Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
134/12.9T2AND.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: NULIDADE DE MÚTUO
EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE NULIDADE
FRUTOS CIVIS
Nº do Documento: RP20240710134/12.9T2AND.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A nulidade, como é de ciência geral, é de conhecimento oficioso (artigo 286º do Código Civil), oficiosidade que se funda no interesse público na remoção da ordem jurídica das situações negociais que enfermem de tal patologia.
II - No entanto, essa remoção em consequência da declaração de nulidade ou anulação do negócio viciado não tem um figurino estritamente paralisador dos efeitos jurídicos do negócio nulo, envolve também uma reposição dos sujeitos envolvidos nessa patologia negocial na situação em que se encontravam antes da celebração desse negócio, com restituição recíproca do prestado, ou, não sendo possível a restituição em espécie, a restituição dos valores reciprocamente recebidos.
III - Esta reposição dos sujeitos envolvidos no negócio nulo na situação em que se encontravam antes da conclusão do referido negócio decorre dos efeitos retroativos da declaração de nulidade e está bem patente no nº 1 do artigo 289º do Código Civil.
IV - A circunstância de a nulidade por vício de forma constituir um facto impeditivo da pretensão da primitiva autora de obter a restituição daquilo que alegadamente foi mutuado e com fundamento na validade desse negócio (veja-se o nº 3 do artigo 576º do Código de Processo Civil) e implicar a improcedência daquela pretensão, não contende com o poder-dever do tribunal de, conhecendo dessa exceção arguida pelas partes, modelar oficiosamente e em conformidade com a lei os efeitos jurídicos dessa declaração de nulidade.
V - Embora a nulidade do negócio acionado pela primitiva autora tenha sido suscitada pelos demandados, isso não contende com o poder-dever do tribunal de modelar os efeitos da declaração de nulidade desse negócio, zelando por que não subsistam situações de enriquecimento sem causa de uma das partes e por uma utilização dos instrumentos processuais com o máximo rendimento possível, sem preterição dos direitos das partes.
VI - O tribunal ad quem apenas deve proceder à ampliação da matéria de facto sempre que conclua que, à luz das diversas soluções plausíveis das questões decidendas, existe matéria de facto alegada que não foi conhecida pelo tribunal recorrido, emitindo um juízo de provado ou não provado e isso desde que se trate de matéria indispensável à dilucidação das aludidas soluções plausíveis.
VII - Pode ainda a ampliação da decisão da matéria de facto decorrer de factualidade complementar ou concretizadora da que as partes tenham alegado e que se tenha vindo a revelar no decurso da instrução da causa, tal como previsto na alínea b) do nº 2 do artigo 5º do Código de Processo Civil.
VIII - No caso de restituição de capital de mútuo nulo por vício de forma, quanto aos frutos civis do capital a restituir, há que ter em atenção o disposto no nº 3 do artigo 289º do Código Civil, em conjugação com o previsto no nº 1 do artigo 1270º do mesmo diploma legal e ainda do artigo 564º, alínea a) do atual Código de Processo Civil, que corresponde ao artigo 481º, alínea a) do anterior Código de Processo Civil.
IX - Uma vez que a citação faz cessar a boa-fé do possuidor, a partir de então, o possuidor tem de restituir os juros que o capital que está obrigado a restituir poderia produzir (artigos 1270º, nº 1, a contrario sensu e 1271º, ambos do Código Civil).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 134/12.9T2AND.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 134/12.9T2AND.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:

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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório[1]

Em 13 de março de 2012, com referência ao Juízo de Grande Instância Cível de Anadia, Comarca do Baixo-Vouga, a Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de AA, representada pela cabeça de casal BB instaurou a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra CC e mulher DD pedindo a condenação solidária dos réus a pagarem à autora a quantia global de € 46.088,86, acrescida de juros de mora vencidos e

vincendos calculados à taxa legal, até efetivo pagamento.

Para sustentar as suas pretensões alegou, em síntese, que AA faleceu no dia 09 de maio de 2002 no estado de casado com a cabeça de casal, sendo seus herdeiros a viúva e dois filhos, respetivamente EE e FF; entre o falecido AA e os réus existia uma amizade de longos anos e nesse âmbito o “de cujus” entregou aos réus, a pedido destes, no dia 27 de junho de 2000, a quantia de 7.000.000$00 (correspondente a € 34.915,86) pelo prazo de 6 meses e 4 dias, obrigando-se os réus a restituir essa importância em 31 de dezembro de 2000; como garantia de pagamento os réus entregaram ao “de cujus” um cheque sacado sobre o Banco 1... no valor de 7.000.000$00 (sete milhões de escudos); a pedido dos réus o prazo de pagamento foi prorrogado por mais 36 meses, até 31 de dezembro de 2003; por força da mudança da moeda de escudos para euros os réus entregaram a AA um outro cheque de garantia no valor de € 34.915,86 (trinta e quatro mil novecentos e quinze euros e oitenta e seis cents), em substituição do anterior; os réus não pagaram em 31 de dezembro de 2003 a importância de € 34.915,86; ao longo do tempo e por conta da quantia entregue os réus procederam a três pagamentos parcelares de € 750,00 cada um, em 30 de setembro de 2005, em 31 de outubro de 2005 e em 02 de fevereiro de 2006, no total de € 2 250,00 que deve ser abatido ao capital; os réus nada mais pagaram apesar de terem sido interpelados.

Citada, a ré defendeu-se por exceção invocando a falta de personalidade judiciária da autora, a incapacidade judiciária do réu em virtude de se achar acamado e incapacitado de fazer a sua vida normal, apresentando défice cognitivo, síndroma depressivo e alteração do comportamento, não tendo por isso capacidade para compreender o conteúdo, alcance e efeitos da citação que recebeu do tribunal que deste modo é nula; invocou a restituição da totalidade das quantias recebidas do falecido AA, suscitando a nulidade do negócio por vício de forma, tal como se acha descrito na petição inicial e invocando a prescrição dos juros peticionados relativos ao período temporal que antecede os últimos cinco anos anteriores à instauração da ação; impugnou alguma da factualidade alegada na petição inicial referindo que não teve qualquer intervenção nos negócios ocorridos entre o Sr. AA e o seu marido, que está doente há largos anos, facto que a impede de obter mais informações por parte do seu marido; tem conhecimento de que existiram empréstimos entre o seu marido e o Sr. AA e outros à sua filha, desconhecendo os concretos valores; se for verdade que tais negócios existiram, as informações que tem resultaram da análise dos documentos avulsos e dos registos de extratos e depósitos bancários a que teve acesso; dessas pesquisas e documentos apurou que entre 2000 a 2008 a ré e marido procederam ao pagamento de diversas quantias ao Sr. AA, em vida deste e depois do seu óbito à viúva e cabeça de casal, valores creditados em duas contas bancárias, uma da Banco 2... e outra do Banco 3..., das quais a cabeça de casal era também titular, valores que totalizam a quantia de € 41.513,01, montante superior ao alegado na petição inicial, considerando por isso que nada deve à autora; por fim requer a apensação a este processo de um outro instaurado no mesmo dia e que corre termos pelo então Juízo de Pequena e Média Instância Cível de Aveiro, em que a autora e os réus são os mesmos e a factualidade alegada similar, com a diferença de nesse processo a herança reclamar um outro empréstimo no valor de 5.000.000$00.

A ré conclui a sua contestação referindo que sanado o vício da falta de citação do réu, devem ambos os réus ser absolvidos da instância por falta de personalidade judiciária da autora; não se entendendo assim, devem os réus ser absolvidos do pedido em consequência da nulidade do mútuo por preterição da forma legal; não se entendendo deste modo, devem os réus ser absolvidos do pedido em consequência da procedência da exceção de pagamento; não procedendo nenhuma das anteriores exceções, devem o capital e os juros ser reduzidos em conformidade com o que vier a ser liquidado, respeitando-se no que respeita aos juros a falta de interpelação e, em qualquer caso, a sua prescrição.

A autora replicou alegando ter ocorrido lapso na identificação da autora na petição inicial que é a cabeça de casal da herança aberta por óbito de AA, requerendo a retificação da identidade da autora nesse articulado; pugnou pela improcedência da exceção de incapacidade judiciária do réu, em virtude deste não ter sido declarado interdito ou incapaz; impugnou a factualidade alegada na contestação referente a alegados pagamentos, alegando que os cheques que a contestante identifica se destinaram ao pagamento parcial de um mútuo no valor de € 30 000,00 que a autora concedeu à ré em 2002 e que se venceu em 08 de novembro de 2004 e que, além disso, a ré alegou no processo cuja apensação requereu a estes autos, que os aludidos cheques se destinaram ao pagamento do mútuo objeto desses autos.

A ré opôs-se ao pedido da cabeça de casal de retificação da sua identificação na petição inicial.

Proferiu-se despacho a deferir o pedido de retificação da identificação da autora na petição inicial e solicitou-se para consulta o processo n.º 577/12.8T2AVR cuja apensação foi requerida pela ré.

Por despacho proferido com data de 22 de novembro de 2012 foi indeferida a apensação dos processos requerida pela ré.

Foi proferido despacho convidando a autora a fazer intervir do lado ativo os demais herdeiros de AA, já que não invoca factos que permitam a sua intervenção isolada nestes autos.

Em 21 de janeiro de 2013, a autora veio requerer a intervenção principal provocada de FF, casado no regime da separação de bens com GG e de EE e marido HH, casados um com o outro no regime da comunhão geral de bens.

Após notificação da parte contrária para, querendo, se pronunciar, o incidente foi admitido e julgado procedente, determinando-se a citação de FF, de EE e marido HH.

FF e EE e marido HH foram citados e não apresentaram articulado próprio.

Foram solicitadas informações relativas à incapacidade do réu, alegada pela ré na sua contestação, tendo-se apurado a pendência de um processo especial de interdição em que o réu era requerido, processo a correr seus termos pelo Juízo de Pequena Instância Cível de Águeda.

Por despacho proferido em 21 de janeiro de 2014 foi julgada improcedente a nulidade de citação do réu e foram as partes notificadas nos termos previstos pelo artigo 5º, nº 4 da Lei nº 41/2013 de 26 de junho.

A ré apresentou o seu requerimento probatório.

A ré interpôs recurso do despacho de indeferimento da nulidade de citação do réu.

A autora ofereceu o seu requerimento probatório.

Em 24 de fevereiro de 2014 foi proferido despacho a não admitir o recurso interposto pela ré em que pretendia impugnar o despacho de indeferimento da nulidade de citação do réu.

Em 27 de março de 2014 dispensou-se a realização de audiência prévia, proferindo-se despacho saneador tabelar, fixou-se o valor da causa no montante indicado na petição inicial, ou seja, € 40 088,86, identificou-se o objeto do litígio, enunciaram-se os temas da prova e admitiram-se os róis de testemunhas.

Em 04 de novembro de 2014 foi proferido despacho conhecendo das restantes provas requeridas pelas partes, onde se incluíram a expedição de cartas precatórias para inquirição de duas testemunhas residentes fora do País, uma nos Estados Unidos da América e outra em Cabo Verde.

Foram juntas cópias de caderneta da conta bancária da autora na Banco 2... com o nº ..., cópia de extrato da mesma conta e cópia de extrato combinados da conta bancária da autora no Banco 3... com o nº .......

Os Serviços Consulares de Cabo Verde informaram não ter sido localizado o paradeiro da testemunha II, tendo a ré prescindido da sua inquirição.

Designou-se data para a realização da audiência de julgamento e nesta a ré ofereceu cópia da sentença proferida no processo especial de interdição em que era requerido o réu destes autos, decisão que o declarou inabilitado por anomalia psíquica e fixou o início da incapacidade em 27 de maio de 2013, tendo sido nomeada como curadora a sua esposa, DD.

A audiência foi adiada e solicitou-se certidão com nota de trânsito em julgado da sentença de inabilitação proferida no processo nº 1630/13.6T2AGD, da Secção Cível da Instância Local de Águeda, que foi posteriormente junta aos autos, comprovando-se o trânsito em julgado da sentença no dia 04 de março de 2015.

Em 29 de junho de 2017 foi proferido despacho a nomear o Sr. JJ curador especial do réu, tendo este requerido apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e bem assim de nomeação e pagamento de compensação a patrono para o seu curatelado e tudo com a finalidade de contestar a ação.

Em 23 de setembro de 2017 o Sr. Patrono nomeado ao réu CC veio requerer o conhecimento da nulidade decorrente da sua falta de citação.

A nulidade foi deferida e por despacho proferido no dia 9 de janeiro de 2018 foi

determinada a nulidade do processado subsequente à citação, com exceção para o processado constante de folhas 20, 22 a 102 e de folhas 480 a 532, repetindo-se a citação do réu para contestar na pessoa do seu curador.

A citação concretizou-se, tendo o Sr. Patrono informado e comprovado que o réu faleceu em 03 de janeiro de 2018.

Proferiu-se despacho a declarar suspensa a instância por causa do óbito do réu.

