Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO | ||
Descritores: | INFRACÇÃO TRIBUTÁRIA REGIME LEGAL CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL SEGURANÇA SOCIAL CONDIÇÃO OBJETIVA DE PUNIBILIDADE NOTIFICAÇÃO PARA PAGAMENTO ENTIDADE RESPONSÁVEL CRIME ÚNICO CRIME CONTINUADO PRESSUPOSTOS FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA OMISSÃO DE PRONÚNCIA NULIDADE DA SENTENÇA | ||
Nº do Documento: | RP202212144392/17.4T9AVR.P1 | ||
Data do Acordão: | 12/14/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO INTERPOSTO PELA SOCIEDADE ARGUIDA. | ||
Indicações Eventuais: | 4. ª SECÇÃO (CRIMINAL) | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I – Com a introdução da alínea b) ao n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, a falta de entrega da prestação só poderá constituir crime se tiverem decorrido noventa dias após o termo do prazo em que a entrega deveria ter sido efetuada e se, decorrido tal prazo, o omitente seja notificado para, em trinta dias, pagar a prestação, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, e que, decorrido o mesmo, tal pagamento não se mostre realizado, notificação esta que, conforme acórdão de uniformização de jurisprudência, configura uma condição objetiva de punibilidade aplicável ao crime de abuso de confiança à segurança social. II – Não consta de tal alínea ou de qualquer outra norma quem é a entidade que legalmente tem poder para elaborar a notificação daquele preceito, pelo que a mesma não tem de ser efetuada, necessariamente, pela Administração Tributária, podendo sê-lo, estando o processo em fase de inquérito ou instrução, por determinação do Ministério Público ou do juiz que a esta preside, razão pela qual o Tribunal Constitucional determinou no Acórdão 409/2008 que tal notificação será feita, em cada caso, pela entidade que detiver o processo quando a questão se coloque. III – A referida notificação não se destina a dar conhecimento ao devedor, com exacto rigor, das prestações em dívida, na medida em que estas são ou devem ser do seu conhecimento, pois que foi ele quem as descontou, não as entregando à Administração Tributária, como devia, visando, isso sim, dar ao devedor uma nova oportunidade para pagar, agora com os juros de mora respetivos e o valor da coima aplicável, e, desse modo, permitindo-lhe escapar à punição criminal, e daí que a eventual imprecisão da notificação quanto aos valores cujo pagamento seria necessário efectuar não afecta a vaidade da notificação efetuada, sendo que nesse caso impendia sobre o devedor o ónus de se inteirar dos valores exatos em dívida junto da autoridade administrativa. IV – As situações de concreto esgotamento das diligências processuais para a notificação do arguido, em que a notificação não ocorre por responsabilidade exclusiva deste, devem ser equiparadas aos casos em que a notificação é ordenada e devidamente concretizada. V – São pressupostos cumulativos do crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico, a homogeneidade da forma de execução, a unidade do dolo em que as diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma linha psicológica continuada, a lesão do mesmo bem jurídico e a persistência de uma situação exterior que facilite a execução e que diminua consideravelmente a culpa do agente. VI – Ainda que a lei não faça referência à exigência de uma conexão de tempo e de lugar entre as condutas criminosas, essa interligação espácio-temporal tem sido entendida pela doutrina e pela jurisprudência como indício relevante para situar o facto no quadro da mesma solicitação exterior. VII – Se se verificar um lapso temporal demasiado lato entre as condutas, então estas não são suscitadas por um circunstancialismo externo que as impulsiona, diminuindo a culpa do seu agente. VIII – Todavia, a continuidade criminosa não exige a repetição, sem intervalos, do crime, podendo o agente cumprir com alguns dos tributos durante um período prolongado da sua conduta omissiva. IX – Se o Ministério Público, aquando da acusação, não indicou, como devia, os factos referentes ao quadro exterior e à consequente diminuição de culpa, cuja existência se mostrava essencial para qualificar, como fez, parte dos factos como um crime continuado, mas o indicou a defesa da arguida na sua contestação, a sua não consideração como provados ou não provados consubstancia omissão de pronúncia e consequente nulidade da sentença nessa parte | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo: 4392/17.4T9AVR.P1 Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: 1. RELATÓRIO Após realização da audiência de julgamento no Processo Comum Singular nº 4392/17.4T9AVR do Juízo Local Criminal de Aveiro - Juiz 1, foi em 30-06-2022 proferida sentença, e na mesma data depositada, no qual – ao que aqui interessa - se decidiu (transcrição): (…) 1. Condenar a sociedade “A...,Lda.”, pela prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, p. e p. 105.º, nº1, 4, alíneas a) e b), 6 e 7, aplicável ex vi do artigo 107º, nº1 e 2, ambos do R.G.I.T., e por referência aos artigos 7º e 12º do RGIT e 11º do Código Penal, na pena 150 dias de multa à taxa diária de €2,00, o que perfaz o montante global de €300,00. 2. Declarar a perda do valor de €5415,91 a favor do Estado, condenando “A..., Lda.” a entregar essa mesma quantia aos cofres do Estado. - Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso a arguida a sociedade “A..., Lda.”, para este tribunal da Relação do Porto, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem: CONCLUSÕES: I. A ora recorrente, salvo o devido respeito e merecido respeito, pelo Ilustre Tribunal a quo subscritor da douta Sentença recorrida, que é muito, não pode aceitar a decisão proferida relativamente à sua condenação na prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 105.º, n.º 1, 4, alíneas a) e b), 6 e 7, aplicável ex vi do artigo 107º, nº1 e 2, ambos do R.G.I.T., e por referência aos artigos 7º e 12º do RGIT e 11º do Código Penal, na pena 150 dias de multa à taxa diária de €2,00, o que perfaz o montante global de €300,00. II. Inexiste no processo o pressuposto necessário à punição do crime constante do artigo 107.º do RGIT, constante da al. B) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT; III. O documento de fls. 129, cuja autoria derivada da sua assinatura nos termos do n.º1 do artigo 373.º do Código Civil é de um elemento da Guarda Nacional Republicana, que não tem competência legal para a emissão da notificação determinada pela al. B) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT, nem tão pouco deteve ou superintendeu o processo nessa fase, não é apta a ser considerada como efectuada em cumprimento do pressuposto de punibilidade da al. B) do n.º4 do artigo 105.º RGIT, sendo como tal inexistente para esses efeitos. IV. Não existe nos autos comprovação do cumprimento do pressuposto de punibilidade da al. B) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT. V. O documento de fls. 129, contém informação decisiva na formação da vontade e da consciencialização do seu destinatário, de teor falso (quanto aos valores cujo pagamento é necessário para excluir a ilicitude e quanto aos efeitos do pagamento) e impreciso. VI. A consideração operada pelo tribunal a quo que funda a matéria de 10 dos factos provados, de que o documento de fls. 129 desempenhou as funções da notificação exigida como pressuposto de punibilidade da alínea b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT, viola o princípio da tipicidade constante do n.º1 do artigo 29.º da CRP; VII. A existência de informação falsa e imprecisa no documento de fls. 129, que foi considerado pelo tribunal a quo como em cumprimento da al. b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT, cujo destinatário tinha à data 89 anos, viola a própria finalidade teleológica da al. b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT; VIII. Contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo da inexistência de prescrição e factualidade objecto do processo por interrupção da prescrição do procedimento criminal pela constituição de arguidos em 21.03.2018 e da consideração de toda a factualidade como consubstanciadora de um só único crime continuado, a factualidade objecto dos autos anterior a Setembro de 2014 encontra-se prescrita e como tal não deveria ter sido objecto de condenação. IX. A constituição de arguidos de 21.03.2018 não foi objecto de qualquer intervenção da Autoridade Judiciária competente, previa ou posteriormente ao acto, não havendo assim naquele acto uma manifestação de vontade do exercício da acção penal, que seja inequivocamente adequada a produzir o efeito de interrupção de prescrição do procedimento criminal nos termos e para os efeitos da al.a) do n.