Proc. n.º 5584/23.2T8VNG.P1
Sumário:
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1. Relatório.
AA, instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “A... – Companhia de Seguros, S.A.”, pedindo a sua condenação a pagar a quantia de 344.358,93 euros, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação a até integral e efectivo pagamento, referente aos valores dos bens subtraídos, bem como a quantia de 72.000,00 euros, desde 23 de Abril de 2023, data em que declinou a sua responsabilidade pelo sinistro, até à presente data, num total de 72 dias, a 1.000,00 euros diários, e a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, por força da privação do uso dos bens que se mantém, em virtude de a ré não assumir as suas responsabilidades contratuais.
Alega, em síntese, que ocorreu um furto na sua residência, tendo sido subtraídos diversos objectos, sendo a ré responsável pelas consequências patrimoniais de tal furto, por efeito do contrato de seguro celebrado entre ambos. Alega, ainda, que a ré não assumiu a responsabilidade pelo furto, tendo comunicado ao autor que a sua posição se encontra condicionada à conclusão do inquérito a correr termos no DIAP, estando ultrapassado o prazo para efectuar o pagamento da indemnização, situação que causa prejuízos ao autor e à sua companheira.
A ré contestou, requerendo a suspensão da instância até à conclusão do processo-crime, defendendo que estão excluídos do contrato de seguro as joias, os relógios, os objectos em ouro, prata ou outros metais preciosos que não estejam discriminados e valorados nas condições particulares e impugnando a ocorrência do sinistro e os danos invocados.
Foi saneada e instruída a causa e após julgamento foi proferida sentença que: condenou a ré a pagar ao autor a quantia global de 211.344,93 euros (duzentos e onze mil trezentos e quarenta e quatro euros e noventa e três cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos e vincendos, contados desde a data da citação e até integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado.
Inconformado veio o autor recorrer, recurso esse que foi admitido como de de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo
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2.1. O apelante apresentou as seguintes conclusões
1 – O Recorrente veio propor a presente ação, pedindo a condenação da Recorrida no pagamento da quantia de € 344.358,93 (trezentos e quarenta e quatro mil trezentos e cinquenta e oito euros e noventa e três cêntimos), acrescido da quantia diária de € 1.000,00 (mil euros), pela privação do uso dos objetos subtraídos.
2 – Para tanto, alegou ter subscrito com a Recorrida um contrato de seguro denominado Casa Segura, na modalidade de recheio, que previa, entre outros, o furto de bens na sua residência.
3 – Assim, no dia 22 de Abril de 2023, a residência do Recorrente foi alvo de um furto, onde lhe foram subtraídos diversos objetos, que totalizaram o valor peticionado.
4 – Na sequência da ação proposta, a Recorrida apresentou articulado impugnatório, tendo sido realizada a audiência de julgamento, com produção de prova.
5 – Foi proferida a sentença ora censurada, a qual veio julgar parcialmente procedente o pedido formulado pelo Recorrente e, em consequência, condenou a Recorrida a pagar ao Recorrente a quantia total de € 211.344,93 (duzentos e onze mil trezentos e quarenta e quatro euros e noventa e três cêntimos).
6 – O Recorrente não pode concordar com a sentença refutada e aqui recorrida, uma vez que da prova produzida existem dois factos que foram dados como não provados (artigos 116.º e 121.º da PI) que não refletem os depoimentos das testemunhas BB e CC.
7 – Estas testemunhas foram inquiridas quanto aqueles factos, a BB no dia 14 de Outubro de 2024, a minutos 10:28 a 11:22, e a CC no dia 28 de Outubro de 2024, a minutos 9:57 a 10:15, onde confirmaram, em suma, que a fonte mais rentável para a marca de roupa do Recorrente era a loja online (website) e as redes sociais (Facebook e Instagram), assim como a recusa de alguns eventos (7 ou 8) de promoção da marca de roupa do Recorrente, por não terem os relógios e joias para utilizar nessas campanhas publicitárias.
8 – Assim, tem de ser dado como provado que: “A fonte de rendimento mais rentável para a designada marca de roupa, é a loja online e as redes sociais. O Autor e a sua companheira têm recusado alguns eventos de promoção da sua marca de roupa, uma vez que não têm relógios e jóias que possam substituir aqueles que lhes foram subtraídos no assalto à sua residência, no passado dia 22 de Abril de 2023.”
9 – Ora, a alteração destes factos para o elenco da factualidade dada como provada, terá relevância para efeitos de privação do uso dos objetos subtraídos, cuja indemnização foi peticionada pelo Recorrente.
10 – Resulta dos factos dados como provados que foram subtraídos ao Recorrente e à sua companheira, três relógios da marca Hublot, um relógio da marca Franck Muller, um relógio da marca Audemars Piguet, e um relógio da marca Rolex, no valor total de € 240.500,00 (duzentos e quarenta mil e quinhentos euros).
11 – Contudo, o Tribunal a quo entendeu que só estaria coberto pela apólice subscrita com a Recorrida, o relógio da marca Franck Muller, no valor de € 110.000,00 (cento e dez mil euros), e dois relógios da marca Hublot, no valor de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros).
12 – Uma vez que só aqueles relógios se encontravam discriminados nos objetos de risco agravado e, como tal, os restantes relógios se encontrariam excluídos, por força da aplicação da cláusula 1.ª alínea p) das Condições Gerais da Apólice.
13 – Porém, sufragamos do entendimento de que o Tribunal a quo não interpretou corretamente aquela cláusula.
14 – Assim, a cláusula aqui em crise define expressa e taxativamente o que são objetos especiais.
15 – Em parte nenhuma daquela cláusula, é referido que os relógios são objetos especiais, caso contrário, sempre que um tomador de seguro adquirisse um relógio, mesmo com um valor insignificante, teria, obrigatoriamente, de solicitar uma alteração à apólice, o que não é concebível no tráfego jurídico.
16 – A redução a escrito das cláusulas do contrato de seguro determina a sujeição da interpretação do contrato às regras gerais estabelecidas no direito substantivo civil - artigos 236º e seguintes do Código Civil - sendo que o objeto da interpretação é a declaração ou o comportamento declarativo, e o respetivo teor, o ponto de partida, pese embora haja que considerar outros elementos nomeadamente, o contexto das declarações e a sua finalidade, com vista a afinar o sentido juridicamente relevante da declaração em causa.
17 – Logo deveria a Recorrida ter sido condenada no pagamento do valor dos relógios subtraídos (€ 240.500,00).
