Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7963/19.0T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DA LUZ SEABRA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RECUSA
CESSAÇÃO ANTECIPADA DO PROCEDIMENTO DE EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
VIOLAÇÃO GROSSEIRA DOS DEVERES
Nº do Documento: RP202407107963/19.0T8VNG.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A decisão de recusa da exoneração do passivo restante é uma decisão vinculada, no sentido de que só pode ser recusada a exoneração se ocorrerem alguns dos factos que permitem a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
II - Segundo o artigo 243º nº 1 al. a) do CIRE do CIRE, para que a recusa da exoneração do passivo restante se considere justificada, ter-se-ão de verificar os seguintes requisitos cumulativos: i) incumprimento pelos insolventes da obrigação de entrega à fiduciária da parte dos seus rendimentos objecto de cessão; ii) incumprimento imputável aos insolventes a título de dolo ou grave negligência; iii) que desse incumprimento decorra, em termos de causalidade adequada, prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
III - Incumprindo os insolventes, de forma reiterada e ostensiva, o dever principal e elementar de entrega do rendimento disponível, esse incumprimento traduz-se em condutas que só um cidadão particularmente displicente e descuidado cometeria, consubstanciando erros indesculpáveis (grave negligência), tornando, pois, justificada a recusa da exoneração do passivo restante, sendo certo que daquela não entrega do rendimento disponível decorre, de forma inelutável, prejuízo para a satisfação dos credores, que se viram impedidos de, à custa de tais valores, serem, total ou parcialmente, pagos, não sendo de exigir para este efeito, que o prejuízo seja tido como significativo ou particularmente relevante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 7963/19.0T8VNG.P1- APELAÇÃO
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Sumário (elaborado pela Relatora):
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I. RELATÓRIO
1. AA e BB apresentaram-se à Insolvência por requerimento de 16.10.2019, declarando pretender a exoneração do passivo restante.

2. Por sentença proferida em 22.10.2019, Ref. Citius 408492116, já transitada em julgado, foi decretada a Insolvência de BB e AA.

3.  O pedido de exoneração do passivo restante foi liminarmente admitido por despacho proferido em 29.01.2020, Ref. Citius 411011059, tendo o seguinte teor:
“Assim sendo, tudo ponderado e considerando que o agregado familiar dos Insolventes é composto pelos próprios, fixo em dois salários mínimos nacionais o montante necessário ao seu sustento digno, com referência aos doze meses do ano, ou seja, dividindo-se o rendimento anual por doze, e contabilizando-se os rendimentos auferidos pelo casal na sua globalidade,
Consequentemente, durante os cinco anos seguintes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão), ou seja, imediatamente, o rendimento disponível dos devedores, considera-se cedido à fiduciária supra nomeada.
Advirtam-se expressamente os Devedores das obrigações a que fica sujeita, constantes do art. 239º n.º 4 e 240º n.º 1, do CIRE.
Notifique, publicite e registe (art. 247º, do CIRE).”

4. Apresentado pela fiduciária o relatório anual sobre o estado da cessão referente ao 1º ano ( em 3.05.2021) os insolventes foram informados que o rendimento disponível referente a 2020 era do montante de €1970,42.

5. Tendo os insolventes pedido para efectuar o pagamento daquele valor em prestações mensais de €100,00, tal veio a ser deferido, tendo sido notificados do relatório da fiduciária a dar conta que o plano prestacional daquela quantia havia sido autorizado mas terminaria em Janeiro de 2023.

6. Apresentado o relatório sobre o estado da cessão referente ao 2º ano (em 7.03.2022) foi dado conhecimento aos insolventes que o rendimento disponível desse ano era no valor de €886,69 e que nessa data já haviam entregue 9 das 20 prestações referentes ao rendimento do 1º ano de cessão, mostrando-se pago o montante de €900,00.

7. Por requerimento de 5.04.2022 os Apelantes informaram que já haviam pago €500,00 e até dia 20 entregariam o restante.

8. Em 31.05.2022 a fiduciária informou os autos que os insolventes haviam entregue a totalidade do rendimento disponível referente ao 2º ano da cessão.

9. Posteriormente, em 21.03.2023 a fiduciária apresentou o relatório anual sobre o estado da cessão referente ao 3º ano da cessão informando que o rendimento disponível era no montante de €1142,14, o qual passou para €1762,40 após a entrega pelos insolventes do recibo do subsídio de férias atribuído ao insolvente.

10. Por requerimento de 3.05.2023 os insolventes vieram requerer novamente o pagamento em prestações mensais de €100,00, requerimento esse sobre o qual recaiu o seguinte despacho proferido a 5.06.2023:
“Refª 35601687 de 11/5/2023: viéramos insolventes requerer o pagamento faseado do valor em dívida, em prestações de €100,00 (cem euros), o que corresponde a dezoito (18) meses para liquidação do valor em falta.
Contudo, mostra-se já findo o período de cessão de rendimentos, pelo que a única solução legal compatível com a pretensão dos insolventes, é a prorrogação do período de cessão nos termos do disposto no art. 242º-A, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Pelo exposto, notifique os insolventes a fim de virem aos autos informar se pretendem a prorrogação do período de cessão, e por quanto tempo, nos termos do disposto no art. 242º-A, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”.

