Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ANA OLÍVIA LOUREIRO | ||
Descritores: | PRESTAÇÃO DE CONTAS CADUCIDADE DO MANDATO | ||
Nº do Documento: | RP202407108309/23.9T8VNG.P1 | ||
Data do Acordão: | 07/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | ANULADA | ||
Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - A decisão sobre a inexistência da obrigação de prestar contas, a que alude o artigo 942º do Código de Processo Civil, põe fim ao processo e, ainda que tenha sido proferida de forma incidental, deve ser estruturada como uma sentença, carecendo de fundamentação de facto e de direito. II - A absoluta falta de enumeração dos factos considerados para a decisão determina a nulidade da sentença. III - A obrigação de prestar contas pode decorrer da existência de uma situação de facto em que alguém se encontre a administrar património alheio. IV - Transmitem-se, por sucessão, os direitos e deveres de natureza patrimonial do autor da herança e a caducidade do mandato por óbito do mandante não determina necessariamente a intransmissibilidade aos seus sucessores de todas as obrigações decorrentes do contrato que vigorou entre o autor da herança e o seu mandatário, transmitindo-se aos sucessores de ambas as partes as que tenham conteúdo patrimonial. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo número 8309/23.9T8VNG.P1, Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia, Juiz 5
Recorrentes: AA, BB e CC Recorrida: DD
Relatora: Ana Olívia Loureiro Primeiro adjunto: José Eusébio Almeida Segundo adjunto: Jorge Martins Ribeiro Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório: 1 – Em 27-10-2023 AA, BB e CC propuseram ação especial de prestação de contas contra DD sustentando, em suma, que são irmãs da Ré e que todas são as únicas e universais herdeiras de EE, falecida em 09-04-2023 no estado de viúva, tendo sido a Ré quem pelo menos desde 2009, administrou os bens da mãe que, dizem, era analfabeta e tinha já uma idade avançada. Segundo alegam, a Ré, por ter maior disponibilidade de tempo, passou a cuidar da mãe, apresentando-se como sua cuidadora informal e passou a gerir as suas receitas, recebendo as suas reformas, pagando as suas despesas, gerindo as contas bancárias e movimentando-as a crédito e a débito e tornando-se cotitular de várias dessas contas. Finalmente alegam que a Ré nunca prestou à sua mãe contas dessa administração das suas receitas, bens e despesas enquanto ela foi viva e, embora queixando-se às suas irmãs que os rendimentos da mãe não eram bastantes para suportar as suas despesas, também sempre recusou informá-las da razão de ser de tal afirmação e do destino dado às “várias dezenas de milhares de euros” de que a mesma era proprietária. Pretendem que a Ré preste contas dessa administração do património financeiro da sua mãe que dizem ter desaparecido por via de ordens de transferência na ordem dos milhares de euros e de levantamentos em numerário que não é plausível que tenham sido feitos pela sua mãe. 2 – A Ré contestou em prazo tendo excecionado a ilegitimidade das Autoras por entender que não existe qualquer disposição legal que funde a obrigação de prestar contas – que a petição inicial também não indica -, e que não sendo a Ré a cabeça de casal da herança aberta por óbito da sua mãe não tem qualquer dever de prestar contas na decorrência do seu óbito. Impugnou, ainda, grande parte dos factos alegados como causa de pedir e sustentou que o direito de pedir contas pela administração de bens da falecida em vida desta apenas poderia ser exercido por todos os herdeiros (Autoras e Ré, portanto) e que ainda que tivesse existido entre si e a sua mãe uma relação de mandato nunca à Ré podia ser exigida a prestação de contas já que o eventual mandato caducaria com a morte da mandante, não se transmitindo o direito a exigir contas aos seus herdeiros. Conclui que da petição inicial resulta que a intenção das Autoras não é a de pedir a prestação de contas, mas a de descobrir eventuais doações feitas pela mãe à Ré ou da prática por esta de algum abuso de confiança, o que não sucedeu e que as Autoras só podiam tentar saber por via de ação comum ou de petição da herança. Pediu a condenação das Autoras como litigantes de má-fé. 3 – A 11-11-2024 as Autoras apresentaram articulado de resposta defendendo a obrigação da Ré prestar contas por ter estado a administrar património alheio (embora, dizem, não no cumprimento de qualquer contrato de mandato ou em exercício de uma gestão de negócios), bem como sustentando a sua legitimidade ativa para as pedir. 4 – A 02-02-2024 foi anunciado o intuito do Tribunal de decidir o mérito da ação em sede de saneamento por entender “inexistir dever da Ré prestar contas e/ou erro na forma do processo” e foi facultado às partes o prazo de cinco dias para se pronunciarem sobre tal anunciada intenção. 5 – As Autoras vieram pronunciar-se a 12-02-2024 entendendo que não podia a decisão sobre a existência da obrigação de prestar contas dispensar a prévia produção de prova dos factos alegados na petição inicial e no articulado de resposta. 6 – Em 22-02-2024 foi proferida sentença que absolveu a Ré do pedido por inexistir o dever de a mesma prestar contas.