18 – Não obstante entendermos que aqueles relógios não estão incluídos na definição de objetos especiais, as condições especiais da apólice, designadamente no ponto 4.2, refere expressamente que o tomador de seguro que não discriminar os objetos especiais tem direito a receber o valor dos mesmos, até ao montante de 30% do valor total do recheio.
19 – Assim, os restantes relógios estariam sempre cobertos pelo contrato de seguro, até ao montante de € 198.000,00 (cento e noventa e oito mil euros).
20 – Atendendo à diferença entre os relógios discriminados e os restantes, o valor em falta cifra-se em € 75.500,00 (setenta e cinco mil e quinhentos euros), tendo, assim, cabimento no valor dos 30% referido nas cláusulas especiais.
21 – Entendemos, deste modo, que a Recorrida deve ser condenada a pagar ao Recorrente a quantia de € 75.500,00 (setenta e cinco mil e quinhentos euros), referente à diferença entre o valor a que foi condenada e o valor dos restantes relógios subtraídos.
22 – Foi igualmente dado como provado a subtração de diversas joias.
23 – Também aqui o Tribunal a quo entendeu que a Recorrida não tinha de ser condenada a pagar ao Recorrente o valor daquelas joias, por entender que são objetos especiais e que não se encontravam discriminados nas condições particulares da apólice.
24 – Ora, mais uma vez mal andou o Tribunal a quo para decidir naquele sentido, uma vez que termos novamente de nos socorrer do ponto 4.2 das condições especiais da apólice.
25 – A referida cláusula refere que os objetos especiais (joias) que não forem discriminados pelo tomador de seguro, ficaram limitados, em caso de sinistro, a 30% do valor total do recheio, no seu conjunto, e a € 3.000,00 (três mil euros) por objeto.
26 – O valor unitário das joias subtraídas ao Recorrente não ultrapassa os € 3.000,00 (três mil euros), como é percetível da factualidade dada como provada, assim como o seu conjunto não ultrapassa os 30% do valor do recheio.
27 – Assim, deverá a Recorrida ser condenada a pagar ao Recorrente a quantia de € 58.714,00 (cinquenta e oito mil setecentos e catorze euros), referente às joias subtraídas no furto participado à Recorrida.
28 – Em suma, deve a sentença recorrida ser revogada e alterada por outra que condene a Recorrida a pagar ao Recorrente a quantia total peticionada, ou seja, € 344.358,93 (trezentos e quarenta e quatro mil trezentos e cinquenta e oito euros e noventa e três cêntimos), referente ao valor dos objetos subtraídos e identificados na factualidade dada como provada na sentença recorrida.
29 – Com a alteração da matéria de facto, na qual deverão ser incluídos os factos constantes dos artigos 116.º e 121.º da PI, resulta que o Recorrente teve vários prejuízos com a privação do uso dos objetos subtraídos.
30 – O Recorrente é proprietário de uma marca de roupa, tendo uma loja de roupa física e uma online, sendo este e a sua companheira, os modelos das campanhas publicitárias daquela marca de roupa.
31 – Os objetos subtraídos eram utilizados pelo Recorrente e pela sua companheira nas sessões fotográficas de promoção da sua marca de roupa.
32 – Desde a data do furto, o Recorrente encontra-se privado de relógios e joias que eram utilizados na promoção da marca de roupa.
33 – Foram obrigados a desmarcar várias sessões fotográficas e campanhas publicitárias, provocando um decréscimo de faturação.
34 – Até ao momento, o Recorrente não voltou a adquirir outros objetos, por incapacidade financeira.
35 – A Recorrida sabia, desde a data da participação do sinistro, que a privação do uso daqueles bens iria provocar inúmeros prejuízos ao Recorrente, não obstante esse conhecimento, utilizou manobras dilatórias no sentido de atrasar o pagamento da indemnização ao Recorrente.
36 – Até porque desde a data do sinistro, 22 de Abril de 2023, e a presente data, já decorreram 22 meses, e a Recorrida não demonstra interesse na resolução desta questão.
37 – Ficou assim demonstrado na sentença sob censura que o Recorrente teve graves prejuízos com a privação do uso daqueles objetos, por todas as razões acima apontadas.
38 – Assim, tem a Recorrida que indemnizar o Recorrente por esses mesmos prejuízos, nomeadamente no valor da privação do uso dos bens, de acordo com o valor peticionado, ou seja, no valor diário de € 1.000,00 (mil euros), desde a data do furto, até efetivo e integral pagamento.
39 – Deste modo, deverá ser alterada a sentença sob análise, devendo a Recorrida ser condenada a pagar ao Recorrente a quantia de € 344.358,93 (trezentos e quarenta e quatro mil trezentos e cinquenta e oito euros e noventa e três cêntimos), acrescido de € 1.000,00 (mil euros) diários, desde a data do furto, até efetivo e integral pagamento.
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2.2.A Ré, apelada contra-alegou, cujo teor e dá por integralmente reproduzido, e que se resumem nos seguintes termos:
12. Bem esteve, pois, o tribunal recorrido ao dar os factos em causa como não provados, o que tudo se deverá manter.
19. Assim, e de acordo com o contratado, apenas estão incluídos nas coberturas contratadas os relógios efetivamente discriminados nas condições particulares da apólice, ou seja, os três considerados pela sentença recorrida.
21. O ponto 4.2 a que se refere o Autor nas suas alegações de recurso está expressamente previsto para a cobertura/condição especial de INCÊNDIO, AÇÃO MECÂNICA DE QUEDA DE RAIO E EXPLOSÃO. E apenas para esta! o valor a considerar não poderá ultrapassar 30% do valor do recheio – no caso, os € 198.000,00 – mas, por cada objeto, não poder ser atribuído montante superior a € 3.000,00.
Autor sabia que tinha de declarar os bens/objetos de risco agravado. Tanto assim era que declarou parte dos relógios que detinha
Perante o exposto, inexiste qualquer razão para alterar a decisão recorrida, a
qual deverá ser mantida na integra por este tribunal, com o que se fará inteira justiça.
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3. Questões a decidir.
1. Apreciar o recurso sobre a matéria de facto.
2. Verificar depois se os relógios em causa podem ser objecto de indemnização seja porque não devem ser qualificados como objectos de especial valor, seja por aplicação da cláusula mencionada.
