Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5216/24.1T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO TEIXEIRA
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS
DÍVIDAS RESULTANTES DESSES SERVIÇOS
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS COMUNS
EXECUÇÃO COMUM
EXECUÇÃO FISCAL
Nº do Documento: RP202407105216/24.1T8PRT.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A tramitação e decisão da oposição à execução fiscal é da competência dos tribunais comuns, se esta execução correr os seus termos nesses tribunais, nos termos previstos no artigo 151.º, n.º 2, do CPPT, mas também nos casos em que correr perante um órgão administrativo e diga respeito a uma dívida emergente da prestação de serviços públicos essenciais, por força do disposto no artigo 4.º, n.º 4, al. e) do ETAF.
II – Decorre da conjugação do artigo 103.º, n.º 1, da LGT, com o artigo 151.º, n.º 2, do CPPT, que a natureza judicial da execução fiscal tanto pode reportar-se à jurisdição administrativa e fiscal como à jurisdição comum, consoante o tribunal competente para decidir os incidentes, embargos, oposições e reclamações referidos no n.º 1, deste último artigo.
III – A competência dos tribunais comuns para apreciar a oposição à execução para cobrança de dívidas emergentes da prestação de serviços públicos essenciais não impõe que essa execução siga uma das formas previstas no CPC nem, de alguma forma, obsta a que essa execução siga a forma prevista no CPPT para as execuções fiscais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º5216/24.1T8PRT.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
AA intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Porto oposição à execução fiscal que o Município ... lhe moveu, para cobrança da quantia de 5.513,44 € acrescida de juros de mora, relativa ao fornecimento de água, com base numa certidão de dívida emitida pela entidade fornecedora, a empresa municipal A... EM, S.A.
Em essência, alegou a caducidade do crédito da exequente e impugnou os consumos que lhe são imputados. Concluiu pugnando pela extinção da execução.
Por despacho proferido em 24.01.2024, o TAF do Porto declarou-se incompetente em razão da matéria para conhecer do litígio e indeferiu liminarmente a petição inicial.
Notificada desta decisão, a oponente requereu a remessa do processo para o Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia.
Feita esta remessa, o Juiz de Turno à distribuição determinou que os autos fossem remetidos ao Juízo de Execução do Porto, considerando o tipo de processo em causa.
Em 18.03.2024 este Tribunal considerou que a execução padece de erro na forma do processo, pelo que declarou a nulidade do processado em indeferiu liminarmente a execução.
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Inconformado, o exequente apelou dessa decisão, formulando as seguintes conclusões:
«1 - O douto despacho ao declarar a nulidade do processado e indeferir liminarmente a execução com fundamento no disposto no artigo 590.º, 196.º e 577, alínea b) do CPC., com o devido respeito, errou no seu julgamento por erro nos seus pressupostos de direito e errada interpretação da lei.
2 - Porquanto, no caso dos autos, não existe uma execução nos termos do previsto nos artigos 703.º e 724.º do C.P.C.., o que existe é uma execução fiscal, nem os presentes autos correspondem a uns embargos de executado, como é referido no despacho, mas a uma oposição a execução fiscal.
3 - O meio processual adequado para o Município obter a cobrança coerciva desta dívida de fornecimento de água não é a execução comum nos termos do Código de Processo Civil, como determina o despacho, mas continua a ser a execução fiscal, prevista no Código de Procedimento e Processo Tributário.
4 - Em 26 de junho de 2019 foi emitida pelas A..., Empresa Municipal, SA certidão de dívida pelo não pagamento voluntário da dívida de fornecimento de água no valor de €5.513,44, e esta certidão de dívida é título executivo válido para instauração de execução fiscal.
5 - Citado o executado para pagar ou deduzir oposição, optou por deduzir oposição à execução fiscal, a qual foi apresentada nos serviços do exequente e remetida ao TAFP pelo órgão de execução fiscal, nos termos do artigo 208.º n.º 1 do C.P.P.T., que estipula que autuada a petição, o órgão da execução fiscal remete o processo, por via eletrónica, no prazo de 20 dias, ao tribunal de 1.ª instância competente com as informações que reputar convenientes, incluindo as respeitantes às apensações de execuções.