II - O recurso: É desta sentença que recorrem as Autoras, pretendendo a sua anulação ou, assim não se entendendo, a sua revogação com a consequente declaração da obrigação da Ré prestar contas Para tanto, alegam o que sumariam da seguinte forma em sede de conclusões de recurso: “1. A sentença ora recorrida demonstra uma displicência e negligência latentes por parte do tribunal recorrido, na análise e apreciação de toda a matéria probatória conduzida para os autos; o qual, possivelmente por ter analisado a presente matéria sem a atenção e reflexão que a mesma merecia, (i) confundiu a Ré/Recorrida com a falecida mãe das Autoras. (ii) A sucessão da falecida com a sucessão da Ré. (iii) Bem como a posição processual das Autoras, às quais na sentença proferida se chamam de “Réus”. 2. Encontrando-se tais fundamentos – que estiveram na base da fundamentação da decisão tomada pelo tribunal a quo - em oposição com a decisão proferida. 3. Tornando-se óbvio que as contradições supra apontadas (que não são apenas de nome ou designação; são-no também relativamente às díspares posições processuais entre partes, as quais se “colam” aos inapropriados intervenientes) tornam a presente sentença ininteligível, por inexata e ambígua. 4. Em virtude dos seus fundamentos, ora se confundirem, ora se encontrarem em oposição com a sentença proferida. 5. A qual deverá culminar com um raciocínio jurídico lógico-dedutivo conforme com tudo quanto o precede; não sendo isso que aqui se verifica na sentença recorrida, uma vez que a mesma é contraditória e inexata, nos termos já acima alegados. 6. Assim como resulta também ambígua, uma vez que na elaboração de uma sentença um tribunal tem de respeitar “(…) a obrigação imposta pelos artigos 154.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, ambos do C.P.C, de o Juíz fundamentar os despachos e as sentenças e, por outro, pelo facto de a sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico”, cfr. Acórdão 1021/09.3T2AMD.L1-1, do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 97/07/2014, não se verificando tal silogismo lógico-jurídico in casu, começando o julgador por identificar erradamente as partes, situando-as em posições processuais distintas das que têm na relação material controvertida, acabando por decidir não se percebe muito com base em quê e em que termos. 7. E uma decisão cujos fundamentos estejam em oposição com a decisão, ou tenha algum tipo de ambiguidade que a torne ininteligível,, como já se deixou dito, consubstancia uma nulidade da sentença, porquanto as decisões judiciais são nulas quando não especifiquem “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;” (cfr. alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º do C.P.C.) 8. Pelo que a decisão enferma de nulidade nos termos da aplicação conjugada dos artigos 205.º, n.º 1, da C.R.P., 613.º, n.º 3 e 615.º n.º 1, alínea c) e deverá ser sanada em conformidade. Para além disto, 9. A fundamentação da decisão deve permitir o exercício esclarecido do direito ao recurso, assegurando dessa forma a transparência e a reflexão decisória, convencendo e não apenas impondo. Em certo sentido, uma decisão vale o que valem os seus fundamentos – estes não existindo (o que se verificou na decisão recorrida), aquela não vale nada -, a força obrigatória da sentença encontra-se na decisão, mas, como diria o saudoso Alberto dos Reis, “mal vai à força quando se não apoia na justiça e os fundamentos destinam-se precisamente a convencer que a decisão é justa.” 10. Por outro lado, a fundamentação consiste na indicação das razões de facto e de direito que conduzem o julgador num raciocínio lógico, a decidir (ou não) em determinado sentido. Mas essa indicação não pode ser feita por simples adesão para os fundamentos indicados pelas partes. Compete ao julgador fazer esse caminho de esclarecimento e ligação – o que não fez. 11. Em consequência de tal, a falta de fundamentação gera a nulidade do despacho (art.º 613º, nº 3 do C.P.C.) ou da sentença (art.º 615.º, nº 1, alínea b), do C.P.C.). 12. Resulta das parcas e ambíguas palavras do Tribunal a quo que o mesmo delimitou o indeferimento das pretensões do aqui Recorrente, sem para tanto fundamentar tal entendimento. 13. Ora, é total o nosso desacordo relativamente ao decidido que veio a indeferir ao recorrente as suas legítimas pretensões deduzidas na petição inicial por si apresentada. Antes de mais, o Tribunal Recorrido não logrou demonstrar qual o motivo e fundamentação que levou o mesmo a indeferir tais pretensões, não tendo sequer especificado nem concretizado o(s) motivo(s) dessa argumentação. 14. Convenceu-se com base em quê?; Porque é que as Recorrentes não lograram demonstrar a obrigação do dever de prestação de contas por parte da Recorrida?; A que valoração (ou falta dela) o julgador atendeu para ter decidido como decidiu?; 15. Quais os factos e provas que apreciou e que lhe permitiram enquadrar a presente situação na figura jurídica do mandato? 16. Na fundamentação da sentença não se verifica qualquer exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. 17. É indiscutível que o tribunal a quo não permitiu o desenvolvimento do trabalho de produção de prova que competia às Recorrentes. 18. Simplesmente, não explicou como deduziu as provas que entendeu considerar, tal conteúdo e respetivas conclusões! 