3. Por fim, analisar se o dano da privação de uso pode ou não ser objecto de indemnização.
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4. Do recurso sobre a matéria de facto
Pretende o apelante que a matéria constante dos factos nºs 116.º e 121.º da PI deveria ter sido dada como provada com base no depoimento de duas testemunhas (BB e CC).
Nesta matéria a decisão recorrida fundamentou que: “O depoimento da testemunha BB, não obstante a credibilidade que merece, não é suficiente para, por si, demonstrar o alegado. Podendo ter perdido algumas sessões fotográficas por causa do sinistro (como referiu a testemunha), essas sessões foram retomadas, sem que tenham sido adquiridos objectos de idêntica natureza e para o fim em causa (promover a marca), não se podendo, por isso, falar em recusa de eventos. A testemunha referiu que não compraram outros objectos para substituir os subtraídos (com excepção de perfume), mas daí não resulta que o não pudessem fazer, nomeadamente, para o fim acima mencionado. Para além disso, a prova também não permite afirmar que a “privação” dos objectos, no contexto de promoção da marca, tenha causado prejuízos (designadamente 1.000,00 euros por dia – embora o autor também não alegue expressamente esse facto, constando apenas do artigo 128º da petição inicial e do pedido). De facto, também neste ponto o depoimento da testemunha BB se nos afigura insuficiente para o efeito (a testemunha falou em “alguma quebra de vendas”, mas nada se concretiza ou documenta). Não foram apresentados documentos relativos à situação alegada pelo autor, designadamente no que diz respeito ao volume de vendas antes e depois, sendo certo que em Setembro de 2023 as sessões fotográficas foram retomadas, como disse a testemunha BB (daí não se poder falar de uma “necessidade premente” de adquirir novos objectos).
Compulsados os meios de prova teremos de subscrever estas conclusões.
Desde logo, a testemunha BB vive em união de facto com o autor, na residência identificada nos autos, logo o seu interesse nesta questão é evidente. A segunda testemunha (amiga do apelante e da primeira) nesta matéria sabe apenas aquilo que estes lhe disseram.
Depois, note-se que dos elementos contabilísticos e declarações de IRS juntas aos autos não podemos concluir pela existência de qualquer quebra significativa de facturação e muito menos impossibilidade de aquisição de outros objectos. Acresce que apesar da multiplicidade de objectos furtados, o valor destes, na sua maior parte, não era relevante para o apelante que, note-se alega facturar, pelo menos, mil euros diários.
Assim, o furto dos objectos não permite concluir pela existência dessa diminuição do negócio nessa dimensão (mil euros por dia).
Depois, teremos de notar que as declarações de IRS não comprovam esse nível de rendimentos, já que a única saliente diz respeito a rendimentos de mais valias imobiliárias.
Ora, o dano da privação de uso enquanto dano actual e futuro terá de ser claramente demonstrado pelo lesado.
Acresce que, se o apelante explora duas lojas (uma física e outra online) parece também natural concluir que os objectos da primeira, que não foram subtraídos, poderiam continuar a ser comercializados na loja online, apesar do furto ocorrido e serem usados nas sessões fotográficas.
Assim apesar dos depoimentos testemunhais referidos, o conjunto de elementos probatórios conjugados pelas regras da experiência comum, não permitem concluir que existiu esse concreto “decréscimo de faturação”.
Improcede, pois, o recurso sobre a matéria de facto.
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5. Motivação de facto.
a) O autor é dono e legítimo proprietário de um imóvel, sito na Rua ..., com entrada pelo n.º ...88, freguesia ..., concelho ..., o qual constitui a casa de morada de família, residindo com o mesmo a sua companheira, BB;
b) No dia 20 de Setembro de 2022, o autor subscreveu com a ré um contrato de seguro, denominado Casa Segura, na modalidade de recheio, ao qual foi atribuída a apólice n.º ...66..., cujo local de risco corresponde ao imóvel sito na Rua ..., com entrada pelo n.º ...88, na freguesia ..., concelho ..., nos termos, condições e com as alterações ocorridas a 18 de Janeiro de 2023 e constantes dos documentos n.º 1.1 anexo à petição inicial e n.º 1 e n.º 2 anexos à contestação, cujo teor se dá aqui por reproduzido;
c) A partir de 18 de Janeiro de 2023, o autor ficou vinculado ao pagamento anual do prédio do aludido seguro, na quantia de 714,01 euros, com o valor adicional de 66,19 euros;
d) O referido contrato de seguro, na sequência das alterações ocorridas a 18 de Janeiro de 2023, tem como capital seguro, nomeadamente ao abrigo da cobertura “Furto qualificado ou roubo”, a quantia máxima de 660.000,00 euros, sendo que a quantia de 495.000,00 euros é relativa a “Objetos Comuns” e a quantia de 165.000,00 euros é relativa a “Objetos de Risco Agravado” (“Joias, relógios, objeto de ouro, prata ou outros metais preciosos”);
e) Nos termos da alínea p) da Cláusula 1ª das Condições Gerais da Apólice, para efeitos do contrato de seguro, entende-se por
“Recheio ou conteúdo, o recheio comum da habitação e, desde que identificados e valorados nas Condições Particulares, os objetos especiais, considerando-se:
a. Recheio comum, o conjunto dos bens móveis de uso doméstico e pessoal existentes na habitação ou em espaços fechados ou não acessíveis ao público, designadamente anexos ou garagens, bem como micro-ondas, fogões, máquinas de lavar e secar roupa, máquinas de lavar louça e frigoríficos;
b. Objetos especiais, as coleções de qualquer espécie tais como de moedas ou medalhas de metal precioso, de selos, valores numismáticos ou de qualquer outro tipo, em metal não precioso, quadros e pinturas de arte, porcelanas antigas e antiguidades, bem como as joias e os objetos de ouro, prata ou outros metais preciosos, de acordo com os limites fixados na documentação contratual;
f) No que diz respeito à cobertura “Furto qualificado ou roubo”, consta das Condições Especiais o seguinte:
“1. Esta cobertura garante a indemnização dos danos causados aos bens seguros em consequência de furto qualificado ou roubo, incluindo sob a forma tentada, no local de risco identificado nas Condições Particulares, bem como as perdas decorrentes do furto qualificado ou roubo dos bens seguros, até ao limite previsto nas Condições Particulares:
a) Praticado com arrombamento, escalamento ou chaves falsas, desde que existam vestígios comprovados por Autoridade Policial;
b) Cometido sem os condicionalismos da alínea a), quando o(s) autor(es) do crime se introduzir(em) furtivamente no local ou nele se esconder(em) com a intenção de furtar ou roubar;
c) Praticado com violência contra as pessoas que habitem ou se encontrem no local do risco ou através de ameaças com perigo iminente para a sua integridade física ou para a sua vida, ou pondo-as, por qualquer maneira, na impossibilidade de resistir.