º1 do artigo 121.º do Código Penal; X. A consideração dos três blocos temporais de factualidade que não são seguidos como um crime continuado, viola as regras de punição do crime continuado constantes do n.º2 do artigo 30.º do CP por inexistência na factualidade dos três blocos de uma mesma circunstância exterior, por inexistência de uma actuação homogénea e por inexistência de uma conexão temporal entre os três blocos. XI. Assim há um crime no primeiro bloco, um crime continuado no segundo bloco e um crime continuado no terceiro bloco; XII. Tendo havido apenas a notificação perfeita da acusação em 25.01.2022, só a partir desta data é que a prescrição do procedimento criminal encontra-se suspensa nos termos da al. b) do n.º1 do artigo 120.º do CP. XIII. Pelo que, computando-se os prazos da prescrição acrescido de metade referentes ao primeiro e ao segundo bloco de factos, em data anterior à da suspensão do processo (25.01.2022), o procedimento criminal relativamente a esses factos encontra-se prescrito nos termos das disposições conjugadas do n.º3 do artigo 121.º do CP e do n.º1 do artigo 21.º do RGIT. XIV. Pelo que só a factualidade de Setembro de 2014 a Fevereiro de 2015, no montante global de €1637,64 (mil seiscentos e trinta e sete euros e sessenta e quatro cêntimos) é que poderia ter sido objecto do processo criminal e de condenação. XV. A quantia global objecto do presente processo, conforme decorre dos factos provados (cfr. 5) é de € 5415,91. XVI. Estando em vigor na data da prática dos factos o n.º3 do artigo 42.º da Lei 110/2009 e sendo a quantia inferior aos 7500€ estatuídos no n.º1 do artigo 105.º do RGIT, aplicáveis por força da remissão do n.º2 do artigo 107.º do RGIT ao crime do n.º1 desse preceito inexistia à data da prática dos factos, um elemento integrador do tipo de crime do artigo 107.º do RGIT pelo qual a arguida foi condenada. XVII. Sendo aplicável à data da prática dos factos o n.º3 do artigo 42.º da Lei 110/2009, a arguida apenas poderia ser em abstracto condenada pela contra-ordenação constante deste preceito e não pelo crime previsto no n.1º do artigo 107.º do RGIT XVIII. Aquando da prolação do Acórdão Uniformizador 8/2010 do Supremo Tribunal de Justiça (14.07.2010) o quadro legal normativo relativamente à punibilidade de infracções a normas referentes à Segurança Social, tinha apenas por referência o RGIT (artigos 107.º e 105º); XIX. No momento da prática dos factos (Setembro de 2013-Fevereiro de 2015- cfr.5 dos factos provados), o quadro normativo em vigor e aplicável aos factos nos termos do n.º1 do artigo 2.º do CP já era constituído pelas normas do RGIT (artigo 107.º e 105.º), bem como pelo Código Contributivo, em especial o artigo 42.º. XX. Á data da prática dos factos objecto do presente processo (cfr. 5 dos factos provados) vigorava uma nova circunstância normativa que se encontra inalterada desde Setembro de 2009, cuja aplicabilidade era inexistente à data da prolação do Acórdão Uniformizador. XXI. A nova circunstância normativa posterior à prolação do Acórdão Uniformizador e em vigor na data de prática dos factos justifica a não aplicação da doutrina do Acórdão Uniformizador 8/2010 à circunstância dos autos. XXII. As considerações interpretativas do Acórdão Uniformizador conjugadas com a interpretação do n.º3 do artigo 42.º da Lei 110/2009, nos termos das regras do artigo 9.º do CC, determinam que “a única leitura que confere um carácter útil ao n.º 3 quando se menciona “sem prejuízo do disposto no regime geral das infracções tributárias”, será no sentido de que só se considerará contra-ordenação se o valor em causa não exceder os 7500€, pois aí já estaremos na presença do crime previsto no artigo 107.º do RGIT” XXIII. Assim, a única hipótese legalmente válida é considerar que à data da prática dos factos (cfr. 5 dos factos provados) em plena aplicação do n.º3 do artigo 42.º do Código Contributivo, a não entrega dos valores das cotizações por parte da entidade contribuinte abaixo de €7500,00 (conforme aconteceu com a Arguida), após o decurso do prazo de 30 dias subsequentes ao termo do prazo legal para o fazer, apenas poderá consubstanciar em abstracto uma contraordenação grave nos termos desse preceito e não um crime nos termos do artigo 107.º do RGIT. XXIV. O n.º3 do artigo 42.º da Lei 110/2009 é a lei em vigor à data da prática dos factos conforme determina o n.º1 do artigo 2.º do CP, bem como a penalmente mais favorável, conforme determina o n.º1 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”). XXV. Assim, considerando o Tribunal a quo, que as quantias que consubstanciaram a prática do crime em que a arguida foi condenada (cfr. 5 dos factos provados) são de €5.415,91 (cinco mil, quatrocentos e quinze euros e noventa e um cêntimos) violou o n.º1 do artigo 105.º do RGIT, por remissão do n.º1 do artigo 107.º do RGIT, uma vez que essa quantia é inferior à quantia de €7.500,00, que é o pressuposto para aplicação da pena constante do n.º1 do artigo 105.º do RGIT, em face da entrada em vigor em 01.01.2011 do n.º3 do artigo 42.º da Lei 110/2009. XXVI. A condenação da arguida na prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, p. e p. 105.º, nº1, 4, alíneas a) e b), 6 e 7, aplicável ex vi do artigo 107º, nº1 e 2, ambos do R.G.I.T., e por referência aos artigos 7º e 12º do RGIT e 11º do Código Penal, por se referir ao valor de €5415,91, apenas é subsumível ao n.º3 do artigo 42.º da Lei 110/2009, podendo apenas ser em abstrato punida a título de contra-ordenação. XXVII. Ou seja, a condenação determinada pelo tribunal a quo, foi efectuada em violação do n.º1 do artigo 29.º da CRP, por não haver nenhuma lei anterior que declarasse punida como crime a conduta dos autos. XXVIII. O tribunal a quo, ao condenar a arguida nos termos expostos, não havendo no momento da prática dos factos em face da aplicação do n.º3 do artigo 42.º da Lei 110/2009 à factualidade, uma lei menos grave que aquela, violou também o n.º4 do artigo 29.º da CRP, condenando na lei mais grave. XXIX. Pelo que deverá ser afastada a condenação objecto da sentença do tribunal a quo, por violação do n.º1 e do n.º4 do artigo 29.º da CRP, nos termos do artigo 204.º da CRP. * O recurso apresentado foi regularmente admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo. -- Respondeu o Ministério Público junto do tribunal a quo às motivações de recurso vindas de aludir, entendendo que o recurso interposto deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.-- Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando os considerandos constantes da resposta do Ministério Público na 1ª instância e pugnando pela improcedência do recurso.-- Na sequência da notificação a que se refere o art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, foi efetuado exame preliminar e, colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência. Cumpre apreciar e decidir. * 2. FUNDAMENTAÇÃO Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior - artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) [1]. O essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, excetuadas as questões de conhecimento oficioso” – cfr. Ac. do STJ, de 15.04.2010, in http://www.dgsi.pt. [2]. Posto isto, as questões submetidas ao conhecimento deste tribunal são: 1. Da condição de punibilidade: notificação da al.b), n.º4, do art.105.º, RGIT 2. Do(s) crime(s) continuado(s); 3. Da prescrição do procedimento criminal, em especial quanto aos valores referentes a 1 set/2013; 2 dez/2013 e janeiro a maio, de 2014; a interrupção da prescrição do procedimento criminal como efeito da constituição da sociedade como arguida; 4. Dos elementos do tipo legal de crime do art.107.º do RGIT. -- Com relevo para a resolução das questões objeto do recurso importa recordara fundamentação de facto da decisão recorrida, que é a seguinte (transcrição): Factos provados 1. “A..., Lda.”, em liquidação, é uma sociedade comercial por quotas, com sede na Rua ..., Aveiro, cujo objecto social é a indústria de serração de madeiras e carpintarias, construção civil e obras públicas. 2. AA assumiu, ininterruptamente, as funções de gerente de Direito e de facto da sociedade desde a data da constituição da sociedade, ou seja, era a pessoa que, em representação da sociedade, a geria e administrava e, em nome e no interesse da mesma, decidia de facto da afectação dos meios financeiros ao cumprimento das respectivas obrigações correntes, designadamente do pagamento dos respectivos impostos sobre os rendimentos obtidos, do pagamento dos salários dos trabalhadores, e bem assim, do preenchimento e entrega das respectivas declarações de rendimento, bem como dava ordens e instruções aos trabalhadores da sociedade. 