11. Notificados deste despacho em 23.06.2023 os insolventes nada disseram.

12. Foi proferido em 12.09.2023 novo despacho, do qual foram notificados os Apelantes, com o seguinte teor:
Em face do seu requerimento de 11/5/2023 (refª 35601687) foram os insolventes notificados a fim de virem aos autos informar se pretendem a prorrogação do período de cessão, e por quanto tempo, nos termos do art. 242º-A nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Contudo, nada disseram.
Assim, e uma vez que a lei não prevê a possibilidade do pagamento em prestações da quantia em dívida depois de findo o período de cessão de rendimentos, indefiro o requerido pagamento prestacional.
Notifique.
Decorrido que se mostra o período de cessão de rendimentos, notifique os insolventes, a senhora Fiduciária e os credores a fim de se pronunciarem quanto à decisão final de exoneração do passivo restante- art. 244º nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.”

13. Por requerimento de 23.10.2023 a fiduciária informou os autos que os insolventes haviam pago o valor de €1762,40 referente ao 3º ano de cessão, mas que permanecia em falta do 1º ano de cessão o montante de €890,42.

14. Em 30.10.2023 foi proferido despacho, do qual foram notificados os insolventes, com o seguinte teor:
“(…) Informa ainda a senhora Fiduciária que os insolventes se encontram em falta relativamente à entrega de rendimento disponível referente ao primeiro ano de cessão, no montante de €890,00 (oitocentos e noventa euros e quarenta e dois cêntimos).
Pelo exposto, notifique os insolventes a fim de procederem ao pagamento da quantia em dívida, no prazo máximo de 10 dias, sob pena de ser proferida decisão final de não concessão da exoneração do passivo restante.”

15. Mais uma vez os aqui Apelantes nada disseram e não procederam à entrega daquele valor em falta.

16. Quer a credora A..., SA, quer o Magistrado do MP apresentaram pedido de recusa da exoneração do passivo restante.

17. Por decisão proferida em 21.02.2024, Ref. Citius 457156196 foi recusada a exoneração do passivo restante, tendo o seguinte teor:
“Termos em que, em face do exposto, indefiro o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes BB e AA.
Custas pelos devedores BB e AA.
Notifique.”

