Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
136/19.4T9VCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOS PRAZERES SILVA
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
SEGURANÇA SOCIAL
PRESSUPOSTOS
GERENTES E ADMINISTRADORES DA SOCIEDADE
GERENTES DE FACTO
RESPONSABILIDADE
INTERPRETAÇÃO DA LEI
TEXTO LEGAL
CONSTITUCIONALIDADE
ARGUIDO
NOTIFICAÇÃO PARA PAGAMENTO DO IMPOSTO
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
REQUISITOS
Nº do Documento: RP20221130136/19.4T9VCD.P1
Data do Acordão: 11/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Não é inconstitucional, por violação do artigo 29.º da CRP, a interpretação de que o preenchimento do tipo incriminador referente ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social não exige a demonstração da qualidade do agente, pessoa singular, como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva ou sociedade, de acordo com critérios estritamente formais e jurídicos, mas antes se basta com a comprovação de o agente voluntariamente atuar como tal, atenta a norma do artigo 6.º do RGIT.
II – Com efeito, o que interessa, sendo aliás decisivo, para definir se tal interpretação normativa afronta ou não o aludido princípio constitucional, é averiguar se, olhando unicamente ao conteúdo do tipo incriminador, a aceção proposta pode incluir-se no texto legal, isto é, se a expressão usada pelo legislador comporta esse significado.
III – Dentro dos limites assim definidos, considera-se, em consonância com o sentido da decisão do tribunal constitucional, que o artigo 6.º do RGIT, ao referir-se a quem agir voluntariamente como titular de um órgão de uma pessoa coletiva ou sociedade, abrange no seu conteúdo a atuação de quem se apresente e atue como tal, isto é, como titular de um órgão da pessoa coletiva ou sociedade, apesar de não ter uma efetiva ligação funcional formal com a mesma.
IV – O respeito pelo princípio da tipicidade exige e basta-se com a demonstração de uma atuação voluntária como ou enquanto titular do órgão, por isso, o preenchimento do tipo incriminador não depende da existência dessa ligação formal, sendo igualmente típica a conduta de quem, sem o devido vínculo jurídico, efetivamente exerce as funções inerentes ao cargo de administrador da pessoa coletiva ou gerente da sociedade, de acordo com a norma do referido artigo 6.º do RGIT e sob pena de se retirar eficácia à mesma norma.
V – O artigo 105º, n.º 4, alínea b), do RGIT, estabelece uma condição objectiva de punibilidade, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão n.º 6/2008, na medida em que alude a uma circunstância em relação directa com o facto ilícito, mas que não pertence, nem ao tipo de ilícito, nem à culpa, constituindo um pressuposto material da punibilidade.
VI – Assim sendo, para a conduta ilícita típica poder ser punida exige-se que a aludida notificação se mostre cumprida e o arguido não proceda, dentro do prazo legal, ao pagamento das quantias devidas, no caso, a título de cotização à Segurança Social e legais acréscimos.
VII – Cientes de jurisprudência de sentido inverso, relativamente ao conteúdo da notificação considera-se que a indicação do montante a pagar pelo arguido à Segurança Social constitui informação relevante que deve constar da mesma, tendo em conta a finalidade que lhe subjaz de alertar o infrator para a derradeira oportunidade de proceder ao pagamento e evitar a sujeição a julgamento, pois, a menção imediata do quantitativo que tem de entregar permite ao arguido que logo pondere se tem condições financeiras para pagar no prazo legal ou se pretende desenvolver esforços para obtenção de meios de pagamento, a fim de atempadamente decidir se irá proceder à liquidação do respetivo quantitativo.
VIII – Todavia, a incorreção do quantitativo mencionado na notificação não equivale à ausência de tal ato e a sua influência na validade ou regularidade do mesmo deve ser avaliada casuisticamente em face das circunstâncias concretas, nomeadamente da dimensão do erro.
IX – Assim sendo, se o erro cometido consistiu na indicação de um montante superior ao devido, que veio a resultar de acerto posterior, sendo a diferença em causa no valor de sessenta e dois euros e setenta e nove cêntimos, tal diferença de valor não se mostra objetivamente significativa atentos os montantes em causa, sempre superiores a seis mil e quinhentos euros, não existindo motivos para admitir que essa divergência possa influenciar a decisão do arguido quanto ao pagamento das cotizações devidas à Segurança Social, pelo que deverá considera-se que uma tal indicação incorreta da quantia a pagar pelo arguido não acarreta a invalidade da notificação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 136/19.4T9VCD.P1

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I. RELATÓRIO:
Nos presentes autos de processo comum, com intervenção do tribunal singular, por sentença de 05-05-2022, além do mais, foi decidido:
- Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 6.º n.º 1, 7.º n.º 3, 105.º, n.º 1, e 107.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, e artigos 30.º, n.º 2, e 79.º do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros);
- Condenar o arguido BB, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 6.º n.º 1, 7.º n.º 3, 105.º, n.º 1, e 107.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, e artigos 30.º, n.º 2, e 79.º do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros);
- Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo “Instituto de Segurança Social, I.P.” e, consequentemente, condenar os demandados CC e BB a pagar ao demandante civil a quantia de €6.750,29 (seis mil setecentos e cinquenta euros e vinte e nove cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, e condenar o demandado AA a pagar ao demandante a quantia de €3.651,09 (três mil seiscentos e cinquenta e um euros e nove cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos – sendo que, nesta parte, responde solidariamente com os outros demandados – improcedendo o referido pedido cível quanto ao demais.
*
Inconformados com a sentença condenatória, os arguidos AA e BB interpuseram recursos, terminando as respetivas motivações nos termos a seguir indicados.
RECURSO ARGUIDO AA
CONCLUSÕES
I) O aqui Arguido nunca foi gerente de Direito da sociedade arguida e, portanto, foi acusado e condenado como gerente de facto da dita sociedade, sendo que, nesse quid, a Acusação sustentava que, “Pese embora da certidão da Conservatória do Registo Comercial resulta que a gerência de direito da sociedade referida em 1.º esteve a cargo de DD e da arguida CC, os arguidos AA e BB eram as pessoas que juntamente com a arguida exerciam a gerência de facto...”
II) Em suma, o Tribunal rejeitou a segregação de funções na sociedade devedora originária A..., fundamentando que “os três arguidos iam sendo vistos na A... e que os arguidos AA e BB iam participando em reuniões em que eram tratados assuntos relevantes para a sociedade, surgindo reforçada a convicção do Tribunal de que estas eram, de facto, as três figuras que exerciam funções relevantes, próprias da gerência da sociedade, não havendo a segmentação de funções que os arguidos quiseram fazer crer.” – cfr. Sentença.
III) Tratando-se o crime em causa de um crime omissivo puro, em que o domínio do facto e a responsabilidade penal inerente são de assacar a quem tiver o dever legal de agir, não se pode o Arguido conformar com a decisão que o condenou e, menos ainda, que se pudesse ter dado como provado que ele fosse “gerente de facto” da Sociedade e que assim pudesse ter o domínio do facto criminoso e ter decidido que a Sociedade não pagasse as cotizações em falta à Segurança Social.
IV) Na Contestação o Arguido invocou a INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 6º DO RGIT QUANTO AOS ADMINISTRADORES DE FACTO E NÃO DE DIREITO, o que aqui reitera porquanto não se conforma com o diferente juízo emitido pelo Tribunal a quo.
V) Não se desconhece que o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 128/2010. (in D.R. n.º 110, Série II de 2010-06-08), não julgou inconstitucional a norma do artigo 6.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, na medida em que inclui no seu âmbito incriminatório a figura do administrador de facto de uma sociedade; todavia, do respectivo Colectivo de Juízes, o juiz José Borges Soeiro votou favoravelmente, o juiz Gil Galvão votou vencido quanto ao conhecimento do recurso, a juiz Maria João Antunes votou vencida nos termos da declaração de voto anexa, o juiz Carlos Pamplona de Oliveira votou vencido nos termos da declaração anexa e o juiz Rui Manuel Moura Ramos votou favoravelmente.