3. AA foi gerente da sociedade “A..., Lda.” até à data do seu óbito em 05-09-2020. 4. Durante os períodos de, respectivamente, Setembro de 2013, Dezembro de 2013 a Maio de 2014, Setembro de 2014 a Fevereiro de 2015, a sociedade “A..., Lda.” deduziu do valor das remunerações pagas aos seus trabalhadores, os montantes relativos às cotizações devidas à Segurança Social. 5. Assim, em Setembro de 2013, de Dezembro de 2013 a Maio de 2014 e de Setembro de 2014 a Fevereiro de 2015, AA exercia a gerência de facto e de Direito da sociedade “A..., Lda.” e entregava mensalmente as folhas de remunerações dos seus trabalhadores, procedendo à retenção das cotizações descontadas aos salários pagos àqueles, não entregando, porém, os montantes e no que concerne aos períodos que se seguem: Mês de referência Quotização em dívida (em euro) Setembro 2013......€412,99 Dezembro 2013 ....€887,42 Janeiro 2014..........€500,50 Fevereiro 2014.......€500,50 Março 2014............€523,24 Abril 2014................€574,11 Maio 2014...............€379,50 Setembro 2014.......€212,85 Outubro 2014 .........€540,71 Novembro 2014......€88,00 Dezembro 2014......€346,50 Janeiro 2015...........€219,41 Fevereiro 2015........€230,17 Total........................€5415,91 7. Era AA, no período de tempo em que exerceu funções de gerência, quem decidia como efectuar e pagar as contribuições devidas à Segurança Social, bem sabendo que se lhe impunha o dever de enviar àquela instituição as folhas de remunerações pagas no mês anterior aos seus trabalhadores e, no acto de pagamento dessas remunerações, proceder ao desconto prévio dos valores das cotizações por aqueles legalmente devidas à Segurança Social e entregar tais quantias a esta. 8. Mais sabia que devia liquidar e entregar tais contribuições até ao 20º dia do mês seguinte àquele a que respeitavam. 9. Não obstante ter efectuado as retenções acima descriminadas nos períodos de tempo acima referidos, no montante global de €5.415,91, não procedeu à sua entrega na Segurança Social no prazo legal, nem decorridos 90 dias sobre o termo deste prazo, fazendo suas tais quantias. 10. Não obstante a sociedade arguida ter sido notificada, nos termos do disposto no artigo 105º, n.º4, alínea b) do RGIT, aplicável ex vi do artigo 107º, n.º2, do mesmo diploma legal, as dívidas acima referidas não foram pagas. 11. AA bem sabia que tinha a obrigação de entregar ao Estado, em representação da sociedade arguida, o montante retido de cotizações para a Segurança Social. 12. Não obstante, nem AA nem a sociedade arguida procederam a essa entrega, bem sabendo que a sua conduta era idónea a fazer diminuir a receita da Segurança Social. 13. Ao agir como o descrito, em representação da sociedade arguida, AA incorporou no património da sociedade e/ou no seu património, as referidas importâncias, apesar de saber que as mesmas não lhe pertenciam. 14. Agiu livre, voluntária e conscientemente, em representação e no interesse da sociedade arguida, nos períodos de tempo em que foi legal representante da sociedade, bem sabendo que estava obrigado a entregar à Segurança Social as importâncias retidas e, não obstante, não o fez. 15. Sabia igualmente que toda a sua conduta era proibida e punida por lei penal. 16. AA, agindo no interesse e representação da sociedade arguida A..., Lda., em liquidação, com as condutas descritas de, no exercício da administração de facto e de direito daquela, deduzir das remunerações dos respectivos trabalhadores, as quantias correspondentes às cotizações devidas por estes à Segurança Social, retendo-as e não as entregando nos cofres desta entidade até ao vigésimo dia do mês imediatamente seguinte àquele a que respeitavam ou nos noventa dias subsequentes a tal prazo, fazendo-as suas, obtiveram vantagem patrimonial no valor global de € 5.415,91 (cinco mil, quatrocentos e quinze euros e noventa e um cêntimos). 17. Incrementou tal vantagem económica no património da sociedade arguida da qual era gerente de facto e de direito, dando-lhe o destino que considerou mais adequado aos seus interesses patrimoniais. 18. No âmbito do processo n.º937/15.2T8AVR, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Comércio de Aveiro - Juiz 1, por sentença proferida em 01-07-2015, pelas 12 horas, a sociedade “A..., Lda.” foi declarada insolvente. 19. Dos autos não constam antecedentes criminais registados. * Factos não provados Não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa ou em contradição com os factos dados como provados”. *** Conhecendo as questões suscitadas, cumpre decidir.1. Da condição de punibilidade: notificação da al.b), n.º4, do art.105.º, RGIT Defende a Recorrente que no caso concreto falta o pressuposto de punibilidade estabelecido na alínea b) do n.º4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias. Concretamente, a Recorrente fundamenta a não verificação desta condição de punibilidade em dois pontos: 1. o documento de fls.129, cuja autoria derivada da sua assinatura nos termos do n.º1 do artigo 373.º do Código Civil é de um elemento da Guarda Nacional Republicana, que não tem competência legal para a emissão da notificação determinada pela al. b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT, nem tão pouco deteve ou superintendeu o processo nessa fase. Daí que essa notificação não seja apta a ser considerada como efetuada em cumprimento do pressuposto de punibilidade da al. b) do n.º4 do artigo 105.º RGIT, sendo como tal inexistente para esses efeitos. 2. O documento de fls.129 contém informação decisiva na formação da vontade e da consciencialização do seu destinatário, de teor falso (quanto aos valores cujo pagamento é necessário para excluir a ilicitude e quanto aos efeitos do pagamento) e impreciso. VI. A consideração operada pelo tribunal a quo que funda a matéria de 10 dos factos provados, de que o documento de fls. 129 desempenhou as funções da notificação exigida como pressuposto documento de fls. 129, contém informação decisiva na formação da vontade e da consciencialização do seu destinatário, de teor falso (quanto aos valores cujo pagamento é necessário para excluir a ilicitude e quanto aos efeitos do pagamento) e impreciso. VI. A consideração operada pelo tribunal a quo que funda a matéria de 10 dos factos provados, de que o documento de fls. 129 desempenhou as funções da notificação exigida como pressuposto de punibilidade da alínea b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT, viola o princípio da tipicidade constante do n.º1 do artigo 29.º da C.R.P. VII. A existência de informação falsa e imprecisa no documento de fls. 129, que foi considerado pelo tribunal a quo como em cumprimento da al. b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT, cujo destinatário tinha à data 89 anos, viola a própria finalidade teleológica da al. b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT. Vejamos. Segundo o preceituado no n.º 1 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, “quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”. No entanto, o n.º 4 do mesmo artigo consagra ainda que “os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito”. Com a introdução da alínea b) ao n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, a falta de entrega da prestação só poderá constituir crime se tiverem decorrido noventa dias após o termo do prazo em que a entrega deveria ter sido efetuada e, além disso, é necessário que, decorrido tal prazo de noventa dias, o omitente seja notificado para, em trinta dias, pagar a prestação, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável e que, decorridos esses trinta dias, tal pagamento não se mostre realizado. Esta alínea b) do n.º 4 do cit. artigo 105.º configura uma condição objetiva de punibilidade, conforme reconhecido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2008, de 9 de Abril, Diário da República n.º 94/2008, Série I de 2008-05-15, entendida como uma causa de restrição da pena, pois “ainda que se verifiquem o ilícito e a culpa, o legislador rejeita, em determinados casos, a necessidade de pena quando não se verifique uma circunstância ulterior que possa referir-se ao próprio facto, ou à evolução subjacente, e lhe confere uma maior significação na relação com o mundo circundante”. O cumprimento da notificação prevista na alínea b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT é uma condição objetiva de punibilidade aplicável ao crime de abuso de confiança à segurança social constante do artigo 107.