(…)
3. Entende-se por:
a) Arrombamento – o rompimento, fratura ou destruição, no todo ou em parte, de qualquer elemento ou mecanismo que servir para fechar ou para impedir a entrada, exterior ou interiormente, na habitação segura ou lugar fechado dela dependente, ou de móveis destinados a guardar quaisquer objetos;
b) Escalamento – a introdução na habitação segura ou em lugar fechado dela dependente, por local não destinado normalmente à entrada, como por exemplo telhados, portas, janelas, paredes ou qualquer construção que sirva para fechar ou impedir a entrada ou passagem e bem assim por abertura subterrânea não destinada à entrada;
c) Chaves falsas – as imitadas, contrafeitas ou alteradas; as verdadeiras, quando, fortuita ou sub-repticiamente, estejam fora do podem de quem tiver o direito de as usar; as gazuas ou quaisquer instrumentos que possam servir para abrir fechaduras ou outros dispositivos de segurança.
4. Além das exclusões previstas nas Condições Gerais, ficam ainda excluídos da presente cobertura as perdas ou danos:
a) Derivados do desaparecimento inexplicável, perda ou extravio, furto ou roubo de objetos seguros quando cometidos por pessoas ligadas ao Segurado por contrato de trabalho, verbal ou escrito, ou por qualquer pessoas que com ele(s) coabite, bem como por qualquer dos seguintes familiares, independentemente de coabitação: cônjuge (ou pessoa que viva com o Segurado em condições análogas às do cônjuge), descendentes, ascendentes e irmãos, adotados e afins em linha reta e até ao 2º grau da linha colateral, tutelados e curatelados;
(…)
i) Resultantes de negligência do Segurado, como tal considerado as chaves deixadas nas fechaduras, debaixo de tapetes, na caixa do correio ou em qualquer outro local de fácil acesso;
(…)”;
g) Aquando da celebração do contrato de seguro, a 20 de Setembro de 2022, foram incluídos na cobertura “Objetos de Risco Agravado” – “Joias, relógios, objetos de ouro, prata ou outros materiais preciosos” dois relógios marca Hublot, um deles modelo Big Bang 44mm, no valor global de 55.000,00 euros;
h) A 18 de Janeiro de 2023, foi requerida uma alteração à apólice, com a inclusão de uma outra verba referente a “Objetos de Risco Agravado” – “Joias, relógios, objetos de ouro, prata ou outros materiais preciosos”, passando o contrato de seguro a incluir, nessa cobertura, um Relógio Frank Muller, Vangard, 45mm, Ref. V45 S6 SQT DBC, no valor de 110.000,00 euros;
i) No dia 22 de Abril de 2023, pelas 23 horas, o autor, juntamente com a sua companheira, BB, encontrava-se no interior da residência identificada na alínea a), no piso inferior;
j) Tendo-se deslocado ao exterior da mesma residência, foi surpreendido por um indivíduo, pelo menos, trajando roupa escura, no logradouro;
k) O autor tem um cão, o qual, na altura, se encontrava no exterior, não tendo o mesmo alertado ou dado sinal quanto à presença de pessoas estranhas no local;
l) O autor contactou de imediato as autoridades policiais, no sentido de relatar o ocorrido;
m) O autor subiu ao andar superior da residência e apercebeu-se que tinham sido subtraídos diversos objectos pertencentes a si e à sua companheira, estando um dos quartos completamente remexido;
n) Os intrusos acederam ao interior da residência do autor, identificada na alínea a), sem autorização, através da porta de acesso de um dos quartos, a qual se encontrava destrancada, de onde retiraram diversos objectos pertencentes ao autor e à sua companheira, também sem autorização;
o) As autoridades policiais que se deslocaram ao local encetaram diligências nas imediações da residência do autor, com o objectivo de localizar o(s) autor(es) dos actos descritos nas alíneas j), m) e n), sem sucesso;
p) Nesse dia (22 de Abril de 2023) foi lavrado pela PSP o auto de notícia com o teor correspondente ao documento n.º 2.1 anexo à petição inicial, em que o autor figura como denunciante, que se tem por integralmente reproduzido;
q) As autoridades policiais realizaram várias diligências, nomeadamente, a recolha lofoscópica do local e dos depoimentos do autor e da sua companheira, tendo o autor facultado os vídeos das câmaras de videovigilância da residência identificada na alínea a);
r) Foi solicitado ao autor que elaborasse uma lista dos objectos que tinham sido subtraídos, com indicação do respectivo valor, o que o mesmo fez, nos termos que constam do documento mencionado na alínea p);
s) No dia seguinte, o autor e a sua companheira elaboraram uma lista com todos os objectos subtraídos, nos termos que constam do documento n.º 3.1 junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido, e entregaram-na às autoridades policiais, para acompanhar a queixa-crime;
t) Na sequência da participação, foi aberto inquérito ao furto denunciado na residência do autor, a que foi atribuído o n.º 216/23.1PHVNG, o qual ainda se encontra em investigação;
u) No dia, hora e local referidos, entre os objectos referidos nas alíneas m), n), r) e s), foram subtraídos da residência do autor, sem autorização, os seguintes objectos:
• Uns óculos de sol da marca Versace, modelo Eyewear Medusa Head Aviator Sunglasses, no valor de €192,00, com a factura número SGH20220800499;
• Um par de sapatilhas da marca Philipp Plein Runner, modelo Iconic Plein Low-Top Sneakers, no valor de €450,61, com a factura número PLDN00033016202208;
• Um par de sapatilhas da marca Versace Trigreca Low-Top Sneakrs, com o valor de € 744,83, com a factura com o número VV820221100586;
• Um par de sapatilhas da marca Giuseppe Zanotti Frankie Low-Top Sneakers, adquiridas pelo autor pelo valor de €694,00, com a factura número ITDN00381778202211;
• Um par de sapatilhas da marca Dolce & Gabbana, modelo Daymaster Low-Top Sneakers, adquirido pelo autor pelo valor de €371,95, com a factura número DWH20221105570;