VI) Ou seja, o Mais Alto Tribunal foi extremamente controverso quanto à inconstitucionalidade em causa, o que o número e a fundamentação dos votos de vencido demonstram, um dos quais da ilustre penalista Prof. Doutora Maria João Antunes, cujo voto de vencido se transcreveu na Alegação 12) que se dá por reproduzida, simultaneamente como elogio e adesão da nossa posição, voto acompanhado pelo voto de vencido do juiz Carlos Pamplona de Oliveira.
VII) A ordem jurídica tem outros mecanismos para activar a cobrança de tributos dos administradores de facto, designadamente a reversão prevista no art. 24º da LGT, por isso o bem jurídico em causa não carece de intervenção do Direito Penal nesta matéria, acompanhando-se o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães no seu aresto de 27/04/2006 (Proc. N.º 582/06-2) sobre o abuso de confiança fiscal, quando prolata que “o direito penal não tem a função instrumental de ser o ‘braço longo’ de outros” ramos do Direito, designadamente do direito tributário 7, e tal exigência é tão mais grave quando em causa está, não um crime por acção, como a Fraude Fiscal, em que alguém atuou em nome da Sociedade, mas num crime omissivo puro como o Abuso de Confiança Fiscal e à Segurança Social.
VIII) Neste quid, ensina o “pai” do RGIT, o Prof. Germano Marques da Silva in “Responsabilidade Penal dos Administradores e Representantes das Sociedades”, que, “Por isso que impendendo sobre a sociedade o dever de agir é à sua administração que cabe cumprir aquele dever, sendo o respectivo titular do órgão responsável a título de dolo ou de negligência consoantes a omissão seja dolosa ou negligente 127.” - Pág. 378. “No que respeita ao dolo, é necessário que o omitente conheça a situação típica e omita a acção imposta, com vontade de realização do tipo objectivo ou conformando-se com essa realização 134. O omitente deve ainda conhecer os pressupostos materiais que fundamentam a posição de garante e, como nos crimes de acção, prever o resultado, quando se trate de crimes de resultado, e representar a acção exigida ou imposta 135.8” - Pág. 380.
IX) O que há a ter em conta e é muito relevante no âmbito do crime omissivo puro que é o Abuso de Confiança Fiscal e à Segurança Social é que não pode ser de forma generalista e leviana que se conclui pela responsabilidade por omissão por parte de quem nem sequer é administrador/gerente da empresa, responsabilidade dos administradores expressamente contemplada na alínea b) do n.º 2 do artigo 11.º do Código Penal, embora na perspectiva imediata da responsabilização das pessoas colectivas.
X) Termos em que, deverá ser declarado inconstitucional o conjunto normativo dos art. 6.º nº 1, art. 7.º nº 3, art. 105.º n.ºs 1 e 5 e art. 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, e arts. 30.º n.º 2 e 79.º do Código Penal, quando interpretados no sentido de a expressão “como titular de um órgão de uma sociedade” abranger o administrador de facto, por violação do artigo 29.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, porquanto ele não tem o dever legal de agir.
XI) Passando à (FALTA DE) NOTIFICAÇÃO COMO CONDIÇÃO DE PUNIBILIDADE, propositadamente ou não, o art. 8º da Acusação não refere a exacta quantia relativamente à qual os Arguidos foram notificados para pagar, quantia que não corresponde à descrita na Acusação, já que, desse referido mapa e da respectiva “NOTIFICAÇÃO PARA PAGAMENTO VOLUNTÁRIO” juntos aos autos consta que o “pagamento passível de determinar o eventual arquivamento do processo de inquérito atualmente em curso” é o “pagamento, no prazo de 30 dias, do valor de €6.813,08 (seis mil, oitocentos e treze euros e oito cêntimos), relativo quotizações retidas e não entregues, acrescidos dos respetivos juros de mora que se vencem até integral pagamento e do valor da(s) coima”s) aplicável(eis)...” – cfr. autos. Portanto, os arguidos foram notificados a pagar um valor superior - €6.813,08 - ao valor pelo qual foram acusados - 6.750,29€!
XII) Não poderá nunca colher que se diga, como o fez a Sentença a quo, que “até de acordo com as regras da experiência comum, que não foi certamente este motivo que impossibilitou o arguido de efectuar o pagamento total da quantia, de forma a ter conseguido evitar a dedução do despacho de acusação” porquanto, com o devido respeito, o Tribunal não se pode deitar a adivinhar a conduta que o Arguido poderia ter tido ou não tido com base nas regras da experiência; o Tribunal tem que julgar a irregularidade de uma notificação e a responsabilidade criminal de alguém com base em factos e não com base em crenças ou fé!
XIII) Por outro lado, que legalidade tem uma notificação que exorta ao pagamento para que o arguido obtenha um “eventual arquivamento”? Que segurança jurídica tem um arguido com uma tal notificação? Que eventualmente poderá pagar e o processo mesmo assim não ser arquivado; ou que podê-lo-á ser! Nunca se sabe!
XIV) Assim, dúvidas não subsistem de que a notificação constante dos autos padece da incorrecção de interpelar os Arguidos ao pagamento de cotizações no valor de €6.813,08, sob pena de instauração de procedimento criminal tributário, quando tal cominação deveria referir-se apenas à quantia de 6.750,29€, já que a esta que o MP atribuiu relevância criminal.
XV) E com a agravante de, nunca tendo sido gerente, nem de facto nem de Direito da empresa, o Arguido não ter meios de aceder à contabilidade da empresa para saber quais os exatos valores em dívida.
XVI) Sobre esta matéria da perfeição desta notificação já se pronunciou, inter alias, o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/03/2009, Rec. Penal nº 7944/08 - 4ª Sec. 9, cujos extractos relevantes se transcreveram nas Alegações 33) a 38), salienta-se as asserções “Mister é que a mesma seja efectuada e o seja em termos inteligíveis, de forma a ser apercebido seu real alcance e significado, pelo notificando. (...) sem olvidar a indicação das prestações em dívida, que constituem objecto - corpo de delito -do processo (pois que o notificando pode estar em dívida para com outras quantias que não estão incluídas no processo concreto onde foi ordenada a notificação e não está obrigado a pagá-las, no âmbito e para os efeitos de tal notificação” (...) na incerteza do valor concreto das prestações em dívida - que vêm variando ao longo do percurso do processo, desde a acusação, passando pelo despacho de pronúncia até à sentença. Como pode o devedor saber, em determinado momento, quais as quantias que estão em dívida se no próprio processo as mesmas não estão definidas, definitivamente e de forma clara e inequívoca e têm vindo a ser sucessivamente alteradas, consoante as diversas fases por que o processo passou?”
XVII) “Daqui cremos resultar que no caso concreto se não pode ter como verificada a "especial" notificação, a que se alude no texto legal.”, desiderato que se aplica à notificação aqui em apreço, desiderato que se aplica ao “eventual arquivamento” constante da notificação, que é inconcebível constar de uma notificação que obrigatoriamente tem que revestir a certeza, segurança jurídica que uma condição de punibilidade exige.
XVIII) O critério orientador do julgador no sentido da relevância a conceder, quer a disparidade dos valores da notificação, quer à falta de perentoriedade do arquivamento como consequência segura do pagamento, só pode ser o critério da razoabilidade do impacto de tal disparidade na determinação da vontade do agente, única interpretação compatível com o que resulta justamente da doutrina do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 6/2008 que fixou que aquilo que o legislador pretendeu foi “conceder uma última possibilidade de o agente evitar a punição da sua conduta omissiva”.
XIX) Se o legislador considerou intolerável que o arguido venha a ser condenado por falta de pagamento de prestações tributárias que não teve a oportunidade de regularizar e sem a certeza de tal regularização ter como consequência certa o arquivamento do processo, não se poderá deixar de entender que essa oportunidade não deve ser meramente formal mas real, efectiva e leal – pois só essa será compatível com um processo justo e equitativo (art.º 32.º, n.º 1 da CRP).
