Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA | ||
Descritores: | PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO PLANO DE PAGAMENTOS PRINCÍPIO DA IGUALDADE DOS CREDORES PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE | ||
Nº do Documento: | RP202407107961/23.0T8VNG.P1 | ||
Data do Acordão: | 07/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I – A aplicação do artigo 216.º, n.º 1, al. a), do CIRE pressupõe um juízo de prognose, de comparação daquilo que o plano prevê para o credor que solicita a não homologação do plano com o que resultaria para este credor se nenhum plano fosse aprovado, assente numa análise casuística dos dados concretos carreados para os autos. II – O artigo 194.º do CIRE, que consagra e regula o princípio da igualdade entre os credores, configura uma norma imperativa, cuja violação consubstancia um vício não negligenciável, para os efeitos do artigo 215.º do CIRE. III – Aquele artigo não impõe uma absoluta igualdade de tratamento de todos os credores, abrindo espaço para uma discriminação positiva, desde que a diferenciação esteja justificada por razões objectivas. IV – Podem constituir fundamentos objectivos de diferenciação dos credores a distinta classificação dos seus créditos, maxime a distinção entre créditos comuns e créditos privilegiados e/ou garantidos, e a finalidade visada com a contracção desses créditos, sendo, assim, razoável tratar de forma diferente o crédito hipotecário contraído para a aquisição de habitação e o crédito comum contraído para a aquisição de bens de consumo. V – Em qualquer o caso, a concreta diferenciação dos créditos deve respeitar os princípios da proporcionalidade e da proibição do arbítrio ínsitos no artigo 194.º do CIRE, sob pena de violação desta norma. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 7961/23.0T8VNG.P1 Acordam no Tribunal da Relação do Porto I. Relatório AA, residente na Rua ..., Apartamento ..., ... ..., intentou o presente processo especial para acordo de pagamento (PEAP), ao abrigo do disposto nos artigos 222.º-A e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), tendo em vista estabelecer negociações com os seus credores de modo a concluir com estes um acordo de pagamento. Recebido o requerimento e nomeado administrador judicial provisório (AJP), foi apresentada lista provisória de créditos, que não foi objecto de qualquer impugnação. Concluídas as negociações, em 23.02.2024 0 requerente remeteu ao tribunal o acordo de pagamento, tendo sido publicada no portal Citius em 26.02.2024 a junção desse plano. Manifestaram o seu desacordo, nos termos do artigo 222.º-F do CIRE, os credores A..., Unipessoal, Lda. (no próprio dia 26.02.2024) e Banco 1..., S.A. (em 07.03.2024), alegando ambos que a sua situação é claramente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, acrescentando o segundo dos referidos credores que o conteúdo do plano viola os princípios da igualdade dos credores e da boa-fé. Votou a favor do plano o credor Banco 2..., S.A., cujo crédito representa 58,40% do total dos créditos. Votaram contra os credores A..., Unipessoal, Lda. e Banco 1..., S.A., cujos créditos representam 41,44% do total (respectivamente 27,53% e 13,91%). Absteve-se o credor B..., S.A., cujo crédito representa 0,15% do total dos créditos. Foi proferida sentença que considerou aprovado o acordo de pagamentos, mas recusou a sua homologação. * Inconformado, o requerente apelou desta sentença, apresentando a respectiva alegação, que termina com as seguintes conclusões:«1. Não podem os ora recorrentes conformar-se com a decisão do Tribunal “a quo” (sentença proferida nos autos com refª 458170098). 2. A nossa discordância funda-se em aspectos sobre factos e em questões de direito que serviram de fundamento à douta sentença proferida, que recusou a homologação do Acordo de Pagamento. 3. O recurso merece provimento por parte de V. Exas. 4. O Tribunal ao apreciar e decidir a matéria constante do pedido fez errada interpretação da matéria de facto e aplicação da Lei, chegando a conclusões ininteligíveis. 5. Não corresponde à verdade que a situação dos credores ao abrigo do plano é manifestamente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano. 6. Ficou expressamente consagrado e alegado nos autos, no plano encontra-se plasmada a comparação entre o cenário de insolvência/liquidação e o cenário de aprovação do presente plano, resultando a aprovação e homologação do plano mais favorável (também) para os credores comuns. 7. Carecendo de qualquer sentido a afirmação de que o apartamento seria vendido no processo executivo n.º 17905/18.5T8PRT por € 112.682,50 8. Na verdade, a venda judicial não se concretizou, pelo que havia apenas uma expectativa de que o valor de aquisição do imóvel fosse por € 112.682,50. 9. Nada garantindo que o maior proponente, ao tomar conhecimento do estado do imóvel viesse a desistir da compra, como não raras vezes acontece em vendas judiciais. 10. Pois que, apesar de se desconhecer a identidade do maior proponente, sabe o Devedor que o mesmo “comprou sem ver”, já que este não visitou o imóvel. 11. E isto porque o Devedor apenas recebeu duas visitas por parte de interessados, os quais no decurso da visita lhe disseram que o valor base do leilão estaria bastante inflacionado dadas as características que acabavam de verificar do apartamento, e por esse motivo, não iriam apresentar proposta. 12. Não nos olvidemos que o imóvel em questão corresponde a um T1 com 56m2. 13. Ou seja, comprar o apartamento por € 112.682,50., seria comprar o m2 pelo valor de € 2 012.18, o que nos parece manifestamente excessivo. 14. Não esquecer que o valor patrimonial do imóvel é de € 42.939,50. 15. Como se sabe, o valor patrimonial é o valor real que o estado atribui aos imóveis, sendo a avaliação estatal realizada em 2022, ou seja, sendo a mesma bastante recente. 16. Ainda que tenha havido flutuações de mercado desde 2022 até ao presente, não nos parece legitimo afirmar que possamos estar perante um incremento patrimonial de € 69 743,00. 