Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
202/24.4T8FLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO VILARES FERREIRA
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
EMPREITADA DE CONSUMO
DENÚNCIA DOS DEFEITOS
PRAZO DE CADUCIDADE
Nº do Documento: RP20240910202/24.4T8FLG.P1
Data do Acordão: 09/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: No âmbito de um contrato de empreitada de consumo, após a denúncia dos defeitos, que se revele infrutífera, deve o dono da obra, no prazo de um ano, instaurar ação destinada a pedir a condenação do empreiteiro no pagamento de indemnização por danos sofridos, sob pena de caducidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROCESSO N.º 202/24.4T8FLG.P1
[Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo Local Cível de Felgueiras – Juiz 1]

Relator: Fernando Vilares Ferreira

Adjuntos: Lina Castro Baptista

João Diogo Rodrigues

SUMÁRIO:

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EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes da 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I.

RELATÓRIO

1.

AA intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra A..., LDA, alegando prejuízos decorrentes de deficiente reparação de um seu veículo automóvel por parte da Ré, no âmbito de contrato de empreitada, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe:

a) A quantia de 6.336,60€, acrescido de IVA, o que perfaz a quantia de 7.794,18€, acrescido de 20%, após a desmontagem, perfazendo o montante total de 9.353,02€ (nove mil, trezentos e cinquenta e três euros e dois cêntimos), a título de indemnização necessária para reparar a viatura automóvel melhor descrita em 1) da petição inicial;

b) A quantia de 270,60€ (duzentos e setenta euros e sessenta cêntimos), a título de despesa que a A. teve com a realização do relatório a que se alude em 37) da petição inicial; e

c) A quantia de 2.000,00€ (dois mil euros), a título de indemnização pela privação de uso e fruição do dito veículo automóvel, acrescida de juros de mora à taxa legal.

2.

A Ré contestou, invocando, para além do mais, exceção perentória de caducidade, por ter sido excedido o prazo de um ano que a Autora tinha para intentar a ação, nos termos do preceituado no art. 1224.º do Código Civil.

3.

Dispensada que foi a realização da audiência prévia, em 24.04.2024 foi proferido saneador-sentença, com o seguinte dispositivo:

[Face ao exposto, julga-se verificada a exceção perentória da caducidade, sendo a ação totalmente improcedente e, em consequência, decide-se absolver a ré A..., LDA., NIPC ...02, com sede na Rua ... – Lote ... – ..., ... ....

Uma vez que a autora saiu totalmente vencida na ação é a mesma responsável pela totalidade das custas processuais, de acordo com o que determina o artigo 527.º, n.º 1 e n.º 2, do Código de Processo Civil.]

Tal decisão assentou nos fundamentos que passamos a transcrever:

[Nos termos do artigo 1220.º do Código Civil o dono da obra deve, sob pena de caducidade dos direitos conferidos nos artigos seguintes, denunciar ao empreiteiro os defeitos da obra dentro dos trinta dias seguintes ao seu descobrimento. Equivale à denúncia o reconhecimento, por parte do empreiteiro, da existência do defeito - artigo 1220.° do Código Civil. Se os defeitos puderem ser suprimidos, o dono da obra tem o direito de exigir do empreiteiro a sua eliminação; se não puderem ser eliminados, o dono pode exigir nova construção - artigo 1221° do Código Civil.

Os direitos de eliminação dos defeitos, redução do preço, resolução do contrato e indemnização caducam, se não forem exercidos dentro de um ano a contar da recusa da aceitação da obra ou da aceitação com reserva, sem prejuízo da caducidade prevista no artigo 1220.° Se os defeitos eram desconhecidos do dono da obra e este a aceitou, o prazo de caducidade conta-se a partir da denúncia; em nenhum caso, porém, aqueles direitos podem ser exercidos depois de decorrerem dois anos sobre a entrega da obra - artigo 1224.° do Código Civil.

Face ao regime legal indicado, a primeira questão que importa decidir é a de saber se os direitos à eliminação dos defeitos, redução de preço, resolução do contrato consagrados no artigo 1224.º do Código Civil devem ser efetivados através de ação judicial – tese da ré – ou se bastam com interpelação extrajudicial ao empreiteiro – tese da autora.