º do RGIT, por remissão direta do n.º2 desse preceito. - Da competência para a notificação da al.b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT Não vem impugnado pela Recorrente que, no prazo de trinta dias após a notificação constante do documento de fls.129 não procedeu ao pagamento de qualquer quantia em dívida, nem dos correspondentes juros e demais acréscimos legais, pelo que bem teria andado o tribunal a quo ao considerar provado o ponto 10 dos factos provados para os efeitos a que alude a alínea b) do n.º 4 do cit. art. 105.º. Contudo, entende a recorrente que “o documento de fls. 129 (…) é de um elemento da Guarda Nacional Republicana, que não tem competência legal para a emissão da notificação determinada pela alínea b) do n.º4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias”. Ora, não consta da al.b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT ou de qualquer outra norma de quem é a entidade que legalmente tem poder para elaborar a notificação daquele preceito. Por assim ser, como referido pela recorrente, o Tribunal Constitucional determinou no Acórdão 409/2008 que “a notificação para os termos do n.º 4 do artigo 105.º será feita, em cada caso, pela entidade que detiver o processo quando a questão se coloque” [3]. Ora, a Guarda Nacional Republicana, argumenta a Recorrente, nunca deteve ou superintendeu o processo 2, nem tão pouco decorre da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana (Lei 63/2007) ou de qualquer outra legislação que os militares da Guarda Nacional Republicana tenham competência para redigir e assinar as notificações para os efeitos do n.º4 do artigo 105.º do RGIT. Tanto mais que, afirma, os militares da Guarda Nacional Republicana não têm acesso direto às quantias que a Segurança Social considera serem devidas, aos seus juros ou à coima que aquela aplique ou tenha aplicado aos arguidos e que os mesmos precisem de pagar no prazo de 30 dias como condição de exclusão da punibilidade penal do artigo 105.º e do artigo 107.º do RGIT. Por essa razão, conclui, não tendo sido a notificação de fls. 119 emitida pela entidade competente, a mesma não poderá ser considerada como efetuada em cumprimento do pressuposto de punibilidade da al.b) do n.º4 do artigo 105.º RGIT. Respondeu o Ministério Público não existir razão para não considerar validamente realizada a dita notificação prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º. Cumpre apreciar, adiantando que não assiste razão à Recorrente. A notificação prevista no artigo 104.º, n.º1, al. b) do RGIT não tem de ser efetuada, necessariamente, pela Administração Tributária, podendo sê-lo, estando o processo em fase de inquérito ou instrução, por determinação do Ministério Público ou do juiz que a esta preside. O citado Acórdão TC n.º 409/2008 decidiu, aliás, não julgar inconstitucional a norma do artigo 104.º, n.º1, al. b) do RGIT, na redação dada pelo artigo 95.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro, interpretada no sentido de que pode o tribunal de julgamento determinar a notificação aí prevista, doutrina seguida pelo Acórdão TC n.º 531/2008, Acórdão TC n.º 23/2009 e ac TC nº142/2016, de 9 de março de 2016. Como se pode ler naquele Acórdão TC n.º 531/2008, a “notificação para o arguido proceder ao pagamento da prestação tributária em falta, nos termos da nova redação dada à alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, não constitui um novo facto punível ou um novo elemento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, relativamente ao qual se tornasse exigível que o interessado viesse a deduzir a sua defesa antes ainda de poder ser presente a julgamento. Do que se trata é de uma nova oportunidade que é dada ao arguido para evitar a punição (por factos pelos quais foi acusado em devido tempo e relativamente quais teve possibilidade de se defender), que, traduzindo-se num mero trâmite procedimental, pode ser realizado em qualquer fase do processo (e, por conseguinte, também na própria fase de julgamento), e que não envolve qualquer agravamento da posição processual do arguido (competindo-lhe apenas satisfazer ou não, em função do objetivo previsto na lei, a cominação de pagamento da prestação em dívida dentro de determinado prazo contado a partir da notificação). Com efeito, a referida notificação, contrariamente ao reclamado pela recorrente, não se destina a dar conhecimento ao devedor, com exato rigor, das prestações em dívida, “na medida em que estas são (devem ser) do seu conhecimento (foi ele quem as descontou, não as entregando à Administração Tributária, como devia), visando, isso sim, dar ao devedor uma nova oportunidade para pagar (agora com os juros de mora respetivos e o valor da coima aplicável), e, desse modo, permitindo ao devedor escapar à punição criminal” – cfr. RE 27-09-2016 (João Amaro) www.dgsi.pt. Tanto assim que “se a notificação não faz parte do tipo de crime, não integra a ilicitude nem a culpa e visa apenas dar a oportunidade ao arguido (que já realizou o crime) de regularizar a dívida fiscal e não ser punido, nos casos em que a administração diligenciou em vão pela notificação, é de considerar verificada a condição objectiva de punibilidade. As situações de concreto esgotamento das diligências processuais para a notificação do arguido, em que a notificação não ocorre por responsabilidade exclusiva deste, devem ser equiparadas aos casos em que a notificação é ordenada e devidamente concretizada” – cfr. RE 18-02-2020 (Ana Barata Brito) www.dgsi.pt Acompanhando o Acórdão nº 409/2008 do Tribunal Constitucional, cuja doutrina vemos seguida pelos ac.s TC n.º 531/2008, n.º 23/2009 e nº142/2016, de 9 de março de 2016, a propósito da competência para ordenar o cumprimento do disposto no artigo 105º, nº 4, al. b), do RGIT, “a notificação aqui prevista não é exclusivo da administração: quando o Ministério Público, na fase do inquérito, determina essa notificação, ele visa, não a prossecução da tarefa de cobrança de receitas típica da Administração Tributária, mas o apuramento, que lhe incumbe enquanto titular da ação penal, da verificação dos requisitos que o habilitem a tomar uma decisão de acusação ou de não acusação. Similarmente, quando o juiz de instrução ou o juiz do julgamento determina idêntica notificação, ambos se limitam a praticar um ato instrumental necessário à comprovação da existência, ou não, de uma condição de punibilidade, que determinará a opção entre pronúncia ou não pronúncia e entre condenação ou absolvição (ou arquivamento). Isto é: em todas essas hipóteses, a determinação da notificação pelo Ministério Público ou por magistrados judiciais insere-se perfeitamente dentro das atribuições constitucionais dessas magistraturas (exercício da ação penal e administração da justiça, respetivamente), sem qualquer invasão da reserva da Administração, nem, consequentemente, com violação do princípio da separação de poderes”. No caso destes autos, a notificação agora em discussão foi determinada na fase de inquérito, pelo Ministério Público, conforme despacho de 12-09-2018 (ref.103490430). Ora, estando o presente processo, na altura, em fase de inquérito, o Ministério Público tinha competência para ordenar a notificação da sociedade arguida, como a ordenou, nos termos e para os efeitos do preceituado no artigo 105º, nº 4, al. b), do RGIT, não ocorrendo aqui qualquer nulidade ou irregularidade, sendo tal notificação, no tocante à competência da entidade que a ordenou, inteiramente válida. Sendo aquela notificação um ato de processo penal deverá seguir-se o formalismo imposto nos artigos 111º e 113.º do Código de Processo Penal para as notificações, ou seja, feita pelas entidades e modalidades ali previstas No caso, como bem respondeu o Ministério Público, de acordo com o n.º 2 do artigo 111.º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do artigo 3.