Foi instaurado por apenso incidente de habilitação de herdeiros referente ao falecido réu CC, sendo proferida sentença em 08 de maio de 2019 que declarou habilitados como herdeiros do aludido réu, a ré DD e os filhos do “de cujusKK e LL, este último citado por editais e representado nos autos pelo Ministério Publico nos termos do artigo 21º do Código de Processo Civil.

Cessada a suspensão, os autos prosseguiram com a repetição dos atos que tinham sido anulados.

Em 06 de janeiro de 2020, a habilitada KK ofereceu contestação em que negou a versão alegada pelos autores e apresentou uma outra, referindo que todos os valores estavam pagos, mais alegando que o valor de 7.000.000$00 reclamado nestes autos, incluía o valor de 5.000.000$00 objeto do processo nº 577/12.8T2AVR, identificado nos autos; alegou que não existiam dois créditos, mas apenas um, tendo o seu pai pedido primeiro os 5.000.000$00 e mais tarde mais 2.000.000$00, num total de 7.000.0000$00 que o seu pai e o Sr. AA acordaram em reunir na declaração de dívida assinada pelos seus pais e pelo cheque que a autora juntou ao processo; o outro cheque não foi devolvido porque existia uma relação de confiança e nunca pensavam os intervenientes que os herdeiros do mutuante viessem a exigir o pagamento de dois créditos que sabiam ser apenas um; o valor reclamado, defende, à semelhança do que alegou a ré, sua mãe, está pago, nos termos já alegados pela ré; invocou também a nulidade do contrato por vício de forma e a prescrição dos juros de mora que excedam o prazo de cinco anos previsto no artigo 310º, alínea d) do Código Civil, ou seja, atenta a sua citação em finais de 2019, todos os juros vencidos antes de outubro de 2014.

Em 18 de fevereiro de 2020, proferiu-se despacho saneador, renovando-se o que já tinha sido proferido nos autos.

A habilitada contestante apresentou reclamação contra a identificação do objeto do litígio que foi indeferida.

As partes foram notificadas para, querendo, apresentarem os seus requerimentos probatórios (por ter sido anulado o despacho que determinou o cumprimento do disposto no artigo 5º, nº 4 da Lei nº 41/2013).

A ré e a habilitada apresentaram os seus requerimentos de prova.

Foram admitidos os meios de prova e agendada a audiência de julgamento.

Na primeira sessão da audiência final foram solicitadas certidões sobre o estado do processo n.º 577/12.8T2AVR e deferiu-se o pedido de correção de lapso de escrita na contestação da ré habilitada KK, produzindo-se a prova pessoal agendada para essa sessão.

Em 22 de maio de 2023, após infrutíferas tentativas de obtenção de comparência da autora BB na audiência, a fim de prestar depoimento, os réus prescindiram dessa diligência probatória, sendo proferidas alegações orais.

Em 27 de julho de 2023 foi proferida sentença[2] que terminou com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto decido;

a) Considerar nulo por vício de forma o contrato de mútuo identificado nos pontos 3º a 6º dos factos provados, condenando os réus à restituição do remanescente do capital ainda em dívida no valor global de € 10.409,98 (dez mil, quatrocentos e nove euros e noventa e oito cêntimos) valor acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 4%, desde a citação e até efectivo pagamento;

b) Julgar improcedente todos os demais pedidos formulados pela autora e intervenientes, absolvendo os réus e habilitados desses pedidos.

c) As custas são a suportar por autores (incluindo intervenientes) e réus e habilitados na proporção do decaimento (artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.

Registe e notifique.

Em 06 de outubro de 2023, inconformada com a sentença, KK interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. A sentença recorrida é nula por condenação em objecto diverso do peticionado.

2. A Autora deduz um pedido no final da Petição Inicial que se reconduz a uma simples condenação dos Réus a pagar-lhe determinado montante. Ao longo dos Autos, e invocada que foi a questão da nulidade do contrato quer pela Ré quer pela Habilitada, enquanto excepção peremptória, a Autora expressamente se opôs à procedência da mesma. A causa de pedir e o pedido assentam, pois, na validade do contrato de mútuo.

3. Sendo esta a causa de pedir, é dentro dos limites da mesma que o Tribunal “a quo” tinha de exercer os seus poderes, não podendo basear a decisão numa causa de pedir que não tenha sido invocada pela Autora, nem podia condenar em objecto que a própria parte não requereu, sob pena de nulidade da sentença por condenação em objecto diverso do peticionado.

4. O Tribunal, escudando-se no Assento 4/95 de 28 de Março de 1995, declarou a nulidade do contrato e disso extraiu as consequências que entendeu extrair.

5. Porém, a aplicação da Doutrina subjacente ao aludido Assento pressupõe uma apreciação oficiosa do Tribunal da nulidade de um negócio, e, para que haja conhecimento oficioso, ou melhor, para que se possa considerar oficioso o conhecimento pelo tribunal necessário se torna que nenhuma das partes tenha suscitado a questão, no caso a nulidade do negócio jurídico invocado.

6. A partir da arguição pela parte da nulidade do negócio jurídico, o desenho da lide, a configuração do pleito passaram a ser controversos sobre as questões da validade ou nulidade do mesmo. Portanto, nenhuma espontaneidade, ou oficiosidade, há no conhecimento dessa questão pelo tribunal, faça-o em que fase processual o faça, se tal questão foi suscitada nos articulados (Ac. STJ de 19.06.1997, disponível em www.dgsi.pt).

7. A Mmª Juiz A Quo não se podia estribar em tal Assento nem considerar tal nulidade de forma alegadamente oficiosa, porquanto a nulidade do contrato de mútuo havia sido alegado como excepção peremptória pela Ré DD e pela aqui Recorrente.

8. Assim, o reconhecimento da verificação da excepção peremptória alegada pela Ré e Habilitada apenas podia levar, por definição, à absolvição (artº 576.º,.º 3 do Cód. Proc. Civil: «as exceções perentórias importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor»).

9. Não é permitido ao Tribunal, decretar um efeito que não foi, de todo, solicitado.

10. Assim, não se verificam os pressupostos para o Tribunal “a quo” conhecer “oficiosamente” da nulidade do contrato pelo que estava-lhe vedado tirar quaisquer ilações dessa nulidade (como fez). Por outro lado e em contrapartida, podia e devia conhecer da excepção peremptória que foi invocada pela Ré e pela Recorrente, mas daí não pode retirar qualquer ilação que não fosse a absolvição dos Réus e consequente improcedência da acção, porquanto a Autora não deduziu qualquer pedido consequente à nulidade do negócio.

11. A nulidade da sentença decorre, assim, da violação do princípio do pedido, isto é, a sentença não pode desrespeitar os limites quantitativos e qualitativos do pedido [corolário do princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objectiva da instância – artigos 5.º e 552.º, n.º 1, als. d) e e) do Código de Processo Civil].

12. E resulta igualmente que o Tribunal “a quo” condenou as Rés em objecto diverso do pedido, nos moldes em que o mesmo foi formulado pela Autora, violando, consequentemente, os artigos 3º e 609.º, n.º 1, alínea e) do Cód. Proc. Civil, caindo no âmbito do artº 615º, nº 1 al. e do mesmo diploma legal.

13. Em suma: ao decidir nos termos que decidiu, o Tribunal “a quo” condenou os Réus em objeto diverso daquele que foi peticionado, o que importa uma condenação ultra petitum (violação do artigo 609.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), daí decorrendo a nulidade da sentença recorrida nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. e) in fine do Código de Processo Civil.

14. A fundamentação apresentada pela decisão recorrida, além de insuficiente, ininteligível e mesmo omissa em alguns pontos, não se ajusta adequadamente àquilo que decorre objectivamente dos depoimentos prestados em audiência, bem como dos documentos juntos, não sendo, por isso, a livre convicção do Tribunal “a quo” objectiva e motivada.

15. A Autora aproveitou-se da situação de incapacidade do Réu CC (que era quem sempre lidou directamente com o AA) para instaurar diversas acções.

16. Não é concebível que a Autora tenha aguardado até 2012 para vir cobrar valores que alegadamente estavam em dívida desde 2003.

17. A condutora da Autora é ainda mais censurável quando a sua legal-representante de tudo fez para se esquivar a prestar declarações em Tribunal, apesar do impulso processual ter sido dela. Recusou, propositadamente, ser confrontada.

18. O Facto provado nº 3 (O falecido AA entregou ao falecido Réu, a pedido deste, em 27 de Junho de 2000 a quantia de 7.000.000$00 correspondente a € 34.915,85) não tem sustentação na prova produzida nos Autos.

19. Nos termos do artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil, o ónus da prova dos moldes pelos quais foi realizado o contrato, isto é, o “quando, como e onde” do mesmo (no caso em concreto, se existiu uma entrega no total de 7.000.000$00 ou, pelo contrário, se existiram duas entregas, uma de 5.000.000$00 e outra de 2.000.000$00 e, bem assim, quando é que foram feitas) incumbia (e incumbe) à Autora que, salvo o devido respeito, não logrou fazer prova de que houve uma entrega única no montante de 7.000.000$00.

20. Assim, se é certo que à Ré/Habilitados competia a prova dos pagamentos que invocaram nas suas contestações, também é certo que previamente à prova dos pagamentos havia que ser feita a prova dos meandros dos contratos aqui em causa.

21. O Tribunal diz ter-se baseado no teor da declaração constante de fls. 15. Porém, daquela declaração não decorre o que ficou a constar do facto provado nº 3, sendo que da declaração em causa apenas se poderá concluir que ela foi assinada no dia que nela consta.

22. Nada mais se retira daquela declaração, designada e concretamente, não existe qualquer referência ao momento do empréstimo e à forma pela qual foi feito (se foi entregue a quantia toda de uma vez, se foi entregue em prestações, se foi em cheque ou em dinheiro, em que dia foi, etc.).

23. E, do mesmo passo, também nada de útil se retira a este respeito da única pessoa ouvida por banda da Autora, que foi o Interveniente FF (gravação no CD, dos minutos 10:27:41 aos 11:47:49, do dia 13/09/2022 e concretamente dos minutos 08:22 aos 08:58 e dos minutos 10:15 aos 11:32) que claramente demonstrou nada saber sobre os meandros do contrato.

24. Face ao exposto, o Tribunal tem que ficar na dúvida se esta alegada entrega pela Autora foi feita em cheque (ou vários cheques), em dinheiro ou por transferência bancária; num só dia, em dois dias, ao longo do mês, no decorrer do ano; entre outros elementos, que competiam à Autora trazer ao processo para fazer valer a sua versão, o que não fez.

25. Nunca se poderia dar como provada uma única entrega de 7.000.000$00 no dia 27 de junho de 2000 com base, apenas e tão só, numa declaração que não tem qualquer elemento que permita chegar a tal conclusão. Assumir que a data da declaração foi a data da entrega daquele montante e que o mesmo foi cedido de uma só vez é uma suposição que não encontra suporte em qualquer meio de prova.

26. Não tendo sido produzida prova neste sentido, na dúvida, o Tribunal tem que se resolver contra a Autora, o que significa que, imperativamente, o Tribunal “a quo” deveria ter dado como provada a versão dos Réus, na medida em que não houve qualquer prova que demonstrasse e comprovasse uma única entrega de 7.000.000$00 no dia 27 de Junho de 2000.

27. Pelo que vem dito, o facto provado 3.º, nos termos do artigo 640.º e 662.º do Código de Processo Civil, deve passar a ter a seguinte redacção: FACTO PROVADO 3.º «O FALECIDO AA ENTREGOU AO FALECIDO RÉU, A PEDIDO DESTE, A QUANTIA TOTAL DE 7.000.000$00, CORRESPONDENTE A € 34.915,85».

28. Por sua vez, os Réus trouxeram aos autos informações e elementos que permitem concluir que só existe um empréstimo de 7.000.000$00, o qual engloba duas entregas de montantes (5.000.000$00 num primeiro momento e 2.000.000$00 num segundo momento).

29. Tal prova resulta dos seguintes meios de prova: Declarações da Ré DD (encontram-se no CD, dos minutos 15:27:04 aos 15:58:47, do dia 13/09/2022, e concretamente dos minutos 03:35 aos 04:30, dos minutos 09:02 aos 09:13 e dos minutos 12:40 a 12:50), Depoimento da Testemunha MM (encontra-se no CD, dos minutos 16:23:24 aos 16:47:19, do dia 13/09/2022 e concretamente dos minutos 19:00 aos 19:27

30. Ficou provado (facto provado 14.º) que a própria Autora confessou que o cheque de € 750,00 de 02/02/2006 serviu para pagar quer o montante reclamado no Processo Sumário n.º 577/12.8T2AVR (os tais 5.000.000$00), quer o valor que a Autora reclama nos presentes Autos, o que indicia, claramente, que nunca existiram dois empréstimos (um de 7.000.000$00 e outro de 5.000.000$00), mas antes um empréstimo no total de 7.000.000$00, o que se discute nos presentes Autos.

31. Das declarações do Chamado FF já supra transcritas/referidas (concretamente dos minutos 10:15 aos 11:32) resulta que o prazo de pagamento da dívida era de um ano, sendo que o empréstimo do total de 7.000.000$00 foi o único que existiu no ano de 2000.