5. Inconformados com a decisão que recusou o pedido de exoneração do passivo restante, os insolventes interpuseram recurso de apelação da decisão, formulando as seguintes
CONCLUSÕES
I. O presente Recurso vem interposto da douta sentença que recusou a concessão de Exoneração do Passivo Restante, por falta de pagamento das quantias auferidas pelos Insolventes para além do seu rendimento disponível, no primeiro ano de cessão de rendimentos, o que se traduz na quantia de € 890,42.
II. A decisão está fundamentada da seguinte forma: “A analise desta factualidade provada não pode conduzir a outra conclusão senão a de que os insolventes dolosamente ou com grave negligencia violaram as obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239º, concretamente, a de entregar imediatamente ao fiduciário, quanto por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão, prejudicando por este facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.”
III. Os Recorrentes não concordam com tal decisão;
IV. Pois entendem que não houve incumprimento das obrigações que sobre si impendiam, nomeadamente as do artigo 249.º do CIRE;
V. Nem se encontram preenchidos os pressupostos para a recusa de exoneração do passivo restante;
VI. A Exoneração do Passivo Restante foi requerida tempestivamente;
VII. O despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante e de nomeação do fiduciário foi proferido em 29/01/2020.
VIII. Foi fixado o valor de 1,5 salários mínimos nacionais, para si e seu filho e tinha de entregar o excedente do seu rendimento mensal ao Sr. Fiduciário.
IX. Apesar das imensas dificuldades económicas, os Recorrentes sempre cumpriram com as entregas mensais à Srª. Fiduciária, fazendo-o por depósito na conta indicada.
X. Os recorrentes mantêm a convicção de que efetuaram todas as entregas a que estavam obrigados à Sra. Fiduciária, pelo que, foi com surpresa que receberam a sentença de recusa da exoneração do passivo restante, e ainda mais surpresos ficaram, relativamente ao alegado quanto ao primeiro ano de cessão.
XI. Já que, em qualquer momento, a Srª. Fiduciária lhes reclamou por qualquer incumprimento, sendo certo que, continuaram a cumprir com as entregas mensais à fidúcia nos anos subsequentes, com plena convicção de que também o primeiro ano de cessão estava integralmente cumprido.
XII. Ainda assim, os Recorrentes têm a possibilidade de, com recurso à ajuda de familiares, proceder ao pagamento no imediato do valor alegadamente em falta.
XIII. Prosseguindo, o incumprimento imputado ao primeiro ano de cessão, não resulta de qualquer comportamento doloso ou, sequer, de grave negligência dos Recorrentes.
XIV. Nem a douta sentença recorrida fundamenta algum comportamento consubstanciado deste dolo ou negligencia grave;
XV. Até se diga, os Recorrentes já procederam ao pagamento da quantia devida quanto ao primeiro ano de cessão de rendimentos, como se fará demonstrar nos autos de insolvência.
XVI. Pelo que, não se mostram reunidos os respetivos pressupostos de que depende a recusa da concessão da exoneração do passivo restante.
XVII. A recusa da exoneração obedece aos termos do artigo 244.º e 243.º do CIRE, isto é, aos pressupostos enumerados na alínea a), do n.º 1, do artigo 243.º do CIRE.
XVIII. De entre estas obrigações a que os insolventes estavam adstritos, encontramos a obrigação de ceder os rendimentos disponíveis à fidúcia;
XIX. Os requisitos da alínea a) do n.º 1 deste último preceito está dependente da verificação de pressupostos cumulativos, uns de natureza objectiva – incumprimento pelo devedor de alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º e prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência em razão desse incumprimento – e outro de natureza subjectiva – dolo ou negligência grave do devedor.
XX. Desta maneira, nem toda e qualquer violação das obrigações impostas ao insolvente, como corolário da admissão liminar do pedido exoneração, releva como causa de recusa do benefício.
XXI. Para além de ser taxativo, como se afirmou antes, o elemento subjetivo daquele preceito exige que se trate de uma prevaricação dolosa ou com grave negligência e, cumulativamente, que a atuação do devedor tenha prejudicado a satisfação dos credores da insolvência.
XXII. Sendo de enunciar a exigência de um nexo de causalidade entre o incumprimento e a existência de prejuízo para a satisfação dos créditos.
XXIII. Os Insolventes mantêm a convicção de que transferiram a totalidade do montante a que estavam obrigados.
XXIV. Contudo, tendo em conta que a maioria dos pagamentos à Sra. Fiduciária foi efetuada por depósito, não conseguiram demonstrar tais pagamentos, razão pela qual tentaram inúmeras vezes entrar em contacto com a Sra. Fiduciária a fim de obter os competentes esclarecimentos.
XXV. Sem que tenham obtido resposta…
XXVI. Ainda assim, atento o valor em causa, esclarecendo-se que se encontrava efetivamente em dívida os Insolventes tinham a possibilidade de, reitera-se com a ajuda de familiares, liquidar imediatamente o valor em causa, o que fizeram, entretanto.
XXVII. De tal modo que, a satisfação dos créditos acabou por não sair prejudicada, no que respeita ao recebimento desse montante.
XXVIII. E, não se encontram reunidos os pressupostos para a recusa, devendo a decisão ser revogada e substituída por uma outra que proferia o despacho final de exoneração do passivo restante.
XXIX. A sentença recorrida atendeu apenas ao juízo de censura sobre o comportamento dos insolventes, sem ter tomado em conta as consequências do incumprimento ao nível do prejuízo para a satisfação do interesse dos credores.
XXX. Ficando prejudicada a avaliação de outros requisitos, falhando os pressupostos que justificariam a negação da exoneração do passivo restante, pelo que terá de concluir-se que o acórdão recorrido não fez a correta aplicação dos artigos 243º, n.º 1, alínea a) e 244º, n.º 2 do CIRE.
XXXI.  Deverá, pois, a douta sentença proferida pelo Tribunal "a quo", ser revogada e substituída por outra que avalize o pagamento efetuado pelos Insolventes e ser-lhes depois concedido a Exoneração do Passivo Restante.
XXXII. Até porque, até ver, o comportamento dos Insolventes foi sempre irrepreensível, sempre cumpriram com os pagamentos a que estavam obrigados e naturalmente que se tivessem sido alertados para tal incumprimento ter-se-iam prontificado a pagar.
XXXIII. Em qualquer caso, terá que imperar nesta situação o princípio constitucional da proporcionalidade ou razoabilidade, e afigura-se excessiva a recusa da exoneração do passivo restante, quando se demonstre nos autos ter os Insolventes procedido à entrega do montante global que, ao longo do período de cessão, teria de ter sido cedido, ou a manifesta vontade de o fazer caso se demonstrasse que estava efetivamente em dívida.
XXXIV. Devendo ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o despacho recorrido, substituindo-o por outro a conceder aos insolventes a exoneração do passivo restante, uma vez liquidado algum alegado valor em dívida.
Concluíram, pedindo que seja dado provimento ao presente recurso e em consonância revogada a decisão recorrida.

18. Foi apresentada resposta pelo Magistrado do MP, pugnando pela confirmação do julgado.

19. Foram observados os Vistos.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
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A questão a decidir é a seguinte:
- Se deve ser concedida a exoneração do passivo restante aos insolventes.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
A. BB e AA foram declarados insolventes por decisão proferida a 22/10/2019.
B. Por decisão proferida a 29/1/2020, foi deferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes.
C. No primeiro ano de cessão de rendimentos, os insolventes auferiram € 890,42 para além do rendimento indisponível, não tendo entregue tal quantia à fidúcia.

2. Para a decisão a proferir relevam também os factos inerentes à tramitação processual e respectivas peças processuais constantes do relatório acima elaborado, tendo este Tribunal procedido à consulta integral dos autos principais para prolação da presente Decisão.  

