Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | FRANCISCA MOTA VIEIRA | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO DANO DA PRIVAÇÃO DE USO DO VEÍCULO VICISSITUDES PROCESSUAIS | ||
Nº do Documento: | RP202406207432/20.6T8PRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/20/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - Na indemnização a fixar pelo dano da privação do veículo, a fixar segundo o critério da equidade, no tocante às vicissitudes ocorridas com a repetição de actos processuais e julgamento feito por virtude da verificada falta de citação de uma das co- rés, afigura-se-nos injustificado que seja a autora a sofrer as consequências dessa vicissitude processual, através de eventual desconto no período de privação do uso do veículo do período que decorreu entre a data da petição inicial e o despacho proferido a 7.04.2022, pelo qual foi verificada a nulidade traduzida na falta de citação de uma das co -rés e que determinou a anulação de todo o processado, após a petição inicial - cfr. art.º 187.º, al. a) do C.P. Civil e dela trata o art.º 188.º do C.P.C. II - Trata-se de uma das vicissitudes processuais não imputáveis a conduta censurável de qualquer das partes, e que, por isso, serão apenas atendíveis no juízo de equidade a formular por forma a não prejudicar qualquer uma das partes em detrimento de outras. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 7432/20.6T8PRT.P1
Tribunal judicial da comarca do Porto-Juízo Local Cível do Porto-Juiz 5
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto
I.RELATÓRIO 1.A Autora AA instaurou ação declarativa de condenação em processo comum contra as Rés A... Companhia de Seguros, S.A. e B... Companhia de Seguros, S.A. pedindo a condenação solidária de ambas as Rés no pagamento da quantia de € 10.469,89 (pelo custo da reparação do veículo sinistrado, privação do uso e outros prejuízos), acrescida dos juros de mora contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento. Para tanto, e no essencial, alega que a ocorrência de uma colisão em cadeia de vários veículos, um dos quais, o seu, com a matrícula ..-..-MT (doravante MT), alega que o seu veículo sofreu danos cuja reparação é visada pela autora e pretende que seja imputada a responsabilidade pela produção do acidente ao condutor do veículo HH, segurado na Ré B..., e também ao condutor do veículo NP, segurado na Ré A..., invocando um primeiro embate do HH no MT e um segundo embate do HH no mesmo MT, mas, neste último, devido a projeção por embate do NP no HH. 2.Citada, a co -ré A... contestou. 3. Os autos prosseguiram os seus termos, foi realizado o julgamento e foi proferida sentença. 4. Por despacho proferido no dia 7.04.2022 foi julgada verificada a falta da citação da co - ré -B... quando já tinha decorrido o julgamento dos autos e tinha sido proferida sentença e foi determinada a citação da co – ré B..., que contestou a acção. 5. Os autos prosseguiram os ulteriores termos, com prolação de despacho e com realização de novo julgamento. 6. Foi proferida sentença que decidiu julgar a ação parcialmente procedente, por provada e, em consequência determinou: «1. a Ré B... - Companhia de Seguros, S.A. é condenada a pagar à Autora AA i)a quantia de € 2.353,50 (dois mil, trezentos e cinquenta e três euros e cinquenta cêntimos) e ii)a quantia de € 7,5 (sete euros e cinquenta cêntimos) por cada dia útil desde 11/5/2019 até ao pagamento da quantia referida em i). 2. a Ré A... - Companhia de Seguros, S.A. é condenada a pagar à Autora AA iii)a quantia de € 2.353,50 (dois mil, trezentos e cinquenta e três euros e cinquenta cêntimos) e iv)a quantia de € 7,5 (sete euros e cinquenta cêntimos) por cada dia útil desde 11/5/2019 até ao pagamento da quantia referida em iii). Custas da ação a cargo das Autora e das Rés B... e A..., na proporção de 10%, de 45% e de 45%, respetivamente – artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.»
7.A co -re seguradora A... interpôs recurso de apelação e concluiu nos termos seguintes: 1. Não se conforma a Recorrente com a douta sentença proferida que subsumiu o acidente dos autos ao instituto da responsabilidade pelo risco repartindo equitativamente a responsabilidade pelos veículos seguros nas Rés. 2. Subsidiariamente, não se conforma, de igual modo, a Ré, ora Recorrente, com a indemnização arbitrada a título de privação do uso do veículo, mormente o período contabilizado para o seu cálculo.Ora, 3. Resultando da factualidade provada – e que não será objeto de impugnação no presente recurso – que o veículo seguro na Ré, ora Recorrente, não teve qualquer intervenção nos danos sofridos pela Autora entende a Recorrente que se imporá a sua absolvição do pedido, sem mais. 4. Com efeito, a responsabilidade pelo risco exige a verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, à exceção da ilicitude e da culpa. 5. Ou seja, para que se afirme a responsabilidade pelo risco é imprescindível a ocorrência de um facto (lícito ou ilícito) e, cumulativamente, a existência de um nexo de causalidade entre o facto e o dano. 6. No caso sub iudice inexiste tal nexo de causalidade na medida em que o veículo seguro na Ré, ora Recorrente - o NP - não teve sequer qualquer intervenção nos danos sofridos pela A. 7. Da factualidade provada resulta (apenas) o embate entre a parte frontal do HH (seguro na co-R. B... – Companhia de Seguros, S.A) e a traseira do veículo da Autora – o MT – e o embate do NP na traseira do HH. 8. Ou seja, não resulta provado qualquer embate direto ou indireto (por projeção, na sequência do embate no HH) do NP no MT. 9. Assim, não sendo o NP o veículo causador do dano e, reciprocamente, não sendo o dano sofrido pela Autora efeito adequado do risco do veículo NP não se verifica a responsabilidade civil da ora Recorrente. 