17. Por estar de boa fé, e precisamente para precaver as eventuais flutuações de mercado, é que o devedor afirmou, no plano que o valor de venda poderia atingir os € 50.000,00, ao invés dos € 42.939,50: 18. Assim, e mesmo prevendo uma acentuada valorização de mercado entre 2022 e o presente, forçados somos a concluir que o imóvel jamais poderia valer € 112.682,50. 19. Forçados somos também a concluir que o motivo de ter havido essa proposta se ficou a dever ao facto de o interessado não se ter inteirado devidamente das características do imóvel, por não o ter visitado. 20. Assim, contas feitas, o montante dos créditos do credor garantido e credores privilegiados é de € 59 230.38, pelo que facilmente se vislumbra que em caso de insolvência do Devedor NADA receberiam os credores comuns. 21. Como bem ensina o Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão - Juiz 4, no âmbito do processo n.º 492/21.4T8VNF, proferida em 22.06.2021: “Em abstracto, qualquer plano de pagamentos traz desvantagens para os credores na medida em que propõe que estes recebam os seus créditos de forma não imediata, como têm direito, mas em prestações, por vezes com carência de pagamento e por vezes com perdões parciais de capital e/ou juros.” – sublinhado e negrito nosso. 22. Pelo que deverá ser a vontade da maioria dos credores e não da Banco 1... e da A... que deverá prevalecer.. 23. Note-se, senhores desembargadores que a sentença proferida é prejudicial também para os restantes credores, pelo menos os comuns! 24. E isto porque, na ausência do plano, e em sede de um processo de insolvência NENHUM dos credores comuns receberá absolutamente NADA! 25. Ao passo que com a aprovação do plano, a Banco 1... receberá € 992.62; A... receberá € 2 068.28; a B..., S.A. receberá € 30.23. 26. Assim, a decisão recorrida está a privar os credores comuns de receberem um bolo global de € 3091.13, pelo que é notória a injustiça que a mesma reveste tanto para os Devedores, como para a globalidade dos credores. 27. Atente-se ainda, Senhores Desembargadores que o crédito da Banco 1... se compõe de 1 174,61 € de capital e de 26 749.2 € de juros e despesas (!!!). 28. Fazendo, por esse motivo, a Banco 1... um uso manifestamente reprovável do processo, pois reclama uma quantia exorbitante de juros. 29. Não correspondendo à verdade que a situação dos credores ao abrigo do plano é manifestamente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano. 30. Também não é verdade que tenha havido violação do princípio da igualdade, porquanto na verdade, são permitidas execpções ao princípio da igualdade, desde que devidamente fundamentadas. 31. E tais excepções estão descritas e previstas no plano: 32. Os créditos garantidos gozam de garantias reais, a saber, hipotecas, sobre a casa de morada de família dos devedores, o que lhe confere prioridade no pagamento do produto da venda deste bem. 33. Como se refere no acórdão da Relação do Porto, de 09.12.2014, in www.dgsi.pt, “Aqui, estão em causa as normas que se reportam ao dispositivo do plano de recuperação, bem como aos princípios que lhe devem estar subjacentes. No caso que nos interessa, a norma pertinente é a prescrita no art. 194º, nº 1, que consagra um princípio de igualdade entre os credores, nos termos seguintes: “O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas” 34. São, assim, justificadas diferenciações entre credores desde que a solução proposta pelos devedores para os respetivos créditos que, em confronto com os de igual natureza e qualidade, são tratados de forma igualitária e quando para nenhum dos credores decorra do plano uma desvantagem económica superior à que, mantendo-se idênticas as circunstâncias do devedor, resultaria do processo de insolvência. 35. Como é consabido, o processo especial para acordo de pagamento é um processo de cariz marcadamente voluntário e extrajudicial, em que se privilegia o controlo pelos credores, restringindo o controlo jurisdicional à gestão processual. 36. No presente caso, os credores decidiram, em sede de votação, aprovar o plano apresentado, exercendo, dessa forma, o controlo legal que lhes incumbe. 37. Pelo que não poderia, por uma razão de justiça e cumprimento da legalidade, o douto tribunal sobrepor-se à vontade da maioria dos credores e decidir, unilateralmente, pela não homologação do plano, como supra melhor ficou demonstrado. 38. Por conseguinte requer-se que seja revogada a decisão e sua substituição por outra que, homologue o plano aprovado por maioria de credores. 39. Por conseguinte requer-se que seja revogada a decisão e sua substituição por outra que, homologue o plano aprovado por maioria de credores». * A credora Banco 1..., S.A. apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:«1. A recorrida alegou e demonstrou que o leilão judicial da fração autónoma designada pela letra “C”, correspondente a uma habitação, do tipo T1, situada na cave do corpo A, designada por 00.3, com lugar de garagem na subcave, com entrada pelo n.º ... da Rua ..., do Meio, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ... da União de Freguesias ... e ... do concelho de Vila Nova de Gaia e descrito na CRP com o n.º ..., ocorrido no âmbito do mencionado processo executivo para a venda terminou, com uma proposta de aquisição de 112.682,50€. 2. O recorrente, notificado da alegação da recorrida quanto ao valor que o imóvel atingiu no referido leilão, nada disse, pelo que não o poderá fazer em sede de recurso. 3. Assim, considerando o referido valor de mercado do imóvel de €112.682,50 o plano de pagamentos é menos favorável do que a que ocorreria na ausência de qualquer plano, em cenário de liquidação, uma vez que, como demonstrado, o referido património é suficiente para o pagamento da totalidade dos créditos, se liquidados em processo executivo ou em processo de insolvência. 4. Sem conceder, ainda que se considere que o produto da venda será apenas suficiente para liquidar o crédito hipotecário, considerando que o recorrente aufere o vencimento líquido de 2000€, mensais, como Agente Principal da PSP, em caso de insolvência, se lhe for concedida a exoneração do passivo restante, durante os três anos do período, este entregará à fidúcia, considerando um rendimento disponível de 1 SMN, cerca 40.000€ [(2000€-820€)x36meses], valor que permitirá liquidar cerca de 90% dos créditos comuns. 