19. Mais, ficamos sem saber qual foi a ligação lógico-racional que, face às regras da experiência comum, existiu entre cada uma das provas (não) consideradas e o subsumido pelo tribunal julgador, bem como qual foi o raciocínio, o processo lógico-dedutivo que permitiu ao tribunal retirar daquelas premissas as conclusões que tirou (enquadramento na figura do mandato – art.º 1157.º do C.C.) e não outras. 20. Não há no aresto qualquer explicação a tal respeito, o que impossibilita as Recorrentes e os tribunais superiores de conferirem a bondade e rigor do processo de formação e convicção do julgador, por falta de elementos que lhe permitam subscrever e sufragar ou, pelo contrário, impugnar e refutar os vetores racionais da decisão. 21. Ora a falta de fundamentação, como já se deixou dito, consubstancia uma nulidade da sentença, porquanto as decisões judiciais são nulas quando não especifiquem “os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão” (cfr. alínea b), do n.º 1, do artigo 615.º do C.P.C.), pelo que a decisão enferma de nulidade nos termos da aplicação conjugada dos artigos 205.º, n.º 1, da C.R.P., 613.º, n.º 3 e 615.º n.º 1, alínea b) e deverá ser sanada em conformidade. 22. S.M.O., a parte tem o direito processualmente reconhecido a ser “esclarecida” pelo Tribunal que confere uma decisão o que, manifestamente, não se verifica. 23. O tribunal a quo fez tábua rasa quanto à valoração (ou não) das inúmeras provas documentais juntas pelas Recorrentes. 24. Sendo as regras de valoração da prova absolutamente ignoradas no caso em apreço, pelo Tribunal a quo. Mais! 25. As Recorrentes não podem deixar ainda de discordar com a matéria que esteve na base da decisão da não obrigação do dever de prestar contas por parte da Recorrida, em virtude do tribunal a quo ter considerado que a situação dos autos se enquadra na preceituada para o mandato, previsto pelo art.º 1157.º e ss. do Código Civil. 26. Uma vez que não existe, da matéria invocada pelas Recorrentes, ou da alegada pela Recorrida, quaisquer factos ou matéria probatória que nos permita concluir a prática mandada de atos jurídicos por conta de EE, e a respetiva obrigação assumida por DD. Ponto. Antes pelo contrário! 27. Consta de matéria documental junta aos autos que a Recorrida era, sim, “cuidadora informal” da sua falecida mãe, sendo nessa qualidade que administrava os seus bens. 28. Procedendo, para o efeito, à alteração de moradas junto de várias instituições; à inserção de si própria como cotitular de contas bancárias. 29. Gerindo as receitas da falecida, recebendo as suas reformas, efetuando pagamentos de despesas, procedendo a transferências bancárias, entre outras diligências que se revelassem necessárias. 30. Toda esta factualidade que, note-se, deve ser analisada à luz da avançada idade da falecida, bem como o seu estado de saúde e a sua evidente fragilidade emocional – a qual foi sendo cada vez mais visível -, e jamais esta teria a perspicácia de exigir explicações. 31. (Como é que uma mulher que padecia de quadro clínico débil, era analfabeta, e ganhava uma reforma baixa, tinha literacia para conferir um mandato a quem quer que fosse? Salvo o devido respeito, tal tese só pode consubstanciar uma desculpa para chutar os presentes autos “para canto”!) 32. Ademais, qual a fonte probatória que permite subsumir a existência de poderes de representação ao mandatário, a aqui Recorrida? 33. Como é que se pode considerar a Recorrida como mandatária da mandante EE, quando está vertido “Preto no branco” – nos documentos juntos aos autos - que a Recorrida era “cuidadora informal” da falecida? 34. Inexistindo quaisquer elementos essenciais que sempre teriam de figurar nos autos, para se enquadrar a presente situação na figura do contrato de mandato, prevista nos termos do art.º 1157.º do Código Civil. 35. Acrescente-se ainda que, mesmo que o tribunal a quo não tivesse considerado a matéria probatória junta pelas Recorrentes aos autos, como suficiente para se pronunciar pela obrigação da prestação de contas por parte da Recorrida, a mesma sempre seria motivo suficiente para que, nos termos do art.º 942.º, n.º 2, do C.P.C., o juiz verificasse que a questão não podia ser sumariamente decidida, determinando os termos subsequentes do processo comum adequados ao valor da causa. 36. O que as Recorrentes requereram a fim de se dar cumprimento à possibilidade de produção das provas tidas como fundamentais pelas Autoras, com vista à demonstração da obrigação de prestação de contas pela Recorrida. 37. Mas que não foi concedido pelo tribunal de 1.ª instância. 38. Optando por uma sentença elaborada de forma precipitada, errada e infundada, assente unicamente naquilo que o julgador achou e ponto. 39. Crendo-se, à luz de toda a prova produzida, ser evidente que da mesma deve resultar a obrigação de prestação de contas por parte da Recorrida, às Recorrentes. 40. E, em consequência, a condenação ao pagamento às Recorrentes, do saldo que, eventualmente, vier a resultar apurado, nos termos do art.º 941.º e ss. do C.P.C. 41. Mas ainda que não se opte por tal decisão prévia, sempre será de conceder às Recorrentes o uso de todos os elementos probatórias de que as mesmas dispõem e pretendem fazer uso em sede própria e momento oportuno – os quais foram indicados e requeridos 42. Não podendo ser suficiente uma mera adesão do tribunal a quo, a um Acórdão em que vem explanada a questão do mandato, prevista nos termos dos artigos 1157.º e ss. Do Código Civil, quando, ainda para mais, se verifica um atropelo aos mecanismos processuais de que as Recorrentes dispõem – concretamente, os preceituados no art.