• Oito pares de sapatilhas com a marca Giuseppe Zanotti Frankie, adquiridos pelo autor pelo valor de €4.545,80, com a factura com o número ITDN00382941202211;
• Cinco pares de sapatilhas da marca Giuseppe Zanotti, vários modelos, adquiridos pelo autor pelo valor de €2.301,84, com a factura número ITDN00229243202303;
• Um par de sapatilhas da marca Giuseppe Zanotti, modelo Detail Low-Top Sneakers, adquirido pelo autor pelo valor de €380,44, com a factura número PLDN0022197202111;
• Um par de sapatilhas da marca Giuseppe Zanotti, modelo Silver Lace-Up Sneakers, adquirido pelo valor de €508,85, com a factura número ITDN00416073202111;
• Cinco pares de sapatilhas da marca Giuseppe Zanotti, vários modelos, adquiridos pelo autor pelo valor de €2.091,40, com a factura número GZN20211105896;
• Um par de sapatilhas da marca Giuseppe Zanotti, modelo Silver Lace-Up Sneakers, adquirido pelo valor de €380,44, com a factura número ITDN00416073202111;
• Um perfume da marca Ombre Nomade, 200ml, EDP, adquirido pelo valor de € 485,00, com a factura número FTA28020720/003063;
• Uma mala da marca Locky, modelo BB MNG R. Pou, adquirida pelo valor de € 1.400,00, com a factura número FTA28020720/003118;
• Um perfume da marca Les Sables Roses, 200ml, EDP, adquirido pelo valor de € 485,00, com a factura número FTA28020421/001813;
• Dois perfumes, um da marca Matiere Noire, 200ml, EDP, e outro da marca Ombre Nomade, 100ml, EDP, adquiridos pelo valor de € 596,80, com a factura número FTA28020721/002921;
• Dois perfumes da marca Ombre Nomade, um de 100ml e outro de 200ml, adquiridos pelo valor de €585,00, com a factura número FTA280222922/000161;
• Vários artigos preciosos (joias), designadamente: - 7 Brand VMV Jewels material: White Gold & Diamonds; - 6 Brand VMV Jewels material: White Gold & Diamonds; - 7 Brand VMV Jewels material: White Gold & Diamonds; - 7 Brand VMV Jewels material: White Gold & Diamonds; - 4 Brand VMV Jewels material: White Gold & Diamonds; - 7 Brand VMV Jewels material: White Gold & Diamonds; Adquiridos pelo autor, pelo valor de €52.940,00, a que diz respeito a factura número 2022/01-004;
• Um relógio da marca Hublot, modelo Big Bang, adquirido pelo valor de € 22.000,00, com a factura número 2021/10-018;
• Um relógio da marca Hublot, modelo One Click, adquirido pelo valor de € 32.900,00, com a factura número 2022/09-012;
• Um relógio da marca Audemars Piguet, modelo Royal Oak, adquirido pelo valor de €27.200,00, com a factura número 2020/12-020;
• Uma mala da marca Petite Malle Souple, adquirida pelo valor de €2.500,00;
• Uma mala da marca Greca Goddess Mini Bag, adquirida pelo valor de €1.208,00;
• Um relógio da marca Hublot, modelo Big Bang Gold 44mm, adquirido pelo valor de €32.900,00, com a factura número 2020/09-007;
• Dois óculos de sol, da marca Versace, adquiridos pelo valor de €510,00, com a factura número T216501000788;
• Uns óculos de sol da marca Prada, adquiridos pelo valor de €230,00;
• Um relógio da marca Franck Muller, modelo Vanguard V45 S6 SQT DBC, adquirido pelo autor pelo valor de €110.000,00, com a factura número VMV FT 22120101;
• Um par de sapatilhas da marca Giuseppe Zanotti, adquirido pelo valor de €452,58, com a factura número ITDN00293902202011;
• Um par de sapatilhas da marca Pinko, modelo Leather Low-Top Trainers, adquirido pelo valor de €240,99, com a factura número ITDN00109968202206;
• Um par de sapatilhas da marca Dolce & Gabbana, modelo Super Queen Sneakers, adquirido pelo valor de €845,00, com a factura número DWH20220601960;
• Quinze pulseiras da marca Puntofino, adquiridas pelo valor de €1.430,00 (identificadas na lista que constitui o documento n.º 3.1 como “joias”);
• Uma carteira da marca Louis Vuitton, modelo Zwallet, adquirida pelo valor de € 895,00;
• Um par de sandálias da marca Louis Vuitton, adquiridas pelo valor de €610,00;
• Uma mochila da marca Louis Vuitton, modelo Campus Back Pack White, adquirida pelo valor de €2.330,00, com a factura número FT 8/26/2020;
• Uma mala da marca Louis Vuitton, modelo Vavin PM, adquirida pelo valor de € 1.700,00, com a factura número FT 3/09/2020;
• Uma mala da marca Louis Vuitton, modelo Locky, adquirida pelo valor de €1.700,00, com a factura número FT M44654;
• Um estojo para pulseiras da marca Louis Vuitton, adquirido pelo valor de €1.200,00;
• Uma mala da marca Louis Vuitton, modelo Cartera Kasai, adquirida pelo valor de € 1.180,00;
• Uma mala da marca Dior, modelo Diorama Preta, adquirida pelo valor de €2.350,00;
• Um relógio Rolex, modelo Datejust 31 Mint Green Oyster, adquirido pelo valor de € 15.500,00, com a factura número VMV FT L 2020/09-007;
• Um par de sandálias da marca Chanel, adquirido pelo valor de €675,00;
• Um par de sandálias da marca Hermes, modelo Oran Sandal Woman, adquirido pelo valor de €600,00;
• Um par de sandálias da marca Hermes, modelo Izmir Sandal Men, adquirido pelo valor de €625,00;
• Um anel da marca Ring D- 0,32 CT Gold, 18K, 2,86gr, com a referência RF17633W, adquirido pelo valor de €2.819,00, com a factura número Olabi FT 202109 15/02/21;
• Uma pulseira da marca YSL, modelo Opyum Charm Bracelet, adquirida pelo valor de €325,00 (identificada na lista que constitui o documento n.º 3.1 como “joia”);
• Variada bijuteria, provenientes de presentes, no valor de €375,00;
• Três T’Shirt da marca Versace, adquiridas pelo valor unitário de €650,00, num total de € 1.950,00;
• Duas T’Shirt da marca Moncler, adquiridas pelo valor de €280,00 e pelo valor de € 260,00, num total de €540,00;
• Uma camisa da marca Louis Vuitton, modelo Monogram Bandana Short-Sleeved Shirt, adquirida pelo valor de €1.350,00;
• Uns calções da marca Louis Vuitton, modelo Monogram Bandana Shorts, adquiridos pelo valor de €795,00;
• Um par de sapatilhas da marca Giuseppe Zanotti, modelo Zip Detail Low-Top Sneakers, 41, White, adquirido pelo valor de €494,00;
• Um par de sapatilhas da marca Giuseppe Zanotti, modelo Zip Detail Low-Top Sneakers 41,5 Red, adquirido pelo valor de €406,00;