5. No caso de não lhe ser concedida a final, a exoneração do passivo restante, os credores, após o encerramento do processo, os credores poderão sempre lançar mão do processo executivo, para cobrar os créditos não satisfeitos com o processo de insolvência com a penhora do seu vencimento. 6. Assim, sem conceder, considerando apenas o vencimento auferido pelo recorrente, a situação dos credores comuns ao abrigo do plano de pagamentos é menos favorável do que a que ocorreria na ausência de qualquer plano, em cenário de liquidação, uma vez estes rendimentos são claramente suficientes para o pagamento da totalidade dos créditos, se liquidados em processo executivo ou em processo de insolvência. 7. A matéria das conclusões 4 a 6, apesar de alegada no requerimento para a não homologação do plano, não foi tomada em conta na douta sentença recorrida, pelo que, caso se conclua que o produto da venda será apenas suficiente para liquidar o crédito hipotecário, como defende o recorrente, a apreciação da primeira questão deverá ter em conta este trecho do mencionado requerimento, omitido na douta sentença recorrida, nesta sede. 8. O simples facto de o credor hipotecário beneficiar de um crédito garantido sobre a casa de morada de família do devedor, não pode ser razão para um tratamento tão díspar, que reduz os créditos comuns praticamente a uma insignificância, por comparação ao seu real valor, em que o credor garantido, mantém a totalidade do seu crédito de capital e juros, enquanto os outros, os credores comuns, recebem apenas recorrida 7,3% (sete, virgula, 3 por cento!!!) o equivalente a 1,5 meses de vencimento do recorrente. 9. É uma diferença demasiado grande, que não se justifica pela diferente natureza dos créditos e que põe em causa o equilíbrio e a igualdade entre todos os credores, pelo que o plano viola o princípio da igualdade entre credores. 10. Termos em que, o recurso deverá ser julgado improcedente confirmando-se a douta sentença recorrida, como é de JUSTIÇA». * II. Objecto do RecursoO objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal). Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, importa decidir se o plano de revitalização apresentado pela devedora deve ser homologado, nomeadamente por não colocar os credores comuns numa situação previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano e por não violar o princípio da igualdade dos credores. * III. FundamentaçãoA. Os Factos A factualidade relevante para a apreciação deste recurso corresponde às ocorrências processuais descritas no relatório deste aresto, relevando ainda o teor do Acordo de Pagamento junto aos autos em 23.02.2024, que aqui se dá por integralmente reproduzido, nomeadamente a parte que a seguir se transcreve: «(…) CRÉDITOS GARANTIDOS: Quanto ao Crédito Hipotecário do Banco 2..., SA, propõe-se o alargamento do prazo de contratação de 490 meses para 502 meses e a manutenção das demais condições contratuais. CRÉDITOS COMUNS: I. Os créditos dos restantes credores vencidos, à data de trânsito em julgado, da sentença de homologação do plano, correspondendo, o mesmo, ao montante de 20% do capital reclamado e reconhecido na Lista de Créditos. II. Perdão de 80% do capital reclamado e reconhecido na Lista de Créditos. III. Perdão total de juros vencidos e vincendos; IV. A Amortização integral do capital em dívida será em 120 (cento e vinte) prestações, mensais e sucessivas, de igual valor, vencendo-se a primeira prestação, até ao final do mês seguinte após o trânsito em julgado. V. Extinção de todas as ações suspensas, com a aprovação e homologação do plano ora proposto, conforme previsto pelo nº1 do artigo 222.º-E do C.I.R.E. Excepção ao Princípio da Igualdade dos Credores A aprovação do presente plano equivale à declaração de aceitação dos credores garantidos, privilegiados e comuns, quanto à forma de liquidação dos respetivos créditos, bem como quanto às justificações apresentadas para a sua diferenciação, nos termos previstos no nº. 2 do art.º 194º do CIRE. Esta norma procura evidenciar o princípio da igualdade, traduzido no tratamento do que é igual de forma semelhante e o que é desigual de forma desigual na proporção da desigualdade. A possibilidade de estabelecer diferenciações entre credores, está dependente da existência de uma razão que o justifique. Os créditos privilegiados (IGFSS) obedecem a legislação específica. Os créditos garantidos gozam de garantias reais, a saber, hipotecas, sobre a casa de morada de família da devedora, o que lhe confere prioridade no pagamento do produto da venda deste bem. Como se refere no acórdão da Relação do Porto, de 09.12.2014, in www.dgsi.pt, “Aqui, estão em causa as normas que se reportam ao dispositivo do plano de recuperação, bem como aos princípios que lhe devem estar subjacentes. No caso que nos interessa, a norma pertinente é a prescrita no art. 194º, nº 1, que consagra um princípio de igualdade entre os credores, nos termos seguintes: “O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas”. Tem vindo a entendimento corrente, quer doutrinário, quer jurisprudencial que não se verifica tratamento discriminatório injustificado a solução proposta pelos devedores para os respetivos créditos que, em confronto com os de igual natureza e qualidade, são tratados de forma igualitária e quando para nenhum dos credores decorra do plano uma desvantagem económica superior à que, mantendo-se idênticas as circunstâncias do devedor, resultaria do processo de insolvência. Assim, reconhece-se a admissibilidade de planos de recuperação nos quais, estando a essência do património do devedor onerado com uma garantia real (v.g imóvel/hipoteca) o crédito em função da qual ela foi estabelecida tem um tratamento claramente mais favorável do que os demais créditos simplesmente comuns. De facto, face a estes créditos garantidos verifica-se uma circunstância objetivamente diferente, suscetível de justificar uma diferenciação de tratamento que não contende com o princípio da igualdade dos credores uma vez que o credor hipotecário se encontra sempre, numa situação privilegiada em relação aos demais, credores comuns, quando o devedor não seja proprietário de outros bens de idêntico valor e desonerados porque sempre seria pago com preferência