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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.
O CIRE consagrou algumas medidas inovadoras quanto aos devedores singulares insolventes, sendo caso paradigmático a possibilidade de exoneração do passivo restante, figura que não é aplicável às pessoas colectivas.
Decorre do disposto no art. 235º do CIRE que, se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste (redação introduzida pela Lei nº 9/2022 de 11/1), desde que verificado o condicionalismo previsto nos preceitos subsequentes.
Foi propósito assumido pelo legislador que, após a liquidação do seu património no processo de insolvência ou após o decurso de três anos após o encerramento do processo, o devedor tenha a possibilidade de um «fresh start», de recomeçar de novo, sem o peso das obrigações que ainda permaneçam por liquidar.
No preâmbulo desse diploma legal fez-se constar que o Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência (…).
Tal como escreve Assunção Cristas, “apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao pagamento aos credores durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente. O objectivo é que o devedor pessoa singular não fique amarrado a essas obrigações.” [1]
A exoneração do passivo restante permitirá ao devedor, sob certas condições e em função do seu comportamento sério e honesto no denominado período da cessão, “a possibilidade de não viver o resto da vida (ou, pelo menos, até ao decurso do prazo de prescrição) sob o peso de dívidas que tornariam impossível o retomar de uma vida financeiramente equilibrada. “
Essa exoneração do passivo restante inicia-se com o denominado despacho inicial, que determina a obrigação de cessão do rendimento disponível pelo período de três anos após o encerramento do processo (artigo 237º, al. b) do CIRE), e por regra seguir-se-á o denominado despacho de exoneração, que determinará a final, a concessão da exoneração, decorrido o mencionado prazo e a verificação do integral cumprimento de todas as obrigações constantes do despacho inicial (arts. 237º, al. b), 244º e 245º n.º 1 do CIRE).
A decisão final sobre a concessão ou não da exoneração só virá, portanto, a ter lugar depois de decorrido esse período (sem prejuízo da sua cessação antecipada, nas condições previstas no artigo 243º do CIRE), na decisão final do incidente de exoneração, conforme prevê o artigo 244º do mesmo CIRE.
Relativamente a esta última decisão final, prevê o artigo 244º do CIRE, o seguinte:
1 – Não tendo havido lugar a cessão antecipada, ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respectiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.
2 – A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.
Deste modo, o juiz, para efeitos de recusa da exoneração do passivo restante do devedor, está vinculado pelos fundamentos e pelos requisitos previstos nas alíneas a), b) e c), do antecedente artigo 243º do CIRE.
 “O juiz do processo não tem, em sede de decisão final após o decurso do período da cessão, um poder discricionário quanto à concessão ou recusa da exoneração, antes vinculado, pois que deve atribuí-la ou não, consoante a avaliação que faça, à luz dos elementos colhidos nos autos ou de outras diligências de instrução que julgue pertinentes, quanto à verificação ou não de algum dos fundamentos e requisitos previstos nas alíneas a) a c), do n.º 1, do artigo 243º, do CIRE. “[2]
Os pressupostos exigidos pelo referido preceito legal para a recusa da exoneração do passivo restante, designadamente o convocado para a presente decisão - art. 243º nº 1 al. a) do CIRE- mantiveram-se os mesmos, apesar das alterações introduzidas pela Lei nº 9/2022 de 11/1, que entrou em vigor a 11/4/2022 e, que de acordo com o art. 10º nº 3 se aplica aos processos pendentes.
Preceitua aquele art. 243º do CIRE, no que para aqui importa, o seguinte:
1 – Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se ainda estiver em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
A hipótese vertida no art. 243º nº 1 al. a) do CIRE, remete para a violação de alguma das obrigações impostas aos devedores pelo art. 239º nº 4 do CIRE.
Segundo esse último preceito legal, durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer qualquer pagamento aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
A esse propósito e, como fundamento da recusa da exoneração do passivo declarada na sentença recorrida, ficou expressamente exarado que “Mostra-se assente que os insolventes auferiram, para além do seu rendimento indisponível fixado pelo tribunal, a quantia de € 890,42 no primeiro ano de cessão de rendimentos, não tendo entregue tal quantia à fidúcia.
A análise desta factualidade provada não pode conduzir a outra conclusão senão a de que os insolventes dolosamente ou com grave negligência violaram as obrigações que lhes são impostas pelo artigo 239º, concretamente, a de entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Atentas as regras de experiência comum, é razoável e lógico supor que o insolvente que não entrega as quantias a que sabe estar obrigado nem apresenta os documentos comprovativos dos seus rendimentos e que, depois de notificado, nada diz, age com consciência de estar a violar as suas obrigações em prejuízo dos credores e, portanto, com dolo ou, pelo menos, grave negligência.
Por outro lado, o facto de não terem entregue as quantias a que estavam obrigados prejudicou objectivamente a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Preencheram, desta forma, os insolventes BB e AA a alínea a) do nº 1 do art. 243º, bem como a alínea c) do nº 4 do art. 239º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas ex vi art. 244º, nº 2 do mesmo diploma.