• Um par de sapatilhas da marca Giuseppe Zanotti, modelo Frankie Glitter Low Top, adquirido pelo valor de €343,00;
• Um par de sapatilhas da marca Giuseppe Zanotti, modelo Zip Detail Low-Top Sneakers 41 Red, adquirido pelo valor de €282,00;
• Uma mala da marca Aldo, modelo Glitter, adquirida pelo valor de €40,00;
• Quatro camisas da marca Gluck LBN, adquiridas pelo valor de €265,00, com a factura número FR-23100058;
• Um fato da marca Gluck LBN, de cor branca, adquirido pelo valor de €895,00, com a factura número FR-23100198;
• Um fato da marca Gluck LBN, de cor azulão, adquirido pelo valor de €1.021,00, com a factura número FR-23100124;
• Um fato da marca Gluck LBN, de cor bege, adquirido pelo valor de €996,00, com a factura número FR-23100040;
• Um vestido da marca Elisabetta Franchi, modelo Peak-Lapel Tailored Dress, adquirido pelo valor de €527,40, com a factura número ITDN00044416202210;
v) Os relógios referidos nas alíneas g) e h) estão incluídos nos objectos identificados na alínea anterior;
w) O autor participou o furto à ré;
x) A ré solicitou as facturas que comprovassem a propriedade dos bens furtados e identificados na alínea u);
y) O autor juntou a quase totalidade das facturas dos objectos identificados na alínea u), bem como fotografias dos mesmos, assim como facultou à ré a lista que constitui o documento n.º 3.1 junto com a petição inicial;
z) Foi realizada uma averiguação pelos serviços de peritagem da ré, tendo o autor e a sua companheira prestado todos os esclarecimentos solicitados pelo perito da companhia, com quem se reuniram presencialmente;
aa) O autor contactou telefonicamente o perito da ré, tendo este informado que a instrução do processo de sinistro estava condicionada à conclusão do inquérito por parte das autoridades judiciais;
bb) O autor solicitou que tal informação fosse prestada por escrito, o que veio a ocorrer no dia 9 de Junho de 2023, através de um email dirigido pelo perito ao autor, nos termos que constam do documento n.º 4 junto com a petição inicial;
cc) Nesse email foi solicitado o auto de notícia validado com o carimbo das autoridades policiais ou judiciais;
dd) Em face de tal solicitação, o autor dirigiu-se ao DIAP de Vila Nova de Gaia, onde se encontra a correr termos o processo de inquérito referido na alínea t), e solicitou a certidão do auto de notícia, a qual lhe foi entregue no dia seguinte;
ee) O autor, no dia seguinte, procedeu à entrega da certidão ao perito que estava a realizar a averiguação do sinistro pela ré;
ff) O autor, através do seu mandatário, optou por interpelar a ré por meio de carta registada com aviso de recepção, datada de 9 de Junho de 2023, cuja cópia foi junta aos autos com a petição inicial como documento n.º 5 e cujo teor se dá aqui por reproduzido, solicitando o pagamento do valor dos objectos subtraídos;
gg) A ré recebeu tal carta a 12 de Junho de 2023 e respondeu ao mandatário do autor no dia 23 de Junho de 2023, através do email junto com a petição inicial como documento n.º 6, cujo teor se dá aqui por reproduzido, informando que “o processo se encontra em fase de instrução, a aguardar nomeadamente pela conclusão do inquérito das Autoridades Judiciais”;
hh) Até à data, a ré não aceitou a responsabilidade decorrente do sinistro que lhe foi comunicado nos termos referidos na alínea w);
ii) O autor e a sua companheira realizam frequentes deslocações ao estrangeiro;
jj) O autor e a sua companheira são proprietários de uma marca de roupa, denominada “Gluck LBN”, a qual possui uma loja física e uma loja online, onde são comercializados os seus produtos;
kk) O autor e a sua companheira fazem de modelos fotográficos da marca;
ll) Alguns dos objectos identificados na alínea u) eram utilizados pelo autor e pela sua companheira nas sessões fotográficas em que promoviam a sua marca de roupa;
mm)O autor, em 2020, participou à ré, ao abrigo de uma outra apólice, um furto ocorrido numa outra habitação do mesmo, localizada em ...;
nn) Relativamente aos factos relativos a tal furto, correu termos procedimento criminal, o qual assumiu o n.º 3122/20.8JAPRT, do Juízo Central Criminal do Porto, Juiz 5, onde, a 16 de Maio de 2022, foi proferido o acórdão cuja cópia foi junta com o requerimento de 13 de Novembro de 2023 e cujo teor se dá aqui por reproduzido.
5. Motivação jurídica
1. Qualificação do contrato
Como resulta dos factos provados, entre o autor e a ré foi celebrado um contrato de seguro, denominado Casa Segura, na modalidade de recheio, titulado pela apólice ...66...”.
Tal contrato de seguro é um contrato de seguro facultativo, subsumível à tipologia dos contratos de seguro enunciada no Regime Jurídico do Contrato de Seguro como “seguro de danos” (cfr. arts. 123º e seguintes).
Este acordo é um contrato oneroso, sinalagmático e formal.
2. Das regras de interpretação
É pacífico, entre nós, que o contrato de seguro é um negócio formal, que se rege pelas condições e cláusulas da respectiva apólice não proibidas por lei e, na sua falta ou insuficiência, pelas normas legais.
Por isso, na interpretação das declarações negociais dele constantes aplicar-se-ão as regras gerais de interpretação das declarações negociais, tendo em conta, em especial, o disposto no art. 236º, do C.C. [1].
Ora, essa norma impõe que a interpretação se deve fazer segundo a conhecida teoria da impressão do destinatário, nos termos da qual o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante.
Acresce que quando se trate de negócios formais, o art. 238º do mesmo Cód. Civil exige que o sentido da declaração tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso[2].
Note-se que esta norma, corresponde ao principio da commom law “parol evidence rule”, nos termos do qual nos contratos escritos não se podem tomar em consideração qualquer acordo verbal que contradiga o teor literal do contrato.