32. Tais declarações coadunam-se com a versão dos Réus: a) Houve uma primeira entrega de dinheiro (no total de 5.000.000$00) no início do ano, que tinham, sensivelmente, 6 meses para ser pagos; b) Com a segunda entrega (no total de 2.000.000$00), alargou-se aquele prazo de 6 meses, que passou a ser de um ano (contado da primeira entrega).

33. Consequentemente, dado que, por um lado, a Autora não cumpriu com o ónus de prova a que estava adstrita, por outro, a versão dos Réus tem suporte na prova produzida, deve prevalecer a versão dos Réus, devendo ter como provados, nos termos dos artigos 640.º e 662.º do Código de Processo Civil, os artºs 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º e 19º da Contestação da Habilitada

34. O facto provado nº 10 é redutor e não corresponde ao que resulta da prova realizada em julgamento e carreada para os Autos, devendo ser reformulado, sugerindo-se o seguinte teor: “ALÉM DOS MONTANTES PAGOS POR CHEQUES CREDITADOS NA CONTA ... DA Banco 2... OU NA CONTA ...... DO Banco 3..., DE QUE A AUTORA E CABEÇA DE CASAL ERA TAMBÉM TITULAR», FORAM ENTREGUES PELOS RÉUS DIVERSOS MONTANTES EM NUMERÁRIO À LEGAL REPRESENTANTE DA AUTORA PARA PAGAMENTO DOS 7.000.000$00, MONTANTES QUE, APESAR DE NÃO CONCRETAMENTE APURADOS, FORAM SUFICIENTES PARA O PAGAMENTO TOTAL DA DÍVIDA»

35. Tal nova formulação é decorrência directa dos depoimentos produzidos em audiência, a saber:

- Declarações da Ré DD, que se encontram no CD, dos minutos 15:27:04 aos 15:58:47, do dia 13/09/2022 e concretamente dos minutos 11:45 a 12:12; 12:40 a 14:00 e 14:03 a 15:30

- Depoimento da Testemunha NN, que se encontra no CD, dos minutos 16:01:11 aos 16:09:12, do dia 13/09/2022 e concretamente Dos minutos 03:40 aos 04:08, 05:35 aos 06:13 e 06:44 aos 06:55

- Depoimento da Testemunha OO, que se encontra no CD, dos minutos 16:10:46 aos 16:22:15, do dia 13/09/2022 e concretamente Dos minutos 02:00 aos 03:50 e 09:40 aos 10:04

- Depoimento da Testemunha MM que se encontra no CD, dos minutos 16:23:24 aos 16:47:19, do dia 13/09/2022, concretamente dos minutos 16:53 aos 17:58 e 19:44 aos 21:00;

- Declarações do Chamado FF, que se encontram no CD, dos minutos 10:27:41 aos 11:47:49, do dia 13/09/2022 e concretamente Dos minutos 27:47 aos 28:15 e 59:00 aos 59:57

- Declarações da Habilitada KK que se encontram no CD, dos minutos 14:14:03 aos 15:06:24, do dia 13/09/2022 e concretamente dos minutos 12:08 a 12:17 e 13:56 a 14:22

36. Resulta de forma inequívoca das declarações da Ré DD e dos depoimentos das testemunhas ouvidos em sede de audiência de discussão e julgamento que a Autora se deslocava ao local de trabalho da Ré (local público e de elevado fluxo de pessoas) para pedir juros e não para pedir qualquer capital em dívida.

37. Mais se retira destes depoimentos que, não só a Autora se deslocava ao estabelecimento a pedir dinheiro (de forma agressiva e incorrecta), como também a Ré DD procedia à entrega de valores, que apesar de não serem terem sido concretamente apurados, têm que ser tidos em linha de conta aquando da decisão.

38. O Tribunal não pode seccionar injustificadamente depoimentos: se aceitou tais depoimentos

relativamente ao facto da Autora BB se deslocar ao local de trabalho da ré, não pode simplesmente ignorar o facto igualmente mencionado pelas testemunhas de que havia entregas em numerário e que o que era pedido eram apenas juros e não capital.

39. Nem todos os pagamentos foram feitos por depósitos documentalmente comprovados e isso é confirmado por testemunhas oculares, que assistiram a entregas de dinheiro da Ré BB à legal representante da Autora – E note-se que nenhuma das testemunhas arroladas pela Ré e pela Habilitada foi considerada pelo Tribunal como não credível, tendenciosa, parcial.

40. Por tudo, justifica-se a alteração preconizada na precedente conclusão 34.

41. O Tribunal considerou não provados os factos alegados nos artºs 20º, 21º e 22º da contestação da ora Recorrente, ao arrepio do que decorre claramente dos Autos.

42. Efectivamente, o facto dos documentos aí referidos (cheque e declaração de dívida) nunca terem sido entregues aos Réus resulta, desde logo, do facto de constarem dos presentes autos, tendo sido trazidos pela legal representante da Autora na petição inicial.

43. Mas mais. Tal factualidade foi confirmada pela Habilitada (cujas declarações se encontram no CD, dos minutos 14:14:03 aos 15:06:24, do dia 13/09/2022, e mais concretamente dos minutos 41:21 a 42:32

44. Uma vez que resulta destas declarações, bem como das regras da lógica e da experiência (na medida em que, se não tivesse os cheques e declarações na sua posse, a Autora nunca os juntaria ao processo), devem ser dados como provados, nos termos dos artigos 640.º e 662.º do Código de Processo Civil, os factos alegados pela Habilitada nos artºs 20.º, 21.º e 22º da sua contestação, factos estes que, incompreensivelmente, o Tribunal de 1ª Instância considerou não provados.

45. A mora vem regulada nos artigos 804.º e seguintes do Código Civil, decorrendo do artº 805º, nº 3 que só há mora quando existe culpa do devedor e, no caso sobre o qual nos debruçamos, não existe qualquer tipo de culpa por parte dos Réus e habilitados.

46. De facto, a dívida em 2000 foi assumida pelo falecido CC, que foi quem começou a pagar inicialmente. Não era exigível aos Réus e Recorrente que soubessem o montante exacto em dívida (a existir algum). Ou seja, a Recorrente não tinha o dever de saber qual o montante em concreto que estava em dívida.

47. Isto é, não se pode dizer que a Recorrente actuou com culpa ao recusar-se a cumprir depois de ter sido citada, pois tal decorreu do facto de considerar que aquele montante de € 46.088,86 não era devido como, aliás, se veio a comprovar. Consequentemente, não se pode considerar que houve mora desde a citação.

48. Considera-se que o crédito é ilíquido quando, à data em que deve ser efectuado o pagamento não é possível proceder à sua liquidação, ou seja, saber qual a quantia que está em dívida, pelo que, no caso concreto e a considerar-se ser devida alguma quantia (o que não se aceita e apenas se equaciona por cautela) os juros apenas poderão ser devidos a partir do momento em que o valor em dívida é fixado na decisão e, consequentemente, se torna num valor líquido, e não desde a citação.

49. A sentença recorrida violou o disposto nos artºs 3º, 5º, 552º, nº 1 als. d) e e), 576º nº 3, 609º, nº 1 al. e) do Cód. Proc. Civil dos quais fez uma errada aplicação e/ou interpretação, sendo a sentença ferida da nulidade prevista no artº 615º, nº 1 al. e), impondo-se a alteração da matéria de facto nos termos expostos, nos termos do disposto nos artºs 640º e 662º do Cód. Proc. Civil.

50. Violou também o artº 805º, nº 3 do Cód. Civil, bem como invocou indevidamente a Jurisprudência plasmada no Assento 4/95 de 28.03.1995.

Não foram oferecidas contra-alegações.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos dos restantes membros do coletivo, cumpre agora apreciar e decidir.

2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

2.1 Da nulidade da sentença recorrida por condenação em objeto diverso do peticionado;

2.2 Da impugnação dos pontos 3 e 10 dos factos provados e dos artigos 13, 14 e 16 a 22 da contestação da recorrente e julgados não provados pelo tribunal a quo;

2.3 Da iliquidez da obrigação a final reconhecida pelo tribunal e, consequentemente, do termo inicial da contagem de juros de mora.

3. Fundamentos

3.1 Da nulidade da sentença recorrida por condenação em objeto diverso do peticionado

A recorrente suscita a nulidade da sentença recorrida por condenação em objeto diverso do pedido, alegando que a autora formulou no final da sua petição inicial um pedido de condenação dos réus ao pagamento de certa quantia e depois de invocada a exceção perentória de nulidade do contrato, a autora opôs-se expressamente à procedência da mesma, assentando a causa de pedir e o pedido na validade do contrato de mútuo; sendo esta a causa de pedir, é dentro de tais limites que o tribunal tinha que exercer os seus poderes, não podendo conhecer de causa de pedir não invocada pela autora, sob pena de nulidade da sentença por condenação em objeto diverso do peticionado; a aplicação da doutrina do Assento nº ... de 28 de março de 1995 pressupõe uma apreciação oficiosa da nulidade de um negócio e para que assim possa ser importa que nenhuma das partes tenha suscitado essa questão; inexiste qualquer oficiosidade no conhecimento da nulidade de certo negócio logo que a ré suscitou essa questão nos articulados, estando a partir de então o tribunal vinculado à apreciação da exceção perentória de nulidade negocial e aos efeitos jurídicos decorrentes da eventual procedência de tal exceção, ou seja, a pura e simples absolvição dos demandados do pedido.

Cumpre apreciar e decidir.

Nos termos do disposto na alínea e), do nº 1, do artigo 615 do Código de Processo Civil, é nula a sentença quando o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

Esta previsão visa assegurar uma conformidade quantitativa e qualitativa entre aquilo que é pedido pelas partes e aquilo que é decidido pelo tribunal. É uma decorrência necessária do princípio do pedido (artigo 3º, nº 1, do Código de Processo Civil), bem como do princípio do dispositivo, na vertente da conformação da sentença (artigo 609º, nº 1, do Código de Processo Civil).

A causa de pedir é o facto jurídico que funda ou de que deriva a pretensão deduzida por uma parte contra outra (veja-se o nº 4 do artigo 581º do Código de Processo Civil), cabendo às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e bem assim aqueles em que se baseiam as exceções invocadas (artigo 5º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Observado pelas partes o essencial dos ónus processuais que sobre elas impendem no que respeita aos factos constitutivos da causa de pedir e das exceções deduzidas, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5º, nº 3 do Código de Processo Civil).

Por seu turno, o pedido é o efeito jurídico pretendido, sendo que o pedido deve ser visto essencialmente do ponto de vista dos efeitos práticos que se pretendem obter com a sua dedução[3].

No caso dos autos, é inquestionável que a autora intentou a ação contra os réus no pressuposto da validade do contrato de mútuo de sete milhões de escudos que invocou ter sido celebrado entre as partes pedindo, em consequência, a restituição do remanescente do capital em dívida e juros de mora à taxa supletiva legal desde o vencimento da obrigação de restituição do capital mutuado e de acordo com o prazo alegadamente acordado entre as partes.

No entanto, à luz do que foi alegado na petição inicial e mediante um simples exercício de qualificação jurídica da factualidade alegada, era patente a nulidade por vício de forma do contrato de mútuo em que a autora assentou as suas pretensões (vejam-se os artigos 220º e 1143º[4], ambos do Código Civil).

Na contestação, a primitiva ré suscitou, além do mais, a nulidade formal do contrato de mútuo tal como configurado pela autora na sua petição inicial, referindo que a “obrigação (mútua) de restituição decorre da própria declaração de nulidade e não da procedência do pedido da AUTORA, pedido este que (se fosse permitido ao Tribunal pronunciar-se quanto ao mérito da causa) teria de ser necessariamente julgado improcedente” e ainda que a “satisfação de tal obrigação mútua de restituição (considerando-se ou não a compensação entre as prestações realizadas por uns e por outros) obrigaria, todavia, ao apuramento (em sede de liquidação) dos exactos valores em causa.” Já na sua contestação, a ora recorrente limitou-se a invocar a nulidade por vício de forma do mútuo tal como configurado pela autora na petição inicial.

A nulidade, como é de ciência geral, é de conhecimento oficioso (artigo 286º do Código Civil), oficiosidade que se funda no interesse público na remoção da ordem jurídica das situações negociais que enfermem de tal patologia.

No entanto, essa remoção em consequência da declaração de nulidade ou anulação do negócio viciado não tem um figurino estritamente paralisador dos efeitos jurídicos do negócio nulo, envolve também uma reposição dos sujeitos envolvidos nessa patologia negocial na situação em que se encontravam antes da celebração desse negócio, com restituição recíproca do prestado, ou, não sendo possível a restituição em espécie, a restituição dos valores reciprocamente recebidos.

Esta reposição dos sujeitos envolvidos no negócio nulo na situação em que se encontravam antes da conclusão do referido negócio decorre dos efeitos retroativos da declaração de nulidade e está bem patente no nº 1 do artigo 289º do Código Civil.