A consequência legal é o indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, não beneficiando os insolventes, findos estes três anos do período de cessão de rendimento, da extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que fosse concedida exoneração, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, conforme prevê o art. 245º, nº 1 do mesmo diploma.”
Conforme defende de forma consistente a Doutrina e Jurisprudência, estando em causa a violação pelo insolvente de alguma das obrigações que para si decorrem do preceituado no artigo 239º, do CIRE, não basta, para efeitos de recusa da exoneração, a mera demonstração do incumprimento, sendo, ainda, necessária, a verificação cumulativa, de um elemento subjectivo- dolo ou negligência grave- e, um elemento objectivo- prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência e decorrente, em termos causais, daquele incumprimento.
Entre outros, na Doutrina mencionamos L.Carvalho Fernandes, J. Labareda, CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 867, L. Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3ª edição pág. 333 e Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6ª edição., pág. 329.
Na jurisprudência, entre outros, os Ac STJ de 9.04.2019, proferido no Proc. Nº 279/13.8TBPCV.C1.S2, Ac RG de 16.03.2023, proferido no Proc nº 2338/13.8TBGMR.G1 , Ac RP de 22.11.2021, proferido no Proc. Nº 783/08. 0TBMCN.P1 e Ac RP de 12.09.2023 proferido no Proc. Nº 2614/18.3T8STS.P2 (no qual a ora Relatora foi adjunta) todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Tal como defendem Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões “trata-se de uma decisão vinculada, só podendo ser recusada a concessão de exoneração se se verificar algum dos factos que permitem a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
(…) Os fundamentos de recusa encontram-se, pois, todos relacionados com a verificação de um comportamento culposo do devedor antes ou depois da declaração de insolvência e do procedimento de exoneração.”[3]
Na decisão recorrida, que recusou a exoneração do passivo restante, foi invocada a verificação dos requisitos previstos nos arts. 243º nº 1 al. a) e 239º nº 4 al. c) ex vi do art. 244º nº 2 do CIRE.
Nela é feita referência a que os insolventes infringiram a obrigação prevista no art. 239º nº 4 al. c) do CIRE relativamente à não entrega pelos insolventes à fidúcia da quantia de € 890,42 referente ao primeiro ano de cessão de rendimentos.
Naquele último preceito legal está consagrado que, durante o período da cessão, o devedor fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão.
Deste modo, segundo o 243º nº 1 al. a) do CIRE do CIRE para que a recusa da exoneração do passivo restante proferida nestes autos se considere justificada, ter-se-ão de verificar os seguintes requisitos cumulativos:
i)incumprimento pelos insolventes da obrigação de entrega à fiduciária da parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
ii) incumprimento imputável aos insolventes a título de dolo ou culpa grave;
iii) que desse incumprimento decorra, em termos de causalidade adequada, um prejuízo para a satisfação dos créditos da insolvência.
Conforme já decidido no Ac RP de 12.09.2023, também subscrito pela aqui Relatora (ali como Adjunta) “ (…) a decisão de recusa da exoneração do passivo restante, à luz das disposições conjugadas dos artigos citados, pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: a) violação das obrigações impostas ao insolvente como corolário da admissão liminar do pedido de exoneração; b) que essa violação decorra de uma atuação dolosa ou com grave negligência; c) verificação de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência; d) e existência de nexo de causalidade entre a conduta e o prejuízo.
Também se nos apresenta suficientemente sedimentado o entendimento de que impende sobre o credor do insolvente ou sobre o fiduciário, sem prejuízo do dever de investigação oficiosa do tribunal, o ónus de alegação e prova dos factos de que depende a recusa de exoneração do passivo restante, por assumirem natureza impeditiva do direito (art. 342.º, n.º 2, do Código Civil).
Não custa, porém, reconhecer a especial dificuldade, tanto para os credores como para o fiduciário, em fazer prova dos pressupostos que vão além do mero incumprimento objetivo da obrigação.
E daí que o legislador tenha concebido a seguinte regra: baseando-se o requerimento de recusa da exoneração nas als. a) e b) do n.º 1 do art. 243.º, o mesmo é sempre deferido, por via do comando normativo inserto na segunda parte do n.º 3 do mesmo artigo, se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer ao tribunal, no prazo que lhe seja indicado para o efeito, informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.
A leitura conjugada do estatuído nas citadas disposições legais, leva-nos a concluir que o comportamento objetivo assumido pelo devedor, traduzido na falta de fornecimento de informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, sem apresentar justificação para tal, no seguimento de notificação para cumprimento efetuada pelo tribunal, produz efeito cominatório ou sancionatório, em termos de se considerarem verificados os pressupostos da cessação antecipada da exoneração do passivo restante.
Ou, em termos de repartição do ónus da prova nesta matéria, constatado o incumprimento objetivo da obrigação de o devedor entregar ao fiduciário, no período da cessão, certos montantes devidos, cabe ao devedor demonstrar uma causa justificada do incumprimento.”[4]
Tal leitura é a única que, a nosso ver, confere sentido e razão de ser à norma inserta na segunda parte do n.º 3 do art. 243.º, no confronto com o normativo da alínea a) do n.º 1 do mesmo artigo”, entendimento esse transponível para o caso aqui sob recurso, como veremos.