sobre os demais credores - Cf. acórdão da RC, de 18.02.2020, processo nº 1369/19.9T8LRA.C1, in www.dgsi.pt. Assim, o princípio da igualdade não implica um tratamento absolutamente igual, impondo antes que situações objetivamente diferentes sejam tratadas de modo diferente. É precisamente a situação dos autos em que temos créditos garantidos por hipoteca, créditos privilegiados, créditos comuns. É certo que, como se refere no acórdão da Relação do Porto supracitado, “tal princípio de igualdade não pode ter-se por absoluto, não impondo necessariamente uma total identidade de tratamento entre créditos idênticos, tal como não permite toda e qualquer solução de tratamento diferenciado entre créditos de diversa natureza. Pelo contrário, os valores inerentes a esse princípio não podem deixar de induzir critérios de proporcionalidade, mesmo na diferença admissível entre as soluções encontradas para créditos de natureza igualmente diversa.” * B. O Direito 1. De harmonia com o disposto no artigo 222.º-F, n.º 5, do CIRE, nos 10 dias seguintes à recepção da documentação mencionada nos números anteriores, o juiz decide se deve homologar o acordo de pagamento ou recusar a sua homologação, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º. Os preceitos destes artigos 215.º e 216.º regulam a não homologação do plano de insolvência, em termos facilmente transponíveis para a não homologação do plano de pagamento aprovado no âmbito do PEAP. O artigo 215.º regula a não homologação oficiosa do plano, nos seguintes termos: O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação. Como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3.ª ed., 2015, p. 781), «normas procedimentais são, pois, todas aquelas que regem a atuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que lhe foram presentes (…). Normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as respeitantes à parte dispositiva do plano, mas além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deva contemplar». Em qualquer dos casos, apenas as violações não negligenciáveis das normas em causa justificam a não homologação do plano, como preceitua o artigo 215.º do CIRE. Citando de novo Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, «são não negligenciáveis, todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são desconsideráveis as infrações que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido», acrescentando os mesmos autores que importa, assim, «sindicar se a nulidade observada é susceptível de interferir com a boa decisão da causa, o que significa valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente no que respeita à tutela devida à posição dos credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta – tendo em conta o que é, apesar de tudo, livremente renunciável» (ob. cit., p. 782). Entre as normas relativas ao conteúdo do plano de recuperação inclui-se, entre outras, a do artigo 194.º do CIRE, que consagra e regula o princípio da igualdade entre os credores, reflexo da primazia que o CIRE veio conferir à satisfação dos direitos destes (mesmo no confronto com a protecção da empresa – cfr. ac. do TRG, de 10.04.2012, proc. n.º 2261/11.0TBBRG-E.G1, rel. Ana Cristina Duarte). Tratando-se de uma norma imperativa, a sua violação consubstancia um vício não negligenciável, para os efeitos do artigo 215.º do CIRE, como vem sendo entendido de forma unânime pela doutrina e pela jurisprudência (cfr., a título de mero exemplo, o ac. do TRC, de 26.04.2022, proc. n.º840/21.7T8ACB.C1, rel. Maria João Areias). Por sua vez, o artigo 216.º regula a não homologação a solicitação dos interessados, preceituando o seguinte no seu n.º 1: O juiz recusa ainda a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que: a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas; b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar. Por força do disposto no artigo 222.º-F, n.º 3, no âmbito do PEAP, o prazo para a solicitação da não homologação do plano, “nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 215.º e 216.º, com as devidas adaptações”, é de 10 dias a contar da publicação no portal Citius do anúncio advertindo da junção plano. No presente caso, como vimos, os credores A..., Unipessoal, Lda. e Banco 1..., S.A. manifestaram-se contra a aprovação do plano dentro do referido prazo. O Tribunal a quo decidiu não homologar o plano de pagamento apresentado pelo devedor, apesar de este ter sido aprovado pela maioria de credores exigida pela lei, por considerar, em essência, que (i) o mesmo coloca os referidos credores comuns numa situação menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano e (ii) o seu conteúdo viola o princípio da igualdade dos credores. É contra esta decisão que se insurge o recorrente, argumentando que não se verifica nenhum dos fundamentos invocados na decisão recorrida para a não homologação do plano. Importa, nestes termos, analisar cada um desses fundamentos. 2. Como dissemos, o Tribunal a quo decidiu não homologar o plano de recuperação aprovado por considerar que este colocaria os credores comuns numa situação previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano. A este respeito, diz-se o seguinte na decisão recorrida: «No plano, o devedor alega que o seu património se reduz ao seguinte imóvel: - Fração C, correspondente a uma habitação do tipo T1, situada na cave do corpo A, (…) com lugar de garagem na sub-cave (…). Alega que o valor patrimonial do imóvel é inferior ao crédito hipotecário, cifrando-se em cerca de € 42.000,00 e que se estima um valor de venda aproximado de € 50.000.00 euros (máximo). Alega ainda que, em caso de venda no âmbito de uma insolvência, nada sobraria para ratear pelos credores comuns. Ora, mostra-se deveras estranha esta alegação do devedor, pois resulta das alegações apresentadas pelo credor Banco 1..., SA (refª 38400356 de 7/3/2024) e das certidões juntas, que este imóvel foi penhorado no processo executivo nº 17905/18.5T8PRT, em que o devedor é executado; que imóvel esteve em venda, por leilão electrónico, no referido processo executivo, que ficou suspenso em face da entrada em juízo ao presente PEAP, requerido no dia 18/10/2023, ou seja, 6 dias antes do termo do leilão; que