A circunstância de a nulidade por vício de forma constituir um facto impeditivo da pretensão da primitiva autora de obter a restituição daquilo que alegadamente foi mutuado e com fundamento na validade desse negócio (veja-se o nº 3 do artigo 576º do Código de Processo Civil) e implicar a improcedência daquela pretensão, não contende com o poder-dever do tribunal de, conhecendo dessa exceção arguida pelas partes, modelar oficiosamente e em conformidade com a lei os efeitos jurídicos dessa declaração de nulidade.

Na verdade, há um interesse público em que as partes na sequência da declaração de nulidade sejam recolocadas na situação em que se achavam imediatamente antes da celebração do negócio nulo, pois só dessa forma se evitam situações de enriquecimento sem causa de uma das partes à custa da outra.

Sublinhe-se ainda que do ponto de vista dos efeitos práticos, tanto é restituição a que opera fundada na validade do contrato de mútuo invocado na petição inicial como a que decorre da declaração de nulidade desse mesmo negócio, apenas havendo divergência na questão da mora do obrigado à restituição, já que, sendo válido o contrato de mútuo, opera o prazo eventualmente estabelecido pelas partes, enquanto no caso de nulidade do mesmo contrato, quanto aos frutos civis do capital a restituir, há que ter em atenção o disposto no nº 3 do artigo 289º do Código Civil, em conjugação com o previsto no nº 1 do artigo 1270º do mesmo diploma legal e ainda do artigo 564º, alínea a) do atual Código de Processo Civil, que corresponde ao artigo 481º, alínea a) do anterior Código de Processo Civil que vigorava quando foi instaurada a ação e citada a primitiva ré.

Assim, embora a nulidade do negócio acionado pela primitiva autora tenha sido suscitada pelos demandados, isso não contende com o poder-dever do tribunal de modelar os efeitos da declaração de nulidade desse negócio, zelando por que não subsistam situações de enriquecimento sem causa de uma das partes e por uma utilização dos instrumentos processuais com o máximo rendimento possível, sem preterição dos direitos das partes[5].

Esta exigência é ainda mais sentida quando o contrato que enferma de nulidade é um contrato unilateral[6], como é o caso do mútuo, em que a improcedência pura e simples da ação por efeito da procedência da exceção perentória da nulidade negocial por vício de forma implicaria prejuízo apenas para o alegado mutuante que ficaria desembolsado ao menos por mais algum tempo da importância mutuada ao abrigo de um contrato de mútuo nulo.

Deste modo, afigura-se-nos que bem andou o tribunal recorrido em aplicar aos efeitos decorrentes da declaração de nulidade do contrato de mútuo que constituiu a causa de pedir da ação a doutrina que decorre do Assento nº ... de 28 de março de 1995[7], atualmente com o valor de jurisprudência uniformizada, subscrito unanimemente por quarenta e cinco Juízes Conselheiros.

Pelo exposto, a sentença recorrida não enferma da nulidade prevista na alínea e) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, improcedendo esta questão recursória.

3.2 Da impugnação dos pontos 3 e 10 dos factos provados e dos artigos 13, 14 e 16 a 22 da contestação da recorrente e julgados não provados pelo tribunal a quo

A recorrente insurge-se contra a decisão da matéria de facto do tribunal recorrido no que respeita aos pontos 3 e 10 dos factos provados e aos artigos 13, 14, 16 a 22 da sua contestação e que o tribunal a quo julgou não provados.

Pretende que o ponto 3º dos factos provados passe a ter a seguinte redação:

- O falecido AA entregou ao falecido réu, a pedido deste, a quantia total de 7.000.000$00, correspondente a € 34 915,85.

O ponto 10º dos factos provados deve passar a ter o seguinte teor:

- Além dos montantes pagos por cheques creditados na conta ... da Banco 2... ou na conta ...... do Banco 3..., de que a autora e cabeça de casal era também titular, foram entregues pelos réus diversos montantes em numerário à legal representante da autora para pagamento dos 7.000.000$00, montantes que, apesar de não concretamente apurados, foram suficientes para o pagamento total da dívida.

Finalmente, os artigos 13, 14, 16 a 22 da contestação da recorrente devem julgar-se provados.

Os pontos de facto impugnados têm o seguinte conteúdo:

- O falecido AA entregou ao falecido réu, a pedido deste, em 27 de junho de 2000 a quantia de 7.000.000$00 correspondente a € 34.915,85 (ponto 3 dos factos provados);

- Os montantes identificados eram creditados na conta ... da Banco 2... ou na conta ...... do Banco 3..., de que a autora e cabeça de casal era também titular (ponto 10 dos factos provados);

- Contudo, sensivelmente em maio de 2002, o falecido CC precisou de mais 2.000 contos pelo que, mais uma vez, recorreu ao seu amigo AA que, novamente lhe emprestou em finais de junho de 2002 (artigo 13º da contestação da recorrente[8]);

- Assim, o valor total do débito naquela data, do CC para com o AA passou a ser de 7.000,00 contos (cerca de € 35.000,00), que deveriam ser pagos (conforme combinado entre os dois) até finais desse ano (artigo 14º da contestação da recorrente);

- Para garantir esse pagamento, o falecido preencheu e entregou ao Sr.  AA um cheque no valor de 7 mil contos, com data de vencimento em 31.12.2000 (artigo 16º da contestação da recorrente);

- Bem como assinou e deu a assinar à sua esposa (mãe da Contestante) uma declaração de dívida (artigo 17º da contestação da recorrente);

- Assim, não existia uma dívida de 5.000 [contos?] (que soube agora a contestante foi reclamada no processo 577/12.8T2AVR, do Juízo Local Cível de Aveiro – J 2) e uma outra dívida de 7.000 contos que está aqui a ser reclamada nestes autos (artigo 18º da contestação da recorrente);

- Existia (ou seja, no passado) uma única dívida de 7.000 contos, que abrangia já os 5.000 contos antes emprestados (artigo 19º da contestação da recorrente);

- A verdade é que quando o pai da contestante e o falecido AA acordaram na “reestruturação da dívida”, este não devolveu ao CC o cheque que já tinha na sua posse (artigo 20º da contestação da recorrente);

- Nem tão-pouco a primitiva declaração de dívida, acreditando o CC que aquele os havia inutilizado (artigo 21º da contestação da recorrente);

- De todo o modo, a verdade é que o CC também nunca pediu tais documentos de volta, por confiar inteiramente na seriedade do Sr. AA e que este nunca utilizaria tal cheque/declaração para qualquer fim (que, recorde-se, foi substituído pelo de 7.000 contos) (artigo 22º da contestação da recorrente).

As razões e provas que a recorrente indica para firmar a sua pretensão de alteração da decisão da matéria de facto são, em síntese, as seguintes:

- quanto ao ponto 3 dos factos provados a recorrente alega que a declaração em que o tribunal recorrido afirma ter-se baseado para dar como provado este facto, não lhe dá suporte probatório e bem assim as declarações prestadas por FF, nas passagens da gravação que localiza e transcreve, afirmando que a ausência de prova dessa factualidade deve determinar que se julgue provada a versão dos réus;

- no que respeita ao ponto 10 dos factos provados sustenta a pretendida alteração deste ponto de facto, nas declarações da ré DD nas passagens da gravação que localiza e transcreve, nos depoimentos das testemunhas NN, OO, MM, nas passagens da gravação que localiza e transcreve, nas declarações de FF e da ora recorrente, nas passagens que localiza e transcreve.

- quanto aos artigos 13, 14, 16 a 22 da sua contestação a recorrente indica as declarações da ré DD, nas passagens da gravação que localiza e transcreve, no depoimento da testemunha MM, nas passagens da gravação que localiza e transcreve, a confissão da autora de que o cheque no montante de € 750,00 serviu para pagar quer os cinco milhões de escudos reclamados no processo nº 577/12.8T2AVR, quer o valor reclamado nestes autos, o que indicia que nunca existiram dois empréstimos, um de sete milhões de escudos e outro de cinco milhões de escudos, mas sim e apenas um empréstimo no montante de sete milhões de escudos, precisamente o que se discute nestes autos, as declarações do interveniente principal do lado ativo FF, nas passagens da gravação que localiza e transcreve, declarações que se coadunam com a versão dos réus.

O tribunal a quo motivou os pontos de facto impugnados do seguinte modo:

Artigo 3º

Foi a versão defendida pelo interveniente principal nas suas declarações e a que se adequa à prova documental junta aos autos, nomeadamente a declaração de fls. 15, cujas assinaturas não foram impugnadas, aplicando-se quanto à força probatória deste documento a regra prevista pelo artigo 376º do C. Civil e que não foi posta em causa por qualquer outro meio de prova idóneo, assim como os cheques de fls. 16.

A própria ré e a sua filha e habilitada, nos seus articulados e nas suas declarações, admitiram que entre o réu e o Sr. AA existiam vários empréstimos, apesar de não saberem especificá-los e individualizá-los, defendendo a habilitada outra versão na sua contestação, que não se provou, como melhor iremos explicação na motivação sobre essa versão, nos factos não provados.

As testemunhas arroladas pelos réus referiram que a autora deslocava-se vários vezes ao estabelecimento da ré a solicitar pagamentos, chegando a ser incorrecta com a ré, mas esses actos indiciam que efectivamente existiam valores em dívida dos réus para com os autores, consentâneo com o que o interveniente declarou e a prova documental corrobora.

(…)

Artigo 10º:

É matéria aceite (artigo 16º da réplica).

(…)

Artigos 13º a 22º:

Está é a versão que nos autos foi defendida pela habilitada na sua contestação, porque nem a ré a alegou no seu articulado de contestação.

No entanto, nos depoimentos que prestaram, a ré acabou por aderir à mesma versão corroborada pelas declarações da habilitada, versão que foi contrariada pelo depoimento do interveniente principal.

Todas as outras testemunhas não tinham quaisquer conhecimentos directos sobre estes factos, não tendo sido valorados sobre esta matéria.

Perante duas versões opostas a versão mais consistente e coerente e que se provou foi a dos autores e não dos réus.

A versão das rés é incoerente, inconsistente e incompatível com a prova documental, desde logo porque a “alegada fusão ou reestruturação” dos dois créditos não resulta de qualquer documento que minimamente o sustente, nomeadamente das duas declarações de dívida assinadas pelos réus.

Se o cheque de 5 mil contos, de Fevereiro de 2000, estivesse integrado na dívida de 7mil contos de 27 de Junho de 2000, suportada pela declaração assinada nessa data pelos réus e pelo cheque também entregue nessa data (fls. 361, 362), não teria lógica que a “fusão” não fosse mencionada nessa segunda declaração.

Existem duas declarações de dívida assinadas pelos réus e garantidas por dois cheques,

um de 5 mil escudos e outra de 7 mil escudos.

Por outro lado, para além de não constar da segunda declaração de dívida que substitui

ou integra o valor da primeira declaração de dívida, dos documentos juntos aos autos resulta que, já depois de assinada a declaração pelos réus em 27 de Junho de 2000, os mesmos réus procederam à substituição do cheque de 5 mil escudos por outro de igual valor mas em euros e com data de vencimento posterior à declaração (fls. 362). Ou seja, não só os réus assinaram uma declaração que contraria o que a habilitada alega, como ainda emitem novo cheque, ou melhor, subsituem o cheque de 5 mil contos por outro com data posterior assinatura da declaração de dívida. A declaração é de 27 de Junho de 2000 e o cheque de 5 mil contos em euros é emitido para ter vencimento em 22 de Agosto de 2002, data posterior à alegada “fusão de empréstimos” e com vencimento dois anos depois – 2002.

A versão da habilitada não tem sustentação documental, nem lógica, não tendo logrado

provar que existia apenas um crédito total de 7 mil contos, resultando dos autos que existem dois, um de 5 mil contos e outros de 7 mil contos, sendo que o único que nestes autos nos interessa é o de 7 mil contos.

Cumpre apreciar e decidir.

Uma vez que a recorrente observa suficientemente os ónus que impendem sobre o impugnante da decisão da matéria de facto, procedeu-se à análise crítica da prova documental oferecida pelas partes e relativa a declarações subscritas pelos primitivos réus[9], a cheques comprovativos quer de entregas do falecido marido da primitiva autora aos primitivos réus[10], quer de pagamentos destes à primitiva autora[11] e procedeu-se à audição da prova pessoal produzida na audiência final.