10. Na eventualidade de esse Colendo Tribunal assim não vir a entender – o que se não aceita mas terá de se conceder, ainda que por mera hipótese de raciocínio –não se conforma, de igual modo, a Recorrente com a indemnização fixada pela privação do uso do veículo. 11. Com efeito, e muito embora se reconheça que a jurisprudência tem vindo a uniformizar o entendimento de que a simples privação do uso constituirá de per se um dano indemnizável independentemente da prova do efetivo prejuízo, tal entendimento não poderá, de modo algum, vir a ser estendido até ao limite da ressarcibilidade da mera privação da possibilidade de uso. 12. Ou seja, a indemnização da mera privação da possibilidade de uso assente num juízo de índole abstrata, fundado numa mera impossibilidade objetiva de utilização, que viola, desde logo, os princípios orientadores do nosso Direito. 13. Nessa conformidade, e afigurando-se-nos que a factualidade, a este propósito,dada como provada é justamente subsumível a este conceito entendemos que, no caso dos autos, o dano da privação não deveria ser indemnizado. 14. De todo o modo, e caso assim se não entenda, discordamos, de igual modo, do montante indemnizatório fixado, no que ao período da privação concerne, que reputamos de injusto e desadequado à concreta realidade dos presentes autos. 15. Na verdade, no caso sub iudice, e contrariamente ao que ocorre em inúmeros outros casos, a responsabilidade pelo acidente não se encontra ainda definitivamente definida, a que acrescem as vicissitudes processuais emergentes da anulação do processado, por falta de citação de uma das Rés. 16. Entendemos, assim que a responsabilização das Rés pela privação do uso da viatura desde a data do acidente – que já ocorreu em 1.5.2019 - até à data da integral reparação da viatura se revela, no caso, excessiva e desproporcional ao princípio do estrito ressarcimento do lesado pelo dano efetivamente sofrido, sem qualquer enriquecimento deste, e sob pena, no limite, de abuso de direito. 17. O recurso à equidade – e que não se confunde com arbitrariedade - não dispensa que se atenda a todas as reais circunstâncias do caso concreto com ponderação do hegemónico e preponderante princípio da boa-fé. 18. Atribuir pela privação do uso de um veículo, cuja reparação ascende a cerca de € 4.700,00, uma indemnização que, neste momento, já ascende a cerca de € 26.385,00 e à qual acrescerá o valor diário de € 15,00 até efetiva e integral reparação – que se desconhece quando ocorrerá – afigura-se-nos excessivo e injusto, para além de totalmente desproporcional ao exigível estrito ressarcimento do efetivo dano sofrido; 19. Pugnando-se, assim pela imposição, como limite ao ressarcimento deste dano, da quantia da reparação – ou seja, € 4.700,00; 20. Tanto mais que, não resulta, tão-pouco da factualidade provada qualquer facto – de resto, nem tão-pouco alegado – de uma agravada culpa das RR. No ressarcimento do dano correspondente à reparação que pudesse justificar um valor indemnizatório já de índole punitiva fundado num comportamento censurável. 21. Decidindo-se em contrário violou a douta sentença recorrida os arts. 503º e 562º ss. do Código Civil.
8.A co – ré “B... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, Ré, apresentou as suas contra-alegações. 9. A Autora também apresentou as suas contra-alegações 10.Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II.DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO. As questões suscitadas pela recorrente contendem apenas com o mérito da sentença recorrida, concretamente, a Recorrente não se conforme com a sentença proferida na parte em que subsumiu o acidente dos autos ao instituto da responsabilidade pelo risco repartindo equitativamente a responsabilidade pelos veículos seguros nas Rés e, subsidiariamente, não se conforma, de igual modo, com a indemnização arbitrada a título de privação do uso do veículo, mormente o período contabilizado para o seu cálculo . III. FUNDAMENTAÇÃO. 3.1. O tribunal recorrido julgou provada e não provada a seguinte factualidade, aqui se reproduzido a decisão de facto, a qual, não está impugnada. “Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos, com relevância para a decisão a proferir: 1. No dia 11/5/2019, pelas 14h45, na avenida ... (...), freguesia ..., Porto, ocorreu um acidente de viação, com várias colisões em cadeia, em que foram intervenientes cinco veículos: i) o veículo ligeiro de passageiros de marca e modelo “PEUGEOT …”, com a matrícula ..-TE-.. [doravante denominado apenas por TE, para evitar esforço ocular], conduzido por BB; ii)o veículo ligeiro de passageiros de marca e modelo “FIAT ...”, com a matrícula ..-..-MT [doravante MT], propriedade da Autora e conduzido por CC; iii) o veículo ligeiro de passageiros de marca e modelo “VOLKSWAGEN ...”, com a matrícula ..-..-HH [doravante HH], conduzido por DD; iv) o veículo ligeiro de passageiros de marca e modelo “SKODA ...”, com a matrícula ..-NP-.. [doravante NP], conduzido por EE; e v)o veículo ligeiro de passageiros de marca e modelo “NISSAN ...”, com a matrícula ..