se não fosse o presente procedimento, que determinou a suspensão daqueloutro, o imóvel teria sido vendido no âmbito desse processo executivo pelo preço de 112.682,50€. Estas alegações mostram-se comprovadas pela certidão do imóvel e print de termo do leilão judicial online com o nº ..., penhorado no processo executivo 17905/18.5T8PRT, juntos a 7/3/2024 (refª 38400358). Não podemos, pois, deixar de concluir que, caso não tivesse proposto em juízo este PEAP, o imóvel do devedor teria sido vendido no âmbito do processo executivo pela quantia de 112.682,50€, valor bem superior ao valor total dos créditos reconhecidos de € 101.414,68. Assim, pagas as custas do processo executivo, é grande o juízo de probabilidade de que todos os credores vissem os seus créditos totalmente satisfeitos, pois o valor de venda do imóvel era suficiente para pagamento daquelas custas processuais e de todos os créditos reconhecidos neste processo. Em comparação, caso seja homologado este PEAP, os credores comuns receberão apenas 20% do seu crédito e em prestações mensais pelo período de 10 anos. Pensamos, pois, ser evidente que a situação dos credores ao abrigo do plano é manifestamente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano». A recorrente insurge-se contra estas conclusões, alegando que: a venda judicial não se concretizou, pelo que havia apenas uma expectativa de que o valor de aquisição do imóvel fosse por € 112.682,50; nada garantia que o maior proponente, ao tomar conhecimento do estado do imóvel, viesse a desistir da compra, como não raras vezes acontece em vendas judiciais, tanto mais que não visitou o imóvel e que os dois únicos interessados que o visitaram afirmaram ao devedor que o valor base do leilão estava bastante inflacionado, dadas as características do apartamento, razão pela qual não iriam apresentar proposta; trata-se de um T1 com 56 m2, pelo que o preço de 112.682,50 € corresponde a 2.012.18/m2; o valor patrimonial do imóvel é de 42.939,50 €, sendo este o valor que o Estado lhe atribuiu em 2022, pelo que, mesmo considerando uma acentuada valorização de mercado entre 2022 e o presente, o imóvel jamais poderia valer 112.682,50 €. Nestes termos conclui que, sendo o montante dos créditos do credor garantido de 59 230.38 €, em caso de insolvência do devedor nada receberiam os credores comuns, ao passo que, com a aprovação do plano, a Banco 1... receberá 992,62 €, a A... receberá 2.068,28 € a B..., S.A. receberá 30,23 €. O juízo que o artigo 216.º, n.º 1, al. a), do CIRE pressupõe, exige uma análise casuística, assente nos dados concretos carreados para os autos. Como escreve Maria do Rosário Epifânio a propósito desta norma (Manual de Direito da Insolvência, Almedina, 2022, 8.ª ed., p. 390), citando Luís Carvalho A. Fernandes e João Labareda, «[t]rata-se de uma hipótese que impõe um juízo de prognose (prognoseentscheidung), muitas vezes complexo, segundo o qual se deve comparar o que o plano prevê para o reclamante com o que para ele resultaria se nenhum plano fosse aprovado (ou seja, se ocorresse a liquidação universal do património do devedor, de acordo com a tramitação supletiva do processe de insolvência)». Citando igualmente Luís Carvalho A. Fernandes e João Labareda, a decisão recorrida acrescenta que «[r]elativamente aos credores, isto reconduz-se a cotejar quanto recebem com o plano e quanto se estima que receberiam sem ele». No caso em análise, sabemos qual é o valor máximo que os credores que se opuseram à homologação do plano poderão receber no caso de este ser efectivamente homologado. No que respeita à Banco 1..., S.A., esse valor máximo ascenderia a 992,62 €, isto se admitirmos que os “20% do capital reclamado e reconhecido na Lista de Créditos” a que se refere o plano incidem não apenas sobre o valor mencionado nesta lista como “Capital” (1.174,61 €), mas também sobre o valor aí indicado como “Despesas” (3.788,47 €), como parece entender o próprio devedor (cfr. conclusão 25 da sua alegação), embora a letra do plano não seja nada clara a esse respeito. No caso contrário, o valor máximo a receber ascenderia apenas a 234,92 €. O pagamento seria sempre feito em 120 prestações mensais, no valor individual de 8,27 € (ou 1,96 €, se atendermos apenas a 20% de 1.174,61 €). No que concerne à sociedade A..., Unipessoal, Lda., o valor máximo a receber com a homologação do plano seria de 2.068,28 €, correspondestes a 20% do capital em dívida, em 120 prestações mensais no valor de 17,24 € cada. Por sua vez, B..., S.A. receberia 30,23 €, a pagar em 120 prestações mensais de 0,25 €. No caso de não ser homologado plano, o recorrente afirma que aqueles credores nada receberão, ao passo que o credor Banco 1..., S.A. afirma que verão os seus créditos satisfeitos na totalidade. Mas enquanto este credor baseia a sua conclusão em dados concretos demonstrados nos autos, igualmente invocados na decisão recorrida, aquele recorrente fundamenta-se em meras hipóteses indemonstradas. O busílis da questão reside no valor do património do devedor e, por conseguinte, na sua suficiência para assegurar o pagamento dos créditos comuns dos dois credores que solicitaram a não homologação do plano (com os valores totais de 27.923,81 € e 14.109,33 €), mesmo depois de pagos os créditos garantidos por hipoteca do credor Banco 2..., S.A. (no valor total de 59.165,36 €), tendo ainda em conta que existem mais dois créditos comuns, um do credor B..., S.A. (no valor de 151,16 €) e outro do já referido Banco 2..., S.A. (no valor de 65,02 €). Para além do seu salário enquanto agente da PSP, parcialmente penhorável (e cuja penhora poderia garantir, por si só, um valor superior aos cerca de 25,00 € que o plano aprovado concede mensalmente aos dois credores que a ele se opuseram), o devedor é titular do imóvel onerado com a já aludida hipoteca. Embora o recorrente afirme que o valor deste não excede os 50 mil euros, a proposta de aquisição desse imóvel, apresentada nos autos de execução que a Banco 1..., S.A. moveu contra o devedor, revela ser muito provável que o seu valor de mercado ascenda a cerca de 112 mil euros, pois foi esse o valor da maior proposta de compra apresentada no leilão electrónico ali promovido, nada nos permitindo