FF, filho da primitiva autora e de AA, de cinquenta e quatro anos de idade, declarou que “achava” que nunca tinha falado com nenhum dos réus e que além deste processo existe um outro em Águeda por razões similares, havendo ainda um outro empréstimo, por pagar e que pensa que ainda não está em tribunal; até ao ano 2000 vivia em Lisboa, cidade onde então estudava, vindo a casa dos pais nalguns fins de semana; seu pai esteve gravemente doente nos finais dos anos noventa, tendo sido operado ao coração; em 2000 voltou para Águeda, passando a trabalhar em “part-time” na empresa de metalomecânica de seu pai; sabia do relacionamento de seu pai com os primitivos réus por conversas mantidas em família; tem ideia que antes do ano 2000 já existiria algum relacionamento entre seu pai e os primitivos réus; seu pai contou-lhe que havia emprestado aos primitivos réus as quantias de cinco mil contos e de sete mil contos, tendo-lhe pedido que fizesse o registo das entregas por conta do pagamento deste último empréstimo; desconhece se seu pai falou com sua mãe quando emprestou essas importâncias; tem ideia que o empréstimo de sete mil contos foi no ano 2000 e que o empréstimo de cinco mil contos seria anterior; não sabe como foram entregues os sete mil contos mas pensa que terá sido um cheque ou vários; referiu que o empréstimo de sete mil contos era para ser pago passado um ano, tendo sido pedida a prorrogação desse prazo, o que foi concedido, pensa que até final de 2003; declarou que por conta do empréstimo de sete mil contos foram feitos alguns pagamentos que registou, sendo em 2003 pago o montante de € 1 197,24, dois pagamentos em 2005 de € 750,00 cada um e outro pagamento em 2006 no montante de € 750,00, negando que os outros pagamentos por cheques alegados pelos réus se tenham destinado a pagar o empréstimo de sete mil contos, referindo que se destinavam a abater uma outra dívida que a primitiva ré contraiu em 2004 junto de sua mãe, no montante de trinta mil euros; os depósitos de valores recebidos para pagamento do empréstimo eram feitos pela sua mãe, mas alguns valores eram entregues nos escritórios da empresa de seu pai a uma empregada chamada PP e que punha os valores recebidos no cofre da empresa; não pode garantir que alguns dos outros cheques mencionados pelos réus se possa ter destinado a pagar o empréstimo de cinco mil contos; negou que tenha havido dois empréstimos que deram origem ao de sete mil contos e, ao contrário, foi logo inicialmente um empréstimo de sete mil contos; instado pelo Sr. Advogado da primitiva ré, declarou que pelo que sabia não eram pagos juros pelo empréstimo; declarou desconhecer se seu pai emprestou dinheiro ao genro e à filha dos primitivos réus, ao mesmo tempo que emprestou ao primitivo réu, a mesma importância; o cheque datado de 08 de novembro de 2004 foi para garantia do empréstimo que sua mãe fez à ré DD, empréstimo a que o declarante se opôs; julga que o QQ era o ex-marido da ré KK, tendo corrido um processo em Ovar por causa do empréstimo que seus pais fizeram a favor do QQ e da KK, não recordando qual era o seu valor; declarou que não davam recibos dos pagamentos que recebiam; a instâncias da Sra. Advogada da recorrente referiu que sua mãe sabia dos empréstimos, mas que não sabia das condições dos mesmos; os registos dos pagamentos por conta do empréstimo objeto destes autos perderam-se em 2015 com a insolvência da empresa de seu pai; não obstante isso, tinha a referência de que apenas haviam sido entregues quatro cheques; a dívida da recorrente e de seu ex-marido foi liquidada e normalmente seu pai tinha cheques pré-datados para garantia do pagamento dos montantes emprestados, desconhecendo se essa dívida estava garantida desse modo; em 2008, a primitiva ré sugeriu o pagamento de todas as dívidas com a entrega de um terreno que valeria, no máximo, dez mil euros; instado para esclarecer pelo Sr. Advogado da primitiva autora se tinha o registo dos nºs do cheques entregues para abatimento da dívida da primitiva ré à primitiva autora respondeu afirmativamente, referindo que o cheque entregue em 2003 era o nº 308, que os cheques entregues em 2004 tinham os nºs 307, 306, 384, 419 e 420, que o cheque entregue em 2006 tinha o nº 581, que o cheque entregue em 2007 tinha o nº 729 e o nº 692 no ano de 2008. 

EE, filha de AA, de setenta e quatro anos de idade, declarou não conhecer o réu, embora soubesse que seu pai lhe havia emprestado dinheiro, não conhecendo a primitiva ré, nem os filhos dos réus; os assuntos dos empréstimos feitos por seu pai foram entregues à primitiva autora e a seu irmão; destes assuntos apenas sabe o que lhe foi contado, nomeadamente por seu pai pouco tempo antes de falecer, em março/abril de 2002; sabia que seu pai emprestava dinheiro a diversas pessoas mas não sabia dos valores concretamente emprestados; nunca viu nenhum cheque por causa dos empréstimos; seu irmão entregou-lhe algum dinheiro por conta dos recebimentos dos empréstimos, juntamente com outros valores, o ano passado e este ano, não sendo capaz de precisar que montantes recebeu a tal título.

KK, filha dos primitivos réus, de quarenta e dois anos de idade, declarou ter conhecido o falecido AA e viu a primitiva autora algumas vezes, não conhecendo os filhos do falecido AA; houve no passado um processo contra seus pais e em que foi testemunha, processo que correu em Águeda ou Oliveira Bairro; também correu um processo contra si e seu ex-marido que correu termos em Ovar, por causa de uma dívida de trinta mil euros; declarou estar nos Estados Unidos da América desde 2021, corrigindo posteriormente que estava nos Estados Unidos da América desde 2001; declarou recordar-se de seu pai pedir dinheiro em 2000, quando ainda estava em Portugal, trabalhando juntamente com seu pai no talho, situado debaixo da casa de seus pais; o pedido foi de cinco mil contos, pensa que no início do ano 2000 para ser restituído no final do ano de 2000 e mais tarde pediu mais dois mil contos ao Sr. AA, no total sete mil contos; seu pai não tinha dívidas e pensa que esses valores foram para a ajudar pois que nessa altura estava a construir a sua casa, porque não conseguiam os valores de que necessitavam; pensa que esses valores foram entregues em cheques; o cheque de sete mil contos corresponde aos empréstimos de cinco mil contos e de dois mil contos, não tendo o falecido AA devolvido o cheque de cinco mil contos que havia recebido do primitivo réu, porque as relações entre ambos eram de grande amizade e confiança; foi confrontada com a existência de declarações de dívida distintas referentes a cinco milhões de escudos e de sete milhões de escudos; sempre ouviu seu pai dizer que nada devia ao Sr. AA; acha que seu pai ainda fez pagamentos em cheques ao falecido AA no ano de 2000 assistindo a isso; sua mãe dizia-lhe que seu pai lhe dizia que estava tudo pago; viu que há um cheque de trinta mil euros que saiu da sua conta e para trocar pelo cheque que tinha sido emitido em escudos, respeitando à dívida que juntamente com seu ex-marido contraiu junto do Sr. AA e que está liquidada; o cheque foi assinado por sua mãe porque nessa altura estavam nos Estados Unidos da América; sua mãe nunca se relacionou com a primitiva autora e que depois do óbito do Sr. AA não foram feitos mais empréstimos; eram pagos juros pelos empréstimos contraídos, não sabendo qual era a taxa; a primitiva autora ia pedir juros à sua mãe ao talho sito no ..., aos sábados e sua mãe ia pagando juros dos sete mil contos emprestados; o prazo de pagamento do empréstimo de sete mil contos não foi cumprido e foi substituído por outro cheque em euros e com um novo prazo de pagamento; a instâncias da sua Advogada referiu que o cheque que titulava a sua dívida e de seu marido nunca lhe foi devolvido (“a mim não”), nem o primeiro nem o de trinta mil euros emitido mais tarde; a conta de que foi sacado o cheque assinado por sua mãe era provisionada por si e por seu marido, estando sua mãe autorizada a movimentar mediante cheques a sua conta e de seu ex-marido; a busca dos documentos deixados por seu pai no cofre comprovativos dos pagamentos feitos por ele foi feita por sua cunhada, RR; crê que sua mãe só conheceu a Dona BB “depois de o Sr. AA… ou ali, mais ou menos já depois de o meu pai ter pedido o dinheiro” ao Sr. AA, porque eles não se conheciam de lado nenhum; não acredita  que a Dona BB fosse emprestar trinta mil euros a sua mãe se já antes disso a tratava mal, exigindo juros quase todos os sábados no ...; sua mãe sempre disse que chegou a entregar dinheiro à Dona BB para sair da ..., porque não tinha cheques para lhe entregar; não existe qualquer processo da Dona BB contra sua mãe; sua mãe tem fraca escolaridade e trabalhava na lida da casa e nas terras, não tendo intervenção nos negócios; nunca lhe foram entregues recibos dos pagamentos realizados por conta da sua dívida.

SS, nora da primitiva ré, separada do réu habilitado LL, não conhecia o falecido AA, a sua viúva ou os filhos do falecido AA, estando nos Estados Unidos da América desde 2013, vivendo antes disso em ...; depois do AVC do primitivo réu, seu marido passou a explorar o talho; declarou que foi ela que fez o levantamento dos “canhotos” dos cheques que estavam em nome do Sr. AA guardados num cofre de seu sogro; na posse dos dados que retirou desses canhotos dirigiu-se à Dona TT, no Banco 1... em Águeda a fim de obter cópias dos referidos cheques; do levantamento dos cheques que fez ficou com a ideia que seu sogro tinha pagado tudo o que devia; pensa que seu sogro teve o AVC em 2007; acha que a dívida de seu sogro ao Sr. AA era de cinco mil contos e depois mais dois mil contos; a instâncias da Sra. Advogada da recorrente esclareceu que fez a busca dos “canhotos” por causa de um processo que foi instaurado pela viúva do Sr. AA contra os sogros, tendo verificado que o valor dos cheques pagos era superior ao montante pedido; a instâncias do Sr. Advogado da autora declarou que não sabe quando foram feitos os empréstimos a seu sogro, mas que foram feitos há muito tempo e que só sabe o que ouviu falar sobre esses assuntos.

DD, declarou ter conhecido o Sr. AA, não se lembrando quando é que ele morreu; só conheceu a esposa do Sr. AA depois do óbito deste; não conhece os filhos do Sr. AA; lidava pouco com o Sr. AA, sendo seu marido quem lidava mais com ele; declarou que seu falecido marido pediu dinheiro ao Sr. AA, em 2002, esclarecendo depois que o montante emprestado foi em escudos; referiu que seu marido pediu primeiramente ao Sr. AA cinco mil contos e posteriormente mais dois mil contos, não tendo assistido a tais pedidos, tendo essa informação sido transmitida por seu marido; não sabia a que seu marido destinava o dinheiro pedido emprestado, não estando por dentro dos negócios; confrontada com a “Declaração” oferecida nestes autos reconheceu tê-la assinado, mas que não conseguiram pagar tudo, declarando ainda que não assinou mais nada no ano de 2000; confrontada com a declaração de fevereiro de 2000 declarou não se recordar de a ter assinado; não viu os cheques mencionados nas declarações; sobre pagamentos disse que tinha pagado tudo e que não devia nada; depois disse que não sabia o que devia; o último cheque que entregou à Dona BB era de mil e quinhentos euros, porque ela ia ao seu local de trabalho, tratava-a mal e pedia-lhe juros, não sabendo explicar por que razão entregou esse valor; o empréstimo foi de sete mil contos e pagavam juros muito elevados; quando tinha dinheiro na gaveta pagava-lhe em dinheiro e quando tinha cheques pagava com cheques; instada a esclarecer como sabia que tinha pagado tudo declarou que depois do AVC do seu marido, acompanhada pela sua nora, foi ao escritório da Dona BB a fim de pedir um comprovativo do que lhe devia e que a empregada, a Dona PP lhe disse que não devia nada, que o marido da primitiva ré já tinha pagado tudo; nessa altura a declarante disse à Dona PP que tinha de dizer isso em tribunal, tendo esta dito que não o faria porque a Dona BB era muito má e que a despediria do trabalho; referiu ainda que a Dona PP telefonou para a Dona BB explicando que a ré DD queria um comprovativo do que devia, tendo a Dona BB respondido que não lhe desse nada; a Dona BB nunca lhe disse que nada lhe devia e pelo contrário, estava sempre a pedir dinheiro, era uma Dona UU; foram ao cofre do seu marido para verificarem se aí havia documentação dos pagamentos feitos, tendo a sua nora feito um levantamento dessa documentação; negou que além do empréstimo objeto destes autos devesse mais cinco mil contos; confrontada com o rosto do cheque no montante de trinta mil euros, sacado pela declarante com data de 08 de novembro de 2004, começou por dizer que não se lembrava de nada; depois disse que assinou esse cheque quando mudou o euro e a pedido da Dona BB; a conta sacada era de sua filha e genro e estava autorizada a assinar; depois disse que sua filha a mandou passar o referido cheque e por causa da dívida da filha ao Sr. AA; negou ter pedido dinheiro emprestado à Dona BB; o cheque por si assinado no montante de trinta mil euros não foi por si preenchido; todos os cheques foram entregues assinados, sem estarem preenchidos, sendo esse preenchimento feito pela Dona BB ou pela empregada; o dinheiro da conta a que respeita o cheque por si assinado era da sua filha.

NN, reformado, declarou conhecer os autores e os réus, dizendo depois não conhecer o falecido AA; perguntado pelo Sr. Advogado da ré DD se assistiu a alguma cena em que tivesse intervenção a Sra. Dona BB, a testemunha declarou que não conhecia o nome, mas que assistiu, que era cliente desse talho, ia lá há pouco tempo e que presenciou uma discussão dessa senhora com o filho da ré DD, por causa de um dinheiro, uns juros, declarando que não assistiu a mais nada, não tendo assistido à pancada; a senhora era já de certa idade, mas mais nova do que o depoente, de estatura média, tendo visto posteriormente mais vezes a mesma senhora a pedir dinheiro e eles davam-lho; não ouviu chamar “caloteiros”.