Sobre esta questão existe divergência na doutrina e na jurisprudência a qual se encontra devidamente exposta no Douto Acórdão do TRL de 02.06.2021, Processo 666/15.7T8AGH.L1-6 disponível em www.dgsi.pt, quando refere «Pois bem, há divergência quer na doutrina quer na jurisprudência quanto a esta questão. Assim, de um lado, uma corrente que entende que efectuada a denúncia do(s) defeito(s) dentro do prazo de um ano após o seu descobrimento, “…o dono da obra dispõe de um ano para instaurar a acção correspondente, sob pena de caducidade dos seus direitos.” (Cf. Menezes Leitão, Direito das Obrigações…, cit., pág. 555; Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações…, cit., pág. 496; Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Colecção Teses, 1994, pág. 412 e segs., onde o autor expressamente refere “No direito português, ao contrário do que se verifica em outros sistemas jurídicos, foi autonomizado um prazo para ser intentada a acção judicial”; João Serras de Sousa, CC anotado, AAVV, coord. Ana Prata, vol. I, 2017, pág. 1523, anotação 3). Na jurisprudência, entre outos, vejam-se, entre outros, Acs. do STJ, de 01/10/1996 (Aragão Seia); de 13/01/2009 (Urbano Dias); de 29/11/2011 (Gabriel Catarino); da R Lisboa, de 04/11/2008 (Rui Vouga); R Porto, de 16/05/2017 (Márcia Portela). De outro lado, uma corrente que entende que os direitos do dono da obra a que se reportam os artºs 1224º e 1225º do CC, não têm de ser exercidos através de acção judicial. (Cf., entre outros, Ac. Rel. Porto, de 15/10/2012 (Anabela Luna de Carvalho); Ac. Rel. Guimarães, de 16/06/2011 (Manso Rainho); Ac. Rel. Coimbra, de 24/04/2012 (Arlindo Oliveira); o recente acórdão da Rel. Coimbra, de 22/06/2020, relatado por Maria João Areias, com voto de vencido da relatora inicial, Catarina Gonçalves). Esta posição da jurisprudência baseia-se na opinião de Cura Mariano (Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra – versão consultada: 5ª edição, 2013, pág. 150 e seg.) que defende: “Podendo os direitos do dono da obra serem exercidos extrajudicialmente, a simples declaração de redução do preço ou de resolução do contrato, ou mesmo a interpelação extrajudicial do empreiteiro para a eliminação dos defeitos, realização de nova obra ou pagamento de indemnização, impedem a caducidade destes direitos. “Em nenhum lado a lei exige que o acto impeditivo da caducidade deva ser a propositura de acção judicial, nomeadamente o disposto no artº 1224º do CC. Daí que a invocação destes direitos, posteriormente às mencionadas declarações de exercício, em acção judicial…já não está sujeita a qualquer prazo de caducidade… (mas) sujeitos ao prazo de prescrição geral.”.

Face a tais divergências, com o devido respeito pela tese contrária, seguimos o entendimento plasmado no citado acórdão, nos termos do qual, ao contrário do alegado pela autora, o prazo de caducidade referido no artigo 1224.º do Código Civil é um prazo para ser intentada a respetiva ação judicial, pois como ali Doutamente se refere «o legislador, nos artºs 1220º nº 1, 1224º e 1225º estabeleceu prazos de caducidade para a denúncia dos defeitos da obra e para o exercício dos direitos que são conferidos ao dono da obra. Não se trata de prazos de prescrição. Se assim não fosse, os direitos do dono da obra poder-se-iam protelar no tempo, com o inconveniente da insegurança jurídica que adviria para o empreiteiro. De resto, esses prazos de caducidade, curtos, foram estabelecidos no interesse do empreiteiro, a fim de os desvincular das responsabilidades emergentes dos defeitos da obra no caso de inércia do dono da obra. Ora, a tese que, na linha do entendimento de Cura Mariano, defende que o exercício dos direitos do dono da obra, mormente o direito à reparação dos defeitos, pode ser exercido extrajudicialmente no ano seguinte à denúncia dos defeitos e que a posterior acção de condenação do empreiteiro à reparação dos defeitos pode ser exercida no prazo geral da prescrição, ou seja no prazo de 20 anos após a interpelação extrajudicial para eliminação dos defeitos (conforme artº 309º do CC) redunda, salvo o devido respeito, numa subversão da ratio que levou o legislador a estabelecer prazos curtos para que o dono da obra compelisse o empreiteiro à reparar/eliminar os defeitos da obra. Note-se que o Legislador optou por prazos de caducidade e não de prescrição por se entender que os institutos da suspensão e da interrupção da prescrição não se harmonizavam com as razões que justificavam o estabelecimento de prazos curtos para o exercício dos direitos resultando do descobrimento de defeitos (Cf. Pires de Lima e Antunes Varela CC anotado, vol. II, 3ª edição, 1986, pág. 824). Por conseguinte, somos a entender que o dono da obra dispõe de um ano, contado a partir da denúncia dos defeitos, para instaurar a acção correspondente, sob pena de caducidade dos seus direitos.»

