Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO | ||
Descritores: | INDÍCIOS CONCEITO ARGUIDO ANTECEDENTES CRIMINAIS CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES CONDUTA INCOMPATÍVEL | ||
Nº do Documento: | RP20240710125/22.1GAVLC.P1 | ||
Data do Acordão: | 07/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
Decisão: | PROVIDO O RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. | ||
Indicações Eventuais: | 4. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - Os indícios apontados pela motivação da sentença não são acasos, mas coincidências lógicas e inevitáveis de uma dada ação que convergem, com significado, num sentido de identidade (o arguido), encaixando como peças de um puzzle que, no final, retratam o agente do crime. II - As mentiras do arguido em julgamento, os seus vastos antecedentes criminais por furtos e a adição de estupefacientes não fazem prova da verdade da imputação dos factos. III - Contudo, esses factos também não servem para o descomprometer, o que a visualização do vídeo reproduzido em julgamento corrobora, já que nenhuma outra possibilidade/agente revela, antes coloca diretamente a descoberto movimentações do arguido, no local e hora do assalto, compatíveis com a ação que agora lhe é imputada. IV - A mentira, antecedentes criminais e a adição de estupefacientes, que o texto da sentença sublinha, mostram traços de uma personalidade compatível com a autoria do assalto pelo arguido. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo: 125/22.1GAVLC.P1
Relator: João Pedro Pereira Cardoso Adjuntos: 1º - Paula Pires 2º - José António Rodrigues da Cunha
Sumário ……………………. ……………………. …………………….
Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
1. RELATÓRIO Após realização da audiência de julgamento no processo nº125/22.1GAVLC, Juízo de Competência Genérica de Vale de Cambra, foi proferida sentença, na qual se decidiu (transcrição): a) Absolver o arguido AA da prática, no dia 19 de Abril de 2022, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 203.º, n.º 1, 204.º n. º1, alínea a), n.º 2, alínea e) e n.º 3 todos do Código Penal, de que vinha acusado. b) Declarar improcedente o pedido de perda a favor do Estado do veículo da marca ..., modelo ..., de cor cinza com a matrícula ..-..-JA apreendido à ordem dos presentes autos c) Declarar improcedente o pedido de perda a favor do Estado dos € 12.000,00 (doze mil euros) – cf. artigos 110.º, n.º 1, alínea b) e n.º 4, ambos a contrario do Código Penal. - Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público para este Tribunal da Relação do Porto, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes: “conclusões”, que se transcrevem: - a. - - c. - Isto posto, Nestes termos e sempre com o mui douto suprimento desse Venerando Tribunal ad quem, deve o presente recurso ser provido e, em consequência: - O recurso apresentado foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito não suspensivo. -- Neste Tribunal da Relação, o Ministério Público emitiu parecer no qual, acompanhando a motivação do recurso, pugnou pela sua procedência. -- Na sequência da notificação a que se refere o art.417º, nº 2, do Código de Processo Penal, foi efetuado exame preliminar e, colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência. * 2. FUNDAMENTAÇÃO Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior - artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) [1]. Posto isto, as questões submetidas ao conhecimento deste tribunal são: 1ª Da impugnação restrita sobre a matéria de facto: erro notório na apreciação da prova sobre os factos não provados sob as alíneas A., B., C., D., E., G., H., I., J., K. e L. 2ª Da impugnação ampla sobre a matéria de facto: erro de julgamento sobre os factos não provados sob as alíneas A., B., C., D., E., G., H., I., J., K. e L. 3ª Das consequências jurídicas do crime -- Com relevo para a resolução das questões objeto do recurso importa recordar a fundamentação de facto da decisão recorrida, que é a seguinte (transcrição): “Factos Provados Provou-se também que: -- Factos não provados Com relevância para a decisão da presente causa, resultaram como não provados os seguintes factos: * Motivação da decisão sobre a matéria de facto Nos artigos 97.º, n.º 4 e 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal é consagrada a obrigação de fundamentar a sentença, especificando-se os motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Com efeito, isso mesmo decorre da Constituição da República Portuguesa, que no seu artigo 205.º, n.º 1 estabelece que «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei». São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º, do Código de Processo Penal). A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente (art. 127.º, do Código de Processo Penal). No caso em apreço, para formar a sua convicção o Tribunal atendeu primeiramente às declarações prestadas pelo arguido, o qual negou a prática dos factos constantes da acusação pública, confirmando, contudo, a sua presença no local na data e hora dos factos, afirmando que nesse dia por volta das 05.45 horas estacionou o carro à beira do “Restaurante ...” onde se iria encontrar com um colega para tomar pequeno-almoço pelas 6 horas. Que chegou ao restaurante, mas estava fechado. Referiu ainda que, andou cerca de 150 metros até ao muro da A..., Lda, onde se sentou, porque queria encontrar o seu amigo antes das 6 horas para pedir-lhe € 50,00 emprestados. Disse que achou estranho o restaurante estar fechado, mas que depois lembrou-se que era sexta-feira santa e que tanto o restaurante, como a fábrica, fizeram ponte. Mencionou ainda que foi buscar a carrinha tendo-se deslocado ao local dos factos e estacionado e que não viu nenhuma movimentação estranha junto à A..., Lda e que viu o vigilante da fábrica em frente e ele viu-o a ele também. O conteúdo das declarações do arguido foi concatenado com os seguintes elementos probatórios: Ora, relativamente às declarações prestadas pelo arguido, as mesmas apresentaram contradições e discrepâncias, desde logo porque, é do conhecimento público, pela simples consulta do calendário, que o dia em causa, correspondente aos factos, não foi sexta-feira santa, mas sim uma terça-feira. No que concerne às fábricas se encontrarem fechadas, foi ouvida a testemunha BB, vigilante da F..., que asseverou que as empresas abriram nesse dia e que foi um dia da semana, assim como a testemunha FF também confirmou que nesse dia a empresa estava a laborar, pelo que a tese defendida pelo arguido que esperou pelo amigo mas que ele não veio porque era sexta-feira santa e as empresas estavam fechadas, resultou contrariada pelos outros meios de prova produzidos nos autos. Igualmente a testemunha BB referiu que ouviu o barulho das movimentações provindas do interior da A..., mas que não viu nenhum individuo, contrariando também aqui a tese do arguido, que tinha visto o vigilante e este o visto a ele. Sucede que, no que concerne à prova dos factos narrados na acusação pública, foi inquirida a testemunha CC, militar da GNR a exercer funções no Núcleo de Investigação Criminal de Oliveira de Azeméis, responsável pela elaboração dos Autos de Visionamento de Vídeo e Extracção de Fotogramas correspondentes a fls. 62 a 79 e fls. 80 a 99 dos autos. Esta testemunha efectivamente referiu que visualizou as imagens, asseverando que não há imagens da lateral da via pública, mas que é possível ver o arguido saltar o muro e ir para a ruela privada que dá para a lateral da A... e que tem ideia que há uma parte das imagens em que vê os movimentos que dão a entender que o arguido está a carregar algo para o carro. Sucede que, pese embora o Tribunal tenha procedido a visualização e análise dos vídeos juntos aos autos, apenas foi possível visualizar a viatura conduzida pelo arguido a entrar para a viela junto da A..., e depois a sair, não tendo sido possível visualizar nem o arguido, nem as alegadas movimentações aquando da abertura da bagageira, sendo certo que os fotogramas juntos aos autos têm uma qualidade de imagem muito reduzida, não conseguindo dos mesmos extrair-se qualquer conclusão se o arguido terá efectivamente colocado algo na bagageira do carro ou não, muito menos se terão sido os moldes de alumínio em causa, sendo certo que o mesmo negou a prática de tais factos e que estes não foram directamente visualizados por nenhuma das testemunhas inquiridas em sede de Audiência de Discussão e Julgamento. Face ao exposto, não obstante a versão narrada pelo arguido apresentar deficiências e contradições, os únicos factos que efectivamente se conseguiram dar como provados da acusação pública, com a necessária segurança e certeza que a lei exige, são que no dia 19.04.2022, pelas 05h45, AA conduziu o veículo de marca ..., modelo ..., de cor cinza e com matrícula ..-..-JA, na Rua ..., em ..., ... (sentido .../...) e que, pelas 05h46, aparcou este mesmo veículo junto às instalações da A..., Lda. [localizadas no número 1573 (mil quinhentos e setenta e três) daquela rua], o que foi dado como provado com base nas declarações do arguido (pese embora as horas referidas pelo mesmo não sejam coincidentes), conjugadas com os fotogramas do Auto de Visionamento de Vídeo e Extracção de Fotogramas juntos aos autos a fls. 80 a 99 dos autos, nos quais é visível o carro que o arguido conduzia às 05.45, o mesmo a fazer marcha-atrás e virar para ruela, ao lado das instalações da A... às 05.45 e desaparecer às 05:46, voltando a ser avistado às 05:51 a sair da referida ruela, o que aliás se visualizou aquando da reprodução do vídeo em sede de 2.ª sessão da Audiência de Julgamento. - No que concerne ao facto provado número 3 o mesmo foi dado como provado com base nas declarações prestadas pela testemunha FF, gerente da empresa A..., Lda, o qual mencionou que, no dia dos factos, chegou à empresa às 07:30/07.40 horas e confirmou os objectos furtados do interior das instalações, bem como os respectivos valores tal como constam do referido facto. - Quanto ao facto provado número 4 o mesmo foi considerado como provado com base no print do registo automóvel de fls. 12 a 14 e no print do seguro automóvel de fls. 13 - Relativamente aos factos provados números 5 a 11 referentes às condições sócioeconómicas do arguido foram consideradas as respectivas declarações, que neste particular aspecto aparentaram ser sinceras, sendo compatíveis com as regras da normalidade social, não resultando contrariadas por qualquer elemento constante dos autos. Foi igualmente tido em consideração o teor do Relatório Social elaborado pela DGRSP. Quanto aos antecedentes criminais do arguido (facto provado número 12), foi valorado o teor do respectivo Certificado de Registo Criminal actualizado, junto aos autos em 30 de agosto de 2023. * Quanto aos factos não provado referido em (A) a (L), o Tribunal considera que não foi carreada para os autos prova que sustente a verificação do mesmo, de forma necessária e suficiente, para se decidir com a segurança que a lei exige, pelos motivos que infra se explanarão. Com efeito, atenta parca qualidade dos fotogramas juntos aos autos, bem como não se ter conseguido extrair nada mais da reprodução dos vídeos, não é possível afirmar-se que o arguido tenha entrado nas instalações da A..., nem muito menos que tenha furtado os objectos do seu interior, apenas se tendo a certeza que efectivamente em hora próxima à ocorrência dos factos, o arguido esteve presente nas imediações da referida empresa. Face ao exposto, impõe-se a aplicação do princípio in dubio pro reo, considerando-se, consequentemente, os factos elencados nos pontos (A) a (L) como não provados.” * Conhecendo as questões suscitadas, cumpre decidir. A) Da impugnação restrita sobre a matéria de facto: O recorrente Ministério Público invocou o erro notório na apreciação da prova sobre os factos não provados sob as alíneas A., B., C., D., E., G., H., I., J., K. e L. Os vícios decisórios – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos no nº 2 do art. 410º do CPP, traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e por isso, a sua evidenciação, como dispõe a lei, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum. Não é permitido, para a demonstração da sua verificação, o recurso a quaisquer elementos que sejam externos à decisão recorrida. O erro notório da apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, supõe factualidade contrária à lógica e às regras da experiência comum, detetável por qualquer cidadão de formação cultural média – cfr. STJ 2015-03-12 (Pires da Graça) www.dgsi.pt. Estamos em presença de erro notório na apreciação da prova sempre que do texto da decisão recorrida resulta, com evidência, um engano que não passe despercebido ao comum dos leitores e que se traduza numa conclusão contrária àquela que os factos relevantes impõem. É necessário que perante os factos provados ou não provados e a motivação explanada se torne evidente, para todos, que a conclusão da decisão recorrida é ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum [2]. O erro notório na apreciação da prova verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Para se verificar este vício tem pois de existir uma “(…) incorrecção evidente da valoração, apreciação e interpretação dos meios de prova, incorrecção susceptível de se verificar, também, quando o tribunal retira de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum” [3]. Também na doutrina, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Lisboa/S.Paulo, 1994, pág. 327, recorda que o erro notório na apreciação da prova verifica-se quando se evidencia a desconformidade com a prova produzida em audiência ou com as regras da experiência por se ter decidido contra o que se provou ou não provou ou por se ter dado por provado o que não podia ter acontecido. Este erro tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média. Dito de outro modo, o requisito da notoriedade do erro afere-se pela circunstância de não passar despercebido ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, acrescenta o mesmo Autor. Por sua vez, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., 2008, pág. 77, escrevem que tal vicio ocorre quando se verifica “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram como provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que efetivamente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. (…) há um tal erro quando um ser humano médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis”. Ao tribunal de recurso apenas cabe “(…) aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significara que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração”. [4] Em síntese, o vício vindo de referir refere-se às situações de falha grosseira e ostensiva, na análise da prova e não se confunde com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo julgador, antes traduz-se em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados, ou na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e, por isso, incorreta e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio. Dito isto, a partir do próprio texto da decisão recorrida, verifica-se um erro notório na apreciação da prova indiciária a que se refere em torno dos factos dados como não provados sob as alíneas A., B., C., D., E., G., H., I., J., K. e L., a saber: A) AA dirigiu-se – através de uma viela localizada no extremo esquerdo destas instalações – às traseiras do edifício da A..., Lda. B) no qual, de forma não concretamente apurada, subiu até ao respetivo telhado e, após forçar, levantando-a, uma das chapas que o compunham (integrando, assim, a cobertura), logrou entrar. C) Quando no interior daquele edifício industrial, AA acedeu e remexeu em toda a divisão onde se encontravam armazenados moldes em alumínio e, ato contínuo, dela retirou, mantendo-os junto a si, os objetos referidos no ponto (3) dos factos provados. D) De forma sucessiva, AA, após retirar cada um daqueles objetos para a entrada da viela mencionada supra, colocou-os no interior do veículo mencionado no ponto (1) dos factos provados, e, ato contínuo, retirou-se daquele local. E) Em resultado, AA apoderou-se dos objetos mencionados no ponto (3) dos factos provados, que integrou no seu património, sem o consentimento ou autorização dos seus legítimos proprietários. (…) G) Ao atuar da forma descrita, AA agiu com o propósito concretizado de integrar no seu património cada um dos objetos que retirou das instalações da A..., Lda. H) AA sabia que tal edifício industrial se encontrava fechado, não sendo ele possuidor de chave ou de qualquer autorização que legitimasse a sua entrada. I) bem sabendo que ao nele entrar, como entrou, o fazia sem a autorização dos seus legítimos proprietários, por forma ilegítima, mediante a subida até ao telhado, a forçada abertura de uma das chapas da cobertura, que logrou erguer, e a transposição desta para o respetivo interior. J) AA, querendo agir como agiu, sabia que aqueles bens lhe não pertenciam e que atuava contra a vontade, e em prejuízo, dos seus legítimos proprietários. K) Ainda assim, AA agiu com o expresso intuito de se apoderar de tais bens, L) bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. - De referir que a construção narrativa dos factos não provados na sentença não se reporta à dinâmica do ocorrido, nem tanto foi sequer questionado pelo arguido, antes e só à sua imputação objetiva e subjetiva ao mesmo. Ora, a concatenação da prova produzida em julgamento, desde logo a partir do texto expresso na motivação da sentença, permite claramente concluir pela autoria do assalto por parte do arguido. Os indícios apontados pela motivação da sentença não são acasos, mas coincidências lógicas e inevitáveis de uma dada ação que convergem, com significado, num sentido de identidade (o arguido), encaixando como peças de um puzzle que, no final, retratam o agente do crime. A sentença enuncia os elementos probatórios bastantes que na sua interação concorrem de forma segura para a participação do arguido recorrente neste assalto nos termos impugnados pelo Ministério Público (dados como não provados), sem que o tribunal a quo tivesse colocado ou devesse colocar qualquer dúvida razoável e fundada sobre a mesma, ao abrigo do princípio constitucional do in dubio pro reo. O texto da motivação congrega factos indiciários baseados em premissas suficientemente fortes, coincidentes e precisas que, conjugada toda a sobredita prova, de acordo com a experiência comum, apontam inequivocamente para essa conclusão. Trata-se de indícios graves, precisos e concordantes entre si que permitem, num raciocínio lógico e objetivo, concluir pela racionalidade da inferência da sobredita imputação feita ao arguido recorrente quanto à autoria do assalto. Dos referidos indícios flui, como conclusão natural, à luz das regras da experiência, o facto direto e preciso que se pretende ver provado (participação do arguido recorrente no aludido assalto). Em suma, em termos naturais e de lógica dedutiva, com fundamento nas regras da experiência, existe uma relação objetiva de normalidade, de causa e efeito, entre aqueles indícios e a presunção que deles se extrai quanto à referida participação do arguido. Não havendo, como não deve haver, qualquer dúvida insanável, séria e fundada sobre a conclusão de facto a que chegou a decisão recorrida (participação do arguido no assalto), impõe-se alterar a matéria de facto impugnada, dando-a como provada nos seus precisos termos. As referidas premissas, alicerçadas nos apontados factos indiciários vertidos no texto da motivação da sentença, permitem essa conclusão, com observância das regras da experiência e de valoração da prova indiciária, bem assim do princípio do in dubio pro reo, previsto no art.32º da C.R.P., pelo que sempre haveria de se reconhecer a sobredita autoria do assalto que lhe vem imputado. Posto isto, verificam-se motivos objetivos que justificam a modificação da aludida matéria de facto (impugnada) e determinam o afastamento do raciocínio lógico desenvolvido pelo tribunal a quo, despojando de qualquer fundamento a convicção do tribunal sobre a autoria do crime. A racionalidade do julgamento da matéria de facto expressa no texto da motivação corresponde, de um modo objetivo, a um juízo desrazoável ou mesmo arbitrário da apreciação da prova produzida. Não se trata aqui de interferir na livre interpretação dos factos por parte do tribunal a quo, antes e só reconhecer que, de acordo com as mais elementares regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, as circunstâncias de tempo e lugar ali apontadas, conjugadas com a utilização de uma viatura para transporte dos objetos furtados, são factos indiciários que inequivocamente apontam para a autoria imputada ao arguido. Tanto mais que o texto da motivação da sentença reconhece que o arguido não adiantou qualquer explicação plausível para a sua presença no local e momento exato do assalto, antes evidencia as suas mentiras, sem justificação para as trazer a julgamento. É certo que as mentiras do arguido não fazem prova da verdade dos factos, assim como os seus vastos antecedentes criminais por furtos e a adição de estupefacientes comprovados. Contudo, esses factos também não servem para o descomprometer dessa verdade, o que a visualização do vídeo reproduzido em julgamento corrobora, já que nenhuma outra possibilidade/agente revela, antes coloca diretamente a descoberto movimentações do arguido compatíveis com a ação que agora lhe é imputada. Ademais, todos aqueles factos (mentira, antecedentes e adição de estupefacientes), que o texto da sentença sublinha, mostram traços de uma personalidade compatível com a autoria do assalto pelo arguido. Finalmente, quanto ao dolo e consciência da ilicitude do arguido, sendo factos do foro psicológico e, por isso, indemonstráveis naturalisticamente, haverá de atender ao conjunto da prova produzida, em confronto com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, em face da atuação desenvolvida pelo arguido e das circunstâncias em que agiu, reveladas nos demais factos objetivos que se deram e agora dão como provados, para além de qualquer dúvida razoável e fundada sobre os mesmos, única abrangida pelo princípio in dubio pro reo, corolário da presunção de inocência consagrada no artigo 32.º, n.º 2, da C.R.P. Na total procedência do recurso nesta parte, nos termos do art.431º, al.a), do Código Processo Penal, impõe-se dar como provados todos os factos impugnados pelo Ministério Público, nos seus precisos termos, ficando prejudicada a impugnação ampla dos mesmos, a coberto do art.412º, nº3, do Código Processo Penal. -- B) Do preenchimento do tipo legal de crime Importa, agora, nos termos do art.403º, nº3, do Código Processo Penal, retirar as consequências legais da reformulação da matéria de facto, seja quanto ao enquadramento jurídico e consequências jurídicas do crime praticado. Ora, ficando provado que o arguido subiu ao telhado (escalonamento) e arrombou as chapas da cobertura das instalações da empresa ofendida, de onde retirou e levou consigo os objetos referidos no ponto (3) dos factos provados, no valor total de €5.500 (€2.500 + €500 + €2.500), os quais fez seus. De resto, o arguido agiu com conhecimento e vontade de toda a factualidade típica descrita, incluída qualificativa do escalonamento e arrombamento, pelo que nenhuma dúvida suscita o preenchimento do tipo de crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 202º, al.d) e e), 203.º, n.º 1, 204.º n. º1, alínea a), n.º 2, alínea e) e n.º 3 todos do Código Penal, punível com pena de 2 a 8 anos de prisão. -- C) Da medida concreta da pena Vejamos, as circunstâncias a relevar em sede de medida concreta (art.71.º, n.º 2 do C. Penal), no quadro da moldura abstrata correspondente: - o dolo, sendo direto, foi intenso; - o elevado grau de ilicitude, atenta a circunstância de nos depararmos perante o preenchimento de várias qualificativas do tipo (valor elevado, arrombamento e escalonamento – art. 202º, alíneas a), d) e e)), a valorar nos termos do art.204º, nº3, do Código Penal; o arguido atuou de noite; - são muito elevadas as exigências de prevenção geral; - as exigências de prevenção especial são também elevadas, em face dos conhecidos antecedentes criminais, inclusivamente por crimes de furto, sem beneficiar de inserção social e profissional; - o arguido não revela consciência critica em relação ao ilícito praticado, o que não o beneficia. Por tudo isto, afigura-se que adequada e proporcional às exigência de prevenção geral e especial, sem ultrapassar a culpa do arguido, a pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão. - D) Da suspensão da execução da pena Em abstrato apenas é aplicável ao caso a pena de substituição de suspensão de execução da pena de prisão – art.50º, do Código Penal. Para efeito de aplicação de uma pena de substituição da pena de prisão, é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não ao momento da prática do crime, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição. No caso concreto, o arguido foi já condenado por diversas vezes, inclusivamente em diversíssimas penas de prisão suspensas na sua execução e também em penas de prisão efetiva, o que não constituiu motivo bastante para que parasse de cometer novos crimes, inclusivamente da mesma natureza. Perante o empreendimento criminoso do arguido, longo e diversificado no tempo, atenta ainda a sua comprovada situação pessoal, com o cumprimento anterior inclusivamente de penas efetivas de prisão, sem revelar qualquer consciência critica sobre o desvalor do ilícito praticado, associadas a fortes razões de prevenção geral, a opção pela aplicação de uma pena de prisão efetiva, em detrimento da suspensão na sua execução, é legalmente incontornável. “A pena só cumpre a sua finalidade enquanto sentida como tal pelo seu destinatário (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 07-11-1996, in Coletânea de Jurisprudência, Tomo V, pág. 47; SANTOS, Cláudia Cruz, in O Direito Processual Penal Português em Mudança – Ruturas e Continuidades, Livraria Almedina, 2020, pág. 21). Não obstante o arguido ter beneficiado, no passado, da aplicação de penas não detentivas, mais concretamente da suspensão da execução da pena de prisão, o certo é que as mesmas não o impediram de voltar a cometer os factos aqui em causa, intensificando a sua conduta, inclusivamente depois de ter cumprido cadeia por alguns desses muitos crimes. Assim, as anteriores sanções penais não obtiveram até à data a desejada ressonância em termos de interrupção da trajetória criminal. A personalidade do arguido e a sua completa indiferença face ao sistema de justiça, elevam a fasquia das necessidades de prevenção especial positiva, na medida em que a socialização do arguido se revela muito difícil de alcançar, e não permitem ignorar as de prevenção especial negativa, pela necessária advertência individual. Nestas condições, aplicar ao arguido uma pena de substituição seria criar no dito arguido e na comunidade em geral um mau sentimento de impunidade. Revelando-se o arguido, em termos de personalidade, uma pessoa refratária a uma convivência social de acordo com as regras do direito, afigura-se que a tutela do bem jurídico em causa, precisamente o mais valioso, a estabilização das expectativas da comunidade na validade e vigência da norma violada e as exigências de socialização que o caso denota não se bastam com a ameaça da pena de prisão e, assim, com a aplicação de uma pena de substituição não detentiva, sendo certo que o dito arguido já deu mostras de tal ser insuficiente e inadequado para o dissuadir da prática futura de crimes. É, assim, patente que o arguido denota elevadas carências de socialização, assentes numa personalidade refratária a uma convivência social de acordo com as regras do direito e traduzidas numa evidente incapacidade de se deixar influenciar pelas penas previamente aplicadas, o que nos leva a concluir pela subsistência de um elevado risco de repetição deste tipo de crimes e outros. Nestes termos, o arguido deve cumprir pena de prisão efetiva. -- Ainda nos termos do art.403º, nº3, do Código Processo Penal, atentando aos factos imputados ao arguido, considerando que com estes logrou integrar no seu património a quantia global de €5.500,00 (cinco mil e quinhentos euros), deve esse valor ser declarado perdido a favor do Estado, porque correspondente a vantagem da atividade criminosa (artigo 110.º, nºs. 1, alínea b), 4 e 6, do Código Penal). - F) Da destinação do veículo apreendido Encontra-se apreendido à ordem dos presentes autos o veículo automóvel de marca ..., modelo ..., de cor cinza e com matrícula ..-..-JA (cf. fls. 18) – por meio do qual foram pragmatizados os factos imputados supra. Ora, prevê o artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal, que são declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos ilícitos. No caso dos autos, o veiculo apreendido está registado, à data dos factos, em nome de DD, encontrando-se o respetivo seguro automóvel em nome do arguido (ponto 4 dos factos provados). Não estando comprovada a propriedade do veículo a favor do arguido, nem se verificando os requisitos de facto previstos no art.111º, nº2, do Código Penal, sem que tenha sido garantido o contraditório do terceiro (art.347ºA, nº1, do Código Processo Penal), a quem a viatura presumivelmente pertence (titular do registo de propriedade), não pode a mesma ser declarada perdida a favor do Estado. *** 3. DECISÃO Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência: a) alterar a matéria de facto provada nos precisos termos supra referidos (ponto A) que aqui se dão por inteiramente reproduzidos; b) condenar o arguido, como autor material, na forma consumada, pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 202º, al.d) e e), 203.º, n.º 1, 204.º n. º1, alínea a), n.º 2, alínea e) e n.º 3 todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão efetiva; c) declarar perdido a favor do Estado e consequentemente condenar o arguido a pagar-lhe o montante global de €5.500,00 (cinco mil e quinhentos euros), correspondente a vantagem da atividade criminosa por si obtida. d) confirmando-se no mais a sentença recorrida. - Sem custas (art.513º, nº 1, a contrario, do Código Processo Penal). Notifique. (Elaborado, revisto e assinado digitalmente– art. 94º, nº 2, do CPP). - Porto, 10 de julho de 2024 João Pedro Pereira Cardoso Paula Pires José António Rodrigues da Cunha ______________________ [1] Diploma a que se referem os normativos legais adiante citados sem indicação da respetiva origem. [2] Cfr. Ac. do STJ de 22/10/99 in BMJ 490, pág. 200. [3] Ac. STJ 19/07/2006 (Oliveira Mendes) in www.dgsi.pt. [4] Paulo Saragoça da Matta in “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253. |