º 942.º, n.º 3, última parte, do C.P.C. 43. Sempre se impondo uma inversão da decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância, tendente à obrigação de prestação de contas por parte da Recorrida às aqui Recorrentes. 44. Ou, em alternativa, que sejam concedidos às Recorrentes os mecanismos processuais de que as mesmas dispõem – concretamente, os preceituados no art.º 942.º, n.º 3, última parte, do C.P.C. 45. Assistindo às Recorrentes, em face de todo o supra exposto, o direito de, nos termos do artigo 941.º do Código de Processo Civil, virem aqui exigir contas a quem procedeu à administração dos seus bens, no caso, a aqui Ré, conforme resulta provado. 46. E ainda que a prova produzida não fosse suficiente para tal, reclamando-se que a dúvida ficou instalada, sempre se imporia a remessa dos autos para o mecanismo previsto pelo art.º 942.º, n.º 3, última parte, do C.P.C., não se decidindo sumariamente; mas antes, sim, com conhecimento de todos os factos e prova produzida. 47. O que o tribunal a quo não fez. 48. Ao que convém esclarecer ainda que, sendo a obrigação de prestação de contas uma obrigação de informação (prevista nos termos do art.º 573.º do C.C.), a sua respetiva ação justifica-se sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo, e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias. 49. Dúvidas e condições essas que ficaram, respetivamente, evidentes a “olho nu”, nos presentes autos. 50. Devendo tal prestação de contas ter por objeto o apuramento e a aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios, in casu, a Recorrida, a que se deve seguir a eventual condenação no pagamento do saldo que se vier a apurar em benefício das Recorrentes. Tudo nos termos do disposto no art.º 941.º e ss. do Código de Processo Civil. 51. Resultando que da factualidade que resultou demonstrada, nunca se poderá subsumir o enquadramento da mesma na figura jurídica do mandato, porquanto, falham os pressupostos que sempre teriam de estar na sua base – os quais, de resto, resultam expressamente preceituados no art.º 1157.º do Código Civil. 52. Devendo-se considerar, em consequência de tal, a ação de prestação de contas apresentada pelas Recorrentes, totalmente procedente, revogando-se, dessa forma, a sentença proferida pelo tribunal de 1.ª instância, em substituição de uma que venha a decidir nos termos e com os fundamentos –de facto e de direito – como ficou demonstrado nas presentes alegações. 53. De todo o exposto, resulta que o tribunal a quo fez uma errada interpretação da prova produzida ao longo de toda a instância, resultando tal erro na sentença de que agora se recorre.” * A Recorrida contra-alegou, sustentando a improcedência da arguida nulidade da sentença e reiterando o essencial da sua contestação, isto é, que as Recorrentes não haviam indicado o fundamento jurídico para a sua alegada obrigação de prestar contas, que entende inexistir, e sustentando, de novo, a ilegitimidade ativa das Autoras que estriba na alegação de que não é ela, Ré, enquanto co-herdeira que está obrigada a prestar contas. Conclui que deve ser confirmada a decisão recorrida. * O recurso foi admitido tendo-se o Tribunal recorrido pronunciado pela improcedência das nulidades apontadas e afirmado ter incorrido em lapsos de escrita que, contudo, não retificou. III – Questões a resolver: IV – Fundamentação: O Tribunal recorrido não deu como provados ou não provados quaisquer factos. 1 – Da arguida nulidade da sentença: As Recorrentes apontam à sentença erros consistentes em ter identificado a Ré como sendo a sua falecida mãe e se ter referido às Autoras como sendo os “réus”. Segundo aduzem, tais lapsos revelam falta de atenção na apreciação da causa e estão na base da errada decisão que o Tribunal recorrido prolatou. Concluem que tais erros de identificação conduzem a uma contradição entre os fundamentos e a decisão. Afirmam, ainda, que as Recorrentes não conseguem compreender as contradições apontadas, apesar de assessoradas por mandatário. A nulidade que concluem existir com base nestas alegações é a prevista no artigo 615º, número 1 c) do Código de Processo Civil que estatui que: “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”. A previsão da primeira parte de tal alínea ocorre sempre que a fundamentação de facto e de direito da sentença proferida apontam num certo sentido e o seu dispositivo não se coaduna com esses pressupostos, manifestando a sentença falta de lógica entre os fundamentos e a decisão[1]. A nulidade prevista na segunda parte do mesmo preceito ocorre quando alguma ambiguidade ou obscuridade torne a decisão ininteligível. Ora, é manifesto que inexiste qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão da sentença recorrida e que os erros de identificação das partes acima apontados consubstanciam meros lapsos de escrita que podem ser corrigidos à luz do artigo 614º, número 1 do Código de Processo Civil, o que o tribunal Recorrido, uma vez que atempadamente os reconheceu, poderia e deveria já ter feito à luz do número 2 do mesmo preceito. Não obstante não ter sido efetuada tal retificação, a sentença não deixa de ser inteligível sendo absolutamente manifesto que: - na última linha da primeira página, onde se lê “falecida DD” se queria dizer “falecida EE”; - na primeira linha da segunda página quando se refere “dessa falecida DD” queria dizer-se e deve ler-se “dessa falecida EE”; - na segunda linha da segunda página onde se lê “Os Réus, surpreendidos”, se