6 - O TAF do Porto, por sentença e com fundamento na redação da alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, dada pela Lei n.º 714/2079, de 12/09, terá se considerado incompetente para tramitar a execução fiscal em causa, porquanto esta alínea exclui do âmbito da sua competência os “litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.”, e os autos foram remetidos aos Juízos de Execução do Porto.
7 - A nova redação da alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, relativamente à cobrança coerciva das relações emergentes de relações de consumo relativas à prestação de fornecimento e serviços públicos essenciais, apenas altera a competência judicial para o seu conhecimento, que transfere dos tribunais administrativos para os comuns, mas não altera o meio processual adequado para obter essa cobrança coerciva, que continua a ser a execução fiscal.
8 - Da conjugação do disposto nos artigos 14.º e 21.º da Lei 73 /2013, de 03 de setembro, com os artigos 150.º e 151.º do CPPT e artigo 7.º do D.L: 433/99, de 26 de outubro, supra referidos e que se dão por reproduzidos, o meio processualmente adequado para obter a cobrança coerciva das dívidas de fornecimento do serviço de abastecimento de água pelo Município é a execução fiscal, nos termos previstos no Código de Procedimento e Processo Tributário, e, em consequência, a oposição à execução fiscal também deve seguir a tramitação prevista nesse Código, muito embora a competência para a sua decisão pertença aos tribunais comuns.
9 - Infere-se do Acórdão do Tribunal de Conflitos de 01/03/2023, proferido no processo 01301/22.2T8SRE.S1, em parte supra transcrito, que, pela Lei n.º 114/2019, a competência dos Juízos de Execução foi ampliada para conhecer e apreciar também as oposições a execuções fiscais para cobrança coerciva de fornecimento de serviços públicos essenciais previstos na lei n.º 23/96, de 26 de julho. Sendo certo que, neste acórdão a apreciação da oposição á execução fiscal foi remetida ao Tribunal de Execução.
10 - Desconhece-se a existência de qualquer normativo legal que determine que também houve alteração do meio processual para a cobrança coerciva do serviço público essencial de fornecimento de água prestado pelo Município.
11 - Assim, a cobrança coerciva de dívida pelo serviço público de fornecimento de água prestado pelo Município ..., aqui recorrente e exequente, continua a seguir a tramitação da execução fiscal prevista no Código de Procedimento e Processo Tributário tendo a Lei n.º 114/2019, alterado, apenas, a competência dos tribunais para conhecer tal litígio e excluindo esse conhecimento dos tribunais administrativos e tributários.
12 - O título executivo consubstancia um dos títulos previsto no artigo 162.º do CPPT, preenche todos os requisitos exigidos no artigo 163.º e foi cumprida a tramitação legalmente prevista, designadamente no artigo 208.º do C.P.P.T., de, apresentada oposição, a mesma ser autuada e remetida ao Tribunal.
13 - Sendo certo que, o único vício legalmente passível de apreciação relativamente ao título executivo na oposição respeita à sua falsidade, como decorre do artigo 203.º do CPPT, e que qualquer nulidade da execução, tal como a invocada falta de requisitos do título, tem de ser suscitada e apreciada na própria execução, como dispõe o artigo 165.º do CPPT, e não na oposição, como o tribunal fez oficiosamente.
14 -Em face de todo o exposto, o douto despacho, ao decidir haver nulidade de todo o processado por a dívida em causa de fornecimento de água pelo Município ... não ter seguido os termos da execução do Código de Processo Civil, previstos nos artigos 703.º e 724.º, fez incorreta apreciação e aplicação da lei e do direito, violando, nomeadamente, o disposto nos artigos 14.º e 21.º da Lei 73/2013, de 03 de setembro, nos artigos 150.º, 151.º, 162.º, 163.º, 165.º, 203 e 208.º do CPPT, entre outros respeitantes à tramitação da execução fiscal e da oposição, e no artigo 110.º do Regulamento dos Sistemas Públicos e Prediais de Abastecimento de Água e de Drenagem de Águas Residuais do Município ..., pelo que deve ser revogada e substituída por outra que aprecie a oposição nos termos do C.P.P.T.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente Recurso, revogando-se ou anulando-se o despacho recorrido por violação dos comandos legais invocados, com as legais consequências, assim se fazendo JUSTIÇA».