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, a comunicação de atos processuais é executada, designadamente, por agente policial que for designado para o efeito, o que sucedeu nos presentes autos. Assim, nesta parte, não assiste razão à Recorrente. -- Imprecisão da notificação: valores em dividaEscreve a recorrente que “o documento de fls. 129 não contém informação decisiva (…) de teor falso (quantos aos valores cujo pagamento é necessário para excluir a ilicitude e quantos aos efeitos do pagamento) e impreciso”. A redação da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias estabelece um novo requisito adicional de punibilidade, na medida em que os factos não serão puníveis criminalmente se o agente regularizar a dívida nos termos aí definidos. Como salientado nos citados acórdãos do TC, a condição de punibilidade constante do referido normativo legal não é a notificação que deve ser feita para o pagamento, mas sim a atitude do agente na sequência dessa notificação, a quem se exige – em seu benefício – um facere, traduzido numa atitude positiva junto da administração para aferir dos montantes concretos em dívida. No caso de nessa notificação existir incorreção na indicação do valor das prestações tributárias ou contributivas, em dívida e/ou divergência entre o montante mencionado na notificação e o valor efetivamente devido, que venha a ser apurado em audiência, tal não afeta a validade do ato/notificação efetuada. A notificação em apreço não se destina, repete-se, a dar conhecimento ao sujeito devedor, com exatidão, das prestações ainda em dívida, uma vez que ele próprio delas terá conhecimento, mas sim a conceder-lhe uma nova oportunidade para pagar, agora já com os juros de mora respetivos e o valor da coima aplicável, a fim de se desresponsabilizar criminalmente - cfr. R.E. 03-11-2015 (Maria Leonor Esteves) e RE 27-09-2016 (João Amaro), RE 24-05-2022 (Fátima Bernardes), RC 08-09-2021 (José Eduardo Martins), todos in www.dgsi.pt. Dito isto, não pode a recorrente argumentar fundadamente que a imprecisão da notificação, quanto aos valores cujo pagamento seria necessário ter efetuado para se eximir à responsabilidade criminal que agora lhe é assacada, quanto à menção da pendência de processo crime e consequências do pagamento, influiu negativamente na motivação para cumprir. Sobre a sociedade arguida impendia, isso sim, o ónus de se inteirar dos valores exatos em dívida junto da autoridade administrativa, sem que a imprecisão dos valores a pagar ou outra apontada pela recorrente traduza uma violação do princípio da tipicidade decorrente do n.º1 do artigo 29.º da C.R.P., já que tal notificação não integra sequer os elementos do tipo de ilícito e culpa, nem violação do princípio da lealdade processual, princípio este sem consagração expressa constitucional ou infraconstitucional, mas extraível do artigo 32.º, n.º 8, conjugado com o princípio da inadmissibilidade de provas violadoras da dignidade da pessoa humana (art.s 125º e 126º, do Código Processo Penal) [4]. Como afirma o Ministério Público na sua resposta, “a falta de indicação das concretas importâncias em dívida ou a falta de referência à coima aplicável, bem como a omissão de outros elementos, não torna inexistente ou inválida a notificação dos obrigados enquanto pressuposto da condição de punibilidade, desde que nela se identifique suficientemente a obrigação incumprida, bem como o prazo para a sua regularização e se faça constar que esta regularização impedirá a instauração ou o prosseguimento do procedimento criminal respetivo. Pode a notificação ser completada ou complementada com outros atos da administração ou do titular da ação penal, para que o obrigado possa regularizar a situação nos termos fixados no Regime Geral das Infrações Tributárias, com eventuais reflexos na contagem do prazo, mas isso não equivale de modo algum ao comportamento cumpridor incompatível com a condição de punibilidade legalmente prevista” (itálico nosso). Por conseguinte, improcede nesta parte o recurso. - 2. Do(s) crime(s) continuado(s)A arguida vinha acusada de ter praticado dois crimes de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 10º, 13º, 14º, n.º 1, 26º, 30º, n.º 1, todos do Código Penal, e artigos 7º, n.º 1, 16º, alíneas b), c) e g), 17º, 107º, ns.º 1 e 2 e 105º, ns.º 1, 4, 5 e 7, todos do RGIT, por referência a dois períodos temporais contínuos de falta de pagamento das cotizações sociais devidas. Sucede que a conduta omissiva da recorrente entre setembro de 2013 e fevereiro de 2015 teve duas intermitências de cumprimento, já que em 2013 foram pagos os meses de outubro de novembro (por lapso não atentado pelo tribunal a quo) e no ano de 2014 foram pagos os meses de junho, julho e agosto. Contudo, o tribunal a quo entendeu punir a sociedade “A..., Lda.” pela prática de um único crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, mas na forma continuada. Vem, contudo, a recorrente invocar, em busca da prescrição que invoca, que não são um, mas três os crimes a considerar ao longo de todo o período temporal de ausência de pagamento das cotizações sociais, os dois últimos sob a forma continuada. Tudo, claro está, no pressuposto de que o prazo da prescrição em relação a cada crime continuado se conta a partir do último ato de execução correspondente. Com efeito, tratando-se de um crime continuado, o prazo de prescrição do respetivo procedimento criminal só corre a partir da data da prática do último ato (artigo 119.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, aplicável ex vi do artigo 3.º, alínea a), do Regime Geral das Infrações Tributárias), ou seja, no “dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas”. É certo que, de acordo com a doutrina uniformizadora do STJ, no crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107º, número 1, e 105º, números 1 e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), “o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas, conforme dispõe o artigo 5º, número 2, do mesmo diploma» - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2015, de 8 de Janeiro, Diário da República n.º 35/2015, Série I de 2015-02-19. Como bem refere o Ministério Público, estando em causa um crime de omissão pura, porquanto o facto típico pressuposto na norma incriminadora se verifica com a não entrega da prestação tributária (artigo 107.º, n.º 1 e 105.º, n.ºs 1 e 5, do Regime Geral das Infrações Tributárias), tem-se por praticada a omissão na data em que termina o prazo para cumprimento da obrigação, conforme dispõe o artigo 5.º, n.º 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias. O problema que se coloca consiste em saber se a comprovada sucessão de condutas típicas perfeitamente idênticas, perpetradas num contexto que se manteve estável, consente numa pluralidade de crimes, ainda que dois deles continuados, perante a interrupção do incumprimento nos dois e três meses em que a arguida pagou as cotizações desde setembro de 2013 até fevereiro de 2015, inclusive. Tendo em atenção que se tratam de tributos da mesma natureza e que a factualidade apurada aponta para a pluralidade de resoluções criminosas [5], face a situações que se foram repetindo com caráter de homogeneidade, a única questão que subsiste consiste em saber se aqueles dois/três meses em que a arguida pagou as cotizações, ao longo de todo o período, são hiatos temporais relevantes, como pretende a recorrente, para efeitos de individualização dos (três) crimes correspondentes. A conexão temporal é fundamental para aferição do critério de definição da unidade ou pluralidade de infrações, pois, se entre as cotizações em falta medeia um largo espaço de tempo, um hiato temporal longo, encontra-se comprometida a unificação das condutas. Para excluir o crime continuado, pergunta-se se aqueles dois e três meses de pagamento poderão ser considerados como um lapso temporal suficientemente denso para situar a execução do facto (falta de pagamento das cotizações sociais) num quadro de uma solicitação exterior diferente da primeira ou anterior infração ou unificação. Entendeu o tribunal a quo que, embora o Ministério Público tenha circunscrito a conduta em dois crimes, os meses de diferença entre os blocos temporais em apreço nos autos não são determinantes para afastar a continuidade da conduta sob a mesma intenção. O artigo 30 do Código Penal dispõe que "constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente". Existem certas atividades, às quais presidiu uma pluralidade de resoluções, que - todavia - devem ser aglutinadas numa só infração na medida em que revelam uma diminuição de culpa do agente. O fundamento desta diminuição da culpa encontra-se no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. Assim, o pressuposto da continuação criminosa será a existência de uma relação que, e de maneira considerável, facilitou a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito - cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, pg.209. São pressupostos cumulativos do crime continuado: - realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico); - homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção); - unidade do dolo (unidade do injusto pessoal da acção) em que as diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma "linha psicológica continuada"; - lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto do resultado); - persistência de uma situação exterior: - que facilite a execução; e - que diminua consideravelmente a culpa do agente. Ainda que a lei não faça referência à exigência de uma conexão de tempo e de lugar entre as condutas criminosas, essa interligação espácio-temporal tem sido entendida, pela doutrina [6] e jurisprudência [7], como indício relevante para situar o facto no quadro da mesma solicitação exterior. Para haver continuidade, afirma Luís Milagres e Sousa [8], “é necessária a persistência das características inerentes a um determinado contexto, porque a continuidade é aquilo que a coerência e unidade a uma ação, logo não pode estar dissociada do tempo”. Relevante será, sempre, aferir da conexão temporal que liga as várias condutas do agente, pois como afirma Eduardo Correia, in Direito Criminal II, 1971, pg.202: "para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados de experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação". Se se verificar um lapso temporal demasiado lato entre as condutas, então, estas não são suscitadas por um circunstancialismo externo que as impulsiona, diminuindo a culpa do seu agente. Clarificando, “o facto de o agente, sucessivamente, executar os mesmos actos materiais, pela mesma ordem lógica e cronológica, indica que o agente não é capaz de resistir à tentação de perpetrar o crime. É aqui que releva a conexão temporal. Se se afirma que o agente não resiste a executar o crime, então, sempre que surge a ocasião, o agente executa o acto. Já se surge a ocasião e o agente não pratica o crime, então, o agente mostra que é capaz de se abster da prática do acto. Por isso, conclui-se que não existe uma renovação do dolo na vez seguinte que o agente pratica o crime, mas a formação de um novo dolo. Não existe a linha psicológica condutora da atitude do agente. Logo, não há situação exterior que reduza a culpa do agente, porque o agente não é influenciado por esta situação exterior. A prova disso mesmo é a capacidade de efectuar uma escolha livre diante das mesmas circunstâncias, a capacidade de aceitar a prática do crime ou de a recusar” [9]. Na verdade, como refere Paulo Pinto de Albuquerque [10]: “A mediação de um período de tempo tão dilatado entre os factos criminosos permite ao agente mobilizar os factores críticos da sua personalidade para avaliar a sua anterior conduta de acordo com o Direito e distanciar-se da mesma. Não o fazendo já não se depara com uma culpa sensivelmente diminuída, mas com um dolo empedernido no crime”. Tratando-se de um interregno temporal longo entre as condutas não se poderá reconhecer a existência de um circunstancialismo externo que facilitou a sucessiva reiteração de uma ação idêntica, isto é, que, de alguma forma, a prática do primeiro ato favoreceu a decisão sucessiva em relação à continuação. Um grande hiato temporal a separar as condutas conduz, necessária e forçosamente, ao desprendimento ou afastamento desse quadro exterior como facilitador da reiteração criminosa. Contudo, esta conexão de tempo e lugar entre as condutas, quando a sua ligação é próxima, é meramente indiciária da existência de uma circunstância externa fundadora de uma culpa diminuta [11] e deverá ter em conta, casuisticamente, a natureza do crime. Neste sentido, o ac RE 29-10-2013 (António João Latas) www.dgsi.pt clarificou que “a medida da proximidade temporal exigida como índice de que os factos foram praticados no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa, não é aprioristicamente determinável, impondo-se o recurso a critérios de normalidade - não obstante a inevitável margem de indeterminação que comportam -, temperados por razões de justiça e considerações de política criminal.” Assim, no Direito Penal Fiscal, a conexão temporal tem uma dimensão diferente que no Direito Penal comum, já que a continuação pode dar-se em intervalos relativamente extensos, dependendo da frequência com que se apresenta a possibilidade de repetir o crime. O agente só pode praticar o crime quando surja a circunstância, o que está interligado com a periodicidade das obrigações fiscais que é dizer com o regime da liquidação dos diversos tipos de impostos (IVA, IRS, IRC, etc) ou contribuições devidas à segurança social Assim, visitada a jurisprudência dos crimes de abuso de confiança fiscal, encontramos hiatos temporais de 11 meses (RE 18.02.2020 (Maria Isabel Duarte) a romper a conexão temporal relevante para efeitos de unificação criminosa, tal qual, em sentido contrário, vemos desvalorizar para o mesmo efeito um período trimestral de IVA entre 16.11.2011 e 15.02.2012 (RP 26/11/2014 (Castela Rio) www.dgsi.pt), ou intermitência de pagamento de cotizações sociais de três meses seguidos (RL 21-01-2020, Anabela Simões) www.dgsi.pt. Descendo ao caso concreto, verifica-se nos factos dados como assentes na sentença recorrida que a omitida entrega dos montantes devidos, ressalvadas aquelas interrupções de dois e três meses, ocorreu ininterruptamente ao longo do restante período, sendo clara a conexão espacial dos atos, cometidos de forma uniforme e homogênea. É certo que aquele processo foi interrompido naqueles dois e três meses em que a sociedade arguida não omitiu as entregas à Segurança Social. Nos hiatos temporais de outubro/novembro de 2013 e junho, julho e agosto de 2014, a arguida pôs termo, cumprindo com os seus deveres tributários, à sua resolução anterior de omissão de cumprimento desses deveres com base numa mesma e anterior solicitação exterior. Todavia, a continuidade criminosa não exige a repetição, sem intervalos, do crime, podendo o agente cumprir com alguns dos tributos durante um período prolongado da sua conduta omissiva [12]. O que se provou foi que no restante período a sociedade deduziu do valor das remunerações pagas aos seus trabalhadores, os montantes relativos às cotizações devidas à Segurança Social (ponto 4.), mas sem entregar à segurança social os montantes retidos (ponto 5), fazendo-as suas, dando-lhe o destino que considerou mais adequado aos seus interesses patrimoniais (pontos 16 e 17). Ora, a verificação dos pressupostos da relação de continuidade, nos termos do disposto no artigo 30º, nº2, do Código Penal, entre as diferentes condutas omissivas no período total considerado, não opera ope legis. A conexão temporal deve ser integrada com o conceito de uma mesma situação exterior. É necessário provar factualidade suscetível de integrar os requisitos exigíveis para afirmar a continuação criminosa. v. g, dificuldades económicas graves e prolongadas que põem em causa a continuação da atividade empresarial. Ora, no caso vertente, não se deu como provado ou não provado qualquer circunstancialismos nesse sentido, mas apenas sucessão temporal das condutas ilícitas, o que não é suficiente para julgar verificados os pressupostos supra enunciados e, assim, concluir pela continuidade criminosa da conduta da arguida. Não basta uma reiteração criminosa (execução essencialmente homogénea) que patenteie uma unicidade de comportamentos e de lesão do mesmo bem jurídico para que ocorra um crime continuado. É necessário que exista uma circunstância relevante e exógena ao agente que diminua essencialmente a sua culpa. Tal não se verificará se ocorrer uma grande separação temporal entre os diversos crimes ou se apenas forem factores endógenos do agente, e como tal apenas consigo relacionados, que conduziram à repetição criminosa. Não se pode confundir a reiteração criminosa que resulta de uma situação externa subsistente ou renovada, sem que o agente para tal tenha contribuído, e aquela que resulta de uma situação criada pelo próprio agente. Se foi o agente que procurou, provocou ou organizou as condições para a renovação da sua actividade criminosa, sem qualquer circunstancialismo exterior que facilite essa reincidência, já não haverá qualquer diminuição acentuada da sua culpa e, por isso mesmo, crime continuado. Descendo à situação dos autos, o que não encontramos na matéria de facto provada é uma situação exterior que, depois da arguida ter feito a operação material de desconto dos montantes nas remunerações, lhe tivesse facilitado a execução dos crimes, isto é, a sua omissão de entrega ao Estado e menos ainda que lhe diminua e consideravelmente a culpa (art.30º, nº2 do C.Penal). Escreve Teresa Beleza, in Direito Penal, II, 613, que o traço essencial da continuação ou repetição criminosa “deriva não tanto de a pessoa ser especialmente persistente ou ter especiais tendências criminosas, mas do facto de que, de alguma forma, a prática do primeiro acto favoreceu a decisão sucessiva em relação à continuação, porque há um certo