queria dizer “As autoras, surpreendidas”; - na terceira linha da segunda página onde se lê “da sucessão da DD” se queria dizer “da sucessão da EE”. Muito embora o Tribunal a quo não tenha feito as devidas retificações é claramente inteligível a sentença não consubstanciando, tampouco, tais lapsos de escrita qualquer contradição entre os fundamentos da sentença e a sua decisão. A sentença é perfeitamente compreensível saltando à vista que o Tribunal nomeou erradamente como “DD” a mãe das Autoras e da Ré, assim a identificando ao longo da sentença em três distintos momentos, mas sempre referindo a mesma como “falecida” ou autora da sucessão, pelo que resulta claro a quem se pretendia referir. Também a troca, na segunda linha da segunda página, das Autoras pelos “réus”, não deixa dúvidas sobre quem pretendia o Tribunal nomear, já que ali se faz uma súmula da pretensão das Autoras que o Tribunal demonstra ter compreendido e que bem sumariou. As afirmações que padecem de lapso estão contidas na última oração da primeira página e nas primeiras duas orações da segunda, onde o Tribunal faz apenas uma mera súmula da posição das partes. Assim, sendo perfeitamente compreensível o trecho da sentença, que contém manifestos lapsos de escrita, não existe qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão que importe a nulidade da sentença, nem a mesma é obscura ou ininteligível. * As Recorrentes sustentam, ainda, que a decisão recorrida também padece da nulidade decorrente da falta de fundamentação – artigos 615º b) apontando-lhe o vício em causa por ter remetido apenas para a posição da Ré e por não estar assente num discurso próprio nem ter adequado e aplicado ao caso concreto a fundamentação do Acórdão que transcreveu em grande medida e que concluiu ser aplicável ao caso dos autos sem qualquer explicação suplementar. Estipula o artigo 942º, número 3 do Código de Processo Civil que “Se o réu contestar a obrigação de prestar contas, o autor pode responder e, produzidas as provas necessárias, o juiz profere imediatamente decisão, aplicando-se o disposto nos artigos 294.º e 295.º; se, porém, findos os articulados, o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, manda seguir os termos subsequentes do processo comum adequados ao valor da causa.” A decisão recorrida foi proferida à luz deste preceito remetendo o artigo 295º do Código de Processo Civil, aqui aplicável, para a estrutura da sentença prevista no artigo 607º “com as necessárias adaptações”. Ou seja, desprezado o que tal artigo estipula que esteja em contradição com o regime dos incidentes da instância, nomeadamente o prazo previsto no seu número 1, a decisão final do incidente em causa deve identificar as partes, o objeto do litígio e as questões a resolver, discriminar os factos provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes. Nas palavras de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa [2], após a resposta à contestação, “(…) o juiz deve ponderar se a decisão sobre esta questão prévia, em função da sua complexidade deverá seguir o modelo dos incidentes da instância ou o modelo do processo comum. No modelo sumário, o processo tem uma estrutura simplificada e reduzida, nos termos previstos para os incidentes da instância. Se o réu contestar, afirmando apenas que a relação jurídica invocada pelo autor é exata mas dela não deriva a obrigação de prestar contas, a decisão terá de ser proferida seguindo o modelo incidental, na medida em que está somente em causa uma questão de direito. Ainda no modelo incidental, segue-se a produção das provas necessárias”. Já no caso da contestação ser no sentido de que não existiu nem existe qualquer obrigação de prestar contas ou de que as mesmas já foram prestadas, entendem os mesmos autores[3] que “(…) a questão de facto assim suscitada só deve ser decidida segundo o modelo de “(…) processo comum se o número de factos em apreciação for elevado ou se a factualidade a apurar for complexa exigindo larga indagação.”. No caso não foi determinado que os autos seguissem a forma de processo comum pelo que se decidiu a questão em apreço – da existência/inexistência da obrigação de prestar contas -, de forma incidental. Contudo, não foi ordenada qualquer produção de prova nem se selecionaram quaisquer factos assentes que pudessem servir de base à decisão. O Tribunal recorrido enquadrou juridicamente, por remissão para Acórdão que parcialmente transcreveu, a causa de pedir como uma relação contratual de mandato entre a Ré e a sua falecida mãe e, à semelhança da decisão citada, concluiu - por mera remissão - que o direito à informação de que tenha sido titular a mandante caducou com a sua morte. O Tribunal recorrido aderiu, ainda, ao alegado pela Ré na sua contestação, discordando da pretensão das Autoras nos seguintes termos: “Não podemos concordar, pelos motivos descritos pela ré na sua contestação. Pouco existe a acrescentar na verdade.”