-HC-.. [doravante HC], conduzido por FF; 2.Os cinco veículos circulavam todos no sentido norte → sul (ou seja, de Matosinhos para o Porto), na via de trânsito à direita, sendo que na frente seguia o veículo TE, seguido do veículo MT, depois o veículo HH, atrás do qual seguia o veículo NP e, por último, o veículo HC. 3.Um pouco antes da saída para a ..., a condutora do veículo TE, que seguia à frente do veículo da Autora, de súbito, travou e imobilizou-o. 4.Para evitar o embate, o condutor do veículo da Autora desviou-se para a berma do lado direito da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, e travou, imobilizando-o. 5.De seguida, o MT foi embatido na retaguarda pela parte frontal do HH. 6.Com a violência do embate, o MT foi embater nas barras de proteção laterais. 7.O NP, seguro na Ré Companhia de Seguros A..., embateu na traseira do HH, seguro na Ré Companhia de Seguros B.... 8.Ocorreram mais embates e do sinistro resultaram danos em todos os veículos intervenientes. 9.A descrição do local e a posição em que se imobilizaram os veículos são espelhados por todo o conteúdo da participação de acidente de viação elaborada pelos agentes da Polícia de Segurança Pública que, após o acidente, se deslocaram ao local. 10.No local, a estrada apresentava-se como uma reta, com três vias de trânsito no mesmo sentido. 11.O pavimento era de alcatrão. 12.E o tempo apresentava-se, então, seco. 13.As condições de visibilidade eram boas – era ainda dia. 14.O local do acidente configura uma reta, com visibilidade superior a 100 metros. 15.A via, naquele local, apresenta 12 metros de largura. 16.As três hemi-faixas de rodagem são separadas entre si por linha longitudinal descontínua. 17.O piso encontrava-se em bom estado de conservação. 18.A velocidade máxima instantânea, naquele local, encontra-se limitada aos 70 km/hora. 19.O HH foi embatido na sua traseira pelo veículo NP. 20.O NP foi embatido na sua traseira pelo HC. 21.O MT ficou impedido de circular. 22.O MT, desde a ocorrência do acidente, encontra-se imobilizado. 23.Não foi disponibilizado à Autora qualquer veículo de substituição. 24.A reparação do MT foi estimada em € 4.707, conforme documento nº 7 apresentado com a petição inicial, que se dá aqui por integralmente transcrito. 25.O MT é necessário para a realização das atividades familiares e profissionais da Autora. 26.A responsabilidade civil automóvel do veículo HH encontrava-se transferida para a Ré B..., através da apólice nº .... 27.A responsabilidade civil automóvel do veículo NP encontrava-se transferida para a Ré A.... 28.A Ré A... enviou a CC uma carta, datada de 29/6/2019 e junta aos autos como documento nº 2 da petição inicial, que se dá aqui por reproduzida. 29. Ré A... enviou à Autora uma carta, datada de 20/11/2019 e junta aos autos como documento nº 3 da petição inicial, que se dá aqui por reproduzida. 30.A Ré B... recusou a resolução do litígio com recurso ao Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros (CIMPAS). *** Factos não provados Todos os restantes factos descritos nos articulados, bem como os aventados na instrução da causa, distintos dos considerados provados - discriminados entre os “factos provados” ou considerados na “motivação” (aqui quanto aos instrumentais) -, resultaram não provados, designadamente: 1. Que em consequência do acidente com o MT, ficou inutilizado um telemóvel (da Autora) da marca SAMSUNG, importando a sua substituição no valor de € 362,89; 2. Que a condutora do HH imprimia velocidade não superior a 40 km/hora; 3. Que a condutora do HH, face à imobilização do MT, o qual seguia imediatamente à sua frente, abrandou a marcha do seu veículo e parou no espaço livre e disponível à sua frente; 4. Que o embate do NP no HH ocorre após o embate do HH no MT; 5. Que o HH embate, novamente, no MT; 6. Que o condutor do NP seguia distraído e sem prestar atenção ao trânsito no local, e a velocidade superior a 80 km/hora; 7. Que o condutor do NP não se apercebeu da paragem dos veículos à sua frente; 8. Que o NP circulasse a cerca de 50 km/hora; 9. Que o condutor do NP conseguiu aperceber-se do embate já ocorrido entre os três veículos que o precediam; 10. Que o condutor do NP, face à velocidade a que seguia, travou, evitando assim o embate no HH; 11. Que o condutor do HC não se apercebeu do embate; 12. Que o condutor do HC seguia a velocidade excessiva e que não lhe permitiu parar a tempo o seu veículo; 13. Que o HH não foi projetado contra o MT por força do embate do NP. *** 3.2. Do Enquadramento Jurídico. A Recorrente argumenta no recurso que, em face da factualidade provada (e que não é objeto de impugnação no presente recurso , conjugada, além do mais com a motivação exposta da sentença) e não provada (“não resultou provado que o HH (veículo que precedia o veículo seguro na R., ora Recorrente – o NP) tenha embatido duas vezes no MT (veículo da A, que o precedia) , não provado que o segundo embate tivesse sido provocado por projeção na sequência do embate do NP no HH”) , que o veículo seguro na Ré -ora Recorrente (o dito NP) em nada contribuiu para os danos sofridos pela A., impondo-se antes a absolvição da R., ora Recorrente, do pedido. Propugnando, assim, pela falta de preenchimento dos pressupostos da responsabilidade pelo risco, nomeadamente o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Subsidiariamente, não se conforma, de igual modo, a Recorrente com a indemnização arbitrada a título de privação de uso do veículo, mormente com o período contabilizado para o efeito.