Resulta da factualidade apurada nos autos, que no primeiro ano de cessão de rendimentos (2020) os insolventes receberam de rendimento disponível o montante de €1970,42, que não entregaram à fiduciária e que pediram para efectuar tal pagamento em prestações mensais de €100,00, o que veio a ser deferido, tendo sido notificados do relatório da fiduciária apresentado em 3.05.2021 a dar conta que o plano prestacional daquela quantia havia sido autorizado com término em Janeiro de 2023.
Apresentado o relatório sobre o estado da cessão referente ao 2º ano (em 7.03.2022) foi-lhes dado conhecimento que o rendimento disponível desse ano era no valor de €886,69 e que nessa data já haviam entregue 9 das 20 prestações referentes ao rendimento do 1º ano de cessão, mostrando-se pago o montante de €900,00.
Por requerimento de 5.04.2022 os Apelantes informaram que já haviam pago €500,00 e até dia 20 entregariam o restante.
Em 31.05.2022 a fiduciária informou os autos que os insolventes haviam entregue a totalidade do rendimento disponível referente ao 2º ano da cessão.
Posteriormente, em 21.03.2023 a fiduciária apresentou o relatório anual sobre o estado da cessão referente ao 3º ano da cessão informando que o rendimento disponível era no montante de €1142,14, o qual passou para €1762,40 após a entrega pelos insolventes do recibo do subsídio de férias atribuído ao insolvente.
Por requerimento de 3.05.2023 os insolventes vieram requerer novamente o pagamento em prestações mensais de €100,00, requerimento esse sobre o qual recaiu o seguinte despacho proferido a 5.06.2023:
“Refª 35601687 de 11/5/2023: viéramos insolventes requerer o pagamento faseado do valor em dívida, em prestações de €100,00 (cem euros), o que corresponde a dezoito (18) meses para liquidação do valor em falta.
Contudo, mostra-se já findo o período de cessão de rendimentos, pelo que a única solução legal compatível com a pretensão dos insolventes, é a prorrogação do período de cessão nos termos do disposto no art. 242º-A, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Pelo exposto, notifique os insolventes a fim de virem aos autos informar se pretendem a prorrogação do período de cessão, e por quanto tempo, nos termos do disposto no art. 242º-A, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”
Notificados deste despacho em 23.06.2023 os insolventes nada disseram.
Foi proferido em 12.09.2023 novo despacho, do qual foram notificados os Apelantes, com o seguinte teor:
Em face do seu requerimento de 11/5/2023 (refª 35601687) foram os insolventes notificados a fim de virem aos autos informar se pretendem a prorrogação do período de cessão, e por quanto tempo, nos termos do art. 242º-A nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Contudo, nada disseram.
Assim, e uma vez que a lei não prevê a possibilidade do pagamento em prestações da quantia em dívida depois de findo o período de cessão de rendimentos, indefiro o requerido pagamento prestacional.
Notifique.
Decorrido que se mostra o período de cessão de rendimentos, notifique os insolventes, a senhora Fiduciária e os credores a fim de se pronunciarem quanto à decisão final de exoneração do passivo restante- art. 244º nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.”
Por requerimento de 23.10.2023 a fiduciária informou os autos que os insolventes haviam pago o valor de €1762,40 referente ao 3º ano de cessão, mas que permanecia em falta do 1º ano de cessão o montante de €890,42.
Em 30.10.2023 é dada nova oportunidade aos aqui Apelantes de pagaram aquele valor em falta, tendo sido proferido despacho, do qual foram notificados, com o seguinte teor:
“(…) Informa ainda a senhora Fiduciária que os insolventes se encontram em falta relativamente à entrega de rendimento disponível referente ao primeiro ano de cessão, no montante de €890,00 (oitocentos e noventa euros e quarenta e dois cêntimos).
Pelo exposto, notifique os insolventes a fim de procederem ao pagamento da quantia em dívida, no prazo máximo de 10 dias, sob pena de ser proferida decisão final de não concessão da exoneração do passivo restante.”
Apesar dessa advertência expressa os aqui Apelantes remeteram-se ao silêncio e não procederam à entrega daquele valor em falta.
Por conseguinte, perante aquele circunstancialismo e o facto provado sob a alínea C) que não foi impugnado pelos Apelantes, resulta objectivamente um incumprimento por parte dos insolventes da obrigação prevista no art. 239º nº 4 al. c) do CIRE.
Apesar de os Apelantes questionarem sob as Conclusões X, XI e XXIII aquele incumprimento, alegando que estão convictos que transferiram a totalidade do montante a que estavam obrigados, certo é que tal convicção não encontrando respaldo na factualidade apurada nos autos não é legítima, até porque os aqui Apelantes nunca alegaram tal no processo sempre que foram notificados para efectuarem o pagamento em falta referente ao 1º ano de cessão e foram inúmeras as oportunidades que lhes foram concedidas para que esse pagamento fosse efectuado, embora já de forma tardia, com a cominação de que se não o fizessem a concessão da exoneração do passivo restante lhes seria recusada.
Relativamente à verificação do elemento subjectivo consta da sentença recorrida que “a análise desta factualidade prvada não pode conduzir a outra conclusão senão a de que os insolventes dolosamente ou com grave negligência violaram as obrigações que lhes são impostas pelo artigo 239º”, nem sequer secundamos a conclusão de que “(…) atentas as regras de experiência comum, é razoável e lógico supor que o insolvente que não entrega as quantias a que sabe estar obrigado nem apresenta os documentos comprovativos dos seus rendimentos e que, depois de notificado, nada diz, age com consciência de estar a violar as suas obrigações em prejuízo dos credores e, portanto, com dolo ou, pelo menos, grave negligência.”