. O artigo 154º, número 2 do Código de Processo Civil, oportunamente convocado pelas Recorrentes, impede expressamente que a fundamentação das decisões consista na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição. No caso, na contestação, a Ré, além de excecionar a ilegitimidade ativa que não chegou a ser referida na sentença, esgrimiu uma série de diferentes argumentos no sentido da improcedência da pretensão da Autora que a sentença recorrida sequer sumariou. Contudo, após aderir aos fundamentos da contestação, o Tribunal a quo também citou, transcrevendo-o em grande parte, um acórdão que entendeu tratar de caso em tudo semelhante ao dos autos e afastou a pertinência/utilidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça mencionado pelas Autoras na sua resposta, explicando que o mesmo se referia à administração dos bens da herança e não à administração dos bens do seu autor antes do óbito. Donde, não é correto afirmar que a sentença se limitou a aderir aos fundamentos da oposição, como está vedado pelo artigo 154º, número 2 do Código de Processo Civil. É manifesto que a fundamentação da sentença é escassa na sua motivação de direito, não indicando sequer qual ou quais o(s) preceito(s) legais aplicáveis e se é certo que nada impede que se use e transcreva jurisprudência e/ou doutrina publicada que seja pertinente, tal não dispensa que se faça, ainda que sumariamente, um enquadramento da situação em apreço em cotejo com tal doutrina e jurisprudência, apontando em que sentido a situação de facto se assemelha aos ensinamentos doutrinais ou ao tratamento jurisprudencial de outra questão semelhante. As decisões judiciais querem-se sucintas, na medida do possível, mas completas e cabais, bem como autossuficientes, no sentido de que a sua mera leitura baste para a compreensão do litígio e da solução adotada, sendo indubitavelmente intuito do legislador que das resulte a “justificação” a decisão, como decorre do artigo 615º, número 1 b) do Código de Processo Civil.[4] Ora, apesar de excessivamente sucinta em motivação própria – tendo-se sobretudo recorrido a extensa transcrição de um Acórdão cuja motivação foi tida por aplicável -, não pode afirmar-se que a sentença careça de fundamentação de direito, já que, na verdade, a faz por remissão para a fundamentação de acórdão que transcreve. Já quanto à fundamentação de facto, todavia, a mesma é inexistente, tendo-se indicado sumariamente a pretensão das Autoras e o sentido defesa sem, contudo, se ter, ainda que por súmula, elencado os factos que consubstanciavam a causa de pedir. Ora, como se verá, os factos que consubstanciam a causa de pedir eram essenciais para apurar se, uma vez provados, podem servir de fundamento bastante para a pretensão de exigir a prestação de contas. No caso a consideração dos factos alegados como causa de pedir na petição inicial não podia ter sido dispensada na decisão, como ocorreu. O Tribunal recorrido entendeu, na verdade, que os fundamentos da pretensão das Autoras não bastavam ou não eram adequados a que se concluísse pela obrigação da Ré prestar contas, remetendo para um Acórdão que em parte transcreveu. Nele se tratava de questão em que, qualificado o acordo entre o ali demandado e o falecido - cujo património fora por aquele administrado em vida -, como um contrato de mandato, se considerou que o mesmo caducara com o óbito do mandante e que o direito a exigir contas não se transmitia aos seus herdeiros. Sucede que da sentença não resultam quais os factos alegados na petição inicial com base nos quais o Tribunal recorrido entende poder qualificar da mesma forma – como de mandato -, a relação entre a Ré e a sua falecida mãe, ao abrigo da qual terá, segundo as Autoras, administrado os seus bens[5]. A decisão recorrida não refere, assim, quais os factos alegados pelas Autoras nem, tampouco, em que medida os mesmos configuram uma relação de mandato entre a Ré e a sua falecida mãe. Estando controvertidos vários dos factos alegados na petição inicial – que a Ré impugnou em larga medida – e não podendo, assim, os mesmos ser dados por provados, a decisão recorrida assenta (do que consegue deduzir embora tal não seja expressamente afirmado), na consideração de que esses factos, ainda que provados, não seriam bastantes à conclusão pretendida. Trata-se de uma situação de “inconcludência jurídica” tal como a qualifica Lebre de Freitas[6] que a define como a “situação em que é alegada uma causa de pedir da qual não se pode tirar, por não preenchimento da previsão normativa, o efeito jurídico pretendido, constituindo causa de improcedência da ação”. Nem sempre é fácil distinguir tais situações - de inviabilidade da ação -, das de ineptidão da petição inicial por falta ou insuficiência da causa de pedir, mas, no caso, o Tribunal decidiu do mérito da pretensão das Autoras, julgando-a improcedente e absolveu a Ré do pedido. O que fez por aplicação, por remissão para a fundamentação de Acórdão em que se conhecia de uma relação contratual de mandato entre o ali réu e a pessoa cujo património o mesmo administrou em vida. É manifesto concluir que o Tribunal conheceu do mérito por entender que os factos alegados na petição inicial conduziam a qualificação jurídica que não servia de fundamento ao direito das Autoras de exigirem a prestação de contas. Da sentença, contudo, não resultam os factos que serviram de suporte a tal qualificação jurídica. Trata-se de uma situação de absoluta falta de fundamentação de facto, sendo a decisão omissa quanto aos factos que lhe servem de fundamento. Apesar de no artigo 943º, número 3 do Código de Processo Civil se permitir o conhecimento imediatamente e por via incidental da questão da existência da obrigação de prestar contas depois de “produzidas as provas necessárias”, dúvidas não há que pode, de facto, não haver qualquer prova a produzir, o que sucede, nomeadamente, quando todos os factos que servem de causa de pedir estejam admitidos por acordo. Nesse caso não haverá que produzir prova, mas os factos assentes têm que