Não foi apresentada resposta a esta alegação.
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II. Fundamentação
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
A única questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, consiste em saber se inexiste qualquer erro na forma de processo que justifique a anulação de todo processado.
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1. Os factos relevantes para a decisão do conflito são os que constam do relatório deste aresto.
2. A decisão recorrida não questiona, antes aceita expressamente, que compete aos tribunais comuns, e não aos tribunais administrativos e fiscais, a apreciação dos litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.
Embora essa decisão aluda à inexistência de título executivo, à inexistência de requerimento executivo e, mesmo, à inexistência de execução, acaba por fundamentar-se na circunstância de a exequente ter recorrido a uma execução fiscal, para cuja tramitação os tribunais comuns carecem de competência, em vez de recorrer a uma execução de natureza cível, nos termos previstos nos artigos 703.º e seguintes do CPC, assim concluindo pela ocorrência de um erro na forma de processo e, consequentemente, declarando a nulidade do processado e indeferindo liminarmente a execução.
Imperativos de rigor conceptual impõem que se afirme, desde já, que o tribunal a quo nunca poderia ter indeferido liminarmente o requerimento executivo (expressão mais rigorosa do que usada na decisão recorrida), simplesmente porque já não estava ao seu alcance proceder a uma apreciação liminar daquele requerimento. Na verdade, quando a questão foi colocada àquele tribunal, a executada já havia sido citada para a execução e já havia apresentado a sua oposição. É certo que a oponente não invocou aí o erro na forma do processo, tendo o tribunal a quo conhecido ex officio desse vício processual. Mas este conhecimento oficioso não faz retroceder a intervenção do tribunal a uma fase liminar, necessariamente anterior à citação e à dedução da oposição. Na fase em que o tribunal a quo interveio pela primeira vez no processo apenas faria sentido rejeitar liminarmente a própria oposição à execução; mas tal indeferimento não foi, sequer, equacionado. Entendendo o Tribunal que ocorria um erro na forma executiva adoptada pelo exequente, que não era possível a sua adequação, nos termos previstos no artigo 193.º, n.º 1, do CPC, e que, por isso, se impunha anular todo o processado, restava-lhe julgar extinta a execução.
A recorrente, por sua vez, veio alegar que a questão da competência material dos tribunais comuns para a apreciação dos litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva, não se confunde nem interfere com a forma de processo executivo adequada para essa cobrança coerciva, que continua a ser a execução fiscal, apenas impedindo que a intervenção jurisdicional nesses processos seja feita pelos tribunais tributários.
Conclui, assim, que a execução e a respectiva oposição devem seguir a forma processual prevista no Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, sem prejuízo da competir ao tribunal a quo a tramitação da oposição.
3. Nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 4, al. e), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), ali introduzida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal «a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva». Na falta de outra disposição legal que regule a competência jurisdicional para estes litígios, a sua apreciação cai no âmbito da competência residual dos tribunais judiciais, nos termos previstos nos artigos 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e 40.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, denominada Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ).
Sendo inquestionável que o fornecimento de água e a prestação de serviços de saneamento constituem serviços públicos essenciais, como expressamente preceitua o artigo 1.º, n.º 2, alíneas a) e f), da n.º Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, com a entrada em vigor da nova al. e) ao artigo 4.º, n.º 4, do ETAF, ficou ultrapassada a verdadeira vexata questio que até aí persistiu a respeito da competência para as acções instauradas com vista à cobrança desses fornecimentos de água e prestação de serviços de saneamento, tendo ficado claro que a mesma compete aos tribunais judiciais, mantendo-se apenas as divergências a respeito das acções destinadas à cobrança de valores referentes à construção de ramais de ligação e às respectivas taxas (a respeito destas questões vide os acórdãos desta 2.ª Secção do TRP, de 10.01.2017, proc. n.º 106973/15.5YIPRT.P1, rel. João Proença, e de 13.09.2016, proc. n.º 85567/15.2YIPRT.P1, rel. Rodrigues Pires, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, onde se pode consultar a demais jurisprudência citada sem indicação da fonte).
Diferente desta é a questão de saber se esta competência residual dos tribunais comuns impedia a empresa municipal aqui exequente de lançar mão de uma execução fiscal para cobrança de um crédito de fornecimento de água, estando esta obrigada a lançar mão apenas dos meios processuais civis.