OO, esposa da testemunha NN, reformada, não conheceu o Sr. AA, conhecendo a viúva dele, não conhecendo os filhos do falecido AA; conhece a Dona DD e o falecido marido desta; ia ao talho com o seu marido e por vezes encontrava essa senhora, cujo nome não sabe agora a pedir os juros à Dona DD, tendo visto a Dona DD dar-lhe dinheiro; às vezes fazia gritaria e era agressiva; viu que a Dona DD em resposta à referida senhora dava-lhe dinheiro e outras vezes uns papéis que presume sejam cheques; uma vez a referida senhora chamou à DD tanto nome, como seja, ladra, ordinária, vagabunda, havendo muita gente a assistir àquilo; quando isso se passou estava a Dona DD e o filho; este estava tão perdido que as pessoas não o deixaram sair do balcão e ele espetou uma faca em cima de um cepo, ficando a faca direita em cima do cepo; a testemunha declarou que teve medo do filho da ré DD, que se dirigisse à mulher e que ele fizesse ali uma chacina com a faca e que matasse ali tudo; entretanto chegou um senhor que afastou dali a senhora que chamou os nomes, dizendo-lhe para se pôr a andar dali para fora; entretanto chegou o marido da testemunha que não assistiu a esta luta, tendo-lhe comunicado os receios que teve quanto à conduta do filho da ré; nesse dia não viu a entrega de dinheiro ou de cheques, nem viu a senhora pedir dinheiro à Dona DD; instada pelo Sr. Advogado da primitiva autora para esclarecer quando é que os factos que relatou se passaram declarou que não era capaz de precisar embora se tivessem passado ainda em vida do Sr. CC, não estando ele presente; referiu que teve “um vascular cerebral” e que esteve hospitalizada, tendo perdido muita memória; quando ouvia a senhora pedir os juros “não fez juízo de nada” mas pensa que seria de alguma coisa.

MM, reformado, na qualidade de Comandante do Posto da GNR em ..., conheceu o Sr. AA, empresário em Águeda e que comprou uma quinta em ...; conhece os filhos do falecido AA de vista; conheceu muito bem o ré CC, já que nasceram no mesmo ano e fizeram a Guerra Colonial juntos; ele tinha o talho e era seu cliente, sendo também um bom informador sobre as moradas de pessoas que viviam em ...; pensa que o falecido réu CC e o falecido AA eram amigos e por isso o CC pediu dinheiro a este; isso foi-lhe contado pelo Sr. CC; esse pedido foi quando a filha do Sr. CC casou e tinha começado a construir a casa; pensa que o empréstimo pedido pelo Sr. CC foi para ajudar a filha; referiu que ainda tinha boa memória e que o CC lhe disse que tinha pedido sete mil contos, tendo impressão que esse valor lhe foi emprestado por duas vezes; a filha do Sr. CC casou em 1997, data em que casou um sobrinho da testemunha; situa o empréstimo no início do século porque depois de casar a filha do Sr. CC teve de comprar terreno e obter licenciamentos, não sabendo ao certo quando foi o empréstimo; após o empréstimo, o Sr. AA não viveu muito tempo; o réu CC teve um AVC em 2007 e antes disso disse-lhe que estava tudo pago, referindo-se ao empréstimo que o Sr. AA lhe fez; o réu CC tinha um talho na sua residência e um outro na ..., onde estava ao sábado; declarou que o réu CC não pediu mais dinheiro ao AA além dos sete mil contos e que este lhe disse que estava tudo pago; a Dona São passava pelo talho do mercado, a “modos de extorquir dinheiro”, exigindo que lhe fosse pago o juro, tendo-se apercebido que a ré DD lhe deu dinheiro algumas vezes; o réu CC era conhecido como homem sério e a DD era só trabalho “dentro da seriedade”; a ré DD nem tinha necessidade de pedir um empréstimo à Dona BB e nem se meteria nisso porque era uma pessoa acanhada; a instâncias do Sr. Advogado da primitiva autora declarou que o falecido réu CC pediu um empréstimo de sete mil contos em duas “tranches”; viu a primitiva autora receber da ré DD dinheiro por diversas vezes, em montantes que não é capaz precisar, não podendo precisar quando mas isso ter-se-á passado até 2013, data em que o Sr. LL, filho da ré DD e do réu CC foi para o Estados Unidos da América; referiu que o Sr. AA era um empresário com boa cotação e que emprestava dinheiro com juros altos.

Rememorado o essencial da prova documental e pessoal produzida é tempo de conhecer da impugnação de cada um dos pontos de facto, tal como requerido pela recorrente, iniciando-se o nosso labor com o ponto 3 dos factos provados.

No que respeita este ponto de facto, importa desde logo relevar o documento nº 4 oferecido pela primitiva autora com a sua petição inicial, nos termos do qual CC e DD subscreveram a declaração datilografada com o seguinte teor: “Eu, abaixo assinado, CC, contribuinte nº ..., e mulher, DD, contribuinte ..., residentes na ... – ..., declaramos que devemos ao Sr. AA, casado, industrial, residente na cidade e concelho de Águeda, a quantia de 7.000.000$00 (SETE MILHÕES DE ESCUDOS), referente a um empréstimo que nos fez [sublinhado nosso], e que tem o seu vencimento no dia 31 de Dezembro de 2000. Mais declaramos que nos obrigamos a pagar tal quantia na referida data, para o que entregamos ao SR. AA, o cheque nº..., do Banco 1..., naquele valor e que este poderá endossar ao Banco no já citado dia 31 de Dezembro de 2000. Declaramos ainda que por nenhum motivo tal cheque será devolvido pelo Banco, por falta de provisão, pois o acordo entre nós e o Sr. AA, é que tal cheque, na referida data, terá provisão bancária de forma a pagarmos o débito que temos para com ele.”

A corroborar esta declaração, dotada de força probatória plena, por não ter sido impugnada, existe o documento nº 5 oferecido pela primitiva autora com a sua petição inicial e que é precisamente o título referido na declaração que antes se reproduziu, ou seja, o rosto do cheque nº ... sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de sete milhões de escudos, com data de 31 de dezembro de 2000, a favor de “AA”, título que terá sido substituído pelo cheque nº ... sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de trinta e quatro mil novecentos e quinze euros e oitenta e seis cents[12], com data de 31 de dezembro de 2003, a favor de “AA”.

Sublinhe-se que aquele título (o cheque nº ...) tem uma data posterior em cerca de seis meses relativamente à data da declaração datada de 22 de junho de 2000, o que se coaduna com a natureza de “cheque de garantia” que este título desempenharia relativamente ao empréstimo “titulado pela declaração antes citada.

A versão que a primitiva ré e a ora recorrente pretenderam transmitir é altamente implausível face à existência de uma declaração datada de 22 de fevereiro de 2000, referente a um empréstimo de cinco milhões de escudos, subscrita pelos primitivos réus, declaração corroborada pelo rosto do cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de cinco milhões de escudos, com data de 22 de agosto de 2000 e ainda pelo rosto do cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de vinte e quatro mil novecentos e trinta e nove euros e noventa cents[13], com data de 22 de agosto de 2002.

Na verdade, se ainda se pode admitir, no campo das hipóteses, que uma primeira declaração e um cheque pudessem ficar “esquecidos” na posse do falecido AA, já não se entende de todo que o cheque de cinco milhões de escudos haja sido substituído por um outro cheque de valor equivalente em euros e datado para 22 de agosto de 2002.

Recorde-se que o euro entrou em circulação em Portugal em 01 de janeiro de 2002, pelo que de acordo com a normalidade a necessidade de substituir o cheque de cinco milhões de escudos só se terá colocado no decurso da parte final do ano de 2001 ou no começo do ano de 2002. É também de admitir que essa substituição se pudesse colocar a partir de 22 de agosto de 2000 que era a data aposta no cheque de cinco milhões de escudos.

Ora, em qualquer desses momentos, já o falecido AA tinha em seu poder a declaração datada de 22 de junho de 2000, referente ao empréstimo de sete milhões de euros e bem assim o cheque mencionado nessa declaração datado para 31 de dezembro de 2000, posteriormente substituído por outro cheque em euros e datado para 31 de dezembro de 2003.

Convenhamos que mesmo entre amigos, a tese da recorrente implica sucessivos esquecimentos e uma confiança no outro que não se coaduna com o que é normal no âmbito das relações comerciais e negociais. Anote-se que se o falecido AA era um empresário, o falecido primitivo réu explorava dois talhos, tendo por isso também necessariamente experiência negocial. Aliás é a própria viúva do primitivo réu, a ré DD, a referir que era estranha aos negócios do marido e que era ele que os conduzia.

O acervo documental que se acaba de analisar corrobora plenamente as declarações prestadas por FF que se referiu à existência de dois empréstimos distintos, um de cinco milhões de escudos e um outro de sete milhões de escudos e, ao invés, retira toda a credibilidade às declarações que foram prestadas pela recorrente e por sua mãe DD.

Assim, face ao exposto, improcede a impugnação do ponto 3 dos factos provados.

Debrucemo-nos agora sobre o ponto 10 dos factos provados.

Antes de iniciarmos a cognição desta pretendida impugnação deste ponto de facto, deve começar por se observar que o que na realidade a recorrente pretende é uma ampliação da decisão da matéria de facto com base em factualidade que não foi alegada nos articulados e que apenas foi ventilada na audiência final por alguma prova pessoal oferecida pelas rés.

Como é sabido, nos termos do disposto na alínea c) do nº 2 do artigo 662º do Código de Processo Civil, a Relação deve, ainda, mesmo oficiosamente anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.

Deste modo, o tribunal ad quem apenas deve proceder à ampliação da matéria de facto sempre que conclua que, à luz das diversas soluções plausíveis das questões decidendas, existe matéria de facto alegada que não foi conhecida pelo tribunal recorrido, emitindo um juízo de provado ou não provado e isso desde que se trate de matéria indispensável à dilucidação das aludidas soluções plausíveis.

No caso dos autos, a matéria que a recorrente pretende ver incluída no ponto 10 dos factos provados não foi alegada nos articulados pois que não foram alegados pagamentos em numerário, como decorre claramente da contestação da primitiva ré a que a ora recorrente aderiu (vejam-se os artigos 25 a 36 da contestação da primitiva ré a que a ora recorrente aderiu nos artigos 26 a 28 da sua contestação).

Pelo contrário, no artigo 36 da sua contestação a primitiva ré referiu que os montantes alegadamente por si pagos foram sempre creditados nas contas identificadas no ponto 10 dos factos provados, referindo posteriormente no artigo 38 do mesmo articulado que a totalidade dos pagamentos efetuados pelos réus apenas se poderá apurar com a “junção aos autos e análise dos extractos daquelas duas contas mencionadas (de 2000 até final de 2008), junção que depende da colaboração da AUTORA e que esta, desde logo, pelo dever de cooperação processual na descoberta da verdade, está obrigada a prestar”.

Ora, é evidente que pagamentos em numerário não são passíveis de ser verificados com a simples análise de extratos bancários, pois que, na melhor das hipóteses, o que poderia acontecer era o depósito de numerário pelos réus nas aludidas contas, realidade que se teria de provar não só com os extratos, mas também com os comprovativos dos depósitos numa daquelas contas.

No caso dos autos, a autora ofereceu cópias da sua caderneta bancária na Banco 2... e extratos das aludidas contas bancárias na Banco 2... e no Banco 3... e nada foi requerido na sequência do oferecimento dessa prova documental.

Neste circunstancialismo, em que está em causa matéria de facto que não foi alegada[14], ou seja, pagamentos em numerário, a ampliação da decisão da matéria de facto só pode ter lugar se se entender que decorre de factualidade complementar ou concretizadora da que as partes tenham alegado e que se tenha vindo a revelar no decurso da instrução da causa, tal como previsto na alínea b) do nº 2 do artigo 5º do Código de Processo Civil.

Ora, salvo melhor opinião, não está em causa factualidade complementar da que foi alegada nas contestações, mas sim uma realidade nova e que é a alegada existência de pagamentos em numerário em montantes que, “apesar de não concretamente apurados, foram suficientes para o pagamento total da dívida”.

Além de não estar em causa factualidade complementar da que foi alegada nas contestações, a pretendida ampliação também não constitui também matéria concretizadora da que foi alegada nas contestações e, ao invés, é ela própria constituída por matéria genérica, indeterminada e conclusiva, sem aptidão para se constituir objeto de instrução e, posteriormente, de um juízo probatório passível de uma racional motivação.

Assim, face ao exposto, indefere-se a pretendida ampliação do ponto 10 dos factos provados, improcedendo pelas razões expostas esta pretensão da recorrente.

Debrucemo-nos agora sobre a impugnação dos factos não provados constantes dos artigos 13, 14 e 16 a 22 da contestação da recorrente.