XX) Não estando positivamente demonstrada a condição objectiva de punibilidade prevista no art.º 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT, deverá o Arguido ser absolvido; mas ainda que assim não se entendesse, sempre a irregularidade da notificação afecta o valor do acto praticado, e implica a sua repetição de acordo com o texto, a ratio e as finalidades ínsitas na alínea b) do nº. 4 do artigo 105º do RGIT, sendo que – perdoe-se-nos o pleonasmo - na esteira do mesmo aresto da Relação do Porto, a “cabal notificação que decorre da alínea b) do nº. 4 do artigo 105 do RGIT, importa o conhecimento do cálculo e a indicação concreta das importâncias que o notificando deve pagar - seja, o valor da coima, bem como a liquidação dos juros vencidos, sem olvidar a indicação das prestações em dívida, que constituem objecto - corpo de delito - do processo (pois que o notificando pode estar em dívida para com outras quantias que não estão incluídas no processo concreto onde foi ordenada a notificação e não está obrigado a pagá-las, no âmbito e para os efeitos de tal notificação).”
XXI) Passando à ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO, nenhuma prova em concreto foi feita relativamente ao arguido AA quanto ao seguinte parágrafo que a Sentença a quo deu como provado em 4.: que “decidia(m) e procedia(m) ao pagamento de salários, impostos e contribuições/quotizações e dirigia(m) as relações comerciais no que concerne a pagamentos a clientes, fornecedores e instituições bancárias”.
XXII) Corretamente a Sentença a quo considerou como Facto Não Provado o da alínea A), todavia, foi incorrectamente julgado, uma vez que foi dado como não provado, os descritos nas alíneas B) e C).
XXIII) Corretamente provou-se, relativamente à arguida CC, que: “18. Completou o ensino secundário e tirou um curso de contabilidade”; mas mais do que isso, a Arguida esclareceu que o curso que tirou em África do Sul é equivalente a licenciatura em Contabilidade!
XXIV) Ao invés, quanto ao Arguido AA, corretamente provou-se que “22. Tem o 8º ano de escolaridade” e acresce que os Factos Provados 28. e 29. permitem perceber quem é useiro e vezeiro em praticar o tipo de crime em causa nestes autos: a Arguida CC!
XXV) O Tribunal a quo rejeitou a segregação de funções na sociedade devedora originária A..., fundamentando que “os três arguidos iam sendo vistos na A... e que os arguidos AA e BB iam participando em reuniões em que eram tratados assuntos relevantes para a sociedade, surgindo reforçada a convicção do Tribunal de que estas eram, de facto, as três figuras que exerciam funções relevantes, próprias da gerência da sociedade, não havendo a segmentação de funções que os arguidos quiseram fazer crer.” – cfr. Sentença.
XXVI) A prova que se exigia, mormente num crime omissivo puro e relativamente a um não gerente de Direito, não se poderia bastar com generalidades como aquelas que foram dadas como provadas, que nem factos são porquanto carecem de respaldo fáctico, em que a Acusação e consequentemente a Sentença recorreram ao uso de formas gerais, imprecisas, sem individualização dos factos, com utilização de fórmulas “vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras.
XXVII) O que consta da Acusação e da Sentença não são propriamente factos pelos quais o Arguido vem acusado, até porque, conforme tem sido lição da nossa Jurisprudência para os casos de violência doméstica, a norma que prevê e pune o crime de violência doméstica não pode ter-se como dispensando, sem mais, a concretização dos factos, pelo que não se pode ter como acusação, no sentido adoptado, a imputação de factos genéricos, vagos, que não permita ao acusado localizar, no tempo e espaço, as acções que lhe são atribuídas.
XXVIII) E se uma tal exigência se coloca na violência doméstica, igualmente se deverá colocar num crime omissivo puro relativamente a quem nem gerente nomeado era, como era o caso do arguido AA!
XXIX) Nesse sentido, ensina o sumário do Ac. TRCoimbra de 17-01-2018 (Processo 204/10.8GASRE.C1): “VIII - Não se pode ter como acusação, no sentido adoptado, a imputação de factos genéricos, vagos, que não permita ao acusado localizar, no tempo e espaço, as acções que lhe são atribuídas.”; na mesma senda segue inter alias o Ac.TRPorto de 15-06-2016 (Processo 1170/14.6TAVFR.P1): “II - Se, em qualquer imputação penal, a alegação factual não pode ser facilitada pelo uso de formas gerais, imprecisas, sem individualização dos factos, com utilização de fórmulas “vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras”, no crime de violência doméstica a exigência é ainda maior, dada a amplitude do tipo penal.”
XXX) Ao contrário do que a Sentença a quo sustenta, a prova testemunhal não corroborou a tese de que as funções na A... não estariam segmentadas e, sob a égide do in dubio pro reo, nem aos arguidos competia fazer uma tal (contra)prova, mas sim à Acusação, principalmente contra alguém que nem gerente nomeado era, prova que a Acusação não fez!
XXXI) A prova testemunhal permitiu perceber quem geria o trabalho em obra/direção técnica e quem geria a parte administrativa e financeira da A..., designadamente o pagamento dos tributos ao Estado: a arguida CC!
XXXII) Veja-se o depoimento da testemunha EE, que nem sequer foi arrolada pelo aqui Arguido (antes pelo contrário, foi arrolada para o desabonar) mas sim pelo arguido BB, e que é o legal representante da maior fornecedora de material elétrico da A..., a empresa B...: Data da gravação 16-11-2021 10:44:08, passagens 03:07, 03:21, 03:26, 03:33, 03:35, 03:37, 03:42, 04:00, 04:10, 04:36, 06:45 (“Não sabe em concreto quais eram as funções da D.ª CC dentro da empresa A...?”), 06:50 (“Naquele momento, as funções que me foram indicadas, é que era a pessoa que ia negociar comigo os pagamentos”, 07:00 (“O senhor, quando pedia os pagamentos, pedia a quem?”), 07:02 (“À D.ª CC.”, 07:08, 08:23 (“Pelo menos dois ou três anos, enquanto estivemos a fornecer”), passagens deste depoimento transcritas na Alegação 75) que se dá por reproduzida.
XXXIII) Segue-se a testemunha FF: Data da gravação 16-11-2021 10:54:42, passagens 15:09, 16:30, 18:30, 31:35, 31:45, 32:00, 32:11, 39:11, passagens transcritas na Alegação 76) que se dá por reproduzida.
XXXIV) A testemunha Dr.ª GG, Gestora Bancária da empresa A..., igualmente revelou nunca ter conhecido o arguido AA: Data da gravação 30-11-2021 16:03:47, passagens 01:50, 10:20, 11:03, 12:39.
XXXV) A testemunha HH, funcionária administrativa da A... mas que já tinha saído da empresa na data de vencimento das cotizações em causa, levava um discurso preparado por alguém para tentar responsabilizar o arguido AA; todavia, as contradições do seu depoimento tornaram-no rico para demonstrar a falta de prova contra o aqui Arguido e a responsabilidade da arguida CC enquanto responsável da área administrativa e financeira da empresa: Data da gravação 26-10-2021 16:19:29, passagens 04:49, 05:05, 05:28 – Antes da minha saída, sim (frequência a tempo inteiro), 06:30 (“Eu preparava as folhas ao fim do mês para os vencimentos e ia para a empresa de contabilidade”, 08:25, 08:30 (“Foi ela (CC) que me fez as contas”, 21:04 (“Quando a D.ª CC entrou, foi a D.ª CC que começou a levar os documentos para a contabilidade”, 27:38, 32:56, 32:59, passagens transcritas na Alegação 78) que se dá por reproduzida.
XXXVI) A testemunha II, que também não foi arrolada pelo aqui Arguido: Data da gravação 30-11-2021 16:18:11, passagens 06:35, 07:35, 10:27, 12:43, 13:30, passagens transcritas na Alegação 79) que se dá por reproduzida.