afirmar ou, sequer, equacionar que esta proposta não se fosse concretizar. Alega agora o recorrente que o proponente não visitou o imóvel previamente e que, ao verificar as suas características, poderia desistir da compra. Mas a verdade é que, para além de presumir uma indemonstrada ingenuidade do proponente (note-se que o anúncio do leilão electrónico junto aos autos, que o recorrente não questionou, contém todos os elementos identificativos do imóvel, inclusivamente a descrição predial, a inscrição matricial, a localização e as dimensões do mesmo), nenhuma prova apresentou desta alegação, tal como nenhuma prova apresentou do valor de mercado do imóvel. A este respeito limitou-se a invocar o valor patrimonial do mesmo. Mas é consabido que este valor é atribuído pela Autoridade Tributária, com base em critérios pré-definidos, tendo em vista a tributação do património imobiliário, não reflectindo necessariamente o valor de mercado dos bens imóveis. O valor de mercado é aquele que os potenciais compradores estiverem dispostos a pagar pela sua aquisição, ainda que se possa considerá-lo excessivo ou irracional, dependendo de um vasto leque de variáveis, muito distintas dos critérios que servem de base à avaliação dos Serviços de Finanças, estando aquele valor de mercado naturalmente sujeito a maiores flutuações do que este valor tributário. É, igualmente, do conhecimento comum que o mercado imobiliário, em especial nos grandes centros urbanos, não registou nos últimos anos qualquer descida dos preços que nos leve a considerar desactualizado o valor proposto na referida execução. Refira-se ainda que, mesmo que o proponente não mantenha/não reitere a proposta que apresentou e que, seja na mesma execução ou num eventual processo de insolvência, não surjam propostas de valor superior ao valor base anunciado naquele leilão, de 75 mil euros, ainda assim todos os créditos comuns seriam satisfeitos, depois de pagas as custas e o credor hipotecário, numa proporção superior à que o plano de pagamento propõe. Pelas razões expostas, impõe-se acompanhar a conclusão do Sr. Juiz a quo, de que a situação dos credores ao abrigo do plano é manifestamente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano. Este facto não constitui um fundamento de não homologação oficiosa do plano, enquadrável no artigo 215.º do CIRE, podendo apenas configurar um fundamento de não homologação a solicitação dos interessados, nos termos e nas condições previstas no artigo 216.º do mesmo código. Tais condições estão verificadas no caso concreto, visto que a não homologação do plano de recuperação foi solicitada pelos dois credores que manifestaram nos autos a sua oposição a essa homologação no prazo legalmente previsto para esse efeito, tendo os mesmos demonstrado em termos plausíveis que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, nos termos anteriormente expostos. 3. A segunda razão invocada pelo tribunal a quo para a não homologação do plano de pagamento prende-se, como vimos, com a circunstância de o seu conteúdo violar o princípio da igualdade entre os credores, previsto no artigo 194.º do CIRE. Dispõe assim este artigo 194.º: 1 – O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas. 2 – O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável. 3 – É nulo qualquer acordo em que o administrador da insolvência, o devedor ou outrem confira vantagens a um credor não incluídas no plano de insolvência em contrapartida de determinado comportamento no âmbito do processo de insolvência, nomeadamente quanto ao exercício do direito de voto. Por sua vez, o artigo 196.º, n.º 1, do mesmo código acrescenta que o plano de insolvência pode, nomeadamente, conter as seguintes providências com incidência no passivo do devedor: a) O perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, com ou sem cláusula «salvo regresso de melhor fortuna»; b) O condicionamento do reembolso de todos os créditos ou de parte deles às disponibilidades do devedor; c) A modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos; d) A constituição de garantias; e) A cessão de bens aos credores. Estas normas consagram, sem qualquer equívoco, a possibilidade de o plano prever a alteração, a redução ou a extinção de créditos sobre o devedor, independentemente da sua natureza ou da qualidade dos seus titulares, desde que tais medidas não violem o princípio da igualdade plasmado no artigo 194.º ou as demais regras consagradas no título IX. Ao dispor que o plano obedece ao princípio da igualdade dos credores, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas, o n.º 1 deste artigo 194.º consagra uma dimensão material do princípio da igualdade, pondo em evidência as duas vertentes que o caracterizam: a necessidade de tratar do mesmo modo o que é semelhante e de tratar de modo diferenciado o que é distinto. Isto, sem prejuízo da possibilidade de os credores atingidos pela violação do princípio da igualdade darem a sua anuência, nos termos previstos no n.º 2, do mesmo artigo 194.º. Como se escreve no ac. do TRC de 26.04.2022, já antes citado, «os credores não têm de ser tratados todos da mesma maneira, abrindo-se espaço para uma discriminação positiva, fundada em específicos fatores de diferenciação, dentro dos quais se poderão contar a data da constituição, a fonte ou a proveniência do crédito e o respetivo montante, desde que a diferenciação se revele materialmente fundada. A proibição da violação do principio da igualdade não significa uma situação de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenças de tratamento, apenas impedindo que o tratamento diferenciado se funde em fatores de diferenciação ilegítimos ou outros que que “se apresentem contrários à dignidade humana, incompatíveis com o princípio do Estado de direito democrático, ou simplesmente arbitrários ou pertinentes”.» Em consonância com o exposto, a jurisprudência dos tribunais superiores vem defendendo de forma consistente que haverá violação do princípio da igualdade sempre que o plano preveja o tratamento desfavorável de um ou mais credores em relação aos restantes e essa diferenciação não esteja justificada por razões objectivas (cfr. ac. do TRL, de 27.10.2020, proc. n.