constar da decisão, sob pena de nulidade da mesma nos termos do artigo 615º, número 1, b) do Código de Processo Civil. Sempre que, como sucede no caso em apreço, tais factos tenham sido impugnados (no todo ou em parte), também se poderá dispensar a produção de prova quando se entenda que, ainda que provados todos os factos alegados, não se poderia concluir pela existência do dever/direito de prestar contas. Foi isso, subentende-se, que o Tribunal recorrido entendeu suceder. Olhemos, pois, para a causa de pedir da ação por forma a aferir se estão já assentes todos os factos necessários à decisão ou se, pelo menos, os que estão impugnados não têm que ser sujeitos a instrução por não poderem, em caso algum, conduzir à declaração do dever de prestar contas que as Autoras querem impor à Ré. Em resultado de confissão da Ré ou por prova feita com base na apresentação de documento autêntico estão já assentes os seguintes factos: Estão, contudo, impugnados pela Ré, e, portanto, são controvertidos, entre outros, os seguintes factos alegados na petição inicial: Em face deste elenco de factos controvertidos não poderia o Tribunal recorrido ter conhecido da questão decidenda sem ter produzido prova, nos termos previstos no artigo 942º, número 3 do Código de Processo Civil. É que Autoras alegam que a Ré administrou os bens da sua mãe, nomeadamente as quantias que a mesma tinha depositadas nos bancos e as receitas (reformas) que a mesma auferia, sendo ela quem cuidava da sua mãe e efetuava as despesas necessárias a tal cuidado. Dos factos que articulam resulta, ainda, que a sua falecida mãe tinha conhecimento e consentia nessa administração, ainda que tacitamente. As Autoras entendem que o dever de prestar contas pela Ré dimana do artigo 573º do Código Civil de acordo com o qual quando o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo há obrigação, por parte de quem esteja em condições de o fazer, de lhe prestar informação. O processo especial de prestação de contas, tal como se encontra definido quanto ao seu propósito, no artigo 941º do Código Civil, consagra uma obrigação de informação que se exercita por via da apresentação, em forma de conta corrente, das despesas e receitas realizadas por quem administra bens alheios. Nas palavras de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa[7] “Em termos de direito substantivo, a obrigação de prestar contas decorre de uma obrigação mais geral – a obrigação de informação -, consagrada no artigo 573º do Código Civil. A jurisprudência tem enfatizado que a ação especial de prestação de contas é uma das formas de exercício deste direito de informação, cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas e das despesas efetuadas, de modo a obter-se um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito (…) Inexistindo norma legal que genericamente determine quando é que alguém tem de prestar contas, o artigo 941 pressupõe a existência de normas de direito substantivo que imponham tal obrigação”. Alberto dos Reis[8] afirma mesmo “(…) que a obrigação de prestação de contas pressupõe que alguém que administrou ou está a administrar bens ou interesses alheios e, por isso, deve prestar contas dessa administração, mesmo que se trate de mera administração de facto, sem que ao administrador assistam poderes legais ou convencionais para estar administrar os bens ou interesses em causa, mas que a lei faz corresponder a fonte dessa obrigação”. Por sua vez, Vaz Serra afirma mesmo que “Não importa a fonte de administração: o que importa é o facto da administração de bens alheios seja qual for a sua fonte”[9]. A obrigação em apreço pode, assim, pode ter por fundamento uma mera situação de administração de facto, sendo essa uma das soluções de direito que pode vir a ser aplicada aos factos que se vierem a apurar. Além de poder decorrer de uma situação de administração de facto, também a lei ou o contrato podem ser fontes da obrigação de prestar contas e neste último caso se insere, nomeadamente e no que aqui releva, o contrato de mandato, que é uma das modalidades da prestação de serviços (cfr. artigo 1155º do Código Civil) e é o contrato pelo qual alguém se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta de outrem (cfr. artigo 1157º do Código Civil). As Autoras alegam que a sua irmã, aqui Ré, administrou as receitas, as despesas e o património da sua mãe e que a mesma, ainda que tacitamente, aceitou tal administração. Ou seja, alegam que a mesma foi feita com o seu conhecimento e consentimento. Uma vez provados os factos impugnados, caso venha a concluir-se que foi acordada entre a Ré e a sua mãe a referida administração dos seus bens, rendimentos e despesas e que tal consubstancia a prática pela Ré de atos jurídicos em nome da sua mãe com o conhecimento e consentimento (ainda que tácito) dela e que pode a relação assim estabelecida vir a ser qualificada como uma relação de mandato, como decidido na sentença recorrida, também a solução jurídica adotada pelo Tribunal recorrido não se impõe como a única possível. O artigo 2024º do Código Civil define como sucessão “(…) o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam”. Nos termos do artigo 2025º, número 1 do Código Civil, “1. Não constituem objeto de sucessão as relações jurídicas de que devam extinguir-se por morte do respetivo titular”. Daqui decorre inelutavelmente que o contrato de mandato não se transmite por morte, pois o mesmo se extingue com o óbito do mandante nos termos do artigo 