim como uma situação de negligência grosseira, “nimia” ou “magnata negligentia”.
Ora, analisando à luz de tais conceitos o comportamento tido pela insolvente/apelante, temos de concluir que a mesma agiu, senão dolosamente, pelo menos agiu com culpa grave ou negligência grosseira, pois considerando o objetivo e as finalidades do incidente de exoneração do passivo restante peticionado pela mesma, a conduta de total inconsideração pelas solicitações feitas pelo Tribunal levada a cabo pela mesma só seria suscetível de ser tomada por uma pessoa especialmente negligente, uma vez que a grande maioria das pessoas, naquela situação, seguramente não procederia da mesma forma. Em suma, é manifesto que a insolvente/apelante se revelou pessoa alheia àquele princípio da boa-fé que tem de se revelar subjacente a quem se encontre em situação de insolvência e pretenda um “fresh start” na sua vida económico-financeira.
Assim sendo, nenhuma censura nos merece a decisão tomada em 1.ª instância ao indeferir liminarmente o requerimento de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente/apelante, com fundamento na al. g) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE.
Improcedem as conclusões da apelante, havendo de se confirmar a decisão recorrida.

Sumário:
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IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela insolvente/apelante.

Porto, 2024.07.10
Anabela Dias da Silva
Fernando Vilares Ferreira
Maria Eiró