circunstancialismo externo que facilitou essa sucessiva reiteração de uma acção idêntica. Esse circunstancialismo externo, na medida em que facilita o sucessivo "cair em tentação", se quiserem, do agente dos crimes, significa que na medida em que há essa facilitação, a pessoa é menos censurável por ter ido sucessivamente sucumbindo à tentação”. No caso dos autos não se vê nos factos dados como provados qualquer situação externa à arguida que lhe tenha proporcionado a repetição das ações. Não o será por certo a mera circunstância de reiteradamente se ver bem-sucedida, quando para tal só ela criou as condições favoráveis à obtenção desse resultado numa dinâmica funcional empresarial de carácter endógeno, associada ao regime de autoliquidação, que lhe facilitou a repetição do facto criminoso. De qualquer modo, tal como a impunidade sentida ao longo da sua atuação, não vemos como o sucessivo êxito da mesma possa sugerir sem mais uma considerável menor exigibilidade e censurabilidade. Discorda-se, por isso, da sentença recorrida ao ver como situação exógena, aliás, única, facilitadora das sucessivas omissões, a “intervenção tardia que o Estado costuma ter na cobrança de contribuições e tributos que lhe são devidas”. De resto, ainda que a sentença nela se fundamente, aquando da atividade subsuntiva da forma do crime, certo é que não resulta dos factos dados como provados que tenha sido essa ou qualquer outra a situação exterior a influenciar a atitude omissiva da arguida, suporte factual que haveria de constar da narrativa provada para efeitos criação de uma linha psicológica desenvolvida continuadamente a partir daqueles factos exógenos que tentaram o agente e facilitaram a execução criminosa (unidade do dolo). A construção da figura do crime continuado assenta essencialmente no menor grau de culpa do agente fundamentado no momento exógeno das condutas, na disposição exterior para o facto, conclusão que há-de alicerçar-se e só na factualidade dada como provada. Ora, o que fica claro dos factos provados é, sem mais, a manifestação externa e volitiva concludente de reiterada apropriação das contribuições/cotizações mensais retidas pela arguida, sem outro motivo que não seja a evasão ao tributo devido à segurança social. Só a menor consciência social fiscal de que nos fala a doutrina poderá ver diminuída a culpa do agente, a mais de forma considerável (art.30º, nº2, do Código Penal), a partir de uma pretensamente facilitadora e, por isso, desculpabilizante, inatividade ou atividade tardia dos serviços de fiscalização tributária, onde por certo se acrescentará a morosidade repressiva e preventiva dos tribunais na área dos crimes fiscais, aqui incluída a sentença dos autos proferida em 30-06-2022 e, portanto, tantos anos decorridos após o inicio do processo. Tal desculpabilização é tanto mais inaceitável quando o regime legal confia e onera precisamente o agente com a responsabilidade declarativa e de liquidação do tributo/cotizações, atribuindo ao retentor na fonte um papel decisivo no procedimento tributário e, por isso, uma responsabilidade especial penal no incumprimento de entrega ao Estado dos montantes por si retidos. A falta de controlo por parte da administração tributária sobre a atividade deste seu colaborador (o retentor), quando esta lhe confiou uma obrigação fiscal própria e autónoma, por determinação legal, de entregar ao Estado os montantes retidos, não pode ser vista como especialmente facilitadora do seu incumprimento, até porque o propósito de o onerar com a retenção na fonte era o de facilitar e acelerar a arrecadação das receitas públicas. A ação do Estado de controlo dos mecanismos de retenção na fonte não deve ser aprioristicamente diferente daquela necessária em resultado da obrigação imposta aos cidadãos e empresas em tantos outros domínios do setor económico-financeiro ou mesmo na vida normal em sociedade. A demora no controlo ou fiscalização da atividade do retentor não pode ser encarada, ao contrário do que sucede com as obrigações dos demais, como desculpabilizante na hora de agir conforme o ordenamento jurídico lhe impõe, não sendo, por isso, menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, qual prémio apto a favorecer o crime e a evasão ao imposto, tudo em resultado do relaxamento da consciência social sobre o desvalor do ilícito em matéria de obrigações fiscais. Tanto assim que, no caso concreto, tal circunstância não foi aproveitada pela arguida para a perpretação de facto semelhante, isto é, ao pagar as cotizações sociais de outubro e novembro de 2013 e junho, julho e agosto de 2014. Como escreve Armando da Rocha Azevedo [13], enquanto não houver uma sólida consciência social nesta matéria, podemos continuar a considerar a hipótese de o agente ter agido com culpa sensivelmente diminuída, apesar do valor altíssimo do bem jurídico protegido pelos crimes tributários, designadamente dos crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança em relação à segurança social”. Na verdade, para efeitos de crime continuado, a diminuição considerável da culpa assenta em solicitações de uma situação exterior, que tendencialmente conduzem à violação repetida do mesmo tipo legal, ou à violação plúrima de vários tipos protetores do mesmo bem jurídico. Não basta a repetição de um mesmo estado de coisas. A situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente não pode bastar-se com a mera repetição dos crimes. A falta de uma verificação rigorosa daquele requisito pode conduzir ao mecanismo premial da perseveratio in crimine quando esta deve ser tratada, atento o indício de perigosidade e de incapacidade de adaptação à ordem legal, como fator de agravamento e não abrandamento da pena [14]. É necessário que dele resulte uma exigibilidade sensivelmente diminuída [15] ou uma pressão externa anormal sobre o agente que, preparando ou facilitando a execução do facto, o arrasta para o crime, diminuindo a sua liberdade de determinação e, por essa via, a exigibilidade de comportamento diferente ([16]). No caso, o que sucede é que a arguida, com algumas intermitências, deixou repetidamente de entregar à segurança social os montantes descontados nas remunerações, dos quais se apropriou, dando-se o destino que entendeu mais adequado aos seus interesses patrimoniais (pontos 16 e 17). Nenhuma circunstância externa vem especificamente demonstrada como facilitadora das omissões que se sucederam, o que não resulta sem mais do facto cristalizado da arguida ter sido declarada insolvente por sentença de 1 de julho de 2015 (ponto 18), o que pressupondo uma situação deficitária nada nos diz sobre a interligação objetiva e subjetiva dos respetivos pressupostos de facto com as omissões de pagamento das cotizações objeto dos presentes autos. Não consta dos factos dados como provados que qualquer uma das omissões de entrega das contribuições/cotizações ocorreram sequer na mesma situação de constrangimento financeiro da sociedade arguida que terá levado inclusive à sua declaração de insolvência, como aludido supra, afastando-se também esse quadro de diminuição considerável da culpa da arguida. A verificação do crime continuado dependia de asserções de matéria de facto levadas ao rol de factos provados para valoração de Direito por consubstanciarem a motivação da arguida das plúrimas violações da norma legal - RP 26/11/2014 (Castela Rio) e STJ 13.11.2008 (Arménio Sottomayor), in www.dgsi.pt. Mas, se o Ministério Público, aquando da acusação, não indicou, como devia, esse quadro exterior e a consequente diminuição de culpa, cuja existência se mostrava essencial para qualificar, como fez, parte dos factos como um crime continuado, fê-lo a defesa da arguida na sua contestação, havendo omissão de pronúncia e consequente nulidade da sentença nessa parte. De outro modo, afigura-se-nos não estarmos perante uma pluralidade de crimes sob a forma continuada, mas sob a forma de concurso efetivo, o que levaria à verificação do prazo máximo da prescrição do procedimento criminal [17], hipótese, aliás, única, em que a alteração de facto [18] beneficiaria a arguida. Sobre os requisitos da sentença, o art.374º nº 2 do Código de Processo Penal, determina que ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Como se afirma no ac RE 12.03.2019 (Laura Maurício) www.dgsi.pt, “o tribunal deve pronunciar-se sobre os factos alegados na contestação com interesse para a decisão, não lhe sendo lícito, mesmo quando resultaram provados os factos contrários da acusação, omitir pronuncia sobre os factos da contestação, seja com que argumento for. Com efeito, os factos alegados na contestação devem ser