XXXVII) A testemunha arquiteto JJ: Data da gravação 24-03-2022 16:10:00, passagens 00:55, 03:34, 04:08, 05:08; 05:52, 06:52, 08:09, 10:19 (“Isso para mim é claro - em resposta a questão sobre se havia uma separação da parte técnica em relação à parte administrativa e financeira -), 12:37, 13:14, 21:09, 23:20, 24:00, 31:46, 36:25, passagens transcritas na Alegação 80) que se dá por reproduzida.
XXXVIII) Segue-se a testemunha KK: Data da gravação 30-11-2021 15:39:33, passagens 00:46, 03:54 “(Creio que seria administradora da empresa” - em resposta a questão sobre quais seriam as funções da D.ª CC na A...), 04:03 (“Porque era a pessoa que estava no escritório, responsável pelo escritório, responsável pelos pagamentos, essas coisas todas”), 04:21, 04:31 (“Efectuava os pagamentos, ou pronto, por aquilo que presenciava, ela é que efectuava os pagamentos a todos os funcionários e essas coisas todas, e a fornecedores”), 04:55, 05:22, 05:35, 06:01 (“Creio que seria a D.ª CC” - em resposta a questão sobre quem tratava da contabilidade), 06:06 (“Porque era a pessoa que, em obra, qualquer uma situação de contabilidade era transmitida para ela”), 10:33, 10:42, 11:13 (“2013” - em resposta a questão sobre em que ano a CC fazia os pagamentos), 11:24 (“Tinha conhecimento pelas pessoas dizerem que era ela que assinava os cheques”), 11:32, 12:13 (“Tínhamos fornecedores em conjunto e alguns disseram que estavam à espera que a D.ª CC assinasse os cheques”, 13:52, 14:00 (“Todas as situações, quer com horas, quer com tudo, era tudo dirigido à D.ª CC”), 14:19 (Presenciou algumas chamadas tanto para pagamentos, para situações de ordem de escritório directamente para a D. ª CC); 15:15, passagens transcritas na Alegação 81) que se dá por reproduzida
XXXIX) Veja-se ainda o depoimento da testemunha LL (cunhado da arguida CC e por ela arrolado): Data da gravação 30-11-2021 15:10:41, passagem 23:30 (“Sim, foi ela” - em resposta a questão sobre se foi a D.ª CC quem pagou uma factura referente a serviços prestados pela testemunha).
XL) Segue-se a testemunha MM: Data da gravação 26-10-2021 15:34:31, passagens 06:30 “Quem geria a contabilidade, chegou a ter uma empregada de escritório onde se entregava as faltas, que era a HH. E depois também a D. ª CC chegou a estar a fazer esse serviço”, 12:39 (“Em 2013 estava lá. No escritório. “ - CC), 13:00, 16:05 “O Sr. AA, e o filho algumas coisas” -em resposta a questão sobre quem tratava a parte técnica), 16:55, 22:29, 22:56, 32:17, 32:45, 34:03, 40:43, 42:05, 43:42, passagens transcritas na Alegação 83) que se dá por reproduzida.
XLI) Centrando-nos agora na prova documental junta aos autos, na Contestação, o aqui Arguido requereu os seguintes MEIOS DE PROVA: “PROVA DOCUMENTAL NA POSSE DE TERCEIROS: A) Não sendo gerente de Facto da sociedade arguida mas sendo evidente não ser gerente de Direito da mesma, o Arguido não tem acesso a quaisquer elementos contabilísticos tributários, bancários, etc, e nem tão-pouco à listagem dos trabalhadores da empresa. Assim, deverá: I) Ser notificado o Banco de Portugal para vir identificar todas as contas bancárias que
foram/são tituladas pela sociedade arguida “A..., LD.a ”, NIPC ...; II) Uma vez identificadas as contas, deverão as respectivas entidades bancárias remeter aos autos a ficha de abertura de contas, identificação das pessoas com poderes para as movimentar, extractos bancários dessas contas dos anos de 2013 e 2014, cópias dos cheques emitidos e sacados sobre essas contas, cópias de talões de levantamentos bancários feitos ao balcão, operações bancárias aprovadas e cópia dos documentos contratuais respectivos, identificação dos funcionários bancários intervenientes em todos estes actos e operações para efeitos de eventual inquirição como testemunhas nestes autos.”
XLII) Escalpelizando a prova documental junta aos autos com interesse para a questão da gestão financeira/de pagamentos que é imputada ao aqui Arguido, no Volume IV), a Fls. 729-748, constam fichas de assinaturas (das quais não consta o aqui Arguido, nem como movimentador ou procurador) e extratos bancários. A fls. 744 consta que, em 02-07-2014, a arguida CC levantou €4.100 da conta da empresa através de “ordem de levantamento”.
XLIII) Fls. 749-810 constam extratos do Banco 1.... Fls. 822-843 consta documentação do Banco 2..., da qual extractos e ficha de assinaturas (das quais não consta o aqui Arguido, nem como movimentador ou procurador), concretamente constando DD a fls. 839-841. Fls. 848 DD Pede à Banco 2... “Solicito a reposição das condições normais da conta ..., uma vez que já recuperei os documentos que forma roubados”, o que faz em 2012.
XLIV) No Volume V), de fls. 893 a 923 consta documentação do Banco 3...; A fls. 904 consta a prova de que foi levantado em numerário o valor de €14.302,50 pelo DD; a fls. 905 consta contrato de mútuo bancário assinado pelo DD. A fls. 914-916 uma livrança avalizada pelo DD ao Banco 4... em 2012-09-24. A fls. 917 e uma ordem de encerramento de conta caucionada no Banco 4... assinada pelo DD. A Fls. 918 um cheque da A... assinado pelo DD à ordem da C....
XLV) A Fls. 920-922 dois cheques da A... assinados pelo DD à ordem da B.... A fls. 973 a 991 consta documentação do Banco 5.../Banco 3..., que demonstra o depósito de dezenas de cheques e de numerário pelo DD (acto que não tinha que ser praticado pelo gerente de Direito da empesa) e pela arguida CC, esta a fls. 980 na data de 2013-03-01. Fls. 1003 mais cheques emitidos pela A... pelo DD. Fls. 1025 um cheque do Banco 3... emitido pela A... através da assinatura do DD ao banco 4.1.... Fls. 1070 a 1073 constam cheques do Banco 3... de 2013 da A... emitidos pelo DD.
XLVI) E o arguido AA é que era o gerente de facto quanto ao que aqui importa, que não é a direção técnica das obras mas sim os pagamentos?? Procurando a definição dos conceitos jurídico-tributários de gerência de facto, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 29-09-2016 (processo 00274/10.9BEVIS, in www.dgsi.pt) considera que a gestão de pagamentos através da emissão de cheques demonstra a gerência de facto; no mesmo sentido o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 19-02-2015 (processo n.º 05484/12, in www.dgsi.pt), destacando-se “E recorde-se que a assinatura de cheques necessários ao giro comercial da sociedade faz prova do exercício de facto de poderes de gerência da mesma (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª Secção, 4/5/2004, proc.1179/03; ac.T.C.A.Sul-2ª Secção, 7/3/2006, proc.933/05).” – arestos transcritos nas Alegações 103º e 104º que se dão por reproduzidas.
XLVII) O Ministério Público é livre de acusar/não acusar quem entender, mas o que não se concebe é que, não tenho sido feito prova de qualquer intervenção activa do aqui Arguido na actividade financeira da A..., o mesmo seja condenado porque uns trabalhadores afirmaram que ia passando pelo escritório!
XLVIII) Isto posto, é obviamente insuficiente o que consta do facto provado 4. e nos demais quando se referem ao aqui arguido, e que, alegadamente, nessa qualidade, o arguido era responsável pela dedução percentual de 11% sobre os valores das remunerações pagas aos seus trabalhadores e de 23,75% sobre as remunerações pagas aos gerentes, assim como pelo preenchimento e entrega das respetivas declarações de remuneração mensal nos serviços da Segurança Social.