A decisão recorrida considerou que sim, invocando o artigo 129.º, n.º 1, da LOSJ, nos termos do qual compete aos juízos de execução exercer, no âmbito dos processos de execução de natureza cível, as competências previstas no CPC. O tribunal a quo parece, assim, entender que, cabendo na sua competência a tramitação das execuções por dívidas emergentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais, mas estando a sua competência cingida aos processos de execução de natureza cível, a cobrança daquelas dívidas nunca pode seguir a forma de execução fiscal, prevista nos artigos 148.º e seguintes do CPPT, seguindo obrigatoriamente a forma de execução comum prevista no CPC.
Mas o raciocínio desenvolvido na decisão recorrida parece assentar em premissas que não são correctas.
Em primeiro lugar, a decisão recorrida começa por afirmar que o TAF do Porto se julgou materialmente incompetente para a tramitação da execução fiscal, mais declarando competentes os Juízos de Execução do Porto e remetido os autos a estes Juízos. Mas a verdade é que o TAF do Porto nada decidiu sobre a competência para a execução propriamente dita, a qual nem sequer pendia naquele tribunal, mas sim nos serviços de execução do Município ..., tendo apenas declarado a sua falta de competência material para conhecer da oposição a essa execução, argumentando que a mesma, «enquanto se dirige contra a cobrança coerciva de fornecimento de água, respeita à prestação de serviços essenciais, na aceção da Lei n.º 23/96, de 26 de julho». A circunstância de, incoerentemente, ter concluído que a referida incompetência material determinava «o indeferimento do Processo Executivo (artigos 99.º, n.º 1, 726 n.º 2 alínea b) do Código de Processo Civil)» nada altera quanto ao alcance daquela declaração de incompetência, que apenas respeita à oposição à execução. Acresce que, na sequência desta decisão, a pedido da oponente, os autos de oposição à execução foram remetidos ao “Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia”, tendo sido o Juiz de turno à distribuição efetuada na Unidade Central e de Serviço Externo do Núcleo de Vila Nova de Gaia que determinou a remessa dos autos ao Juízo de Execução do Porto.
Em segundo lugar, a decisão recorrida parece partir do pressuposto de que o artigo 4.º, n.º 4, al. e), do ETAF, atribui aos tribunais judiciais uma competência exclusiva para o reconhecimento e para a cobrança de dívidas emergentes da prestação de serviços públicos essenciais, impedindo a intervenção não apenas dos tribunais administrativos e fiscais, mas também de qualquer entidade administrativa no âmbito da referida cobrança. Mas a verdade é que o alcance daquela norma é mais modesto, limitando-se a subtrair da competência dos tribunais administrativos e fiscais a apreciação dos litígios judiciais emergentes das relações de consumo relativas à prestação daquele tipo de serviços, que assim caem na competência residual dos tribunais comuns, sem qualquer preocupação de regular a intervenção de outras entidades, maxime administrativas, nesses processos.
Em terceiro lugar, o tribunal a quo parece entender que a competência residual dos tribunais comuns para as acções executivas mencionadas naquele artigo 4.º, n.º 4, al. e), do ETAF, corresponde necessariamente à competência dos Juízos de Execução. Mas a verdade é que nada impõe essa correspondência. Ainda que se entenda que a competência dos Juízos de Execução está limitada às execuções de natureza cível reguladas no CPC e respectivos apensos (entendimento que vem sendo refutado pelo Tribunal de Conflitos, segundo o qual a competência dos Juízos de Execução previsto no artigo 129.º da LOSJ foi ampliada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro – cfr. acórdãos de 18.01.2022, proc. n.º 02353/21.8T8ALM.S1, e de 01.03.2023, proc. n.º 01301/22.2T8SRE.S1, ambos relatados por Maria dos Prazeres Beleza), tal não impede que a competência para a oposição a uma execução fiscal subsumível à norma antes citada caia na competência residual dos tribunais judiciais, nomeadamente na competência dos Juízos Locais Cíveis ou de Competência Genérica, eles próprios dotados de uma competência residual no âmbito da jurisdição comum, como decorre do disposto no artigo 130.º da LOSJ.