Como decidiu entre nós o AUJ do STJ de 19.10.22, nº nº 933/15.0T8AVR.P1.S1-A a propósito da interpretação do conceito de incêndio num contrato de seguro, interpretar o contrato é “no fundo, de apreender o elemento externo da declaração negocial, estritamente relacionado com a função do negócio em causa”. E, no caso do contrato de seguro a informação e delimitação do risco é um dos elementos fundamentais.
Deste modo, a interpretação do contrato, neste caso formal, mais não é do que coligar a vontade negocial das partes expressa através dos signos linguísticos e, neste caso do seu comportamento contratual desde a fase da proposta ao cumprimento do contrato.
3. Da interpretação contratual da menção objectos especiais.
Consta do acordo uma cláusula com o seguinte teor: “b. objetos especiais, as coleções de qualquer espécie tais como de moedas ou medalhas de metal precioso, de selos, valores numismáticos ou de qualquer outro tipo, em metal não precioso, quadros e pinturas de arte, porcelanas antigas e antiguidades, bem como as joias e os objetos de ouro, prata ou outros metais preciosos, de acordo com os limites fixados na documentação contratual.”
Nesta matéria parece evidente que o apelante compreendeu, aceitou e declarou que os relógios eram objectos especiais. Bastará dizer que o risco contratual assumido nessa cláusula (e por isso o conceito de objectos especiais) diz respeito ao valor intrínseco dos mesmos e à sua natureza móvel que permite a sua rápida apropriação.
Ora, in casu é evidente que o apelante quer na celebração do contrato, quer no seu cumprimento aceitou e comunicou que os relógios faziam parte dessa qualificativa.
Basta dizer que está provado que:
1. em 20.09.2022, o segurado e aqui Autor fez incluir nas coberturas em causa, para efeitos de “Objectos de Risco Agravado”, “jóias, relógios, objecto de ouro, prata ou outros metais preciosos”, as seguintes verbas: - Relógio HUBLOT Big Bang 44mm e - Relógio HUBLOT One Click, no valor global de € 55.000,00.
2. Em 18.01.2023, foi pelo Segurado requerida uma alteração à apólice contratada, com a inclusão de uma outra verba referente “Objectos de Risco Agravado”, “jóias, relógios, objecto de ouro, prata ou outros metais preciosos”, passando ali a incluir nos objectos seguros um Relógio FRANK MULLER Vanguard 45mm REF: V45 S6 SQT DBC, no valor de € 110.000,00.
Ora os restantes relógios furtados assumem a mesma natureza e possuem um valor declarado aproximado.
É, pois, evidente e seguro que antes do furto os outorgantes do contrato sabiam e assim agiram que qualquer relógio de maior valor deveria ser discriminado e declarado como o apelante fez em 2022 e 2023.
Esse comportamento do apelante demonstra que, como qualquer declaratário teve conhecimento de que os relógios eram objectos móveis valiosos mesmo que não integralmente compostos de metais preciosos. E,tanto assim é, que um ano decorrido veio aditar ao objecto de risco outro relógio no valor de 110.000 mil euros.
Parece, pois, que qualquer declaratário normal podia (como o apelante fez) e devia ter comunicado à apelada a aquisição ou detenção dos restantes relógios, da mesma natureza e com um valor monetário aproximado.
Se dúvidas houvesse bastará dizer que o apelante pretende que a indeminização seja fixada em 344 mil euros, quando sem esses objectos atingiu cerca de 211 mil euros.
E, resulta das cláusulas 11 e 12 da apólice que “1. O Tomador do Seguro ou o Segurado tem o dever de, durante a execução do contrato, no prazo de 14 dias a contar do conhecimento do facto, comunicar ao Segurador todas as circunstâncias que agravem o risco, desde que estas, caso fossem conhecidas pelo Segurador aquando da celebração do contrato, tivessem podido influir na decisão de contratar ou nas condições do contrato”.
Parece, portanto curial que a existência de relógios nesse valor integra esse dever de comunicação, já que, naturalmente faria aumentar sensivelmente o risco material assumido pela seguradora com natural reflexo no prémio contratual.
4. Da aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais
Apesar de nada ter sido invocado importa averiguar se pode ser aplicável aos autos o disposto no art 11º, nºs 1 e 2, do Decreto-lei nº 446/85, de 25 de Outubro, que dispõe: “As cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição do aderente real” (nº 1). Na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente” (nº 2).
Esta norma tem sido interpretada entre nós[3] como sendo aplicável, apenas quando se verificar uma dúvida fundada sobre o sentido da cláusula.
Neste sentido José Vasques[4] concluiu que “a regra da interpretação mais favorável só se aplica na dúvida (isto é, quando, apesar de interpretada, a cláusula continua obscura ou admite mais do que um sentido), e não por forma a, sistematicamente, favorecer o segurado independentemente do resultado interpretativo resultante das regras gerais prévias”). Pelo contrário, se estivermos perante a leitura de uma cláusula que possa qualificar-se como clara, objectiva e isenta de interrogações sérias, realizada na sequência de um processo interpretativo transparente e rigoroso, usando de absoluta honestidade intelectual e que apure com total segurança o sentido exacto e correcto do conteúdo normativo contido no teor da cláusula do contrato a interpretar, na perspectiva do destinatário médio, não há motivo algum para, nessas circunstâncias, fazer funcionar o dito princípio “contra stipulatorem”.
É, essa a situação dos autos pois, neste caso, o teor literal é claro e foi o comportamento negocial do apelante que desfez qualquer dúvida sobre a inclusão ou não de relógios valiosos na previsão objectos especiais.[5]
Concluímos, portanto, que os objectos em causa terão de ser qualificados como objectos especiais e, por via disso, ao não terem sido declarados pelo segurado não fazem parte do risco assumido para a seguradora.
5. Da aplicação desses objectos na cláusula 4.2.
Pretende, por fim, o apelante que “Não obstante entendermos que aqueles relógios não estão incluídos na definição de objetos especiais, as condições especiais da apólice, designadamente no ponto 4.2, refere expressamente que o tomador de seguro que não discriminar os objetos especiais tem direito a receber o valor dos mesmos, até ao montante de 30% do valor total do recheio.
Assim, os restantes relógios estariam sempre cobertos pelo contrato de seguro, até ao montante de € 198.000,00 (cento e noventa e oito mil euros).
Esta é uma questão curiosa que não possui qualquer facto provado que a sustente.