XLIX) Sucede que o Arguido nem sequer foi gerente de direito da sociedade que supostamente deveria ter efetuado os pagamentos à Segurança Social, muito menos gerente de facto, e, como tal, no período a que se referem os pagamentos em causa, não lhe podem ser imputadas responsabilidades, por atos sobre os quais diretamente não tinha intervenção.
L) Considera também que não foram realizadas todas as diligências tendentes ao apuramento dos factos; doutra forma, facilmente se apurariam as efetivas competências da gerência e os visados na mesma, o que não se verifica no inquérito e/ou prova produzida.
LI) O arguido não cometeu o crime que lhe foi imputado visto que, data em que terminou o prazo para a entrega da prestação tributária, ele não detinha o domínio do facto quanto ao exercício das obrigações fiscais e parafiscais da sociedade arguida e que, consequentemente, sobre ele ainda incidisse qualquer obrigação tributária relativa à sociedade arguida já que não era sócio nem gerente.
LII) Na verdade, o que se passou foi que o Arguido descobriu que estava ser alvo de infidelidade entre a sua então mulher/arguida CC e o arguido BB.
LIII) Os depoimentos colhidos nos autos, para além de serem pessoas da amizade da arguida CC, que lidava com os trabalhadores da empresa, não distinguem o casal AA e CC quando, na realidade, o não eram, face ao afastamento emocional e infidelidade desta para com o aqui Arguido.
LIV) Eram a arguida CC e o arguido BB quem, conjugadamente com o gerente DD, geriam o dinheiro da empresa e os pagamentos, designadamente tributários, devendo tal facto não provado ser dado como provado.
LV) Deverá ser dado como provado que o contributo do Arguido AA na empresa foi somente o de ajudar a empresa do filho e da então mulher em termos de obra, mesmo face à grave doença infecciosa de que padecia e cujos comprovativos juntou, quer logo com a Contestação sob o Doc. n.º 1 e, a fls. 1036-1039, através do nosso Requerimento com o documento médico que atesta que foi tratado no hospital para a Hepatite B de 23-08-2011 a 27-06-2016.
LVI) Então seria este Arguido AA, que tem o 8º ano de escolaridade, que é electricista, que estava cronicamente doente mas que ainda conseguia ajudar em termos técnicos em obra, que iria ao escritório da empresa decidir a quem pagar e a quem não pagar? Neste caso, decidir não pagar à Segurança Social? Com a sua (à data) mulher, licenciada em Contabilidade (em África do Sul), em permanência no escritório da empresa a gerir pagamentos? Já sem a trabalhadora HH, que saiu antes do vencimento das cotizações sub judice? Obviamente que não!
LVII) Aliás, o novel casal CC e o arguido BB foi ainda responsável pelas fraudes fiscais por “facturas falsas” que o aqui Arguido veio a saber serem sido perpetradas por eles e que constituem o objecto do processo criminal cuja certidão se juntou a fls. 1305 e ss, em que foram inspecionados pela AT os exercícios de 2012, 2013 e 214 e no qual o aqui Arguido nem envolvido foi por ser evidente nada ter a ver com a prática esses factos, imputados ao referido casal e ao DD.
LVIII) Quanto ao DD, narra o Despacho de encerramento do inquérito, que antecedeu a Acusação, que não foi acusado pela inércia do inquérito, nada mais, transcrito na Alegação 124º que se dá por reproduzida.
LIX) Por que razão não curou a investigação e a Sentença em dar relevo a quem passava cheques na sociedade arguida? Quem levantava dinheiro? Quem nos Bancos constava das fichas de movimentação das contas bancárias? Saber se, nas datas de pagamento dos tributos em causa, existia ou não dinheiro nas contas bancárias da sociedade que permitiria pagá-los mas quem tinha poder para as movimentar decidiu não pagar? Sim.
LX) Então gerência de facto quanto a um crime omissivo como este não é saber que poderia ter pago os tributos em causa e o não fez? Sim.
LXI) Gerente de facto é quem auxilia nas obras, sem carácter regular, em termos de fiscalização/gestão de obra? Não.
LXII) Mais: não sendo o aqui Arguido AA um gerente de Direito (nem de facto, claro), da Acusação não se consegue discernir quais os valores respeitantes às retenções efectuadas aos próprios gerentes DD e CC, quando a Acusação sustenta que “os arguidos eram, responsáveis pela dedução percentual de 11% sobre os valores das remunerações pagas aos seus trabalhadores e de 23,75% sobre as remunerações pagas aos gerentes, assim como pelo preenchimento e entrega das respectivas declarações de remuneração mensal nos serviços da Segurança Social.”;
LXIII) ou seja, eles é que eram gerentes nomeados, não o aqui Arguido, eles é que tinham remuneração, não o aqui Arguido, eles é que se auto-pagavam, não o aqui Arguido, eles é que tinham poderes para movimentar as contas bancárias e pagar os tributos ao Estado, não o aqui Arguido, e este é que é acusado e condenado?
LXIV) E acusado por tributos referentes às remunerações que aqueles gerentes auferiam e que construíram a sua carreira contributiva? Não há aqui anda que choque?
LXV) Não há dúvidas de que o aqui Arguido não tinha o “domínio da organização” e “competência interna efectiva” para proceder aos pagamentos em causa - no sentido da imputação penal do facto a pessoa com autoridade para controlar o sector de actividade em que tal facto se verificou, ainda que tenha havido delegações de funções, Teresa Quintela de Brito, Direito Penal Económico e Financeiro, Coimbra Editora, pág. 204 e 205.
LXVI) A ordem jurídica tem outros mecanismos para activar a cobrança de tributos dos administradores de facto, designadamente a reversão prevista no art. 24º da LGT, por isso o bem jurídico em causa não carece de intervenção do Direito Penal nesta matéria, acompanhando-se o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães no seu aresto de 27/04/2006 (Proc. N.º 582/06-2) sobre o abuso de confiança fiscal, quando prolata que “o direito penal não tem a função instrumental de ser o ‘braço longo’ de outros” ramos do Direito, designadamente do direito tributário.
LXVII) Aliás, provou-se que o aqui Arguido e o filho DD deixaram de estar ligados à empresa em inícios de 2014, quando o primeiro descobriu a infidelidade da mulher CC com o arguido BB, e a empresa fechou? Não, os arguidos CC e BB deram continuidade à empresa! Que sabiam gerir, já geriam e continuaram em gerir!
LXVIII) Assim, deverá ser alterada a resposta à matéria de facto dada como provada, mormente ao Facto Provado 4) e aos demais no que concerne a abranger o arguido AA, atendendo a que não se provou o invocado no Facto Provado 4. quanto a abranger o arguido AA no que concerne a “cabendo-lhes os poderes de administração e gestão da mesma, no uso dos quais dirigiam os respectivos negócios, davam ordens e instruções aos trabalhadores, decidiam e procediam ao pagamento de salários, impostos e contribuições/quotizações e dirigiam as relações comerciais no que concerne a pagamentos a clientes, fornecedores e instituições bancárias”, o que é ainda mais flagrante não ter sido feita qualquer prova quanto às asserções: - decidia e procedia ao pagamento de salários, impostos e contribuições/quotizações; - dirigia as relações comerciais no que concerne a pagamentos a clientes, fornecedores e instituições bancárias” porquanto nada disso resultou da prova produzida; muito pelo contrário!
LXIX) Parafraseando o “pai” do RGIT, o prof. Germano Marques da Silva in “Responsabilidade Penal dos Administradores e Representantes das Sociedades”, Pág. 380:
- “No que respeita ao dolo, é necessário que o omitente conheça a situação típica e omita a acção imposta, com vontade de realização do tipo objectivo ou conformando-se com essa realização”;
- “O omitente deve ainda conhecer os pressupostos materiais que fundamentam a posição de garante”;
- como nos crimes de acção, prever o resultado, quando se trate de crimes de resultado, e representar a acção exigida ou imposta”
– nada disso foi provado quanto ao aqui Arguido-
LXX) O arguido não tem antecedentes criminais, conforme decorre do CRC junto aos autos, e é pessoa respeitada e respeitadora, mas já uma carreira criminal exatamente por este tipo de crime tem a arguida CC, conforme CRC junto aos autos e resulta dos factos provados.