Clarificados estes pontos, importa referir que não conseguimos vislumbrar qualquer norma ou princípio legal que impedisse o Município ... de lançar mão de uma execução fiscal para cobrança coerciva da dívida em causa. Por um lado, nada nos permite afirmar – nem a decisão recorrida o fez – que a execução a que respeita a oposição remetida aos Juízos de Execução do Porto extravase o âmbito da execução fiscal definido no artigo 148.º do CPPT. Por outro lado, a tramitação da execução propriamente dita não compete aos tribunais administrativos e fiscais, mas sim aos serviços de execução do próprio Município ..., ao abrigo do disposto no artigo 149.º do mesmo código, pelo que não é subsumível à norma do artigo 4.º, n.º 4, al. e), do ETAF.
Como refere a recorrente, tal execução fiscal foi intentada ao abrigo do artigo 110.º do Regulamento dos Sistemas Públicos e Prediais de Abastecimento de Água e de Drenagem de Águas Residuais do Município ..., publicado no Diário da República, II Série, n.º 46, de 6 de Março de 2018, nos termos do qual, «quando tiver de ser exigido coercivamente o pagamento de consumo de água, preço de disponibilidade, faturas de obras de ligação e reparação bem como danos causados no equipamento, sê-lo-á nos termos estabelecidos para cobrança de dívidas pelas autarquias, servindo de base à execução a respetiva certidão de dívida extraída pelos serviços competentes da Entidade Gestora». Como também refere a recorrente, nos termos do disposto no artigo 7.º, n.º 1, do já referido Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de outubro, as competências atribuídas no CPPT a órgãos periféricos locais ou, no que respeita às competências de execução fiscal, a órgãos periféricos regionais, são exercidas pelas autarquias quanto aos tributos por elas administrados. Ora, de harmonia com o Regime financeiro das autarquias locais e das entidades intermunicipais, constante da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro, constituem receitas dos municípios os preços devidos pela prestação de serviços por estes, nomeadamente os preços a cobrar pelo abastecimento público de água (cfr. artigos 14.º, al. f), e 21.º, n.º 3, al. a).
É certo que, nos termos do disposto no artigo 151.º do CPPT, compete ao tribunal tributário de 1.ª instância da área do domicílio ou sede do devedor originário decidir a oposição que for deduzida, ali se exceptuando apena o caso em que a execução fiscal deva correr nos tribunais comuns, situação em que cabe naturalmente a estes tribunais o conhecimento da oposição.
Porém, como se adverte no ac. do Tribunal de Conflitos de 18.01.2022, já antes citado, a norma do artigo 4.º, n.º 4, al. e), do ETAF, que subtraiu da jurisdição administrativa e fiscal a competência para conhecer a oposição à execução fiscal para cobrança de dívidas emergentes da prestação de serviços públicos essenciais, é posterior à norma do artigo 151.º do CPPT, pelo que se impõe considerar que aquela norma do ETAF acrescentou uma outra excepção à que já estava prevista nesta norma do CPPT. Ou seja, a tramitação e decisão da oposição à execução fiscal é da competência dos tribunais comuns, se esta execução correr os seus termos nesses tribunais, nos termos previstos no artigo 151.º, n.º 2, do CPPT, mas também nos casos em que corra perante um órgão administrativo de execução fiscal e diga respeito a uma dívida emergente da prestação de serviços públicos essenciais, por força do disposto no artigo 4.º, n.º 4, al. e) do ETAF.
De resto, a circunstância de aquele artigo 151.º prever expressamente a possibilidade de uma execução fiscal correr nos tribunais comuns, corrobora que não existe qualquer obstáculo, nem gera qualquer perplexidade, que um tribunal comum aprecie e decida a oposição a uma execução fiscal que corre os seus termos perante a entidade administrativa competente.