A clausula 4.2. das condições gerais dispõe “2. Da aplicação das Condições referidas no número anterior não pode resultar uma diminuição de coberturas para um seguro obrigatório”.
Por seu turno nas condições especiais relativas ao evento nada consta sobre esta matéria.
Porque, como bem salienta a apelante essa cláusula e o seu teor “está expressamente previsto para a cobertura/condição especial de INCÊNDIO, AÇÃO MECÂNICA DE QUEDA DE RAIO E EXPLOSÃO”.
Ora, não foi esse o risco que ocorreu.
Por isso, ou o apelante demonstra que afinal o desaparecimento dos relógios se deveu a um incêndio ou então teremos de concluir que sistematicamente, no quadro do contrato, esse evento danoso não pode ser indemnizado.
Desde logo, porque, neste caso não foi esse o risco assumido pela apelada.
“ O âmbito do risco coberto deve ser delimitado relativamente a cada contrato de seguro em concreto pelas próprias partes, constituindo um elemento obrigatório de qualquer apólice de seguro (artigo 37º, nº 2, alínea d) da LCS): tal implica, quer uma delimitação primária da respectiva “cobertura de base” – mediante a enumeração do conjunto de factos ou circunstâncias cuja ocorrência origina o dever de liquidação do sinistro por parte do segurador, realizada em função do objecto do seguro (v.g., saúde, edifício, automóvel), da causa do sinistro (v.g., morte ou doença, incêndio, acidente), do momento ou local da sua verificação (v.g., território nacional), etc, - quer uma delimitação secundária ou pela negativa das respectivas “exclusões” e “limitações” – v.g., actos dolosos do segurado, guerra, insurreição, terrorismo, greves, desastres nucleares (artigos 45º e 46º da LCS).”[6]
E, depois, porque na interpretação sistemática[7] do teor literal do contrato essa cláusula não é aplicável ao risco de furto e muito menos aos objectos especiais não declarados.
Com efeito, conforma salienta o Ac do STJ de 18.2.21, nº 64/18.0T8BRG.G1.S1 (Oliveira Abreu): “o risco constitui um elemento essencial do contrato de seguro e traduz-se na possibilidade de ocorrência de um evento futuro e incerto de natureza fortuita, com consequências desfavoráveis para o segurado, conforme estabelecido no contrato de seguro, a par de que o sinistro é a ocorrência concreta do risco contratado, devendo reunir as mesmas características com que é ali configurado”. (nosso sublinhado).
Por fim, teremos de notar que a comunicação e declaração do risco e valor dos objectos é uma emanação do princípio indemnizatório inerente a todos os seguros de danos.
Segundo Menezes Cordeiro[8] esta exigência deriva de uma tripla justificação:
a) no plano histórico, na medida em que visa esconjurar o risco da usura;
b) numa perspectiva significativa e ideológica, propondo-se afastar a outorga de seguros com objectivos de lucro;
c) e no plano social, a redução dos casos de fraude e de enriquecimento ilegítimo.
Concluímos, portanto que o teor da cláusula 4.2. citado pelo apelante não é aplicável ao evento dos autos, pois, diz respeito a um incêndio e como tal distinto do risco inerente ao “sinistro coberto”.
6. Das restantes questões suscitadas
Face à não alteração da matéria de facto a fixação do dano da privação de uso não possui elementos para ser atribuído, pois, desconhece-se a sua simples existência.
7. Deliberação
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto e, por via disso, confirmar a decisão recorrida.
*
Custas da apelação a cargo a cargo do apelante porque decaiu totalmente.
Porto em 22.5.25
Paulo Duarte Teixeira
Isoleta Almeida Costa
Álvaro Monteiro
__________________________
[1] cfr. Mota Pinto in a “Teoria Geral de Direito Civil”, pág. 417; Prof. Antunes Varela in Das Obrigações em Geral, I, 5º Edição, pág. 661; Prof. Almeida Costa in Direita das Obrigações, 6º Edição, pág. 308; Moitinho de Almeida in O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, pág. 23, Pedro Romano Martinez, Cláusulas Contratuais Gerais e cláusulas de limitação ou de exclusão da responsabilidade no contrato de seguro, Scientia Iuridica, Junho 2006, p. 241.
[2] Cfr. Acs do STJ de 18-09-2018 n 682/16.2T8FAR.E1.S2; de 12.7.2018 nº 825/15.2T8LRA.C1.S2; e de 31.1.2019 nº 3843/15.7T8CSC.L1.S1, por exemplo aplicam o disposto no art. 236º e segs. do CC. No mesmo sentido os Acs da RG de 2.7.2013 1344/11.1TBVCT.G1 e RG 11.7.2017 1301/15.9T8VCT.G1; da RP 15.11.2018 12886/16. 2T8PRT.P1. O Ac da RP de 19.4.2019, in CJ, II (Aristides Almeida) acentua: “o seguro regular-se-á pelas estipulações da respectiva apólice não proibidas pela lei, e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste Código. Nessa medida, os contratos dos autos regem-se em primeira mão pelas condições da respectiva apólice, só sendo aplicáveis as disposições legais do Código Comercial se aquelas contiverem disposições contrárias a normas legais imperativas ou forem lacunosas”. O Ac da RG de 31.10.2018 nº 648/17.4T8BGC.G1: Na interpretação do contrato de seguro há que aplicar as regras gerais da interpretação dos negócios jurídicos às cláusulas especificamente negociadas, correspondendo o declaratário normal à figura do tomador médio, sem especiais conhecimentos jurídicos ou técnicos, devendo o sentido por ele deduzido reflectir quer o concreto texto contratual em causa, quer a específica natureza e objecto do dito acordo, e ponderando-se na sua determinação todas as circunstâncias que rodearam a sua inicial celebração e posterior execução.
[3] Por todos o supra citado Ac de Fixação de Jurisprudência do STJ.
[4] Contrato de seguro, 1999, 354.
[5] Cumpre acrescentar que tendo visualizado os vídeos juntos pelo apelante é evidente que o orgulho, satisfação e quase carinho com que este exibiu alguns desses objectos, assim demonstrando que eram para si verdadeiramente “especiais”.
[6] José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, 2019, 706.
[7] Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil”, II, Parte Geral, 2021, 724, esclarece “Nenhuma cláusula pode ser interpretada isoladamente: há que inseri-la na globalidade do negócio”.
[8] Direito dos Seguros, 2ª ed., págs. 802 apud Ac da RP de 12.1.23,
15975/21.8T8PRT.P1 desta secção (Judite Pires) .