3.2.1. Da alegada falta de preenchimento dos pressupostos da responsabilidade pelo risco, nomeadamente o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Antes de mais, analisando atentamente a factualidade julgada provada e motivação extensa e consistente da mesma, resulta que ficaram provados entre o mais, os seguintes fatos: “5. De seguida, o MT (veículo da autora, aditamos nós) foi embatido na retaguarda pela parte frontal do HH. 6. Com a violência do embate, o MT foi embater nas barras de proteção laterais. 7. O NP, seguro na Ré Companhia de Seguros A..., embateu na traseira do HH, seguro na Ré Companhia de Seguros B.... (…) 19. O HH foi embatido na sua traseira pelo veículo NP. 20. O NP foi embatido na sua traseira pelo HC. 21. O MT ficou impedido de circular.(…) 22. O MT, desde a ocorrência do acidente, encontra-se imobilizado. (…)”
No mais, refere-se na sentença: “[…]Todos os restantes factos descritos nos articulados, bem como os aventados na instrução da causa, distintos dos considerados provados - discriminados entre os “factos provados” ou considerados na “motivação” (aqui quanto aos instrumentais) -, resultaram não provados, designadamente: […]4. Que o embate do NP no HH ocorre após o embate do HH no MT;”
E porque é essencial para revelar o percurso lógico seguido pelo julgador da 1ª instância reproduz-se aqui um segmento que releva para perceber a decisão de facto: «Face à prova produzida, podem extrair-se, entre outras, as seguintes conclusões: - os veículos circulavam pela seguinte ordem, sem disputa entre as partes, atento o respetivo sentido de marcha: HC, NP, HH, MT e TE; - foram ouvidos os vários intervenientes no sinistro, conforme supra exposto, que apresentam versões do acidente distintas – com especial enfoque i) na circunstância de o HH ter embatido no MT de forma autónoma ou apenas por projeção na sequência de embate do NP na sua traseira e ii) também quanto a saber se este embateu na traseira do HH antes ou após ser embatido na traseira pelo HC; - conjugados os depoimentos prestados quanto à dinâmica do sinistro, quer entre si quer com a documentação apresentada, sobretudo as fotografias do sinistro, que ilustram a configuração do local e, especialmente, a posição final dos veículos [aqui, referimo-nos às que foram apresentadas com a petição inicial e também com a contestação da Ré B...], e com o pano de fundo das regras da experiência, não se encontram fundamentos decisivos para valorizar uns depoimentos em detrimento de outros; a narração dos factos afigurou-se-nos coerente e convincente, à luz do concreto circunstancialismo: uma colisão de veículos sequencial (vulgo choque em cadeia), que ocorreu em poucos segundos e com tempos de reação, para os respetivos condutores envolvidos, muito diminutos, para não dizer inexistente. Não nos apercebemos de qualquer parcialidade ou de um depoimento seletivo, nem de um depoimento sem coerência factual, quer por conjugação com os demais produzidos, quer por referência ao que, em abstrato, ocorre num choque em cadeia; - o croquis elaborado, por si só, é insuficiente para se poder concluir, de forma concludente e inequívoca, qual a concreta dinâmica deste sinistro; - regressando às fotografias dos autos, em especial as que foram apresentadas pela Ré B... na sua contestação: fornecem algumas pistas, mais ou menos sólidas, acerca do sucedido. Desde logo e conforme resulta, entre outras, da 13ª fotografia desse lote e que infra se reproduz, o posicionamento do veículo da Autora [veículo MT], que ficou imobilizado de forma enviesada, ao contrário de todos os outros, e inclinado para a sua direita, ao passo que a frente do HH está toda ela colada à traseira do TE, encontrando-se ambos imobilizados de forma paralela relativamente ao eixo da via: ( …) Em suma, há vários elementos probatórios [fotografias, este documento que acabamos de referir, depoimento testemunhal do condutor do veículo da Autora, depoimento testemunhal do condutor do NP e declarações de parte da Autora], consistentes e lógicos, que apontam no sentido de o HH ter embatido não só no TE, na sua zona traseira, sobretudo, mas também, ainda que com menos impacto, na traseira do veículo da Autora. O que nos conduz à decisão favorável tomada a este respeito, nos pontos 4), 5) e 6) dos factos provados. Só não ficou demonstrado se o HH embate no MT em duas ocasiões distintas, por ausência de prova concludente e segura nesse sentido.»
Por outro lado, não resultou provada a seguinte matéria de facto: “4. Que o embate do NP no HH ocorre após o embate do HH no MT; 13. Que o HH não foi projectado contra o MT por força do embate do NP.” Assim, ao contrário da interpretação que a Ré faz da factualidade dada como provada e não provada, resultou provado que o veículo NP embateu no veículo HH, não se tendo demonstrado que não foi o embate do NP que projectou o HH contra o NP , nem de igual forma, não se provou que o embate do NP no HH tivesse ocorrido após o embate do HH no MT – facto não provado 4). Posto isto, daqui resulta, inequivocamente, que contrariamente ao afirmado pela recorrente, o veículo seguro na Recorrente (NP) teve intervenção nos danos sofridos pela Recorrida. Sendo evidente e indiscutível o nexo de causalidade entre a conduta do condutor segurado na Recorrente e o dano, na medida em que o veículo seguro na Recorrente embateu no veículo HH, tendo este, por sua vez, ido embater no veículo da Recorrida. Apenas não se provou foi que o veículo HH embateu por duas vezes no veículo da Recorrida! A propósito, escreveu-se ainda na sentença recorrida: «Autora, com a presente ação, pretende a condenação solidária das Rés no pagamento da quantia de € 10.469,89 (pelo custo da reparação do veículo sinistrado, privação do uso e outros prejuízos), acrescida dos juros de mora contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento. De acordo com o disposto no artigo 483º, nº 1 do Código Civil, para a existência de responsabilidade extracontratual ou aquiliana é necessário o concurso de: - um facto ilícito, enquanto evento resultante de uma conduta humana voluntária violadora de um direito absoluto; - um nexo de imputação subjetiva, revelador da específica ligação psicológica do agente com o facto lesivo e suscetível de traduzir o grau de censurabilidade que merece tal comportamento; - um dano, enquanto desvalor que o facto ilícito inflige em bens jurídicos pessoais e patrimoniais, jurídico-civilmente tutelados; e - um nexo de causalidade, que se revela no juízo de imputação objetiva do dano ao facto de que emerge (vide, para mais desenvolvimentos, PIRES DE LIMA/ ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, Coimbra Editora, 1987, pp. 471). * Se bem entendemos a petição inicial, a Autora pretende que seja imputada a responsabilidade pela produção do acidente ao condutor do veículo HH, segurado na Ré B..., e também ao condutor do veículo NP, segurado na Ré A..., invocando um primeiro embate do HH no MT e um segundo embate do HH no mesmo MT, mas, neste último, devido a projeção por embate do NP no HH. No entanto, após produção de prova, resultou (apenas) demonstrada a colisão entre vários veículos e, em concreto, a colisão entre a parte frontal do HH e a retaguarda do MT [ponto 5) dos factos provados] e a colisão entre o NP e a traseira do HH [ponto 7) dos factos provados]. Dito por outra forma, não ficou demonstrado de forma inequívoca qual destes embates envolvendo o HH ocorreu em primeiro lugar [vide o facto não provado 4) “Que o embate do NP no HH ocorre após o embate do HH no MT”]. E também não ficou demonstrado que o HH tenha embatido no MT em duas ocasiões [vide o facto não provado 5)»
É certo que a matéria de facto alegada pela Autora na sua petição inicial apontava para a imputação da responsabilidade do choque em cadeia aos condutores seguros na Rés, e, embora a Autora não tenha identificado as eventuais normas estradais por estes violadas, seguramente que se referia aos artigos 18º, nº 1 e 24º, nº 1 do Código da Estrada, que, respetivamente, estipulam o seguinte: “O condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste …”; e “O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores (…), às características e estado da via e do veículo (…), às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”.