Esta impugnação respeita à tese da ora recorrente de que só houve um empréstimo de sete milhões de escudos dividido em duas parcelas, uma primeira de cinco milhões de escudos e uma segunda no montante de dois milhões de escudos, tese que quando se conheceu a impugnação do ponto 3 dos factos provados se refutou atenta a prova documental que então se analisou criticamente e que corrobora as declarações do interveniente FF.

Na verdade, como já antes se referiu, a impugnação da recorrente olvida de todo o rosto do cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de vinte e quatro mil novecentos e trinta e nove euros e noventa cents, com data de 22 de agosto de 2002.

Na tese da recorrente, o primitivo réu não pediu a devolução do cheque de cinco milhões de escudos, com data de 22 de agosto de 2000 e bem assim da declaração que se refere a tal cheque e datada de 22 de fevereiro de 2000.

Mas nada diz quanto ao cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de vinte e quatro mil novecentos e trinta e nove euros e noventa cents, com data de 22 de agosto de 2002.

Como já antes se referiu, a emissão deste cheque só tem sentido num momento em que se aproxime a entrada em circulação do euro, data necessariamente posterior à declaração de 22 de junho de 2000 e ao cheque no montante de sete milhões de escudos datado para 31 de dezembro de 2000.

Ora, se a dívida de cinco milhões de escudos foi incluída na declaração relativa aos sete milhões de escudos, sendo então entregue um cheque de sete milhões de escudos, como se justifica a substituição desse cheque de cinco milhões de escudos por um cheque de igual valor em euros, em data necessariamente posterior a tal declaração?

Atente-se que com a declaração referente ao empréstimo de sete milhões de escudos foi entregue um cheque ainda em escudos datado para 31 de dezembro de 2000, cheque que posteriormente foi substituído por um outro de valor equivalente em euros.

Assim, no contexto probatório que se acaba de enunciar é notório que a versão que a recorrente e a sua mãe pretenderam comprovar com as suas declarações é de todo infirmada por prova documental com força probatória plena, razão pela qual bem andou o tribunal recorrido ao julgar não provados os artigos 13, 14 e 16 a 22 da contestação da ora recorrente.

Pelo exposto, improcede totalmente a impugnação/ampliação da decisão da matéria de facto requerida pela recorrente.

3.3 Fundamentos de facto exarados na decisão recorrida que face à total improcedência da pretensão da recorrente de impugnação/ampliação da decisão da matéria de facto se mantém intocada mas expurgada das meras remissões probatórias e sem prejuízo da correção oficiosa de lapsos que na mesma se verifiquem

3.3.1 Factos provados


3.3.1.1

Em maio de 2002 faleceu AA no estado de casado com a autora e cabeça de casal, BB, no regime de comunhão geral de bens, deixando como herdeiros, para além da viúva, dois filhos, os intervenientes principais nos autos, EE e FF.

3.3.1.2

AA e os réus eram amigos de longa data.

3.3.1.3

O falecido AA entregou ao falecido réu, a pedido deste, em 27 de junho de 2000 a quantia de 7.000.000$00 correspondente a € 34.915,85.

3.3.1.4

Na data de 27 de junho de 2000 os réus assinaram a declaração constante de fls. 15 da qual consta o seguinte:

Eu, abaixo assinado, CC (…) e mulher DD (…) declaramos que devemos ao Sr. AA, casado, industrial e residente na cidade e concelho de Águeda, a quantia de 7.000.000$00 (…),

referente a um empréstimo que nos fez e que tem o seu vencimento no dia 31 de Dezembro de 2000.

Mais declaramos que nos obrigamos a pagar tal quantia na referida data, para o que entregamos ao Sr. AA (…) o cheque nº... do Banco 1..., naquele valor, e que este poderá endossar ao Banco no já citado dia 31 de Dezembro de 2000.

Declaramos ainda que por nenhum motivo tal cheque será devolvido pelo Banco por fal[t]a de provisão, pois o acordo entre nós e o Sr. AA (…) é que tal cheque, na referida data, terá provisão bancária de forma a pagarmos o débito que temos para com ele.


3.3.1.5

O cheque referido na declaração anterior foi entregue com data de vencimento posterior para 31-12-2000.

3.3.1.6

O cheque referido no ponto anterior não foi apresentado a pagamento e foi substituído por outro de igual valor, mas em euros - € 34.915,86 - e com nova data de vencimento: 31-12-2003.

3.3.1.7

Por conta do pagamento do valor referido em 3º [3.3.1.3] os réus entregaram à cabeça de casal, já depois do óbito do seu marido, as quantias de € 2.250,00€ (dois mil duzentos e cinquenta euros) por cheques de € 750,00 cada em: 30-09-2005, 31-10-2005 e 02-02-2006.

3.3.1.8

Para além dos valores mencionados no ponto anterior e por conta do pagamento do valor referido em 3º [3.3.1.8] e até ao ano de 2008 os réus procederam, ainda, ao pagamento de diversas importâncias, concretamente à cabeça de casal, já depois do óbito do Sr. AA.

3.3.1.9

Designadamente:

a) De pelo menos € 1.197,24, no ano de 2003;

b) De pelo menos € 17.158,64, no ano de 2004;

c) De pelo menos € 900,00 no ano de 2006;

d) De pelo menos € 1.500,00, no ano de 2007;

e) De pelo menos € 1.500,00, no ano de 2008.


3.3.1.10

Os montantes identificados eram creditados na conta ... da Banco 2... ou na conta ...... do Banco 3..., de que a autora e cabeça de casal era também titular;

3.3.1.11

Correu seus termos pelo agora Juízo Local Cível de Aveiro, J2, uma ação cível, com a forma de processo sumário, com o n.º 577/12.8T2AVR em que era autora a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de AA representa[da] pela cabeça de casal, BB e eram réus os mesmos réus demandados nestes autos.

3.3.1.12

Tratava-se de uma ação de cobrança de dívida, mas em que a autora alegava que o seu falecido marido tinha emprestado aos réus a quantia de 5.000.000$00 em 22 de fevereiro de 2000, juntando uma declaração de conteúdo similar à referida em 4º [3.3.1.4] mas com o valor de 5.000.000$00 e acompanhada por um cheque de garantia com essa data de emissão (22-02-2000[15]).

3.3.1.13

Na petição inicial do processo em causa alegou também a autora que houve prorrogação do prazo e que o cheque foi substituído por outro de igual montante, mas com a conversão para euros no valor de € 24 939,90 e que os réus não pagaram, tendo efetuado entregas parciais, uma de € 750,00 por cheque de 02-02-2006 e outras duas de € 1.500,00 por cheques de 30-01-2007 e 06-10-2007.

3.3.1.14

O cheque de € 750,00 de 02-02-2006 é o mesmo cheque que nos presentes autos, a autora e intervenientes alegaram como integrando o pagamento parcial da quantia entregue no valor de 7.000.000$00[16].

3.3.1.15

No processo 577/12.8T2AVR a ré deduziu contestação e no que aos pagamentos diz respeito, alegou nos artigos 25º a 35º as mesmas quantias mencionadas nos presentes autos.

3.3.1.16

O processo com o n.º 577/12.8T2AVR está findo e no arquivo desde 10-11-2016, tendo sido proferida decisão final no dia 25-02-2016, transitada em julgado, que julgou procedente a exceção dilatória de falta de personalidade judiciária da autora e absolveu os réus da instância.

3.3.2 Factos não provados


3.3.2.1

Os réus foram interpelados para pagar aquele mútuo na íntegra.

3.3.2.2

Na verdade, como é do conhecimento da AUTORA, a RÉ DD, que aqui contesta, nenhuma intervenção pessoal teve nos negócios havidos entre o falecido AA e o seu marido (o RÉU CC)

3.3.2.3

Desconhecendo, todavia, os valores exatos de tais empréstimos bem como quais as importâncias que no desenvolvimento de tais mútuos terão sido efetivamente entregues pelo finado AA ao marido da RÉ.

3.3.2.4

Mas aceitando que, como alega a AUTORA, de tais negócios existisse apenas, para o seu marido, a obrigação de restituição dos montantes mutuados.

3.3.2.5

Procedeu à liquidação do montante de pelo menos € 997,60, no ano de 2.000.

3.3.2.6

De pelo menos € 6.384,61, no ano de 2001.

3.3.2.7

De € 2.394,24, no ano de 2002.

3.3.2.8

De € 5.985,48, além da quantia de € 1.197,24, no ano de 2.003.

3.3.2.9

De € 495,20, além da quantia de € 1.500,00, no ano de 2005.

3.3.2.10

Os cheques identificados na contestação da primitiva ré como documentos nºs 3 a 8, 10 e 12 a 13 foram para liquidação/pagamento parcial de um mútuo no valor de € 30.000,00.

3.3.2.11

Que BB concedeu, em 2002, à ré DD.

3.3.2.12

O qual se venceu em 08.11.2004.

3.3.2.13

Daí que, mesmo que se admitisse que esses cheques não foram entregues para o pagamento do mútuo suprarreferido em 16 a 19 da réplica [3.3.2.10 a 3.3.2.12], resulta do alegado pela ré DD, na sua contestação apresentada na ação nº 577/12.8T2AVR a correr termos no Juiz 1 do Juízo de Média e Pequena Instância Cível de Aveiro, que estes cheques foram entregues para pagamento do mútuo deste último processo.

3.3.2.14

Contudo, sensivelmente em maio de 2000, o falecido CC precisou de mais 2.000 contos pelo que, mais uma vez, recorreu ao seu amigo AA que, novamente lhe emprestou em finais de junho de 2000.

3.3.2.15

Assim, o valor total do débito naquela data, do CC para com o AA passou a ser de 7.000,00 contos (cerca de € 35.000,00), que deveriam ser pagos (conforme combinado entre os dois) até finais desse ano.

3.3.2.16

Ou seja, tendo aumentado o valor da dívida, alargou-se o prazo de pagamento da mesma (a dívida passou de 5.000 contos a pagar até Agosto de 2000 para 7.000 contos a pagar até final do ano de 2000, mais tarde prorrogado até o último dia de 2003).

3.3.2.17

Para garantir esse pagamento, o falecido [CC] preencheu e entregou ao Sr.  AA um cheque no valor de 7 mil contos, com data de vencimento em 31.12.2000.

3.3.2.18

Bem como assinou e deu a assinar à sua esposa uma declaração de dívida.

3.3.2.19

Assim, não existia uma dívida de 5.000 contos (que soube agora a contestante foi reclamada no processo 577/12.8T2AVR, do Juízo Local Cível de veiro – J 2) e uma outra dívida de 7.000 contos que está aqui a ser reclamada nestes autos.

3.3.2.20

Existia (ou seja, no passado) uma única dívida de 7.000 contos, que abrangia já os 5.000 contos antes emprestados.

3.3.2.21

A verdade é que quando o pai da contestante e o falecido AA acordaram na “reestruturação da dívida”, este não devolveu ao CC o cheque que já tinha na sua posse.

3.3.2.22

Nem tão-pouco a primitiva declaração de dívida, acreditando o CC que aquele os havia inutilizado.

3.3.2.23

De todo o modo, a verdade é que o CC também nunca pediu tais documentos de volta, por confiar inteiramente na seriedade do Sr. AA e que este nunca utilizaria tal cheque/declaração para qualquer fim (que, recorde-se, foi substituído pelo de 7.000 contos).

4. Fundamentos de direito

Da iliquidez da obrigação a final reconhecida pelo tribunal e, consequentemente, do termo inicial da contagem de juros de mora

A recorrente insurge-se contra a decisão do tribunal recorrido que a condenou a pagar juros de mora à taxa supletiva legal desde a citação e até efetivo pagamento, argumentando para tanto que, em síntese, “a considerar-se ser devida alguma quantia (o que não se aceita e apenas se equaciona por cautela) os juros apenas poderão ser devidos a partir do momento em que o valor em dívida é fixado na decisão e, consequentemente, se torna num valor líquido, e não desde a citação.”

Cumpre apreciar e decidir.

Antes de entrar no conhecimento desta questão recursória importa clarificar que face à improcedência da pretensão da decisão da matéria de facto, na falta de crítica aos fundamentos de direito adotados na sentença recorrida para firmar a condenação dos réus ao pagamento do capital no montante de € 10.409,98, nada há a apreciar relativamente a esta matéria.

A recorrente insurge-se contra a sua condenação ao pagamento de juros de mora à taxa supletiva legal desde a citação até efetivo e integral pagamento, enquadrando esta obrigação no regime geral da mora do devedor, nomeadamente na questão da mora no caso de obrigações ilíquidas[17].

Porém, como já antes se referiu, no caso dos autos está em causa uma obrigação de restituir decorrente da declaração de nulidade por vício de forma de um contrato de mútuo, obrigação que se estende aos frutos civis que o capital a restituir poderia produzir.

Na realidade, quanto aos frutos civis do capital a restituir, há que ter em atenção o disposto no nº 3 do artigo 289º do Código Civil, em conjugação com o previsto no nº 1 do artigo 1270º do mesmo diploma legal e ainda do artigo 564º, alínea a) do atual Código de Processo Civil, que corresponde ao artigo 481º, alínea a) do anterior Código de Processo Civil que vigorava quando foi instaurada a ação e citada a primitiva ré.