levados em conta na enumeração dos factos provados ou não provados, pois que, naturalmente, foram entendidos pelo apresentante como factos relevantes para a sua defesa e para a decisão da causa, pelo que tal omissão conduz à nulidade da sentença”. O legislador cominou com a nulidade a ausência de pronúncia e exame critico das provas sobre os factos relevantes para determinar a responsabilidade criminal do agente e os termos desta; nulidade que é do conhecimento oficioso (artigo 379º, nº 1 al. a), e nº2 e art.410º, nº3, do CPP). Ora, nos art.s 24º a 29º da contestação da sociedade arguida encontramos factos por si narrados que, embora possam não excluir a sua culpa, como vemos defendido na sentença recorrida, são suscetíveis de caracterizar um quadro exterior bastante para a diminuir, por impelir o agente para a prática de nova infração, e assim configurar um ou mais crimes na forma continuada (art.30º, nº2, do Código Penal). Sucede que a sentença não deu expressamente como provados ou não provados esses factos, o que determina a sua nulidade por omissão de pronúncia. Devem assim os autos baixar à primeira instância para suprir essa precisa omissão, acompanhada, na sua motivação, do correspondente exame critico das provas atinentes. *** 3. DECISÃO Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento parcial ao recurso interposto pela sociedade arguida e em consequência: a) julgar verificada a nulidade da sentença, com fundamento na apontada omissão de pronúncia, e assim determinar a baixa do processo à primeira instância para proferir nova sentença que, suprida aquela insuficiência e nulidade, conclua em conformidade, sem prejuízo do dever de retirar do conhecimento e supressão daquelas as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão da causa. Sem tributação. Notifique. (Elaborado e revisto pelo relator – art. 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente). Porto, 14.12.2022 João Pedro Pereira Cardoso Raúl Cordeiro Carla Oliveira __________ [1] Diploma a que se referem os normativos legais adiante citados sem indicação da respetiva origem. [2] Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no art. 410.º, n.º 2, do CPP – Ac. do Plenário da Secção Criminal n.º 7/95, de 19-10-95, Proc. n.º 46580, publicado no DR, I Série-A, n.º 298, de 28-12-95, que fixou jurisprudência então obrigatória (É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito) e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos arts. 379.º, n.º 2, e 410.º, n.º 3, do CPP – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior. O STJ apenas pode sindicar a existência de eventuais nulidades, insanáveis, ou por omissão ou excesso de pronúncia, ou de produção de prova, ou meios de obtenção de prova, proibidos por lei (art. 410.º, do CPP) – cfr. STJ 2016-11-23 (PIRES DA GRAÇA) in www.dgsi.pt [3] http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080409.html [4] Manuel Monteiro Guedes Valente – A dignidade da pessoa humana na persecução criminal: os princípios democrático e da lealdade processual, Prof. Doutor Augusto Silva Dias in Memoriam, vol.II, 2022, AAFDL, pg.421. [5] No crime continuado, não há que falar em unidade de resolução, mas sim em pluralidade de resoluções criminosas. [6] Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal - Da Unidade à Pluralidade de Infracções, 2ª R., Coimbra, 1996, p. 252-253; Susana Aires de Sousa, Os crimes fiscais, Coimbra, 2006, p. 143; Armando da Rocha Azevedo, O Crime de Abuso de Confiança Fiscal e o Crime Continuado, Porto, 2011, p.19;, Maria João Mimoso, O Crime Continuado no âmbito do Crime de Fraude Fiscal – Parecer Jurídico, cit., p. 8; Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal – Parte Geral e Especial com Notas e Comentários, Coimbra, 2014, p. 227, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal, anot. art.30º, p.161. [7] A proximidade temporal dos factos, pese embora seja um indicador dos elementos que integram a continuação, só por si não constitui prova cabal de que se trata de uma única resolução criminal indiciadora de tal continuação – cfr. RE 29-10-2013 e RE 18.02.2020 (Maria Isabel Duarte) www.dgsi.pt: [8] Fraudes Tributárias e o Crime Tributário Continuado, Coimbra, 2010, p. 101. [9] Lídia Gaspar, “Os pressupostos do crime continuado no direito penal fiscal: uma reflexão sobre o artigo 30.º do código penal e o RGIT”, pg.46, in https://www.isg.pt/wp-content/uploads/2021/03/52_3_lidia_crime-continuado_f52.pdf [10] Ob. cit. pg.138. [11] Não atribuindo sequer relevância autónoma a esta conexão temporal e espacial, destacando, todavia, a exigência de uma unidade de contexto situacional entre as violações plurimas, sem prejuízo de se dever reconhecer que uma proximidade de espaço e de tempo pode ser indicio forte da unidade de contexto situacional – veja-se Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, 2007, Coimbra Editora, pg.1030. Também Maria da Conceição Ferreira da Cunha, “Questões actuais em torno de uma «vexata quaestio»: o crime continuado”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Vol. II, Coimbra, 2009, p. 323, defendendo que “vários fatores deverão ser considerados, no assumindo cada um deles isoladamente relevância decisiva, mas sendo tomados no seu conjunto e no âmbito das concretas circunstâncias do comportamento em causa, pois é esse conjunto, esse “comportamento global”, que tem significado segundo um juízo de ilicitude material. Assim, os bens jurídicos afectados, a unidade ou pluralidade de resoluções, a distância ou proximidade espácio-temporal entre as acções, as conexões de sentido entre elas (por exemplo, a relação meio-fim), o modo como tais bens jurídicos, condutas e relações encontram tradução nos tipos legais de crime, a unidade ou pluralidade de vítimas, serão elementos a relevar”. [12] Luís Milagres e Sousa, ob. cit. pg.101. [13] Crime de Abuso de Confiança Fiscal e o Crime Continuado, pg. 20. [14] Damásio de Jesus, in Direito Penal, I, pg.596, apud Germano Marques da Silva, in Direito Penal Tributário, UCE, 2018, pg.53 [15] Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, 2007, Coimbra Editora, pg.1033. [16] No dizer de Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal …, 1996, pg.251, “não basta qualquer solicitação, mas é necessário que ela seja tal que facilite de maneira apreciável a reiteração criminosa” E o mesmo autor logo acrescenta que não é suficiente que se verifique uma situação exterior normal ou geral que facilite a prática do crime, exigindo-se para os efeitos aqui considerados uma circunstância ou relação que facilite especialmente a reiteração do crime. No mesmo sentido José Lobo Moutinho, in Da unidade à pluralidade dos crimes no Direito Penal Português, 2005 – Universidade Católica, pg. 1217, refere que só uma circunstância excessiva explica a continuação criminosa. [17] Iniciando-se em 20.10.2013 a contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal, em relação as contribuições/cotizações de setembro de 2013, o prazo máximo de prescrição previsto no art.121º, nº3, do Código Penal, teria decorrido até à notificação da acusação à arguida no dia 25 de janeiro de 2022 (cfr. fls. 380). Concretamente teria decorrido o prazo máximo que seria de 7 anos e 6 meses, mesmo ressalvada a suspensão dos 90 dias correspondente à condição de procedibilidade, bem assim a suspensão desde o dia 9 de Março de 2020 até ao dia 3 de Junho de 2020 (87 dias) e desde o dia 22 de Janeiro de 2021 até ao dia 5 de Abril de 2021 (74 dias), por força do regime excecional previsto nos artigos 7.º. n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e 6.º-B, n.º 3 da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro. Até à verificação da causa suspensiva da notificação da acusação (cfr. fls. 380), nos termos do artigo 120.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal) teria decorrido o prazo máximo da prescrição do procedimento criminal de sete anos e seis meses, mesmo ressalvados aqueles 251 dias (90+ 87 +74) de suspensão da prescrição, todos a coberto do art. 120º, nº1, al.a), do Código Penal, prazo esse que ainda assim terminaria em 27.12.2021. [18] Tratar-se-ia de uma alteração de facto e não da qualificação jurídica, já que a visão atomística dos factos, fundada numa alteração/fracionamento da unidade do dolo que preside ao crime continuado (dolo continuado, entendido este, nas palavras de Figueiredo Dias, in Direito Penal .., pg.1031, como o plano do agente de que repetiria a realização típica caso a ocasião se proporcionasse), daria agora lugar ao dolo individualizado do facto e, assim, a uma pluralidade de crimes diversos (novos). |