De resto, como tem sido assinalado na jurisprudência, o condutor que violar esta regra ou outras regras estradais, presume-se, em primeira aparência, culpado. Veja-se, por exemplo, a expressão utilizada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 6/2/2020, acessível em www.dgsi.pt com o nº 1738/17.9 T8VRL.G2: “uma vez que embateu “logo em seguida”, tal implica que não guardou a distância suficiente, circulava de forma descuidada e sem tomar precauções, como é comum acontecer e ajuizar-se”. Todavia, como afirma a sentença recorrida, no caso dos autos, a factualidade que resultou provada não permite concluir pela culpa (exclusiva ou concorrente e efetiva ou presumida) de qualquer um dos condutores intervenientes no acidente, designadamente, não se apurou se em concreto, o HH embate no MT( veículo da autora) autonomamente ou porque foi projetado em consequência de ter sido embatido na sua traseira pelo NP.( veículo segurado na ré -recorrente). Assim, não sendo possível, perante a factualidade apurada formular qualquer de juízo de culpa concreta, real, efetiva ou presumida, impõe-se convocar a responsabilidade pelo risco, conforme previsto no artigo 503º, nº 1 do Código Civil, importando determinar se estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade pelo risco relativa à circulação automóvel. E a propósito da verificação desses pressupostos não nos merece qualquer censura o entendimento do Mmo Juiz do Tribunal de Comarca, quando a propósito escreveu: «De acordo com a referida disposição legal, “aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”. São assim duas as notas básicas exigidas para que alguém possa ser responsabilizado objetivamente no âmbito dos acidentes causados por veículos: - direção efetiva de um veículo; - utilização do mesmo no seu próprio interesse. Por direção efetiva entende-se “o poder real (de facto) sobre o veículo”; no seu próprio interesse, significa a utilização para a satisfação de interesses materiais ou económicos, morais ou espirituais, ou até para fins reprováveis (cfr. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, 8ª edição, Volume I, pp. 669). Como refere este autor, trata-se da responsabilidade objetiva, com natureza excecional (cfr. artigos 483º, nº 2, 499º e 503º do Código Civil) e cuja ratio assenta em razões de justiça distributiva - ubi commoda, ibi incommoda - como compensação do risco social inerente a tais atividades (cfr. autor e ob. cit., pp. 647). Saliente-se, entretanto, que, também à face do risco, se exige, para além do prejuízo, que este se possa conexionar, em termos de causalidade, a um veículo automóvel ou aos riscos próprios deste (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/5/1967, Boletim do Ministério da Justiça, nº 167, pp 474). Com efeito, “dentro dos pressupostos da responsabilidade civil, o dano indemnizável será aquele que estiver em conexão causal com o risco”, escreve DARIO MARTINS DE ALMEIDA, pelo que, acrescenta, “o dano terá de ser sempre condicionado por uma relação de causalidade, mesmo indirecta, com o facto em que se materializa o risco” (cfr. autor citado, Manual dos Acidentes de Viação, pp. 273). Feitas estas considerações e regressando ao caso dos autos, constata-se que estão preenchidos os restantes pressupostos da responsabilidade objetiva ou pelo risco, porquanto é inequívoca a existência do facto naturalístico do acidente - a colisão das viaturas -, a que, causalmente, se ligam danos. Segue-se a aplicação do critério previsto pelo artigo 506º do Código Civil, relativo à valoração do risco para os casos de colisão de veículos sem que tenha havido culpa de qualquer dos condutores. E, no que toca à repartição da responsabilidade, na proporção do contributo de cada um dos veículos para os danos, importa fundamentalmente atender à categoria dos vários veículos intervenientes, que é idêntica, ou seja, são todos ligeiros de passageiros e, na falta de qualquer outro elemento diferenciador, será então de aplicar a regra prevista pelo nº 2 da disposição legal citada: “em caso de dúvida, considera-se igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos. Das precedentes considerações se extrai, por conseguinte, que em relação ao montante dos prejuízos sofridos pela Autora, cada uma das Rés seguradoras (do HH e do NP) terá que suportar ½ dos mesmos, sendo certo que é pacífica a interpretação do artigo 506º, nº 1 do Código Civil no sentido de que os danos a que alude o citado normativo não são apenas os danos causados pela colisão nos próprios veículos, mas também todos os outros prejuízos resultantes da colisão, desde que tenham tido como causas concorrentes os riscos próprios dos veículos – assim, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, Coimbra Editora, 1987, pp. 520.