Efectivamente, para a recusa da decisão da exoneração do passivo restante, não bastará um incumprimento objectivo, sempre será necessária a verificação do elemento subjectivo, que esse incumprimento seja imputável aos insolventes em termos de dolo ou negligência grave.
A culpa é um nexo de imputação que liga o facto ilícito à vontade do agente cujo conteúdo se traduz num juízo de censura dirigido ao agente por ter actuado de uma certa forma quando podia e devia tê-lo feito de modo diverso.
Como refere Assunção Cristas, “De acordo com os ensinamentos tradicionais, que distingue entre culpa grave, culpa leve e levíssima, a negligência grave ou grosseira corresponderá à conduta do agente que só seria susceptível de ser realizada por pessoa especialmente negligente, actuando a maioria das pessoas de modo diverso. “[5]
No mesmo sentido refere I. Galvão Telles, o seguinte: “Quer a culpa grave, quer a culpa leve correspondem a condutas que uma pessoa normalmente diligente – o bonus pater familias – se absteria. A diferença entre elas está em que a primeira só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser cometida. A culpa grave apresenta-se como uma negligência grosseira (…).
A culpa levíssima, essa seria a que apenas uma pessoa excepcionalmente diligente conseguiria evitar. “[6]
Também Ana Prata defende que culpa grave é o mesmo que “negligência grosseira, erro imperdoável, desatenção inexplicável, incúria indesculpável – vistos em confronto com o comportamento do comum das pessoas, mesmo daquelas que são pouco diligentes”.[7]
Tal como decidido no citado Ac RG de 10.07.2019, entendimento por nós também sufragado, “a simples omissão do devedor de entregar ao fiduciário a parte dos rendimentos objeto de cessão não é fundamento bastante de recusa de concessão de exoneração do passivo restante, apenas a podendo fundamentar um comportamento doloso ou gravemente negligente do devedor.
É havida como negligência grave a “negligência grosseira, o erro imperdoável, a desatenção inexplicável, a incúria indesculpável”, vistos em confronto com o comportamento do comum das pessoas, mesmo daquelas que são pouco diligentes.”[8]
Quanto à culpa dos insolventes, embora não constasse do elenco dos factos provados vertido na sentença recorrida elementos de facto suficientes para o efeito, é inegável que os mesmos se extraem dos autos, conforme consta do relatório desta decisão.
Conforme se extrai dos autos, contrariamente ao alegado nas Conclusões X, XI, XV, os Apelantes estavam perfeitamente inteirados desde 2021 que o valor do rendimento disponível de €1970,42 a entregar referente ao 1º ano de cessão poderia ser pago em prestações até Janeiro de 2023 e independentemente de terem vindo a pagar algumas dessas prestações e os rendimentos disponíveis dos dois anos seguintes, certo é que relativamente ao 1º ano deixaram de pagar €890,42 e isso foi-lhes comunicado mais do que uma vez, inclusivamente já depois de findo o período da cessão lhes foi dada a possibilidade de virem requerer a prorrogação da cessão por forma a terem mais tempo para efectuarem tal pagamento, sem que tenham aproveitado essas oportunidades, cientes como estavam ou não podendo ignorar que não efectuando tal pagamento não lhes poderia ser concedida a exoneração do passivo restante.
Essa sua atitude, no mínimo revela total indiferença pelo desfecho anunciado de recusa da exoneração do passivo restante por incumprimento do pagamento do valor do rendimento disponível em falta.
 Como resulta à evidência do processado dos autos, se os insolventes efectivamente tinham intenção de pagar o valor em falta deviam-no ter feito nos prazos que lhes foram reiteradamente concedidos, não se remetendo ao silêncio e mantendo a omissão de pagamento, bem sabendo que tal lhes acarretaria as gravosas consequências da recusa de exoneração do passivo restante.
É suposto que os insolventes façam um esforço de contenção das despesas no período da cessão por forma a merecerem a exoneração do passivo restante, de modo a começarem do zero sem dívidas, devendo entregar imediatamente à fidúcia a parte dos rendimentos objecto de cessão, permitindo aos credores ver satisfeitos, na medida do possível, parte dos créditos reclamados.
Apurado o circunstancialismo que anteriormente mencionamos e consta do relatório desta decisão, podemos afirmar que os insolventes podiam e deviam ter cumprido pontual e correctamente a entrega dos valores estabelecidos na decisão que fixou o rendimento objecto de cessão, e de forma voluntária e consciente, retiveram quantias que bem sabiam que não podiam fazer suas.
Podemos afirmar que os insolventes adoptaram uma conduta ostensiva ou grosseiramente negligente, traduzindo o incumprimento da obrigação de entrega de parte do rendimento disponível referente ao 1º ano da cessão uma conduta que só um cidadão particularmente displicente e descuidado cometeria, um erro indesculpável.
Contrariamente ao alegado pelos Apelantes nas Conclusões XV e XXVI não consta dos autos que o pagamento em falta tivesse sido efectuado até à prolação da sentença recorrida e, se o fizeram posteriormente será inócuo para o presente recurso pois que o mesmo limita-se a reapreciar a sentença recorrida à luz do circunstancialismo apurado na data em que a mesma foi proferida.
Temos, pois, que concluir que os autos evidenciam que os Apelantes agiram displicentemente, indiferentes às suas obrigações, bem sabendo das consequências das suas atitudes relapsas porque delas foram advertidos mais do que uma vez.