º 27086/19.1T8LSB.L1-1, rel. Manuela Espadaneira Lopes). Neste sentido, refere-se o seguinte no ac. do TRE, de 24.05.2018, citado no referido aresto do TRL (referindo-se ao plano de revitalização ou ao plano de insolvência, mas sempre em termos aplicáveis ao plano de pagamento no âmbito do PEAP): «Relativamente ao sentido e alcance do princípio da igualdade dos credores consagrado no art. 194.º do CIRE, a jurisprudência que vem sendo consolidada pelos Tribunais Superiores assenta, designadamente e no que aqui importa salientar, nos seguintes vetores: - estabelecendo o plano de revitalização do devedor diferenciações entre os credores, é necessário que nele se justifique o diferente tratamento, com a indicação das razões objetivas que lhe estão subjacentes; [Ac. STJ de 24/11/2015 (José Rainho)] - necessário se torna, desde logo, justificar no próprio plano o diferente tratamento, com a indicação das razões objetivas para essa diferença; [Ac. STJ de 08/10/2015 (Júlio Gomes), processo n.º 1898/13.8TYLSB.S1] - o princípio da igualdade dos credores não proíbe ao plano de insolvência que faça distinções entre eles; proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objetivos relevantes; [Ac. TRC de 01/04/2014 (Henrique Antunes).] - a simples menção de que existe necessidade do devedor vir a ser apoiado financeiramente no futuro pelas instituições financeiras credoras, não constitui razão objetiva justificadora da desigualdade de tratamento estabelecido no plano, quando tal menção não está acompanhada de uma vinculação efetiva, concreta e programada de apoio por parte dessas instituições financeiras; [Ac. STJ de 24/11/2015 (José Rainho)]. - o carácter estratégico de alguns credores é insuficiente para derrogar o princípio da igualdade dos credores de uma mesma classe quando faz recair sobre alguns deles, de forma desproporcionada, as perdas, ou seja, quando a revitalização do devedor é conseguida à custa do sacrifício grave ou severo de apenas alguns dos credores da mesma classe; [Ac. TRC de 17/03/2015 (Henrique Antunes)]. - a finalidade visada com a contração do crédito (crédito contraído para aquisição de habitação vs. crédito contraído para aquisição de bens de consumo) pode relevar para estabelecer diferenciação de tratamento no plano; [Ac. TRC de 01/04/2014 (Henrique Antunes).] - ainda que alguma diferenciação se justifique, importa atentar na razoabilidade e no carater proporcional da diferenciação imposta pelo plano; [Ac. STJ de 24/11/2015 (José Rainho)]. - as diferenciações entre credores não podem radicar na própria necessidade de aprovação do plano; pelo contrário, é este que, na sua substância, tem que respeitar, tanto quanto possível, o princípio da igualdade entre os credores. [Ac. TRP de 14/05/2013 (Vieira e Cunha)]. Impõe-se, pois, tratar de forma idêntica todos os credores, mas levando em linha de conta a qualidade, natureza e finalidade dos respetivos créditos». No caso concreto, a desigualdade do tratamento dispensado aos créditos garantidas e aos créditos comuns é manifesta: quanto aos créditos do Banco 2..., S.A. garantidos por hipoteca é apenas proposto «o alargamento do prazo de contratação de 490 meses para 502 meses», mantendo-se as demais condições contratuais, onde naturalmente se inclui o pagamento de juros remuneratórios relativamente a este alargamento; já quanto aos créditos comuns é proposto um perdão total dos juros vencidos e vincendos, uma redução de 80% do capital e o pagamento dos 20% remanescentes em 120 prestações mensais, vencendo-se a primeira até ao final do mês seguinte após o trânsito em julgado da sentença homologatória do plano e a última 10 anos depois, sem pagamento de juros ou qualquer outra compensação. É, assim, patente que o plano não distribui as perdas entre todos credores, antes fazendo recair essas perdas exclusivamente sobre uma classe específica de credores – os credores comuns. Esta derrogação do princípio da igualdade é expressamente assumida no plano em causa e aí justificada na circunstância de os créditos garantidos gozarem de hipotecas sobre a casa de morada de família do devedor, o que lhe confere prioridade no pagamento do produto da venda deste bem (para além desta circunstância, o plano faz apenas referência a créditos privilegiados do IGFSS, o que certamente se deve a um lapso, e a diversa doutrina e jurisprudência sobre este assunto). Não se questiona que a diferente natureza e a diferente finalidade dos créditos em causa justificam diferenças de tratamento. Como se escreve no já citado ac. do TRC, de 01.04.2014, (proc. n.º 3330/13.8TBLRA-A.C1), «[u]m fundamento objectivo – porventura o mais claro – de diferenciação dos credores é precisamente a distinta classificação dos créditos da insolvência, designadamente a que os separa em comuns e privilegiados. Outra razão objectiva, razoável, susceptível de justificar diferença tratamento, é, por exemplo, a fonte dos diversos créditos ou a finalidade visada com a contracção de um e de outros. Realmente parece razoável tratar de forma diferente o crédito contraído para aquisição de habitação e o crédito assumido para aquisição de bens de consumo». Assim, como se acrescenta no mesmo acórdão, em termos inteiramente transponíveis para a situação em apreço nestes autos, «tendo em conta que o bem mais revelante do património dos devedores é constituído pela casa de habitação onerado por aquela garantia real, aquele credor [hipotecário] encontrar-se-á sempre numa situação privilegiada no tocante a todos os demais credores, dado que estes são simples credores comuns e os devedores não são titulares de outros de valor relevante. Por esse motivo, aquele credor sempre será pago com preferência sobre todos os outros. É, portanto, possível identificar um fundamento racional e objectivo justificador da distinção entre os credores, patente no plano de recuperação». Porém, como se adverte no ac. do TRP, de 09.12.2014 (proc. n.º 166/14.2TJPRT.P1), citado no próprio plano, o «princípio de igualdade não pode ter-se por absoluto, não impondo necessariamente uma total identidade de tratamento entre créditos idênticos, tal como não permite toda e qualquer solução de tratamento diferenciado entre créditos de diversa natureza. Pelo contrário, os valores inerentes a esse princípio não podem deixar de induzir critérios de proporcionalidade, mesmo na diferença admissível entre as soluções encontradas para créditos de natureza igualmente diversa». No mesmo sentido, acrescenta-se o seguinte no ac. do STJ, de 25.03.2014 (proc. n.