Quantificando os prejuízos que do sinistro advieram, em termos de causalidade adequada (artigo 563º do Código Civil), facilmente se constata, da análise da matéria de facto provada, que o veículo da Autora ficou danificado e que a sua reparação se cifra em € 4.707 [cfr. ponto 24) dos factos provados]. A reparação dos danos, face à impossibilidade de reconstituição natural da situação anterior àqueles, deverá ser feita através da indemnização em dinheiro – cfr. os artigos 566º nº 1 do Código Civil, com base nos princípios expressos nos artigos 562º, 564º e 566º, nº 2 do mesmo diploma. Cada uma das Rés suportará então o pagamento de ½ do referido valor, ou seja, € 2.353,50»
Como avançamos não nos merece censura o enquadramento jurídico feito pela sentença recorrida. Nos termos do artigo 506.º, n.º 1, do Código Civil, se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos. O n.º 2 da norma acrescenta que na falta de elementos (em caso de dúvida) para determinar a medida da contribuição da culpa de cada um dos condutores para os danos, considera-se igual essa culpa. Por aplicação deste preceito legal, em caso de colisão de veículos sem que se demonstre a culpa de algum dos respectivos condutores, a responsabilidade pelos danos causados nos veículos é repartida na proporção do risco com que cada um dos veículos tiver contribuído para a colisão, sendo que, em caso de dúvida, o contributo do risco de cada um se presume igual. O preceito aplica-se à colisão não culposa; ele pressupõe a ausência de culpa de qualquer dos condutores envolvidos (no caso de culpas repartidas, aplicar-se-á o disposto no artigo 570.º do Código Civil). Se os danos forem produzidos apenas por um dos veículos, apenas o detentor do veículo que originou os danos é obrigado a indemnizar; se os danos forem produzidos por ambos os veículos, a responsabilidade reparte-se na proporção em que o risco de cada um dos veículos tenha contribuído para os danos, sendo indiferente que estes se verifiquem sobre os dois veículos ou só quanto a um deles. Pelas razões já aduzidas, não constam dos autos elementos que permitam sustentar a culpa de qualquer dos condutores envolvidos. Assim, em relação ao montante dos prejuízos sofridos pela Autora, cada uma das Rés seguradoras (do HH e do NP) terá que suportar ½ dos mesmos, sendo certo que é pacífica a interpretação do artigo 506º, nº 1 do Código Civil no sentido de que os danos a que alude o citado normativo não são apenas os danos causados pela colisão nos próprios veículos, mas também todos os outros prejuízos resultantes da colisão, desde que tenham tido como causas concorrentes os riscos próprios dos veículos.
3.2.2.Posto isto, importa agora apreciar e decidir a questão colocada a título subsidiário pela recorrente relativa à indemnização fixada pela privação do uso do veículo. No tocante à indemnização fixada pela privação do uso do veículo, resultou demonstrado que o MT ficou impedido de circular e que se encontra imobilizado desde a ocorrência do acidente, não tendo sido disponibilizado à Autora qualquer veículo de substituição e, por fim, que o MT é (era) necessário para a realização das atividades familiares e profissionais da Autora [pontos 21), 22), 23) e 25) dos factos provados]. A Autora, a propósito da paralisação, peticionou o pagamento da quantia de € 15 por dia, desde a data do sinistro, a 11/5/2019, até à entrega do veículo reparado. Discorda a apelante do montante indemnizatório fixado, no que ao período da privação concerne, alegando que “reputamos de injusto e desadequado à concreta realidade dos presentes autos, alegando ainda “a que acrescem as vicissitudes processuais emergentes da anulação do processado, por falta de citação de uma das Rés” Pugna, assim pela imposição, como limite ao ressarcimento deste dano, da quantia da reparação – ou seja, € 4.700,00 - alegando que não resulta, tão-pouco da factualidade provada qualquer agravação de culpa das RR. no ressarcimento do dano correspondente à reparação que pudesse justificar um valor indemnizatório já de índole punitiva fundado num comportamento censurável. Apreciando e decidindo: Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação - CCivil artº 562º. É o que se designa pelo princípio da reparação "in pristinum". A obrigação de indemnização só existe, no entanto, em relação aos danos que os lesados provavelmente não teriam sofrido se não fosse a lesão - CCivil artº 563º. É o que se chama de causalidade adequada. Quer dizer que o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo, indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude de circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que, no caso concreto se registarem - Cfr. Prof. A. Varela, " Das Obrigações em Geral" 1ª ed., 651 e 659. O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado como os benefícios que o lesado deixou de obter na sequência da lesão - CCivil artº 564º nº 1. É o que se designa por danos emergentes e lucros cessantes. A indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos, ou seja excessivamente onerosa para o devedor - CCivil artº 566º nº1. Tal indemnização pecuniária tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal e a que teria nessa data se não existisse danos - CCivil artº 566º nº2. E porque releva para a decisão a proferir importa tecer algumas considerações quanto ao dano de privação de uso de veículo. Quanto ao dano de privação do uso do veículo, como tem sido assinalado, na jurisprudência[1] e na doutrina[2] a problemática da ressarcibilidade do dano de privação do uso (mormente de veículo automóvel) e da sua quantificação não tem obtido, entre nós, uma resposta unívoca sendo que em resultado dessa privação podem ocorrer: .um dano emergente (derivado da utilização mais onerosa de um meio de