Face ao regime legal indicado resulta cristalino que a Autora tinha que denunciar os defeitos da obra no prazo de 30 dias após o seu descobrimento e o prazo de 1 ano para intentar a ação judicial.

A denúncia tem como objetivo fulcral informar o vendedor de que a coisa tem um defeito de funcionamento, a qual se revelará despicienda se o vendedor já tiver esse conhecimento ou praticar atos dos quais se possa extrair, de forma expressa ou tácita, o reconhecimento do defeito (p.e. proceder à reparação ou participando a ocorrência seguradora).

Por outro lado, a ação deve ser proposta no prazo de 1 ano contados desde a data em que foi feita a denúncia, pelo que se devem aplicar as regras gerais da caducidade, devendo assim apurar-se da existência de qualquer causa impeditiva nos termos do artigo 331.º do Código Civil, nomeadamente o reconhecimento, expresso ou tácito, do defeito, pelo vendedor, sendo que neste caso a ação sempre poderia ser intentada após o referido prazo. Ora, no caso dos autos, resulta da alegação da própria autora conjugada com a prova documental que a reparação da viatura ocorreu entre setembro de 2021 e março de 2022 e que em março de 2022 foi a viatura entregue ao irmão da autora, sendo já conhecido o problema da fuga de óleo pela junta da colaça, reparação que a ré, nessa data, recusou. Mais resulta que o irmão da autora logo no dia 17 de maio exigiu da ré a reparação da viatura, com fundamento em deficiente execução, o que foi prontamente recusado pela ré.

Donde, do indicado circunstancialismo resulta cristalino que a autora denunciou tempestivamente o defeito da viatura, porquanto respeitou o prazo de 30 dias após o conhecimento do defeito.

Vejamos agora se a autora intentou tempestivamente a ação.

A autora tinha o prazo de 1 ano após a denúncia do defeito para intentar a ação.

O termo a quo do referido prazo corresponde ao dia 17 de maio 2022.

Donde, o prazo de 1 ano para autora intentar a ação terminava no dia 17 de maio de 2023.

Acresce, todavia, que a autora alega ainda que em 18.08.20022 fez uma perícia à viatura, cujo relatório final lhe foi apresentado em 07.10.2022 e que nesta data, munido de relatório pericial exigiu novamente à ré a reparação, o que voltou a ser recusado.

Neste segundo circunstancialismo o prazo de 1 ano para autora intentar a ação terminava no dia 07 de outubro de 2023.

Sucede que a autora apenas intentou a ação no dia 05 de fevereiro de 2024, ou seja, muito para além do prazo de 1 ano de que dispunha, qualquer que sejam as datas a considerar como dies a quo, sendo que, no caso concreto em face de toda a factualidade alegada pelas partes e documentos juntos, não se verifica qualquer causa impeditiva da caducidade referida no artigo 331.º, n.º 2 do Código Civil.

Nesta conformidade, sem necessidade de outros considerandos contata-se que o direito de ação que a autora pretende exercitar nestes autos se encontra caducado por não ter sido respeitado o prazo de 1 ano legalmente imposto, sendo despicienda a alegação da existência de um prazo de garantia com duração superior.

Assim, deve a exceção perentória da caducidade ser julgada procedente e, em consequência julgar-se extinto o direito da autora de exigir da ré a condenação em indemnização nos valores peticionados e demais pedidos formulados na presente ação.]

4.

Inconformada, a Autora interpôs o presente recurso de apelação, admitido com subida nos próprios autos e efeito devolutivo, assente nas seguintes CONCLUSÕES:

1.ª Vem o presente recurso interposto da Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, que julgou verificada uma exceção perentória da caducidade e, em consequência, decidiu absolver a ré A..., Lda.