Sendo até incompreensível que aleguem sob a Conclusão XXXII que “sempre cumpriram com os pagamentos a que estavam obrigados e naturalmente que se tivessem sido alertados para tal incumprimento ter-se-iam prontificado a pagar”, quando os autos são reveladores das inúmeras vezes que foram advertidos que estava em falta o valor de €890,42 referente ao 1º ano de cessão e que se não procedessem ao seu pagamento não lhes seria concedida a exoneração do passivo restante, devendo pois arcar com as consequências da sua conduta, que embora se reconheça serem gravosas, só a eles se devem.
Por conseguinte, evidencia-se dos autos que o incumprimento da obrigação imposta pelo art. 239º nº 4 al. c) do CIRE é imputável aos insolventes mais não seja a título de negligência grave.
Por último, relativamente ao requisito que desse incumprimento decorra, em termos de causalidade adequada, prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, convém salientar que, tal como alegado pelos Apelantes, para a recusa da exoneração do passivo não é necessário que esse prejuízo assuma forma relevante, o qual apenas é necessário para a revogação da exoneração, conforme previsto no art. 246º nº 1 do CIRE.
Porém, a lei também não autoriza que a concessão seja concedida pelo simples facto de o prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência for “insignificante” como defendem os Apelantes afigurando-se-nos que basta para se dar como provado o requisito do prejuízo para a satisfação dos créditos que determina a recusa da exoneração, que o valor que não foi entregue à fidúcia tivesse a virtualidade de diminuir, por pouco que fosse, parte dos créditos que ficaram por pagar.
Ora, resulta dos autos, conforme mapa de rateio apresentado a 29.11.2023 que, estando já pagas as custas, e em função do valor apreendido nos autos e dos créditos reconhecidos, parte dos quais liquidados em rateio parcial face á entrega de valores obtidos em execução, o produto resultante da cessão de rendimentos no valor de €2.114,33 foi abatido nos créditos e apesar disso ficaram por pagar créditos na ordem de €21.413,05.
Aferir se o valor não entregue à fidúcia é insignificante e, com base nisso conceder a exoneração do passivo restante, não existindo na lei patamares de valores a partir dos quais se possa objectivamente concluir pelo “prejuízo para a satisfação dos créditos da insolvência”- pois o que parece insignificante para um, para outro já poderá não o ser- acarretará, quanto a nós, uma inadmissível insegurança jurídica.
Sabendo-se que o processo de insolvência tem como objectivo primacial a satisfação dos credores com liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art. 1º do CIRE), afigura-se-nos mais curial não abrir excepções em função da grandeza do valor em que se traduziu o incumprimento dos insolventes e, por conseguinte, qualquer que seja o valor do rendimento que não foi e devia ter sido entregue à fidúciária, desde que permita diminuir, seja em pouca ou grande medida, o montante dos créditos reconhecidos caso fosse entregue e repartido pelos mesmos, deve considerar-se verificado o requisito do prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Finalmente, não se vê de que modo o princípio da proporcionalidade constitucionalmente consagrado no art. 18º nº 2 da CRP possa ter sido violado com a decisão de recusa da exoneração do passivo restante, pelo contrário, tal violação porventura ocorreria caso se defendesse a posição dos insolventes, que não tendo entregue parte dos seus rendimentos objecto de cessão, que apesar de tudo serviria para ser repartido pelos credores, ver-se-iam livres de qualquer passivo no final do processo de insolvência, ficando os seus credores impedidos de recuperar senão a totalidade do valor dos seus créditos pelo menos o maior valor possível.
O art. 245º do CIRE determina que a exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados.
Se os aqui Apelantes tivessem pago o valor de €890,42 que apelidam de insignificante, teriam o relevante benefício de lhes serem perdoados créditos neste momento apurados em €21.413,05, pelo que, desproporcionado seria conceder-lhes tal benefício mesmo não tendo entregue o pouco rendimento que lhes foi exigido, porquanto não actuaram de forma a serem dele merecedores.
Verificados todos os requisitos legalmente exigidos para que a exoneração do passivo restante lhes fosse recusada, nenhuma censura nos merece a sentença recorrida.
**
V. DECISÃO:
Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos Apelantes, mantendo-se a sentença recorrida de recusa da exoneração do passivo restante aos Insolventes.
Custas a cargo dos insolventes.
Notifique.

Porto, 10 de Julho de 2024
Maria da Luz Seabra
Rodrigues Pires
Alexandra Pelayo

(O presente Acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)
________________
[1] Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Revista Themis, Edição Especial, 2005, pág. 167 e Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução, 2010, pág. 133.
[2] L.Carvalho Fernandes, J. Labareda, CIRE Anotado, 3ª edição, pág 870 e, neste sentido, ainda, L. Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3ª edição, pág. 335, Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6ª edição, pág. 329 e A. Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência ”, 2015, pág. 557.
[3] CIRE Anotado, 2013, pág. 675-676
[4] Proc. Nº2614/18.3T8STS.P2, www.dgsi.pt
[5] Ob. cit., pág. 171, nota 6
[6] Direito das Obrigações, 6ª edição, pág. 349-350
[7] Cláusulas de Exclusão e Limitação da Responsabilidade Contratual, págs. 306 a 308 e 643
[8] Proc. Nº 4201/09. 8TBGMR.G2, www.dgsi.pt