transporte alternativo, designadamente o aluguer de outro veículo) . e/ou um lucro cessante, em consequência da perda de (eventual) rendimento que o veículo propiciava, como no caso de o mesmo ser utilizado em alguma atividade comercial, por exemplo, em serviço de táxi. Mas pode ainda considerar-se que concorre aí um outro dano, que consiste na própria privação do uso do veículo, na simples privação desse uso. Os dois primeiros danos referidos não suscitam especiais dificuldades, posto que a respetiva indemnização encontra-se expressamente prevista na lei (art. 564º, nºs 1 e 2 do Cód. Civil). Discutido tem sido, porém, o reconhecimento do dano da mera privação do uso, sendo que o principal óbice que tem sido erigido à sua ressarcibilidade prende-se com a sua natureza abstrata, quando é certo que a responsabilidade civil exige a produção de um dano concreto cuja medida sirva para quantificar a indemnização, acrescentando-se outrossim que o simples dano da privação não seria compatível com a teoria da diferença (que se mostra consagrada no art. 566º do Cód. Civil), uma vez que a comparação que esta pressupõe (entre a situação real e a situação que existiria se não fosse o evento danoso) não pode revelar a existência daquele dano. Trata-se de questão que tem sido discutida quer na doutrina quer, sobretudo, na jurisprudência, perfilando-se, essencialmente, três posicionamentos: Assim, para uns o dano da mera privação do uso não é indemnizável, já que para que a privação seja ressarcível, terá de fazer-se prova do dano concreto e efetivo, isto é, da existência de prejuízos decorrentes diretamente da não utilização do bem; para outros, a simples privação do uso, só por si, constitui um dano indemnizável, mesmo que nada se prove a respeito da utilização ou destino que seria dado ao bem; outros ainda advogam que se, por um lado, não basta a simples privação do uso do bem, por outro, também não se exige a prova de danos concretos e efectivos, sendo, contudo, essencial a alegação e prova da frustração de um propósito real, concreto e efetivo de proceder à sua utilização.[3] Das enunciadas teses tem sido a segunda aquela que vem obtendo maior acolhimento na doutrina,[4] que vem sustentando ser essa a posição que melhor tutela a lesão dos interesses do proprietário de um veículo que se vê privado de extrair dele todas as vantagens e utilidades que o seu uso lhe proporciona, não podendo deixar de reconhecer-se como lesiva do seu património a perda, em si mesma, da possibilidade de continuar a usufruí-lo, por facto ilícito de um terceiro, durante o período de tempo em que tal se verificar. De facto, um veículo está, em regra e por sua natureza, destinado a proporcionar ao seu proprietário ou legítimo detentor utilidades (designadamente a possibilidade de se deslocar para onde quiser e quando quiser) que só podem ser fruídas por via do uso. Ora, impedido este, há um prejuízo que se traduz na impossibilidade de fruir essas utilidades, situação que pode ou não implicar lucros cessantes e/ou danos emergentes com tradução monetária imediata, mas que, em regra, importa a frustração do gozo. Daí que, tomando posição a respeito, e cientes de que «O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas» (cf. o artigo 1305.ᵒ do Código Civil), entendemos que a privação do uso não pode ser aferida (e consequentemente resolvida) em abstracto, isto é, apreciada em função da simples impossibilidade objectiva, ainda que constatada, de utilização da coisa. Assim, demonstrados que estejam os requisitos da responsabilidade civil (subjectiva ou objectiva) existe um dano patrimonial, posto que as utilidades proporcionadas por um veículo automóvel suscetíveis de serem fruídas, consideradas em si mesmas, têm valor pecuniário, tanto mais que a simples detenção do veículo, tendo um determinado valor intrínseco, determina encargos que se mantêm independentemente da utilização que lhe é dada ou do facto de ficar paralisado por razões não imputáveis ao seu proprietário. Tal como refere António Geraldes, in Indemnização do Dano da Privação do Uso, Almedina, 2001, a privação do uso de um veículo representa sempre uma falha na esfera patrimonial do lesado, que em regra causa um prejuízo material, devendo avaliar-se concretamente qual a compensação adequada de acordo com a gravidade e destino dado ao bem (equidade artigo 4º do CCivil- ou condenação genérica sendo essa a situação). Deverá atender-se ao caso concreto tendo-se em conta a nomeadamente a disponibilidade de outro veículo ou o grau de utilização que era dado durante o período de privação, sendo que a privação deverá ser compensada com a atribuição de um quantitativo correspondente ao desvalor emergente da acção. Conforme refere o citado autor a falta de prova de despesas realizadas depois de um sinistro não implica necessariamente a falta de prejuízos, dado que sempre existe um desequilíbrio material entre a situação que existiria e aquela que existe decorrente da privação do uso. E esse ressarcimento poderá ser realizado através de uma compensação em dinheiro recorrendo-se à equidade, sem prejuízo da importância que pode assumir a quantia necessária para o aluguer de um veículo com características idênticas à do veículo paralisado, sendo que se deve ter em conta o valor real do veículo e o seu período de vida útil. .Feitas estas considerações, temos de atentar nos seguintes factos A presente ação foi instaurada no dia 5.05.2020. O acidente dos autos ocorreu no dia 11/5/2019 Por despacho proferido no dia 7.04.2022 foi julgada verificada a falta da citação da ré -B... quando já tinha decorrido o julgamento dos autos e tinha sido proferida sentença no dia 01.02.2022 e foi determinada a citação da co – ré B..., prosseguindo os autos os ulteriores termos, com prolação de despacho