2.ª A ré arguiu a caducidade do direito da A., aqui recorrente, alegando que se encontrava ultrapassado o prazo de 1 ano que a Recorrente tinha para intentar ação, nos termos do art.º 1224.º, do Código Civil, tendo o Tribunal a quo se pronunciado nesse sentido.

3.ª É pacifico na jurisprudência que é de empreitada o contrato mediante o qual uma das partes se obriga, perante a outra, a executar trabalhos de reparação mecânica de veículos automóveis e esta se obriga a pagar-lhe o preço desses trabalhos – nesse sentido, vide, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 19/11/2020, proc.º n.º 24904/18.5T8PRT.P1.

4.ª A respeito do prazo da empreitada, a lei, nos artigos 1220.º a 1225.º do CC, estabelece um funcionamento articulado dos mesmos 3 prazos, e que, na esteira do defendido por Cura Mariano, in Responsabilidade Contratual do Empreiteiro, que “em nenhum lado a lei exige que o ato impeditivo da caducidade deva ser a propositura da ação judicial, nomeadamente, o disposto no art.º 1224.º do CC”.

5.ª A previsão de tais prazos significa que, caso se manifeste determinado defeito na obra durante os cinco anos seguintes à entrega, e denunciado o vício ao empreiteiro dentro do prazo de um ano seguinte ao seu conhecimento, o dono da obra terá um prazo para exercer as suas pretensões, de entre os meios de reação que lhe são facultados, uns com caráter alternativo ou sucessivo e outros com caráter cumulativo, escolhendo e comunicando a sua pretensão ao empreiteiro, sob pena de perder os seus direitos.

6.ª Entende-se que quando se menciona que o dono da obra tem de exercer os seus direitos sob pena de extinção dos mesmos por caducidade, se trata de meros prazos de exercício de tais direitos, independentemente do modo como este é exercido e não prazos de propositura de ação judicial – prazos para a invocação de tais direitos por via de ação ou de reconvenção, não exigindo a lei qualquer formalidade especial para o exercício de quaisquer desses direitos especificamente previstos para a empreitada defeituosa – eliminação dos defeitos, construção de uma nova obra, redução do preço, resolução do contrato e pagamento de indemnização.

7.ª Os artigos 1224.º e 1225.º, do Código Civil, limitam-se a estabelecer qual o prazo durante o qual tais direitos têm de ser exercidos por parte do dono da obra, ora Recorrente, sob pena de caducidade, sem que de tais normas se consiga extrair se são, ou não, prazos de propositura de ação, ou seja, se o exercício dos direitos a que se reportam tem de ser efetuado por via de ação judicial, questão para cuja resposta se terá de alcançar através do regime geral do incumprimento dos contratos.

8.ª Em momento algum a lei exige que o ato impeditivo da caducidade deva ser a propositura de ação judicial, nomeadamente, o disposto no art.º 1224.º, do Código Civil, daí que a invocação destes direitos, posteriormente às mencionadas declarações de exercício, em ação judicial, por via de ação, reconvenção ou exceção, já não está sujeita a qualquer prazo de caducidade.

9.ª O mesmo entendimento é partilhado por diversos arestos, nomeadamente: acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 15/10/2012, proc.º n.º 4838/09.5TBVLG.P1, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 24/04/2012, proc.º n.º 3372/11.8T2AGD.C1, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 16/06/2011, proc.º n.º 29121/09.2YIPRT.G1 e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 22/06/2020, proc.º n.º 5320/16.0T8VIS.C1.

10.ª Estando apenas o exercício dos direitos não potestativos, como o direito à eliminação, realização de nova obra ou pagamento de indemnização, sujeitos ao prazo de prescrição geral, ou seja, 20 anos bem como, no sentido de que tais direitos não têm necessariamente de ser exercidos por via de ação judicial, sob pena de caducidade, aponta o facto de os direitos da Recorrente nem sequer serem estáticos, evoluindo, ou alterando-se em função das respostas e negociações que às suas pretensões venham a ser dadas pelo empreiteiro, ora Ré, e ainda com o surgimento, ao longo do prazo de garantia legal de 2 anos, de novos defeitos.