º 6148/12.1TBBRG.G1.S1): «A parte final do art. 194º, nº1, do CIRE foi ditada por razões de ordem pública convocando o princípio constitucional da proporcionalidade. Como ensina Jorge Reis Novais, in “Os Princípios Estruturantes da República Portuguesa”, pág. 171: “…Por sua vez, a observância ou a violação do princípio da proporcionalidade dependerão da verificação da medida em que essa relação é avaliada como sendo justa, adequada, razoável, proporcionada ou, noutra perspetiva, e dependendo da intensidade e sentido atribuídos ao controlo, da medida em que ela não é excessiva, desproporcionada, desrazoável. Nesta aproximação de definição podem intuir-se, em primeiro lugar, a relativa imprecisão e fungibilidade dos critérios de avaliação; em segundo lugar, o permanente apelo que eles fazem a uma referência axiológica que funcione como terceiro termo na relação e onde está sempre presente um sentido de justa medida, de adequação material ou de razoabilidade, por último, a importância que nesta avaliação assumem as questões competenciais, mormente o problema da margem de livre decisão ou os limites funcionais que vinculam legislador, Administração e juiz.”». Estando justificada, no caso concreto, a diferença de tratamento entre os créditos garantidos por hipoteca sobre a casa de habitação do devedor e os demais créditos, todos comuns, importa verificar a concreta diferenciação prevista no plano aprovado (apenas pelo credor garantido, cujos créditos corresponde a mais de 50% da totalidade) viola o princípio da proporcionalidade e da proibição do arbítrio, que o próprio artigo 194.º do CIRE tem pressupostos e que, de resto, norteiam o exercício de quaisquer direitos e deveres. No acórdão do TRC acima citado, que versava sobre um plano que previa o pagamento de 30% dos créditos comuns em 96 prestações mensais e o pagamento de 100% do único crédito garantido, com a manutenção do prazo e condições contratadas, o tribunal considerou não haver violação do princípio da proporcionalidade, sendo certo que este crédito era o de maior valor e que a garantia (hipoteca) onerava a casa de habitação dos devedores, que correspondia ao bem mais revelante do seu património. No acórdão do TRP antes citado, que versava sobre um plano que previa a manutenção do crédito hipotecário e das demais condições contratadas, ressalvando apenas um período de carência de 12 meses, e que previa, quanto aos créditos comuns, o perdão total dos juros vencidos e vincendos, a redução em 90% do capital e o pagamento dos 10% remanescentes em 120 prestações mensais, o tribunal considerou haver violação do princípio da proporcionalidade, sendo certo que também neste caso o crédito garantido era o de maior valor, representando de cerca de 82% da totalidade dos créditos, e que a hipoteca onerava o bem mais revelante do património da sociedade devedora, mas não estava naturalmente em questão a casa de habitação. O caso em apreço aproxima-se mais deste último, ainda que verse sobre um crédito para aquisição de casa de habitação, como sucedia no primeiro. Não obstante esta diferença, impõe-se concluir, como no citado acórdão do TRP, que «no plano de pagamento proposto, não só se prevê a satisfação integral desse crédito [hipotecário] e respectivos juros, a par da manutenção da garantia, como se lhe adiciona um novo privilégio: a quase completa anulação das outras dívidas dos devedores liberta os seus rendimentos, assim melhor garantindo a satisfação do único crédito que sobrevive», sendo certo que este “privilégio” «é constituído pelo império da vontade» do próprio credor hipotecário. No caso dos autos, a quase anulação do crédito da Banco 1..., S.A. é levada a um patamar superior, visto que o valor reconhecido de 27.923,81 € era composto por 22.960,73 € de juros, integralmente perdoados em caso de homologação do plano, restante apenas 1.174,61 € de capital e, eventualmente (pois o plano não é claro a este respeito), 3.788,47 € referentes a despesas, prevendo o plano o pagamento de apenas 20% destes montantes ao longo de 10 anos. E não se argumente, como faz o recorrente, que a reclamação daquela quantia exorbitante de juros traduz um uso manifestamente reprovável do processo, pois aquele não questionou o crédito assim reclamado no momento próprio, não sendo esta a sede para o fazer. Assim, como vimos anteriormente, com a homologação do plano, o devedor ficaria obrigado a entregar mensalmente no máximo 8,27 € à Banco 1..., 17,24 € à A... e 0,25 € à B..., num total de cerca de 25 euros, ficando os seus rendimentos quase integralmente disponíveis para assegurar o cumprimento dos créditos do Banco 2.... Nestes termos, cremos poder afirmar que a diferença de tratamento que o plano de pagamento dispensa aos diversos créditos, mesmo considerando a sua diferente classificação e finalidade, se mostra desproporcionada, por conferir uma protecção reforçada aos créditos garantidos e uma quase anulação dos créditos comuns, traduzida no pagamento de valores mensais insignificantes ao longo de 10 anos. Devemos, assim, concluir que aquele plano ofende o princípio da igualdade consagrado no artigo 194.º do CIRE, o que configura uma violação não negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo, nos termos previstos no artigo 215.º do mesmo código, e impede a sua homologação (solução que, de resto, já se impunha por força do disposto no artigo 216.º, n.º 1, al. a), do CIRE, nos termos antes explicitados). Impõe-se, assim, confirmar a decisão recorrida e condenar a recorrente nas custas da apelação (cfr. artigo 527.º, n.º 1, do CPC). * Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):……………………………… ……………………………… ……………………………… * V. DecisãoPelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam improcedente a apelação e confirmam a decisão recorrida. Custas pela recorrente. Registe e notifique. * Porto, 10 de Julho de 2024Artur Dionísio Oliveira Rodrigues Pires Anabela Dias da Silva |