1174 a) do Código Civil. Todavia, caso se venha a concluir que entre a Ré e a sua mãe vigorou, de facto, um contrato de mandato, muito embora este tenha caducado com a sua morte, por força do artigo 1174º a) do Código Civil, tal não impõe inelutavelmente a conclusão a que chegou o Tribunal recorrido de que não se transmitiu às Autoras o direito a pedir contas à mandatária. Exemplifiquemos de forma que não nos parece deixar dúvida: se se estiver perante mandato remunerado nos termos do artigo 1158º, número 2 do Código Civil, caducando o mesmo por morte do mandante o mandatário não pode exigir aos seus herdeiros, até ao limite do que tenham recebido por sucessão, o pagamento da sua remuneração? Parece-nos indiscutível que poderá. Tal obrigação, que é resultante do mandato, tem natureza patrimonial, e transmite-se aos herdeiros do mandante nos termos do artigo 2068º, número 1 do Código Civil que prevê que a herança reponde pelas dívidas do falecido. A decisão que a decisão recorrida entendeu ser líquida, mas não é, passa por saber se a obrigação de prestar contas por banda do mandatário nos termos do artigo 1161º d) do Código Civil tem conteúdo patrimonial (que se transmita aos seus sucessores). Não desconhecemos a jurisprudência, entre ela o Acórdão parcialmente transcrito na decisão recorrida, que defende que inexiste a obrigação do mandatário de prestar contas após a caducidade do mandato por morte do mandante. Em sentido divergente, contudo, encontra-se doutrina e jurisprudência que defendem que a obrigação de prestação de contas do mandatário, quando o mesmo esteja a administrar o património do mandante, tem, como correspetivo, um direito deste com caráter e de interesse eminentemente patrimonial. Assim se decidiu nomeadamente em Acórdão desta secção de 23-01-2023 [10]. Neste pode ler-se em enunciado que transcrevemos pela sua notável clareza: “(…) não obstante a indiscutível natureza pessoal do contrato de mandato, a qual, ademais, resulta na exclusão da relação de mandato do objeto da sucessão, não se transmitindo o mandato, de facto, aos herdeiros do falecido mandante ou mandatário (cfr. artigo 2025º, nº 1 do Código Civil), a obrigação de prestar contas reveste natureza patrimonial, sendo, por isso, transmissível pela via sucessória. Com efeito, uma coisa é a intransmissibilidade do contrato de mandato, e outra diferente é a própria obrigação de prestar contas por parte de quem administra ou administrou património alheio”. Também desta Relação vão neste mesmo sentido: o Acórdão de 08-03-2022, em que se sumaria: “A obrigação de prestar contas reveste natureza patrimonial, sendo, por isso, transmissível pela via sucessória, apesar da caducidade do mandato por morte do de cujus (art.º 1174º, nº 1, al. a), do Código Civil)”[11]; e o Acórdão de 02-12-2021 em cujo sumário se pode ler: “(…) não obstante a indiscutível natureza pessoal do contrato de mandato, a qual, ademais, resulta na exclusão da relação de mandato do objecto da sucessão, não se transmitindo o mandato, de facto, aos herdeiros do falecido mandante ou mandatário (cfr. artigo 2025º, nº 1 do Código Civil), a obrigação de prestar contas reveste natureza patrimonial, sendo, por isso, transmissível pela via sucessória”[12] Também no mesmo sentido vão os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 07-05-2015[13], 23-04-2020[14]. No primeiro afirma-se ainda que: “Este interesse em agir dos aqui autores não lhes advêm apenas enquanto sucessores no direito da autora da herança exigir essa prestação, i. é por via hereditária, é também um interesse próprio, na medida em que do resultado dessas contas depende o próprio conteúdo do seu direito à herança”, afirmação que também nestes autos é inteiramente pertinente. De facto, a obrigação de prestar contas que se exerce no processo especial a tanto destinado visa não só o “(…) apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios”, como também a “eventual condenação no pagamento do saldo que vier a apurar-se”. Luís Filipe Pires de Sousa[15], também acolhe este entendimento, afirmando perentoriamente que a obrigação de prestar contas do mandatário se enquadra “(…) numa relação jurídica de natureza patrimonial, a qual pode ser objeto de sucessão, transmitindo-se, enquanto obrigação, aos herdeiros do mandatário e, enquanto direito, aos herdeiros do mandante”. Como tal, em face destas possíveis soluções de direito, não podia o Tribunal recorrido ter dispensado a produção de prova, que está prevista no artigo 942º, número 3 do Código de Processo Civil, pois só após o apuramento dos factos alegados e controvertidos poderá aferir-se do bom fundamento da pretensão das Autoras. Provando-se os factos impugnados pode (nomeadamente por via das soluções de direito acima enunciadas), vir a concluir-se pela existência do dever de prestar contas. Pelo que se deve anular a sentença recorrida, por absoluta falta de especificação dos seus fundamentos de facto, devendo os autos prosseguir para produção de prova (a título incidental ou sob a forma de processo comum), dos factos alegados e controvertidos que sejam relevantes para o apuramento da obrigação de prestar contas.
V – Decisão: Nestes termos, julga-se procedente a apelação e anula-se a sentença devendo os autos prosseguir com vista à produção de prova sobre os factos controvertidos relevantes à decisão, nos termos acima enunciados. Custas pela Recorrida, nos termos do previsto no artigo 527º, número 1 do Código de Processo Civil. |