11.ª Com a interpelação da Ré, no dia 07 de outubro de 2022, para que a mesma reparasse os defeitos presentes na viatura automóvel, a Recorrente exerceu tempestivamente o seu direito à eliminação dos defeitos, pelo que pode, validamente, pedir a condenação da Ré no pagamento de indemnização correspondente aos custos que teve com a reparação, após esta se recusar a eliminar os defeitos.

12.ª Os defeitos foram, devida e oportunamente, comunicados no dia 07 de outubro de 2022, tendo sido exercido o exercício extrajudicial do direito à reparação, exercício esse que ocorreu dentro do prazo máximo (2 anos) da garantia legal.

13.ª Não lhes sendo aplicável a exigência da propositura duma ação, podem tais direitos ser exercidos extrajudicialmente, e, por este modo, oportunamente exercidos, a sua posterior invocação, em ação judicial, por via de ação, reconvenção ou exceção, já não estará sujeita a qualquer prazo de caducidade, ficando apenas sujeitos, a partir do seu exercício extrajudicial, ao prazo de prescrição geral, isto é, 20 anos.

14.ª Não se pode, pois, julgar extinto o direito da Recorrente por caducidade, uma vez que, no caso em apreço nos autos, se aplica o prazo de prescrição geral, isto é, 20 anos.

15.ª A Recorrente só teve conhecimento da totalidade dos defeitos no dia 07 de outubro de 2022, aquando da entrega do relatório final da perícia – cfr. doc. 6 junto com a p.i -, sendo que a viatura automóvel lhe foi entregue no dia 17 de maio de 2022, o que significa que, quando as denúncias e exercício dos direitos da Recorrente foram feitos, ainda não estava esgotado o prazo de garantia legal de 2 anos, o que só ocorrerá em 17 de maio de 2024, tal como não estava quando a presente ação entrou em juízo.

16.ª A exceção perentória de caducidade, deduzida pela Ré, não poderia proceder.

17.ª Analisando a decisão proferida, é fácil entender que o Tribunal a quo, perante doutrinas divergentes, com o devido respeito, escolheu aquela que seria mais célere e menos trabalhosa, que resultou na total improcedência da ação e na consequente absolvição da Ré, sendo mais gravoso, ainda, o facto de o Tribunal a quo não fundamentar, devidamente, o porquê de ter optado por uma doutrina em detrimento de outra.

18.ª A fundamentação da decisão deve ser expressa, clara, suficiente e congruente, permitindo, por um lado, que o destinatário perceba as razões de facto e de direito que lhe subjazem, em função de critérios lógicos, objetivos e racionais, proscrevendo, pois, a resolução arbitrária ou caprichosa, e por outro, que seja possível o seu controle pelos Tribunais que a têm de apreciar, em função do recurso interposto.

19.ª Era obrigação do Tribunal a quo explicar e fundamentar, em concreto, o porquê de ter tomado a decisão que acabou por proferir, tendo se apoiado numa doutrina em detrimento da outra, até porque a Sentença deixou a justiça material por realizar, por razões meramente formais.

20.ª O Tribunal a quo referiu que: “Face a tais divergências doutrinais, com o devido respeito pela tese contrária, seguimos o entendimento plasmado no citado acórdão, nos termos do qual, ao contrário do alegado pela autora, o prazo de caducidade referido no artigo 1224.º do Código Civil é um prazo para ser intentada a respetiva ação judicial”, limitando-se a transcrever um acórdão que apoia a sua tese, ou seja, o Tribunal a quo, em meia página, fundamentou a sua decisão, quando, na verdade, já foram escritas centenas – se não, milhares – de páginas em sentenças e acórdãos sob tal delicada e conflituosa matéria.

21.ª Feitas estas considerações, no caso em apreço, é nosso entendimento que ocorre a invocada nulidade por falta de fundamentação de facto e/ou de direito, com as consequências legais previstas na al. b), do n.º 1, do art.º 615.º, do Código de Processo Civil.

22.ª Termos em que, na procedência do presente recurso, deve a, aliás, Douta Sentença, ser revogada, ordenando-se a prosseguimento dos autos, com realização da audiência de discussão e julgamento.

5.

Contra-alegou a Ré, pugnando pela improcedência do recurso.

II.

OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de questões nelas não incluídas, salvo se forem de conhecimento oficioso (cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPCivil).