De facto, por força do disposto no nº 3 do artigo 289º do Código Civil, é aplicável à obrigação de restituição resultante de declaração de nulidade ou anulação, o disposto nos artigos 1269º e seguintes do Código Civil.

Ora, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 1270º do Código Civil, o possuidor de boa-fé faz seus os frutos civis[18] até o dia em que souber que está a lesar com a sua posse o direito de outrem.

Por força do disposto no artigo 564º, alínea a) do atual Código de Processo Civil, que corresponde ao artigo 481º, alínea a) do anterior Código de Processo Civil que vigorava quando foi instaurada a ação e citada a primitiva ré, a citação faz cessar a boa-fé do possuidor, estando este, a partir de então, obrigado a restituir os juros que o capital que está obrigado a restituir poderia produzir (artigos 1270º, nº 1, a contrario sensu e 1271º, ambos do Código Civil[19]).

Estando em causa a restituição de dinheiro, a restituição dos frutos civis deve calcular-se tendo em atenção o disposto no nº 2 do artigo 806º do Código Civil.

Assim, pode concluir-se, com segurança que bem andou a decisão recorrida ao condenar os réus ao pagamento juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 4%, desde a citação e até efetivo pagamento e contados sobre o capital restituendo de € 10.409,98.

Deste modo, improcede totalmente o recurso de apelação interposto por KK, respondendo, consequentemente, a recorrente pelas custas do recurso (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

5. Dispositivo

Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por KK e, consequentemente, em confirmar a sentença recorrida proferida em 27 de julho de 2023, nos segmentos impugnados.

Custas a cargo da recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.


***

O presente acórdão compõe-se de quarenta e três páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.


Porto, 10 de julho de 2024
Carlos Gil
Teresa Fonseca
Fátima Andrade
__________________
[1] Segue-se, com alterações, o relatório da decisão recorrida.
[2] Notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 28 de julho de 2023.
[3] A este propósito, importa recordar o acórdão de uniformização de jurisprudência, identificado como Jurisprudência nº 3/2001, publicado na primeira série A do Diário da República de 19 de fevereiro de 2001, com o seguinte teor: “Tendo o autor, em ação de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (n.º 1 do artigo 616.º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo artigo 664.º do Código de Processo Civil.”
[4] Este na redação que lhe foi dada pelo decreto-lei nº 343/98 de 06 de novembro.
[5] Na realidade, o que a recorrente pretende é a simples improcedência da ação, sem efetiva resolução do conflito que opõe as partes, o que se traduz num desperdício dos meios processuais, pois que sempre será necessária outra ação para resolução do referido conflito, sendo certo que é possível nesta ação, sem atropelo dos direitos das partes, resolver definitivamente o litígio em que as partes estão envolvidas.
[6] Sobre esta classificação, por todos, veja-se Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Facto Jurídico, em especial Negócio Jurídico, 4ª reimpressão, Almedina 1974, Manuel A. Domingues de Andrade, penúltimo parágrafo da página 43.
[7] Apesar de se nos afigurar que continua a fazer sentido a aplicação da doutrina que decorre desta decisão uniformizadora de jurisprudência, não acompanhamos os seus fundamentos, tributários da posição veiculada pelo Sr. Professor Adriano Vaz Serra, na anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de outubro de 1975, publicada na Revista de Legislação e Jurisprudência Ano 109, nº 3581, páginas 308 a 316, em que se defende a solução que veio a ser adotada no citado aresto aplicando o instituto da conversão do negócio jurídico à petição inicial.
[8] Neste ponto dos factos provados, por evidente lapso, o tribunal a quo não atentou que na sessão da audiência final realizada no dia 13 de setembro de 2022 deferiu o requerimento da ora recorrente no sentido de as referências ao ano “2002” constantes dos artigos 13, 14 e 15 da sua contestação passarem a ser entendidas como relativas ao ano “2000”, decisão judicial que transitou em julgado por não ter sido impugnada. Por isso, onde ficou escrito “2002” deverá ler-se “2000”.
[9] A primeira “Declaração” oferecida com a petição inicial como documento nº 4, está datada de 27 de junho de 2000, assinada por CC e DD, está datilografa e tem o seguinte conteúdo: “Eu, abaixo assinado, CC, contribuinte nº ..., e mulher, DD, contribuinte ..., residentes na ... – ..., declaramos que devemos ao Sr. AA, casado, industrial, residente na cidade e concelho de Águeda, a quantia de 7.000.000$00 ( SETE MILHÕES DE ESCUDOS), referente a um empréstimo que nos fez, e que tem o seu vencimento no dia 31 de Dezembro de 2000. Mais declaramos que nos obrigamos a pagar tal quantia na referida data, para o que entregamos ao SR. AA, o cheque nº..., do Banco 1..., naquele valor e que este poderá endossar ao Banco no já citado dia 31 de Dezembro de 2000. Declaramos ainda que por nenhum motivo tal cheque será devolvido pelo Banco, por falta de provisão, pois o acordo entre nós e o Sr. AA, é que tal cheque, na referida data, terá provisão bancária de forma a pagarmos o débito que temos para com ele.” A segunda declaração oferecida com a petição inicial no processo nº 557/12.8T2AVR como documento nº 4, está datada de 22 de fevereiro de 2000, assinada por CC e DD, está datilografa e tem o seguinte conteúdo: “Eu, abaixo assinado, CC, contribuinte nº ..., e mulher, DD, contribuinte ..., residentes na ... – ..., declaramos que devemos ao Sr. AA, casado industrial, residente na cidade e concelho de Águeda, a quantia de (5.000.000$00) CINCO MILHÕES DE ESCUDOS, referente a um empréstimo que nos fez, e que tem o seu vencimento no dia 22 de Agosto de 2000. Mais declaramos que nos obrigamos a pagar tal quantia na referida data, para o que entregamos ao SR.AA, o cheque nº ..., do Banco 1..., naquele valor e que este poderá endossar ao Banco no já citado dia 22 de Agosto de 2000. Declaramos ainda que por nenhum motivo tal cheque será devolvido pelo Banco, por falta de provisão, pois o acordado entre nós e o Sr. AA, é que tal cheque, na referida data terá provisão bancária de forma a pagarmos o débito que temos para com ele.”
[10] Referimo-nos ao rosto do cheque nº ... sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de sete milhões de escudos, com data de 31 de dezembro de 2000, a favor de “AA” e ao rosto do cheque nº ... sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de trinta e quatro mil novecentos e quinze euros e oitenta e seis cents, com data de 31 de dezembro de 2003, a favor de “AA”. Na tese convergente de autores e réus estes títulos seriam cheques de “garantia”, visando conferir a AA um documento comprovativo da entrega dos valores em causa ao primitivo réu ou, noutra visão, seriam reconhecimentos de dívida do primitivo réu a favor do falecido marido da primitiva autora. Em situação algo similar a estes títulos acha-se o rosto do cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., da titularidade de QQ (então genro da primitiva autora), por alguém que se identificou como “DD” no montante de trinta mil euros, com data de 08 de novembro de 2004, a favor de BB. Neste grupo de títulos, cabe ainda referir os que foram apresentados no processo nº 557/12.8T2AVR e que são o rosto do cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de cinco milhões de escudos, com data de 22 de agosto de 2000 e o rosto do cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de vinte e quatro mil novecentos e trinta e nove euros e noventa cents, com data de 22 de agosto de 2022. Sublinhe-se que de todos estes títulos apenas está cópia nos autos do rosto de cada um deles, desconhecendo-se por isso se alguma vez foram apresentados a pagamento ou se houve alguma ou algumas vicissitudes no pagamento de cada um deles.
[11] Nesta situação estão em causa os seguintes títulos: cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de mil cento e noventa e sete euros e vinte e quatro cents, com data de 30 de setembro de 2003, sem indicação de beneficiário e pago em 11 de novembro de 2003; cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de mil cento e noventa e sete euros e vinte e quatro cents, com data de 29 de fevereiro de 2004, sem indicação de beneficiário e pago em 24 de março de 2004; cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de mil cento e noventa e sete euros, com data de 31 de março de 2004, sem indicação de beneficiário e pago em 07 de abril de 2004; cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de mil trezentos e noventa e seis euros e sessenta e quatro cents, com data de 31 de março de 2004, sem indicação de beneficiário e pago em 07 de abril de 2004; cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de nove mil novecentos e setenta e cinco euros e noventa e cinco cents, com data de 14 de agosto de 2004, sem indicação de beneficiário e pago em 19 de agosto de 2004; cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de dois mil trezentos e noventa e quatro euros e vinte e três cents, com data de 08 de novembro de 2004, sem indicação de beneficiário e pago em 03 de dezembro de 2004; cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de mil novecentos e noventa e cinco euros e vinte cents, com data de 30 de dezembro de 2004, sem indicação de beneficiário e pago em 04 de janeiro de 2005; cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de setecentos e cinquenta euros, com data de 02 de fevereiro de 2006, sem indicação de beneficiário e pago em 06 de fevereiro de 2006; cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de novecentos euros, com data de 02 de fevereiro de 2006, a favor de BB e pago em 08 (?) de fevereiro de 2006; cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de setecentos e cinquenta euros, com data de 02 de fevereiro de 2006, sem indicação de beneficiário e pago em 13 de março de 2006; cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de mil e quinhentos euros, com data de 30 de janeiro de 2007, sem indicação de beneficiário e pago em 31 de janeiro de 2007; cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., no Banco 1..., por alguém que se identificou como “CC”, no montante de mil e quinhentos euros, com data de 06 de outubro de 2008, a favor de BB e pago em 08 de outubro de 2008. Estes cheques totalizam o montante de € 24.753,50.
[12] Este valor excede em um cent o valor da conversão de sete milhões de escudos em euros, o que, salvo melhor opinião, resulta de um erro no arredondamento do produto dessa conversão, já que esse valor, sem arredondamento, é de € 34 915,85279476462.
[13] Sublinhe-se que também relativamente a este cheque o valor nele aposto excede em um cent o valor da conversão de cinco milhões de escudos em euros, o que, salvo melhor opinião, resulta de um erro no arredondamento do produto dessa conversão, já que esse valor, sem arredondamento, é de € 24 939,8948534033.
[14] Mas que, na sua essencialidade, tinha de ser articulada por integrar defesa por exceção perentória (veja-se o nº 1 do artigo 5º do Código de Processo Civil).
[15] Na realidade a data que consta do cheque é 22 de agosto de 2000 (22-08-2000).
[16] Salvo melhor opinião, esta conclusão do tribunal recorrido não tem base factual que a sustente. De facto, nestes autos, no artigo 15º da petição inicial, a autora alega ter sido efetuado um pagamento no montante de € 750,00 em 02 de fevereiro de 2006, mediante cheque. Porém, a autora não indica o nº do cheque em causa, nem oferece qualquer prova documental para comprovação dessa alegação. Na contestação, a primitiva ré alegou no artigo 32 que no ano de 2006 pagou pelo menos o valor de € 2 400,00, valor parcialmente confessado pela autora, no artigo 15º da petição inicial, alega. Para instruir esta alegação ofereceu três cheques: o primeiro, no montante de € 750,00, sacado com data de 02 de fevereiro de 2006, com o nº ..., pago no dia 06 de fevereiro de 2006; o segundo, no montante de € 900,00, sacado com data de 02 de fevereiro de 2006, com o nº ..., pago em 08 (?) de fevereiro de 2006; o terceiro, no montante de € 750,00, sacado com data de 02 de fevereiro de 2006, com o nº ..., pago no dia 13 de março de 2006. Por outro lado, no processo nº 557/12.8T2AVR, a autora no artigo 15º da petição inicial oferecida nesses autos produziu alegação idêntica à feita nestes autos, não identificando o nº do cheque em causa, nem oferecendo prova documental para comprovação dessa alegação. Na contestação oferecida pela primitiva ré no processo nº 557/12.8T2AVR, no artigo 32 desse articulado, repete a alegação feita nestes autos e oferece a mesma prova documental. Ora, havendo dois cheques sacados com data de 02 de fevereiro de 2006, no montante de € 750,00, não se vê como se pode concluir nos termos em que se concluiu neste ponto de facto, pois que um dos aludidos cheques, na tese da autora, pode respeitar a estes autos e o outro ao processo nº 557/12.8T2AVR.
[17] Não se suscita qualquer questão quanto à natureza da obrigação que impende sobre os réus e sobre a forma como se relevará ou não a citação de cada um dos réus, razão pela qual estas questões, que não são de conhecimento oficioso, não integram o objeto do recurso.
[18] Os frutos civis são as rendas ou interesses que a coisa produz em consequência de uma relação jurídica (segunda parte do nº 2 do artigo 212º do Código Civil).
[19] Neste sentido veja-se Código Civil Comentado, I – Parte Geral, CIPD, Almedina 2020, coordenação de António Menezes Cordeiro, página 856, nota 15, da responsabilidade do coordenador.