Afirma-se na decisão recorrida que o Tribunal de Conflitos não foi chamado, no processo antes citado, a decidir um conflito negativo quanto à execução, mas apenas quanto à oposição à execução. Mas, por isso mesmo, não vemos que algo se possa extrair desse acórdão a respeito da competência para a execução, como parece fazer a decisão recorrida quando afirma o seguinte: «tendo aquele Tribunal concluído que a matéria referente ao fornecimento por uma entidade pública, no exercício das atribuições que legalmente lhe são deferidas, e estar em causa uma taxa unilateralmente fixada como contrapartida do serviço, a competência para conhecer a oposição encontra-se subtraída à jurisdição administrativa e fiscal pela al. e) do n.º 4.º do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que foi acrescentada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, lei posterior ao n.º 1 do artigo 151.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário, necessariamente temos de concluir que aquele Tribunal também não é competente para o conhecimento da execução, conclusão que sai reforçada da leitura do artº 4º, nº4, al. e) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais». A verdade é que, ao contrário do que parece pressupor o tribunal a quo, as execuções por dívidas emergentes da prestação de serviços públicos essenciais não foram subtraídas da competência dos tribunais tributários pelo artigo 4.º, n.º 4, al. e), pois aqueles tribunais nunca tiveram competência para tramitar execuções, como claramente decorre dos artigos 149.º e 150.º do CPPT. A competência dos tribunais tributários sempre esteve cingida a «decidir os incidentes, os embargos, a oposição (…) e a reclamação dos atos praticados pelos órgãos da execução fiscal», conforme dispõe o artigo 151.º, n.º 1, do CPPT.
Não se ignora que, nos termos do artigo 103.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (LGT), o processo de execução fiscal tem natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional. Mas esta norma apenas vem confirmar que a intervenção dos tribunais no processo de execução fiscal está limitada cingida à decisão dos incidentes, embargos, oposições e reclamações referidos no artigo 151.º, n.º 1, do CPPT, mais resultando da conjugação daquele artigo 103.º, n.º 1, da LGT, com o artigo 151.º, n.º 2, do CPPT, que a natureza judicial da execução fiscal tanto pode reportar-se à jurisdição administrativa e fiscal, como à jurisdição comum, consoante o tribunal competente para decidir as questões discriminadas no n.º 1, desta última norma.
Deste modo, a única interpretação válida a dar à parte final do artigo 4.º, n.º 4, al. e), do ETAF, é que a mesma visou subtrair da competência dos tribunais tributários a apreciação dos mencionados incidentes, embargos, oposições e reclamações, atribuindo-os aos tribunais comuns por força da sua competência residual, sempre que esteja em causa a cobrança de dívidas relativas à prestação de serviços públicos essenciais, aditando estas situações à excepção já antes prevista no n.º 2, do artigo 151.º. do CPPT, como já havíamos referido anteriormente. O que não pode é concluir-se que aquela norma subtraiu da competência dos tribunais tributários a tramitação das execuções fiscais, para as atribuir em exclusivo aos tribunais judiciais. De resto, o ac. do Tribunal de Conflitos de 01.03.2023 é bem claro quando conclui nos seguintes termos: «De acordo com a versão do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais resultante da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, compete aos Tribunais Judiciais a apreciação de uma oposição a uma execução fiscal destinada a obter a cobrança coerciva de fornecimento de água, saneamento de águas residuais e gestão de resíduos urbanos, por respeitar à prestação de serviços essenciais, na acepção da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho».
Atento tudo quanto ficou exposto, julgamos estar agora claro que a competência dos tribunais comuns para apreciar a oposição à execução para cobrança de dívidas emergentes da prestação de serviços públicos essenciais não impõe que essa execução siga uma das formas previstas no CPC nem, de alguma forma, obsta a que essa execução siga a forma prevista no CPPT para as execuções fiscais.
Deste modo, no caso concreto, não ocorre qualquer erro na forma do processo executivo a que respeita a presente oposição à execução, pelo que não pode subsistir a decisão que anulou todo o processado, não estando assim demonstrado qualquer fundamento de extinção da execução.
Importa, assim, revogar a decisão recorrida e determinar o prosseguimento dos autos de oposição à execução fiscal.
Perante a total procedência da apelação, as respectivas custas são suportadas pela apelada (artigo 527.º do CPC).
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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V. Decisão
Pelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam totalmente procedente a apelação e, consequentemente, revogam a decisão recorrida e determinam o prosseguimento dos autos de oposição à execução fiscal.
Custas pela recorrida.
Registe e notifique.
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Porto, 10 de Julho de 2024
Artur Dionísio Oliveira
Rui Moreira
Fernando Vilares Ferreira