Assim, partindo das conclusões das alegações apresentadas pela Apelante, as questões estruturais carecidas de solução são as seguintes:
a) Se a sentença recorrida padece de vício de nulidade, por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPCivil; e
b) Se se justifica a alteração da solução jurídica dada ao caso pela 1.ª instância, julgando não caducado o direito de a Autora fazer valer a sua pretensão por via da presente ação judicial

III.

FUNDAMENTAÇÃO

1.

Da invocada nulidade da sentença

1.1.

Considerando que apenas a absoluta falta de fundamentação, e não já a insuficiência de fundamentação constitui causa de nulidade para o efeito do preceituado no art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPCivil, como é unanimemente reconhecida pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores desde há muito, no caso dos autos dúvida alguma subsiste que a sentença recorrida especificou de forma adequada e bastante os fundamentos de facto e de direito que justificam a solução jurídica que alcançou sobre as questões controvertidas.

Com efeito, dando o Exmo. Juiz de Direito muito bem conta da existência de controvérsia doutrinal e jurisprudencial em torno da solução do problema jurídico presente no caso, expôs os fundamentos em que assentam as teses em confronto, citando abundante jurisprudência para o efeito, acabando por, ante a factualidade que consubstancia a causa de pedir, optar por um dos caminhos possíveis, por constituir, na sua visão, a melhor realização do direito no caso concreto.

As preocupações expressas pela Apelante em torno da necessidade de a decisão dar a perceber as razões de facto e de direito que lhe subjazem, até para permitir o seu devido controlo pelos Tribunais superiores, não têm manifestamente razão de ser.

Improcede, pois, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, a arguição de nulidade da decisão recorrida.

2.

OS FACTOS

A factualidade relevante para a decisão reconduz-se aos atos processuais de que se dá sumariamente conta no relatório supra, assim como à factualidade alegada pela Autora na petição inicial, que aqui damos por integralmente reproduzida.

2.

OS FACTOS E O DIREITO

2.1.

Incontroversa é a qualificação da relação jurídica estabelecida entre as partes como contrato de empreitada, sabendo nós que este assenta na obrigação de uma das partes realizar para a outra certa obra, contra o pagamento de um preço (art. 1207.º do CCivil).

No contrato de empreitada, os mecanismos que a lei confere ao dono da obra para reagir contra vícios ou defeitos de execução encontram-se plasmados nos arts. 1218.º a 1223.º do CCivil.

No caso, a controvérsia gira essencialmente em torno da interpretação da norma do art. 1224.º do CCivil, que, sob a epígrafe “Caducidade”, assim dispõe: “1 - Os direitos de eliminação dos defeitos, redução do preço, resolução do contrato e indemnização caducam, se não forem exercidos dentro de um ano a contar da recusa da aceitação da obra ou da aceitação com reserva, sem prejuízo da caducidade prevista no artigo 1220.º”. 2 – Se os defeitos eram desconhecidos do dono da obra e este a aceitou, o prazo de caducidade conta-se a partir da denúncia; em nenhum caso, porém, aqueles direitos podem ser exercidos depois de decorrerem dois anos sobre a entrega da obra.

A controvérsia entre as partes replica afinal a controvérsia doutrinal e jurisprudencial, como muito bem a sentença recorrida assinalou, podendo sintetizar-se no seguinte: de um lado, uma corrente que entende que efetuada a denúncia dos defeitos dentro do prazo de 30 dias após o seu descobrimento, o dono da obra dispõe de um ano para instaurar a ação correspondente, sob pena de caducidade dos seus direitos; do outro, o entendimento no sentido de que os direitos do dono da obra a que se reportam os artigos 1224º e 1225º do CCivil, não têm de ser exercidos através de ação judicial, podendo sê-lo extrajudicialmente, e daí que a invocação de tais direitos, ulteriormente às declarações de exercício, em ação judicial, já não se encontre sujeita a qualquer prazo de caducidade, mas tão só sujeita ao prazo de prescrição geral.

Após citação de abundante doutrina e jurisprudência num e noutro dos apontados sentidos, recorrendo para o efeito ao que se deixou vertido no acórdão da Relação de Lisboa, de 2.6.2021[1], a decisão recorrida, acolhendo o primeiro dos referidos entendimentos, concluiu, em face da factualidade alegada pela Autora na petição inicial, pela procedência da exceção de caducidade invocada pela Ré.