LXXI) Termos em que, o Arguido deveria ter sido absolvido in totum e não apenas relativamente ao hiato temporal em que o foi, devendo a Sentença em crise ser revogada no que à sua condenação concerne.
LXXII) Pelos mesmos motivos, o aqui Arguido deveria ter sido absolvido in totum do PIC deduzido pelo “ISS, IP”; aliás, quanto ao PIC, verifica-se que o mesmo nem deduzido foi contra o aqui Arguido, o que invocou em sede de Contestação.
Nestes termos e nos mais de Direito, que Vªs Exas. doutamente suprirão, deverá a Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva o Arguido in totum e não apenas relativamente ao hiato temporal em que o foi;
pelos mesmos motivos, deverá o Arguido ser absolvido in totum do PIC deduzido pelo “ISS, IP”, o qual nem deduzido foi contra o aqui Arguido;
fazendo-se a acostumada
JUSTIÇA!
RECURSO ARGUIDO BB
CONCLUSÕES:
I. Foi o Arguido BB, condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 6º nº 1, 7º nº 3, 105º nº 1 e 107º do Regime Geral das Infrações Tributarias, e artigos 30º nº 2 e 79º do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), convertível, em caso de incumprimento, em 66 (sessenta e seis) dias de prisão subsidiaria.
II. Condena ainda o arguido ao pagamento a pagar ao demandante civil a quantia de €6.750,29 (seis mil setecentos e cinquenta euros e vinte e nove cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos.
III. O Arguido também foi condenado no pagamento das custas do processo criminal, fixando a taxa de justiça em 3,5 UC.
IV. Com tal decisão não se conforma o Arguido, pois, com a mesma não se faz, com o devido respeito, a Justiça necessária e exigida pelo Estado de Direito em face dos elementos constantes dos autos, pelo que, se recorre, merecendo o presente recurso inteiro provimento, como se irá tentar demonstrar.
V. A douta sentença do Tribunal a quo não acolheu a versão do Arguido, visto que entendeu que a mesma não possuía credibilidade.
VI. O arguido sempre manteve a sua versão dos factos,
VII. Tentou “dar um empurrão” ao filho, para este “singrar na vida”.
VIII. Um ano após a entrada do filho para a sociedade arguida, este decide abandonar a sociedade arguida, transmitindo as suas ações para esta.
IX. O arguido apenas tentou ajudar o filho, se quisesse de facto ser sócio desta sociedade, certamente que as ações passariam para um familiar e nunca para a própria sociedade, detida em 50% pelo filho do outro arguido.
X. Posteriormente à saída do seu filho da sociedade, o arguido tentou receber algum do dinheiro investido do seu filho.
XI. Daí que será natural que, quando encerrou a sua empresa, surgindo a oportunidade, foi trabalhar para a empresa arguida.
XII. Não querendo isto dizer que, por querer manter-se de perto num investimento que fez, que o mesmo seria o “patrão” ou até mesmo um dos responsáveis pelos pagamentos a realizar à Segurança Social!
XIII. Nunca realizou qualquer ato de gerência na sociedade arguida!
XIV. A empresa que possuía, a D..., não deixou um único cêntimo em dívida(!).
XV. Portanto quando convidado para trabalhar na empresa arguida, quando confrontado com a hipótese de obter algum retorno do que despendera ao seu filho, nem que fosse para pressionar os restantes arguidos a pagar, não hesitou.
XVI. Mais se dirá que, o arguido não tem, nem nunca teve necessidade de ocultação de património, nunca deixou dívidas por onde passou, nem tem/teve penhoras de bens seus.
XVII. Não se compreende a retórica do douto tribunal a quo, quando aceita depoimentos que dizem que o filho apenas figurou como sócio, porque não podia ter bens em seu nome.
XVIII. O arguido, aqui recorrente, nunca teve necessidade de ocultação de património, uma vez que não é, nem nunca foi “profissional em deixar dívidas ou em insolvências”.
XIX. Aliás, só com a existência do presente processo é que o arguido teve total noção no que se meteu... concretamente, no que diz respeito à E... e às empresas anteriores e subsequentes a essa.
XX. Quer os trabalhadores, quer as testemunhas indicam o arguido AA como sendo o patrão da empresa, a pessoa a quem pediam trabalho, que os conhecia e convidou para integrarem a sua nova empresa.
XXI. Tais factos retiram-se do alegado pelas testemunhas da acusação MM e NN,
XXII. Afirmando que sobre pagamentos, faltas e férias, em momento algum recorriam ao arguido, aqui recorrente, como a pessoa a quem solicitavam tais direções,
XXIII. A testemunha MM, afirma perentoriamente que era ao Sr. AA que recorriam.
XXIV. Por seu turno, a testemunha NN, quando questionado sobre quando necessitava de resolver algum problema na obra ou “desenrascar” uma situação a quem ligava, “...ao Sr. AA...”.
XXV. As declarações da testemunha HH, comprovam o que sempre fora alegado que o arguido BB apenas quis lançar o filho.
XXVI. A testemunha HH recebia ordens do Sr. AA, bem como, via este como patrão.
XXVII. Esta testemunha também afirma que o arguido aqui recorrente só se manteve por perto enquanto o filho trabalhou na sociedade arguida, deixando de aparecer tanto após a saída deste, dado que tinha a sua empresa no ativo.
XXVIII. Só pelo testemunho desta testemunha o arguido, aqui recorrente, já deveria ter sido absolvido na decisão do tribunal a quo.
XXIX. Nos testemunhos dos fornecedores/prestadores de serviços OO, EE e PP, os pagamentos, negociações e questões essenciais dos contratos com a empresa arguida nunca foram dirigidas pelo arguido aqui recorrente.
XXX. A testemunha FF, afirmou que o arguido lhe deu uma solução técnica para um problema que possuía
XXXI. LL, testemunha, disse que os donos da E... eram o arguido AA, o senhor QQ e a arguida D. CC, tendo também dito que o arguido BB não tinha nada a ver com esta empresa,
XXXII. Esta testemunha também afirmou que o objetivo da A... foi dar continuidade ao trabalho prestado na E....
XXXIII. Confirmando, que nunca viu o Sr. BB dar instruções ou a fazer pagamentos e quando questionado sobre esse facto.
XXXIV. A testemunha LL mais negou que o arguido aqui recorrente tinha o controlo da empresa.
XXXV. Quanto às testemunhas Sra. Inspetora RR e Dra. GG, nada nos compete dizer, dado que em momento algum do seu depoimento referem o nome do arguido BB.
XXXVI. Ressalva-se sobretudo a testemunha da acusação, a Sra. Inspetora RR, que, em momento algum, mencionou o nome do arguido BB.
XXXVII. O discurso das testemunhas é convergente com o já alegado, que o arguido BB, nunca foi “patrão”, isto é, nunca foi gerente de facto ou de direito da empresa arguida.
XXXVIII. Efetivamente houve, da parte do tribunal a quo, um ignorar de tudo o quanto foi dito na audiência de julgamento, passando a vigorar a convicção quase que assente desde sede de inquérito(!).
XXXIX. Sob pena de nos repetirmos, pensamos que fica demonstrado que, o arguido aqui recorrente, nunca, em momento algum dirigiu os destinos da sociedade arguida, nem mesmo quando trabalhou para esta.
XL. Tanto mais que se reitera que não há 1 único documento assinado pelo arguido, muito menos que este tem necessidades de ocultação de património!
XLI. Daí que se deva concluir que, uma vez que não tem necessidade de ocultação de património, o arguido pura e simplesmente não foi gerente da empresa arguida!