saneador -tabelar e com realização de novo julgamento e prolação de nova sentença. Por carta de 20.11.2019 , endereçada e recebida pela autora, a Ré A... entre o mais informou que , verificado o embate de um veículo seguro na seguradora B..., HH, no veículo da Autora, seguido do embate do veículo seguro na recorrente, NP, naquele, assumia 25% dos danos verificados na traseira esquerda do veículo da autora ficando disponível para dar seguimento à peritagem a fim de quantificar os danos para posterior reembolso dos mesmos. (facto provado no item 29.). E resulta do item 30 dos factos provados que a co- ré B... recusou a resolução do litígio com recurso ao CIMPAS. Resultou demonstrado que o MT ficou impedido de circular e que se encontra imobilizado desde a ocorrência do acidente, não tendo sido disponibilizado à Autora qualquer veículo de substituição e, por fim, que o MT é(era) necessário para a realização das atividades familiares e profissionais da Autora [pontos 21), 22), 23) e 25) dos factos provados
.Posto isto, quanto ao dano da privação do uso de veículo, como afirmamos, constitui uma ofensa ao direito de propriedade, na medida em que o seu dono fica privado do uso que lhe dava. Questão que, naturalmente, se coloca é a de saber em que termos deve ser fixado o quantum indemnizatur em situação como a presente, porquanto a teoria da diferença (artigo 566.º, n.º 2 do Código Civil), que serve de critério para essa determinação, não se revela, em concreto, operacional para tal efeito. Ora, quando – como é o caso - a privação do uso não se traduza numa diferença patrimonial quantificável entre a situação que existiria se não ocorresse a privação e aquela que existe por causa dela, ficamos carecidos de valores para calcular a diferença, não obstante a existência de um dano que tem, como se referiu, de ser indemnizado. E no caso não se nos afigura adequado ter como referencial o valor locativo do veículo, o que, nem a autora peticiona. Todavia independentemente do uso que a autora dava ao veículo, a autora, cujas condições socio-económicas são desconhecidas, por nada ter sido alegado a propósito, tem direito a ser ressarcido pelo dano peticionado. A utilização dos bens faz parte dos interesses patrimoniais inerentes ao próprio bem e que a simples possibilidade de utilização ou de não utilização constitui uma vantagem patrimonial que, uma vez afectada, deve ser ressarcida. Cfr. António Abrantes Geraldes, «Indemnização do dano da privação do uso», pág.26 e Menezes Leitão, «Direito da Obrigações», I Vol., pág.316/317. Isto é o bastante para determinar o ressarcimento mediante a atribuição de uma compensação pecuniária, se necessário recorrendo à equidade (art.566º/3). Cfr. A. Geraldes, ob.cit., pág.47. Daí que se nos afigure perfeitamente justificado o recurso à equidade para fixar a respectiva indemnização, já que, como emerge do nº 3 do artigo 566.º do Cód. Civil, a avaliação desse dano, se outro critério não puder ser adotado, será determinada pela equidade, dentro dos limites do que for provado. No caso a compensação devida pelo dano privação do uso do veículo deve ter em conta o período decorrido desde 11.05.2019 até à data em que for paga pela recorrente a quantia de € 2353,50, correspondente a ½ do valor devido pela reparação. E no tocante às vicissitudes ocorridas com a repetição de actos processuais e julgamento feito por virtude da verificada falta de citação de uma das co- rés, afigura-se-nos injustificado que seja a autora a sofrer as consequências dessas vicissitudes, através de eventual desconto no período de privação do uso do veículo do período que decorreu entre a data da petição inicial e o despacho proferido a 7.04.2022, pelo qual foi verificada a nulidade traduzida na falta de citação de uma das co -rés e que determinou a anulação de todo o processado, após a petição inicial - cfr. art.º 187.º, al. a) do C.P. Civil e dela trata o art.º 188.º do C.P.C. Trata-se de uma das vicissitudes processuais não imputáveis a conduta censurável de qualquer das partes, e que, por isso, serão apenas atendíveis no juízo de equidade a formular por forma a não prejudicar qualquer uma das partes em detrimento de outras, sem prejuízo de se ter presente que acolhemos o entendimento do tribunal recorrido de responsabilizar ambas as rés com fundamento na responsabilidade pelo risco pela reparação dos danos sofridos pela autora-recorrida. Assim, se considerarmos o período de privação do uso do veículo desde a data do acidente ( 11.05.2019), correspondente a cerca de cinco anos, se tivermos em conta que em virtude da nulidade verificada de falta de citação foi anulado todo o processado, após a petição inicial - cfr. art.º 187.º, al. a) do C.P. Civil e dela trata o art.º 188.º do C.P.C, conforme despacho de 07.04.2022, e se considerarmos os valores que em situações análogas vêm sendo fixados pela jurisprudência[5] , afigura-se-me justa e equilibrada, em termos de equidade, (cfr. artigo 566º, nº 3 do Código Civil), a quantia reclamada, ou seja € 15/dia, devendo as Rés serem condenadas no pagamento de ½ deste valor, nos termos referidos na sentença recorrida (cfr. artigo 506º, nº 2 do Código Civil), devendo este valor diário (dias úteis apenas), a título de indemnização por privação do uso, ser contado desde 11/5/2019 até ao pagamento da quantia de € 2.353,50 (½ do valor arbitrado pela reparação do MT). Pelo que, também nesta parte não merece censura a sentença recorrida.
Em consequência do exposto, improcede na totalidade o recurso de apelação interposto e em consequência, confirmamos a sentença recorrida.
Sumário ……………………………… ……………………………… ………………………………
IV.DELIBERAÇÃO: Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto e, assim, confirmamos a sentença recorrida. Custas do recurso a cargo da apelante. |