Também nós comungamos do entendimento assumido pela decisão recorrida, por corresponder à interpretação que temos por mais adequada dos normativos a que nos referimos, na esteira, de resto, da jurisprudência que vem sendo assumida de forma reiterada pelo STJ, como se deixou bem vincado no acórdão de 10.01.2023[2], no sentido de que “após a denúncia dos defeitos, que se revele infrutífera, deve o dono da obra instaurar ação destinada a pedir a condenação do empreiteiro na eliminação desses defeitos, sob pena de caducidade”. Em tal acórdão não deixou também de se aludir ao cit. acórdão da RL de 2.6.2021, prolatado no proc. Proc. n.º 666/15.7T8AGH.L1-6, com citação, para além do mais, do seguinte trecho: [(…) o legislador, nos artºs 1220º nº 1, 1224º e 1225º estabeleceu prazos de caducidade para a denúncia dos defeitos da obra e para o exercício dos direitos que são conferidos ao dono da obra. Não se trata de prazos de prescrição. Se assim não fosse, os direitos do dono da obra poder-se-iam protelar no tempo, com o inconveniente da insegurança jurídica que adviria para o empreiteiro. De resto, esses prazos de caducidade, curtos, foram estabelecidos no interesse do empreiteiro, a fim de os desvincular das responsabilidades emergentes dos defeitos da obra no caso de inércia do dono da obra. Ora, a tese que, na linha do entendimento de Cura Mariano, defende que o exercício dos direitos do dono da obra, mormente o direito à reparação dos defeitos, pode ser exercido extrajudicialmente no ano seguinte à denúncia dos defeitos e que a posterior acção de condenação do empreiteiro à reparação dos defeitos pode ser exercida no prazo geral da prescrição, ou seja no prazo de 20 anos após a interpelação extrajudicial para eliminação dos defeitos (conforme artº 309º do CC) redunda, salvo o devido respeito, numa subversão da ratio que levou o legislador a estabelecer prazos curtos para que o dono da obra compelisse o empreiteiro à reparar/eliminar os defeitos da obra. Note-se que o Legislador optou por prazos de caducidade e não de prescrição por se entender que os institutos da suspensão e da interrupção da prescrição não se harmonizavam com as razões que justificavam o estabelecimento de prazos curtos para o exercício dos direitos resultando do descobrimento de defeitos (Cf. Pires de Lima e Antunes Varela CC anotado, vol. II, 3ª edição, 1986, pág. 824)].

A aplicação de tal entendimento no caso em apreço resulta, em face da factualidade alegada na petição inicial, na caducidade do direito pretendido fazer valer pelo Autor nesta ação, nos termos afirmados pela decisão recorrida.

Tal solução justifica-se, mesmo considerando a aplicação do regime estabelecido pelo DL n.º 84/2021, de 18 de outubro (ex vi art. 3.º, n.º 1, b), porquanto o prazo de caducidade de dois anos do direito de ação estabelecido no seu art. 17.º, n.º 1, circunscreve-se aos direitos previstos no art. 15.º (reposição da conformidade, através da reparação ou da substituição do bem; redução proporcional do preço; e resolução do contrato), deixando de fora o direito de indemnização, afinal o único direito objeto de exercício por parte da Autora nesta ação, cujo prazo de caducidade do direito de ação é de apenas um ano, nos termos do art. 1224.º, n.º 1, do CCivil, como dissemos.

Impõe-se-nos, pois, sem necessidade de outras considerações, julgar o recurso improcedente, com a consequente manutenção da decisão recorrida.

2.2.

Tendo dado causa às custas do recurso, a Apelante constituiu-se na obrigação de as suportar (cfr. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil).

IV.

DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, na improcedência do recurso, acordamos em:

a) Manter a decisão recorrida; e
b) Condenar a Apelante nas custas do recurso.


***

Tribunal da Relação do Porto, 10 de setembro de 2024

Os Juízes Desembargadores,

Fernando Vilares Ferreira

Lina Castro Baptista

João Diogo Rodrigues


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[1] Relatado por ADEODATO BROTAS no proc. 666/15.7T8AGH.L1-6, acessível em www.dgsi.pt.
[2] Relatado por TIBÉRIO NUNES DA SILVA no processo 35/20.7T8PNI-A.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt.