Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
17150/22.5T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: CONTRATO PROMESSA
PARTILHA
PARTILHA SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO
NULIDADE
Nº do Documento: RP2024091017160/22.5T8PRT.P1
Data do Acordão: 09/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A data a considerar para determinar o valor do ativo e passivo que integra a comunhão conjugal, em caso de partilhas, é aquela em que se consideram cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges.
II - Deve considerar-se violada a regra da metade quando, entre outras hipóteses, do contrato promessa de partilha resulta uma manifesta desproporção nas atribuições a cada um dos cônjuges.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 17150/22.5T8PRT.P1

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Sumário:

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Relator: João Diogo Rodrigues;
Adjuntos: Alberto Eduardo Monteiro de Paiva Taveira;
Rui Moreira.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório

1- AA, instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e esposa, CC, pedindo a execução específica do contrato promessa de partilha que, no dia 16/10/2006, celebrou com o R., seu marido à época. Isto porque, em síntese, este último se tem recusado a cumprir aquele contrato.

2- Contestaram os RR., arguindo, entre o mais, a ilegitimidade da Ré, a litispendência desta ação com o inventário para partilha dos bens (e dívidas) comuns do ex-casal, a incompetência do tribunal para o julgamento desta ação e o abuso de direito, da parte da A., uma vez que é ela quem está em mora para com o R. e este nunca poderia ser obrigado a liquidar antecipadamente a totalidade dos mútuos por ambos contraídos.

Por outro lado, ao contrário do referido pela A., nunca ela e o R. consideraram igualada a partilha nos termos que constam do dito contrato promessa.

Acresce que este mesmo contrato é insuscetível de execução específica. Efetivamente, o R. obrigou-se a proceder ao pagamento das prestações bancárias aí indicadas, mas ambos acordaram que a escritura apenas se realizaria após liquidação de todas as prestações à instituição de crédito mutuante. Ora, o R. não pagou a totalidade das prestações em dívida, nem tem qualquer intenção de proceder ao pagamento antecipado do mútuo, facto que impede a execução específica. Daí que considere nulas as cláusulas 4ª, als. b) e c), e 6ª, do referido contrato e também este.

Pugna ainda pela condenação da A. como litigante de má fé.

3- A A. respondeu rejeitando a verificação das exceções invocadas e a má fé que lhe é imputada.

4- Terminada a fase dos articulados, foram, após tentativa de conciliação sem sucesso, julgadas improcedentes as exceções de incompetência do tribunal, de ilegitimidade da Ré e de litispendência arguidas, bem como, para além do mais, fixado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

5- Ulteriormente, no dia 10/07/2023, vieram os RR. invocar a nulidade do contrato promessa de partilha, por violação da regra da metade no ativo e no passivo, consagrada nos artigos 1730.º, n.º 1, e 1714.º, ambos do Código Civil, alegando que se trata de uma nulidade insuprível que pode ser invocada a todo o tempo e é de conhecimento oficioso.

Terminam esse requerimento pedindo que o “Tribunal reaprecie, no momento processual adequado, o teor do Contrato promessa de partilha à luz do disposto nos 1714º e 1730º do C.Civil”.

6- A A., apesar de notificada deste requerimento, não se pronunciou sobre ele.

7- Seguidamente, sobre tal requerimento foi proferido o seguinte despacho:

“Por depender da prova que venha a ser produzida, relega-se para o momento oportuno o conhecimento das matérias invocadas”.

8- Prosseguiram, então, os autos para a audiência final, após a qual foi proferida sentença na qual se julgou nulo o contrato promessa de partilha celebrado entre a A. e o R. e, consequentemente, improcedente o pedido de execução específica do mesmo.

Foi ainda declarado que inexiste má-fé.

9- Inconformada com esta sentença, dela recorre a A., finalizando a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“1ª- Com este recurso, a recorrente pretende ver reapreciada a douta decisão recorrida, seja no que se refere à matéria de facto, seja no que concerne à solução de direito.

2ª- Nos termos do disposto nos artigos 662.º e 640.º do C.P.C., o Tribunal da Relação pode alterar a decisão sobre a matéria de facto, no caso vertente, uma vez que a apelante a impugna, o depoimento assinalado está gravado, e constam dos autos todos os elementos e documentos com base nos quais foi proferida.

Da Impugnação da matéria de facto:

3ª- A recorrente pugna pela alteração/modificação da factualidade tida por provada em 21), a fls. 6 da sentença, no sentido de ser julgado como não provado, e pede idêntica alteração dos factos julgados não provados a fls. 6 da sentença no sentido de se consignar como provado que “A autora sempre quis outorgar a escritura de acordo com os termos exarados no contrato promessa, o que o réu recusa.”.

4ª- No sentido acabado de expor, importa aceder ao depoimento do réu, a saber: BB, identificado como réu, cujo depoimento registado na ata de 9-11-2023 e gravado no sistema áudio do Citius, com início pelas 09:32 horas e términus pelas 10:39 horas, e concretamente do minuto 24:40 ao minuto 33.12 do mesmo, o qual reconheceu que sempre teve os elementos de identificação da autora necessários à marcação da escritura, designadamente nome, naturalidade e estado civil, sendo certo que o réu e a autora estiveram casados entre si durante 31 anos, é de inferir que o réu conheça o nome, naturalidade e estado civil da autora, e quanto à morada e aos números de identificação civil e fiscal é publico e notório que tais elementos são fornecidos ao cartório notarial no dia, hora e local designados para a outorga de uma qualquer escritura, e inseridos pelo funcionário do cartório ou mesmo pelo notário no computador no ato, ou até corrigidos no ato de leitura pelo próprio notário; de igual forma, o réu reconhece que a autora queria a outorga da escritura definitiva, logo que o réu pagasse e assim extinguisse a divida junto do banco que onerava a casa morada de família, sendo ele taxativo ao afirmar que não quer pagar a divida ao banco, pelo que esta conduta do réu ao não pagar a divida bancária que onera a casa morada de família, como se tinha obrigado no contrato prometido, sabendo ele que tal constitui uma das suas obrigações previas à outorga da escritura definitiva, equivale a uma recusa na celebração desta mesma escritura.

5ª- O depoimento de parte, quando não resulte de assentada, constitui, em si mesmo, uma fonte privilegiada de factos-base de presunções judiciais, lançando luz e permitindo ligar-congruentemente - outros dados probatórios avulsos resultantes do julgamento, como é o caso;

Nulidade da decisão por violação do princípio do contraditório:

6ª- De acordo com o nº3 do artigo 3º do C.P.C., nenhuma decisão, em qualquer momento do processo, pode ser exarada pelo tribunal, sem que este, antecipadamente, confira a todos os intervenientes/partes uma ampla e efetiva possibilidade de a sobre ela pronunciar especificamente.

7ª- A recorrente não foi chamada a discutir/pronunciar a propósito desta exceção da nulidade por alegada ofensa da “regra da metade”, pelo que esta omissão, e posterior douta decisão que confirma/sanciona essa exceção, e decide pela nulidade integral do contrato, consubstancia uma concreta violação do princípio do contraditório, e assim, a arguição desta questão é suscetível de ser realizada em sede de recurso, o que se impetra.

Da ausência dos pressupostos/requisitos da violação da “regra da metade”:

8ª- A doutrina e a jurisprudência são, hoje em dia, coincidentes no entendimento segundo o qual o legislador, com a regra da metade, quis impedir que um dos ex-cônjuges lograsse uma partilha injusta e desigual, designadamente usando de ascendente sobre o outro, e que a fixação da participação de cada um dos ex-cônjuges na comunhão afere-se ao momento da dissolução e partilha do património comum.

9ª- A regra da metade é, pois, um valor ideal, compondo-se a quota de cada ex-cônjuge em bens ou valor equivalente, tal como sucede em qualquer partilha, seja por dissolução do casamento, seja por óbito, pelo que, quando invocada pela parte, mas também quando conhecida oficiosamente pelo Tribunal, a nulidade proveniente da violação da regra da metade carece de fundamentação em concretos factos donde ela se extraia, ou seja, que ela resulte do apuramento da totalidade do ativo e da totalidade do passivo no valor real dos bens no momento da partilha, por forma a adquirir o justo valor, e reparti-lo de forma equitativa pelos interessados.

10ª- Perscrutando os factos provados nos autos, vê-se que não se apurou o valor real, atual e concreto dos bens que compõem o ativo, e ainda o valor real, atual e efetivo do capital que integra as dividas passivas, pelo que a ausência desses factos impede o Tribunal de, oficiosamente, concluir pela violação da regra da metade, como o fez, razão pela qual a douta decisão deve ser revogada.

Da execução especifica do contrato promessa de partilha:

11ª- O contrato-promessa de partilha de bens da comunhão resultante da dissolução do casamento, e a posterior divisão deles é válido, sendo admissível a faculdade da execução específica prevista na lei, e, no caso, no contrato, sendo certo que não se vislumbra qualquer obstáculo à pretendida execução especifica do contrato em crise, o que conduz à procedência do pedido.

Violou, pois, a douta sentença as acima enunciadas normas no sentido acabado de expor”.

Termina pedindo que se conceda provimento ao presente recurso e, revogando a sentença recorrida, com modificação da factualidade apurada em conformidade com o exposto, se decida, a final, pela procedência da ação.

10- Os RR. responderam pugnando pela improcedência deste recurso, por estas razões sinteticamente resumidas nas seguintes conclusões:

“A) O Recurso formulado pela Autora deve ser rejeitado já que o CPC impõe à recorrente um especial ónus de alegação no que tange à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos do disposto nos termos do artº. 640º nº. 1, als. a), b) e c) do CPC, a que o Recorrente não deu cumprimento;

B) A A. não fez qualquer prova da sua disponibilidade para outorgar as escrituras relativas ao contrato promessa, nem sequer demonstrou que, em algum momento, tenha interpelado o R. para a outorga de tais escrituras, nem sequer para o cumprimento do aludido contrato, que a A., reiteradamente, incumpriu;

C) A sentença não merece qualquer reparo, designadamente quanto à matéria de facto dada como provada;

D) Consequentemente, deve manter-se a matéria assente constante da Sentença Recorrida;

E) O contrato promessa de partilha é inexequível, desde logo porque o R. não está obrigado ao pagamento antecipado da dívida ao Banco relativa à aquisição da casa de morada de família;

F) O contrato promessa de partilha, nos seus termos e conjugado com as obrigações assumidas pelas partes, com prejuízo para o R., viola a regra imperativa da metade a que alude o Código Civil, nos seus artº. 1714º e 1730º, o que constitui uma Nulidade que é do conhecimento oficioso;

G) Não ocorreu qualquer violação do direito ao contraditório da A. por alegada decisão surpresa, porquanto a mesma foi notificada da invocada Nulidade do Contrato promessa por parte dos R.R., sem que tenha exercido aquele direito;

H) O Tribunal decidiu pela Nulidade do Contrato promessa, com fundamento na violação da regra da metade, nos termos do artº. 1714º e 1730º do Código Civil, sendo que tal decisão é inatacável”.

11- Recebido o recurso[1] e preparada a deliberação, importa tomá-la.


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II- Mérito do recurso

A- Definição do objeto

O objeto dos recursos, em regra e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608º nº 2, “in fine”, 635º, nº 4 e 639º nº1 do CPC].

Assim, observando este critério no caso presente, o objeto do recurso em apreço reconduz-se, essencialmente, a saber se:

a) Deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto;

b) A sentença recorrida é nula por violação do princípio do contraditório e, na afirmativa, quais as consequências jurídicas e processuais;

c) O contrato promessa de partilha celebrado entre a A. e o R. é válido e pode ser objeto de execução específica.


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B- Fundamentação

B.1- Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:

1. A A. e o R. marido contraíram entre si casamento católico em 8-2-1976, sem convenção antenupcial, o qual foi dissolvido por divórcio decretado por decisão proferida em 13-11-2006, transitada em julgado,

2. O acervo comum do ex-casal, constituído por ativo e passivo, ainda não está partilhado.

3. Do ativo fazem parte:

a) uma fração autónoma designada pela letra “U”, correspondente a uma habitação no 5º andar A com entrada pelo nº ... do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., freguesia ..., concelho do Porto, descrito na competente Conservatória do Registo Predial do Porto sob a ficha nº...... e inscrito na matriz predial urbana respetiva sob o artigo .......

b) uma fração autónoma designada pelas letras “CD”, correspondente a um escritório com o nº..., no 6º andar direito traseiras, com entrada pelo nº... da Rua ..., freguesia ..., concelho do Porto, descrito na competente Conservatória do Registo Predial do Porto sob a ficha nº ......-..., e inscrito na matriz predial urbana respetiva sob o artigo ......;

c) um veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Renault ..., matrícula ..-..-RQ;

d) um veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca BM ..., matrícula ..-..-ZQ.

4. Do passivo faz parte:

e) Débito ao Banco pelos mútuos contraídos para a aquisição da casa morada de família identificada supra em 3-a).

f) Débito à Banco 1..., S.A. relativo ao veículo identificado supra em 3-d).

5. A A. e o R. marido negociaram entre si com vista à partilha dos acima descritos bens do ativo e dívidas do passivo.

6. E celebraram entre si um acordo para produzir efeitos somente após o trânsito em julgado da decisão que viesse a dissolver o aludido casamento.

7. Acordo esse que submeteram a escrito particular que intitularam de contrato promessa de partilha.

8. Nos termos desse acordo, a A. e o R. marido, prometeram, por ser essa a sua vontade, proceder à partilha dos seguintes bens e dívidas:

Artigo primeiro

a) Um prédio urbano que consta de casa de habitação, no 5.º andar, A, sito no n.º ... da Rua ..., Porto, freguesia ..., concelho do Porto, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ...-U, com o artigo matricial ...-U, com o valor patrimonial de 29.736,34 €.

b) Uma fração autónoma designada pelas letras CD, correspondente a um escritório n.º ..., no sexto andar direito traseiras, com entrada pelos n.º ..., da Rua ..., Porto, descrita na Segunda Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ..., da freguesia ..., encontrando-se a propriedade horizontal registada pela inscrição F, apresentação quatro, de dez de Setembro de mil novecentos e noventa e seis, artigo matricial ..., com o valor patrimonial de 26 858,77 €.

c) Um automóvel Renault ..., matrícula ..-..-RQ.

d) Um automóvel BMW ..., matrícula ..-..-ZQ

Artigo segundo

a) Débito ao Banco pelo mútuo contraído para a aquisição da casa de morada de família identificada na al. a) do artigo anterior, no valor de 61.118,17€.

b) Débito à Banco 1..., S.A. relativo ao veículo identificado na al. d) do artigo primeiro, 26.110,00 €.

9. Nos termos do acordo supra referido em 6), 7) e 8), a A. e o R. prometeram proceder à partilha dos identificados bens e dívidas da seguinte forma:

a) À A. é atribuída a fração identificada na al. a) do artigo primeiro do contrato promessa, com o valor tributável aí mencionado.

b) Ao R. marido é atribuída a fração identificada na al. b) do artigo primeiro do contrato promessa bem como os veículos identificados nas als. c) e d) do artigo primeiro do contrato promessa.

c) O R. marido fica com o encargo de proceder ao pagamento dos débitos referidos no art. 2.º do contrato promessa.

10. Mais estipularam que a escritura de partilha tendo por objeto a fração identificada na al. b) do art. 1.º do contrato promessa seria celebrada em Cartório Notarial do Porto em dia, hora e local a designar pelo R. marido, o qual devia notificar a A. com 15 dias de antecedência no prazo de 90 dias a contar da sentença que decretar o divorcio, e a escritura tendo por objeto a fração identificada na al. a) do art. 1.º do contrato promessa seria marcada pela A. após liquidação de todas as prestações em divida à instituição de crédito.

11. A A. e o R. marido não estabeleceram quaisquer tornas entre si.

12. A. e o R. marido convencionaram entre si a suscetibilidade de tal contrato promessa ser executado especificamente.

13. Por carta de 16 de setembro de 2011, o R. informou a A. que estava a “diligenciar pela realização da escritura de partilha de bens, conforme acordo a que se chegou em tempos, de modo que a fração onde habita fique exclusivamente em seu nome, e o escritório no meu nome” e que, “também conforme acordado, continuarei a pagar ao Banco o montante em dívida”, razão pela qual lhe solicitou “uma fotocópia do seu Bilhete de Identidade e do Cartão de contribuinte” para serem “presentes na Conservatória do Registo Predial onde terá lugar a escritura”.

14. Como resposta, por carta de 6 de agosto de 2012, remetida sob registo, a A. informou o R. que “a fração onde habito só ficará em meu nome após o seu total pagamento, logo, não lhe facultarei quaisquer fotocópias dos meus documentos” e solicitou que “Quando a dívida estiver totalmente paga por favor informe-me através do correio ou do S/filho”.

15. Através do artigo quinto do supra referido contrato promessa, a A. obrigou-se “a subscrever qualquer documento tendo em vista a eventual redução de juros e diminuição dos montantes das prestações mensais referentes à fração identificada na al. a) do art. 1.”.

16. O R. interpelou a A. por carta de 15 de outubro de 2018, a fim de preencher e subscrever propostas de seguro da A... COMPANHIA DE SEGUROS VIDA, SA., a fim de tentar baixar os prémios de seguro, ao que a A. não respondeu.

17. Em 30 de outubro de 2018 o R. enviou nova carta à A. informando-a que “pretendo terminar com a compropriedade dos bens, de modo que fique para cada um aquilo que se acordou” e solicitou que “no prazo de 8 dias me informe se está disponível para outorgar uma escritura de partilha, de modo que o escritório me fique afeto e que a habitação passe definitivamente para o seu nome, em termos tais que se evite o pagamento de tornas” e que “Caso concorde…me faculte cópia do Bilhete de Identidade atualizado e Número de contribuinte, para que os entregue no Cartório Notarial…”.

18. Mais informou que “Com a assinatura da escritura em causa, a hipoteca ao banco manter-se-á, continuando eu a pagar os respetivos custos, cujo compromisso assumo”.

19. Como tal carta não tivesse merecido qualquer resposta, o R. interpelou, de novo, a Autora, agora por carta de 30 de novembro de 2018, dando-lhe conta, entre outros, que, perante as sucessivas recusas da A. em facultar os elementos necessários e para outorgar a escritura de partilha, iria requerer o processo de inventário.

20. A. e R. constituíram dois mútuos perante o Banco 2..., que foram sendo amortizados mediante pagamentos mensais, mútuos esses que foram transferidos para o Banco 3..., por escrituras de 30 de março de 2007, altura em que os empréstimos concedidos por esta instituição bancária ascenderam ao valor total de 60.603,00 €.

21. A A. nunca se disponibilizou para facultar os elementos de identificação, nem para outorgar qualquer escritura de partilha.

22. O prazo estabelecido para amortização dos mútuos em vigor relativos à aquisição da casa de habitação outorgados em 30 de março de 2007, foi de 300 meses, tendo sido pagas 186 prestações até 10/11/2022, estando em dívida a 10/11/2022 um capital total de 25 261,44€.

23. O R. não tem qualquer intenção de proceder ao pagamento antecipado do mútuo.


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B.2- Na mesma sentença não se julgaram provados os factos seguintes:

• A A. tenha insistido com o R. marido para o cumprimento da promessa.

• O R. marido se recuse a outorgar as escrituras nos termos do contrato.


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B.3- Análise dos fundamentos do recurso

1- Por uma questão de precedência lógica, impõe-se, desde já, referir que, ao contrário do sustentado pela A., a sentença recorrida não constitui, para si, uma decisão surpresa, por ter declarado nulo o contrato promessa de partilha entre ela (A.) celebrado e o R., com ofensa da regra sobre participação dos cônjuges no património comum (a chamada “regra de metade”), prevista no artigo 1730.º, n.º 1, do Código Civil.

Efetivamente, essa nulidade foi arguida pelos RR. no requerimento que os mesmos dirigiram a juízo no dia 10/07/2023, e a A., apesar de dele ter tomado oportuno conhecimento[2], não lhe respondeu.

Assim, porque o tribunal tinha o dever de apreciar essa questão e a A. já tinha tido oportunidade de sobre ela se pronunciar, não há na decisão da mesma nenhuma surpresa para qualquer das partes.

Daí que se julgue improcedente a nulidade que a A. imputa à sentença recorrida.

2- Pretende também a A. que se altere a matéria de facto. Mais concretamente, pretende que se julgue não provada a afirmação constante do ponto 21, do capítulo dos Factos Provados (isto é, que “[a] A. nunca se disponibilizou para facultar os elementos de identificação, nem para outorgar qualquer escritura de partilha”, e, ao invés do que consta dos Factos não Provados, que se julgue demonstrado que “[a] autora sempre quis outorgar a escritura de acordo com os termos exarados no contrato promessa, o que o réu recusa”.

Os RR. opõem-se a esta modificação. E, como primeiro obstáculo, sustentam que a A. “não indica, nas conclusões do recurso, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados – artº. 640º, nº. 1 a) do CPC. Aliás não indica, com referência aos factos constantes da sentença, dados como provados e não provados, um único facto que seja revelador da pretensão de alteração da matéria de facto, com respeito pelo disposto no referido artº. 640º. E igualmente não indica, nas conclusões de recurso, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas – artº. 640º, nº. 1, c) do CPC. Acresce dizer que a Apelante não transcreve quaisquer passagens da gravação de depoimentos de testemunhas nem estabelece qualquer relação entre esses depoimentos e os factos dados como provados e não provados - artº. 640º, nº. 1, b) do CPC”.

Ora, esta acusação, diga-se desde já, raia a má fé. Com efeito, basta ler a 3ª conclusão do recurso da A. para concluir que, ao contrário do sustentado pelos RR., aquela indicou com precisão não só os factos por si impugnados, como a decisão que, em seu entender, deve ser tomada sobre esses mesmos factos. Assim, como aí se refere, “[a] recorrente pugna pela alteração/modificação da factualidade tida por provada em 21), a fls. 6 da sentença, no sentido de ser julgado como não provado, e pede idêntica alteração dos factos julgados não provados a fls. 6 da sentença no sentido de se consignar como provado que “A autora sempre quis outorgar a escritura de acordo com os termos exarados no contrato promessa, o que o réu recusa.”.

Por outro lado, na conclusão seguinte (4ª), a A. alude expressamente às razões e meios de prova que devem conduzir a essa modificação. Designadamente, ao depoimento do R., indicando a passagem da gravação relevante para o efeito, o que é bastante para o preenchimento do ónus previsto no artigo 640.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), do CPC.

Deste modo, pois, tendo em conta as exigências estabelecidas em todo esse normativo (artigo 640.º, do CPC), é patente que não se verifica o referido obstáculo à reapreciação da matéria de facto impugnada.

E, procedendo a essa reapreciação, o que se verifica, antes de mais, é que o teor do ponto 21 dos Factos Provados, resulta do alegado no artigo 65.º da contestação. Todavia, o mesmo não pode deixar de ser enquadrado, por um lado, com a impugnação constante do ponto imediatamente anterior (64.º) e, por outro lado, com a prova que os RR. apresentam a esse respeito, vertida nos pontos subsequentes, mas, designadamente no artigo 66.º, com a carta que a A. enviou ao R. no dia 06/08/2012, na sequência da carta que este lhe tinha enviado anteriormente, no dia 16/09/2011, pedindo-lhe “uma fotocópia do seu Bilhete de Identidade e do Cartão de contribuinte” para serem “presentes na Conservatória do Registo Predial onde terá lugar a escritura”. Ora, é a esta carta que a A. responde nos termos constantes do ponto 14 dos Factos Provados, afirmando, no fundo, que não facultaria quaisquer fotocópias de documentos”, pois o apartamento que lhe estava destinada no contrato promessa de partilha, só ficaria em seu nome após o total pagamento da mesma, o que ainda não tinha ocorrido.

Os elementos de identificação que aqui estão em causa, pois, não são propriamente os elementos identitários (nome, morada, etc), mas, antes, os suportes documentais de onde constam aqueles elementos. De resto, a A. assim entendeu, pois, em resposta, afirmou, claramente, que não facultaria ao R. “fotocópias de quaisquer documentos”. E também não os facultou ulteriormente, como resulta das insistências posteriores nesse sentido (pontos 17 a 19 dos Factos Provados).

Assim, pois, independentemente do que foi referido pelo R. em julgamento, que não contrariou, mas, antes confirmou o que consta do referido ponto 21 (interpretado neste sentido), o seu teor deve manter-se como provado.

Pretende ainda a A. que, em vez do que consta dos Factos não Provados, se julgue demonstrado que a mesma “sempre quis outorgar a escritura de acordo com os termos exarados no contrato promessa, o que o réu recusa”.

Ora, sem grande dificuldade se conclui que assim não pode ser. O que se pode ter por certo, face às posições assumidas pelas partes nos articulados e na correspondência entre elas trocada, é que a A. sempre quis, e quer, o cumprimento do contrato promessa de partilhas, de acordo com a interpretação que dele faz. Não noutra modalidade qualquer e, designadamente, naquela que o R. entende ser a correta.

Acontece que não é esta a sede própria para fixar o sentido prevalente das declarações negociais exaradas no referido contrato. Essa é uma questão interpretativa e não um facto.

Como tal, indefere-se, também neste aspeto, o requerido.

3- Por fim, está em causa a questão de saber se o contrato promessa de partilha celebrado entre a A. e o R. é válido e pode ser objeto de execução específica.

Na sentença recorrida respondeu-se negativamente a esta questão. No essencial, porque aí se considerou que, nesse contrato, não foi respeitada a regra sobre a participação dos cônjuges no património comum (a chamada “regra de metade”), prevista no artigo 1730.º, n.º 1, do Código Civil, quanto à responsabilidade pelo pagamento do passivo comum, que aí foi atribuída exclusivamente ao R.. Como tal, foi o dito contrato declarado nulo e insuscetível de execução específica.

A A., todavia, não aceita essa solução. E contrapõe que não foi violada aquela regra, porquanto “não se apurou o valor real, atual e concreto dos bens que compõem o ativo, e ainda o valor real, atual e efetivo do capital que integra as dividas passivas”.

Ora, não há qualquer razão para aferir a violação da dita regra pelo valor atual dos bens e passivo que integram a comunhão conjugal.

Efetivamente, em caso de divórcio, como sucedeu na situação presente, as relações patrimoniais entre os cônjuges cessam, por regra, a partir da data da propositura da ação que o decretou. Só assim não será se a separação de facto estiver provada no processo e algum dos cônjuges requerer que os efeitos do divórcio retroajam à data, que a sentença fixará, em que a separação tenha começado (artigo 1789.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

Cessando, porém, as relações patrimoniais entre os cônjuges, cessa também, a partir dessa data, a comunhão conjugal existente nos regimes que a pressupõem; isto é, no regime de comunhão geral de bens e no regime de comunhão de adquiridos. E, tendo em conta o disposto no artigo 1689.º, do Código Civil, a partir de então, pode proceder-se à partilha, tendo por referência, naturalmente, o valor do acervo patrimonial (ativo e passivo) que integra aquela comunhão, nessa data. Nem antes, nem depois. A data a partir da qual se consideram cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges é aquela que releva para se considerar fixada a massa de bens comuns[3]. Nessa medida, não tem razão a A. quando pretende obstar à declaração de nulidade do contrato promessa de partilha celebrado entre ela e o R., com a consideração de que não se sabe o valor atual dos bens e do passivo que integram a comunhão conjugal.

Pelo contrário, essa declaração é de manter, uma vez que o convencionado nesse contrato viola, claramente, a regra de metade, já aflorada.

Efetivamente, de acordo com o disposto no artigo 1730.º, do Código Civil (aplicável também ao regime de comunhão geral de bens (artigo 1734.º, do mesmo Código), “[o]s cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso”. Este é um regime imperativo, que visa, designadamente, evitar que o património comum seja repartido de forma desigual entre os cônjuges, em prejuízo de qualquer deles ou dos respetivos credores[4]. Por isso mesmo, não pode ser afastado, mesmo que por vontade dos cônjuges.

“Não pode estipular-se, por exemplo, que um dos cônjuges tenha dois terços, e o outro apenas um terço.

Isto não significa, porém, que os interessados não possam afastar da comunhão outros bens, além dos indicados nos artigos 1722.º, 1723.º, 1726.º e seguintes, ao abrigo do disposto no artigo 1698.º, embora tomando como base da convenção o regime da comunhão de adquiridos. Quer apenas dizer que, relativamente a bens integrados na comunhão, quaisquer que eles sejam no caso concreto, os cônjuges não poderão desviar-se da regra de metade”[5].

E, se o fizerem, a sanção, como vimos, é a nulidade da estipulação que assim o preveja.

Ora, no caso presente, como já adiantámos, a A. e o R., no contrato promessa de partilha em análise, desviaram-se desse regime. Prometeram repartir, entre si, os imóveis comuns em termos que se podem reputar de equitativos (ainda que não exatamente iguais, face ao valor tributário), conferiram ao R. o direito a haver duas viaturas automóveis, mas o uso de uma delas ficaria a pertencer ao filho de ambos, mas, quanto ao passivo comum, imputaram ao R. a exclusiva responsabilidade pelo seu pagamento, num valor global de 87.228,17€ (61.118,17€ + 26.110,00€).

Este segmento, portanto, não pode deixar de se considerar manifestamente desproporcionado. E quando assim é, o acordo em que está inserido é, como dissemos, claramente violador da dita regra de metade. “O Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que a regra da metade é violada, o que torna nula a partilha, ou o correspondente contrato-promessa, quer quando não constam do ou dos contratos elementos que permitam controlar a igualação dos ex-cônjuges, quer quando dos respectivos termos resulta uma manifesta desproporção nas atribuições”[6]. O que é o caso.

Assim, pois, este recurso é de julgar improcedente, com a consequente confirmação da sentença recorrida.


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III- Dispositivo

Pelas razões expostas, acorda-se em julgar improcedente o presente recurso e confirmar a sentença recorrida.


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-Em função deste resultado, as custas deste recurso serão pagas pela Apelante – artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC.


Porto, 10/9/2024
João Diogo Rodrigues
Alberto Taveira
Rui Moreira
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[1] Na 1ª Instância a A. foi notificada para proceder ao pagamento da taxa devida pela interposição do recurso, na sequência do indeferimento do seu pedido de apoio judiciário, e realizou esse pagamento, conforme se observa no documento que juntou aos autos no dia 20/05/2024, ficando assim, prejudicada a questão prévia suscitada pelos RR., a este propósito, nas suas contra alegações.
[2] Por notificação direta dos RR – cfr. refª 36187372.
[3] Neste sentido, Ac. STJ de 20/01/2022, Processo n.º 1084/12.4TBPTL.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[4] Cfr., para maiores desenvolvimentos sobre as razões (ligadas aos elementos literais, sistemáticos e teleológicos) que justificam a imperatividade desta norma, Ana Filipa Morais Antunes, “A inadmissibilidade de uma ablação consentida da meação no património comum”, consultável em https://revistas.ucp.pt.
[5] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 2ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, Limitada, pág. 436.
[6] Ponto VIII do Sumário do já referido Ac do STJ de 20/01/2022, que é apoiado em diversa jurisprudência aí referenciada no mesmo sentido.