Mais se dirá que,
XLII. A arguida CC afirmou que o arguido AA era quem detinha a empresa arguida, que “Ele é que mandava, o filho só deu o nome, pelo menos era o que ouvia e ele contava...”, explicando seguidamente que lhe foi pedido que desse o nome para a gerência da sociedade, altura em que o arguido AA abandonou a sociedade.
XLIII. A arguida confirma que “Nós tínhamos a empresa F... que tinha falido e então ele não queria o nome dele... costumava dizer que “queria ter o nome limpo”,
XLIV. E posteriormente à empresa arguida o arguido AA foi trabalhar para a G... e depois abriu a H... onde “o Sr. AA tomou conta da gerência e só fez dívidas para o Sr. SS...”.
XLV. A arguida também disse que “...a partir daí tentei levar aquilo para a frente, tinha cerca de 4 meses de ordenados em atraso...”, explicando que “falou com os trabalhadores” para saber onde tinha obras e para tentar arrecadar dinheiro dos clientes para pagar salários.
XLVI. A arguida CC confirmou que o Sr. BB não tinha responsabilidade em termos de pagamentos de impostos.
XLVII. A arguida CC também afirmou que o Sr. TT era o sócio e empregado da sociedade arguida.
XLVIII. A empresa do arguido BB, a D... prestou trabalhos de subempreitada para a empresa do arguido AA a E...,
XLIX. Não possuindo ambas as empresas contabilidade na mesma empresa de contabilidade.
L. A arguida CC afirmou que, face às dívidas que o arguido AA deixou na empresa arguida, o dinheiro recebido de algumas empreitadas viu o seu destino atribuído pela própria arguida, sobretudo para pagar salários, negligenciando as suas obrigações tributárias.
LI. Manteve o Sr. BB por perto, face à necessidade que teve em termos de ter conhecimentos técnicos e logísticos de onde se localizavam as obras em curso.
LII. Terminando por afirmar que o Sr. BB era um dos encarregados de uma obra em Aveiro
Do Pedido de Indemnização Civil
LIII. O Arguido foi condenado ao pagamento de uma indemnização na quantia total de €6.750,29 (seis mil setecentos e cinquenta euros e vinte e nove cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos.
LIV. O Arguido não se conforma com este valor, no qual foi condenado, uma vez que o mesmo nunca praticou qualquer ato de gestão, nem nunca foi gerente de facto ou de direito, o que leva, consequentemente a que, não tenha de pagar a quantia em causa.
Dos Rendimentos do Arguido
LV. O Tribunal a quo deu como provado que “O arguido BB é reformado e recebe cerca de €900,00 mensais; Vive em casa própria com a esposa, que tem uma loja de vestuário; Tem dois filhos maiores de idade, sendo que um deles não trabalha; É dono de um veículo de marca Mercedes, modelo ..., do ano de 2008; Tem a antiga 4a classe;.”
LVI. No entanto não atendeu que o Arguido terá outras despesas, nomeadamente as decorrentes do acidente do seu filho,
LVII. Bem como despesas como alimentação, vestuário, calçado, chamadas telefónicas, etc..
LVIII. Por último, reitera-se mais uma vez que nunca foi gerente de facto, nem de direito da sociedade,
LIX. Isto é, nunca, em momento algum, processou salários, dirigiu os interesses da sociedade arguida, realizou qualquer tipo de pagamentos ao Estado ou a fornecedores, nunca participou em nenhuma reunião de administração, nem nunca tomou nenhuma decisão relativamente à direção da empresa arguida,
LX. Daí que, pelo supra exposto, não se possa alcançar o decidido pelo tribunal a quo.
Nestes termos e sempre com mui douto suprimento do Venerando Tribunal, deverá ser revogada a sentença proferida em 1.ª Instância, e, consequentemente, deve ser declarada
a ABSOLVIÇÃO do Recorrente. Não procedendo, mas sem prescindir deve ser revogado o Acórdão recorrido,
Porém, V. Exas. decidindo farão inteira Justiça.
*
Na 1.ª instância o Ministério Público respondeu aos recursos, pugnando pela respetiva improcedência.
*
Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer também no sentido de que os recursos não devem merecer provimento.
*
Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código Processo Penal, não foi apresentada resposta.
*
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO:
A. SENTENÇA RECORRIDA
FACTOS PROVADOS:
1. A sociedade comercial denominada “A..., Lda.” era uma sociedade por quotas matriculada sob o número ..., na Conservatória do Registo Comercial de Vila do Conde, e tinha como objecto social “Actividades na área da construção civil e industrial, electricidade, sistemas de segurança, rede de voz e dados, infraestruturas de construção civil, telecomunicação e energia, instalações mecânicas, Sinalização, Formação, Energias Renováveis, automação industrial, Novas Tecnologias, sistemas hidráulicos, assistência técnica, desenvolvimento, montagem, projectos e fiscalização, representações, sistemas informáticos, comercialização, importações e exportações;
2. Esta sociedade estava inscrita e colectada como contribuinte da Segurança Social Portuguesa sob o n.º ..., e, entre Julho de 2013 e Junho de 2014, teve ao seu serviço trabalhadores por conta de outrem obrigatoriamente inscritos naquela entidade;
3. Os arguidos CC e AA são pais de DD e o arguido BB é pai de TT;
4. Pese embora da certidão da Conservatória do Registo Comercial resulte que a gerência de direito da sociedade referida em 1º esteve a cargo de DD e da arguida CC, os arguidos AA e BB eram as pessoas que, juntamente com a arguida CC, exerciam a gerência de facto desde a data da constituição da sociedade – cabendo-lhes os poderes de administração e gestão da mesma, no uso dos quais dirigiam os respectivos negócios, davam ordens e instruções aos trabalhadores, decidiam e procediam ao pagamento de salários, impostos e contribuições/quotizações e dirigiam as relações comerciais no que concerne a pagamentos a clientes, fornecedores e instituições bancárias – situação que se manteve, pelo menos, até ao final do ano de 2013, sendo que, em data não concretamente apurada de 2014, o arguido AA desligou-se da sociedade arguida, deixando de exercer as referidas funções, as quais continuaram a ser exercidas pelos arguidos CC e BB;
5. Nessa qualidade, os arguidos eram responsáveis pela dedução percentual de 11% sobre os valores das remunerações pagas aos seus trabalhadores e de 23,75% sobre as remunerações pagas aos gerentes, assim como pelo preenchimento e entrega das respectivas declarações de remuneração mensal nos serviços da Segurança Social;
6. No exercício da descrita actividade, a sociedade “A... Lda.”, através dos arguidos, seus gerentes, descontou nos salários pagos aos seus trabalhadores e aos sócios-gerentes, as cotizações legalmente devidas à Segurança Social;
7. Porém, apesar de terem procedido aos referidos descontos, nos períodos de Julho de 2013 a Junho de 2014 no valor global de €6.750,29 e terem entregue as respectivas declarações de remuneração – e no caso do arguido AA, nos períodos de Julho de 2013 a Dezembro de 2013, no valor global de €3.651,09 – os arguidos não entregaram essas quantias na Segurança Social no prazo legal, isto é, até ao 20.º dia do mês seguinte àquele a que respeitavam, conforme estavam obrigados, nem no período dos 90 dias ulteriores – conforme resulta do mapa de fls. 422, que se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais;
8. Os arguidos foram pessoalmente notificados, por si e na qualidade de representantes da sociedade arguida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105º nº 4 al. b) do R.G.I.T., na redacção da Lei nº53-A/2006, de 29 de Dezembro, para comprovar nos autos o pagamento da quantia de €6813,08, dos respectivos juros de mora e coima aplicável no prazo de 30 dias a contar da notificação – conforme resulta das notificações juntas a fls. 279, 280, 396, 416 dos autos, que se dão por reproduzidas, para todos os efeitos legais;
9. Os arguidos não procederam ao pagamento das quantias em dívida, permanecendo ainda hoje em dívida a quantia de €6.750,29 que os arguidos utilizaram em proveito da sociedade, afectando-a ao giro económico da sua actividade (sendo, no caso do arguido AA, a quantia de €3.651,09 que o mesmo utilizou em proveito da sociedade, afectando-a ao giro económico da sua actividade);
10. Ao actuar da forma descrita, agiram os arguidos em nome e no interesse da sociedade e no seu próprio interesse;
11. Os arguidos actuaram num circunstancialismo de oportunidades com que se foram confrontando no exercício da sua actividade de gerentes, designadamente o de não terem sido sujeitos, ao longo do período temporal acima mencionado, a fiscalização por parte da Segurança Social, e dos quais se foram sucessivamente e de forma idêntica, valendo e aproveitando;
12. Enquanto gerentes da sociedade, tinham plena consciência de que estavam obrigados a entregar ao competente organismo da Segurança Social as quantias retidas que descontaram nos salários dos trabalhadores e nas remunerações de gerentes nos prazos legais, e actuaram de forma deliberada, livre e consciente, com intenção de as utilizar como se fossem desta, não obstante saberem que as mesmas não lhes pertenciam e que actuavam contra a vontade e lesando os interesses da beneficiária de tais quantias;
13. Sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e tinham capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
14. DD renunciou à gerência de direito da sociedade arguida em 21 de Fevereiro de 2014;
15. A arguida CC está desempregada e inscrita no Centro de Emprego, recebendo €189,00 mensais;
16. Vive em casa de uma amiga;
17. Tem três filhos maiores de idade, sendo um deles ainda estudante, recebendo a arguida €130,00 mensais do Fundo de Garantia de Alimentos;
18. Completou o ensino secundário e tirou um curso de contabilidade;
19. O arguido AA encontra-se de baixa médica, não recebendo rendimentos fixos, mas realizando trabalhos ocasionais na área da electricidade;
20. Vive na casa que era do seu pai;
21. Tem três filhos maiores de idade que já não estão a seu cargo;
22. Tem o 8º ano de escolaridade;
23. O arguido BB é reformado e recebe cerca de €900,00 mensais;
24. Vive em casa própria com a esposa, que tem uma loja de vestuário;
25. Tem dois filhos maiores de idade, sendo que um deles não trabalha;
26. É dono de um veículo de marca Mercedes, modelo ..., do ano de 2008;
27. Tem a antiga 4ª classe;
28. Do certificado de registo criminal da arguida CC consta que, no âmbito do processo nº 638/10.8TAMTS, que correu termos no 2º Juízo Criminal de Matosinhos, a mesma foi condenada por sentença transitada em julgado em 27.04.2011, pela prática, em Junho de 2000, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de 190 dias de multa, à taxa diária de €7,00, extinta em 19.11.2012;
29. Do certificado de registo criminal da arguida CC consta ainda que, no âmbito do processo nº 339/12.2TAVLG, que correu termos no 2º Juízo Local Criminal de Valongo, J2, a mesma foi condenada por sentença transitada em julgado em 13.03.2015, pela prática, em 2012, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de 240 dias de multa, à taxa diária de €5,00, extinta em 22.12.2015;
30. Os arguidos AA e BB não têm antecedentes criminais registados.
FACTOS NÃO PROVADOS:
A. Foi sempre o arguido AA quem geriu sozinho a sociedade arguida, mesmo depois de a arguida CC ter passado a constar como gerente da mesma;
B. Eram a arguida CC e o arguido BB, conjugadamente com DD, que geriam o dinheiro da empresa e os pagamentos, designadamente tributários;
C. O contributo do arguido AA foi somente o de ajudar a empresa do filho e da então esposa em termos de obra.
MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A convicção do Tribunal, no tocante aos factos provados e não provados, fundou-se na análise crítica e conjunta da prova produzida e analisada em audiência de julgamento, a qual foi apreciada à luz das regras da experiência e da livre convicção do julgador, de harmonia com o disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Assim, a factualidade vertida em 1., em 4. (primeira parte) e em 14. foi dada como provada com base na análise do teor da certidão permanente referente à sociedade “A..., Lda.”.
A prova da matéria enunciada em 2. e em 3. também não suscitou qualquer perplexidade, uma vez que se extraiu das declarações dos arguidos, dos depoimentos das testemunhas MM e NN (tendo ambos sido trabalhadores da sociedade arguida, ainda que o primeiro não o tivesse sido durante todo o período temporal referido em 2.) e de diversos elementos de prova documental constantes dos autos, designadamente a fls. 162, 177, 193 a 197, 203 a 212, 223 a 233, 249 a 259, 322 a 327 e 405 a 410.
Os arguidos também reconheceram que tinham sido notificados para proceder ao pagamento da quantia em dívida, acrescida de juros e coima aplicável, no prazo de 30 dias, conforme consignado em 8. (estando as notificações juntas aos autos), tendo ainda decorrido das respectivas declarações que não tinham efectuado o pagamento de tal quantia.
De resto, o não pagamento das quantias em dívida também foi confirmado pela testemunha RR, técnica do I.S.S. que aludiu ao período temporal em questão e explicitou que não tinha havido ressarcimento da dívida. Todavia, explicite-se que, quanto ao valor em falta a título de cotizações retidas no período em causa, a testemunha disse que correspondia ao valor de €6.750,61 (o qual diverge, por uns cêntimos, do valor dado como provado), tendo-se, no entanto, atendido ao valor que consta do mapa de fls. 422, que foi junto aos autos pouco antes da dedução da acusação.
Posto isto, cumpre referir que, no essencial, os arguidos rebateram que tivessem exercido actos próprios da gerência de facto da sociedade arguida, ainda que a arguida CC tivesse reconhecido que o tinha feito a partir do momento em que tinha aceitado constar como gerente, em Abril de 2014 (e somente a partir daí).
Na verdade, esta arguida sustentou que, até essa altura, não tinha ligação à empresa, apenas se deslocando à mesma nos momentos em que ia levar/buscar o seu marido (dado que só tinham dois veículos e um deles ficava na disponibilidade do filho de ambos e o outro ficava na disponibilidade dela) ou nos momentos em que ia tomar café. Referiu igualmente que não dava ordens, sendo que nada percebia de electricidade.
Por seu turno, o arguido AA referiu que a iniciativa de criar a A... tinha sido do próprio e do arguido BB, para “dar um empurrão” aos respectivos filhos, no sentido de seguirem os passos dos pais. Em traços gerais, este arguido afiançou que apenas dava apoio técnico na parte das obras, efectuando a coordenação dos trabalhadores nas obras e contactos com clientes. Disse ainda que já estava com a sua saúde debilitada. Afirmou que a parte administrativa era tratada pela arguida CC, a qual era apoiada pelo arguido BB. Referiu ainda que, na sequência de um envolvimento entre a arguida CC e arguido BB, se tinha desligado daquela, bem como da sociedade arguida, tendo deixado de prestar apoio no âmbito desta sociedade por volta do ano de 2013.
Já o arguido BB negou que tivesse tido qualquer iniciativa de criação da sociedade arguida, afirmando que tal iniciativa tinha sido do arguido AA, o qual tinha convidado o seu filho TT, que até então trabalhava consigo e tinha pouca experiência. Apesar de ter referido que não sabia ao certo qual iria ser o ordenado, as funções de cada um…etc., e de ter reconhecido que sabia que um anterior negócio do arguido AA tinha corrido mal, disse ter aconselhado o seu filho a aceitar o convite deste último. Mencionou ainda que tinha “metido” muito dinheiro na sociedade, mas não assumir funções de gerência, sendo que as ordens eram dadas pelo arguido AA.
Ora, no que se reporta às declarações dos arguidos, há que referir que as mesmas não foram consideradas verosímeis e consistentes, tendo, ainda, vindo a ser contrariadas pela demais prova produzida.
Assim, e a título exemplificativo, cumpre explicitar que a própria arguida CC acabou por reconhecer que, anteriormente, tinha assumido funções de gerente, designadamente numa empresa ligada à área da electricidade, e ter tirado um curso de contabilidade. Ademais, a arguida também acabou por assumir que já em 2013, tinha emprestado dinheiro para a A..., não se olvidando igualmente que existem elementos bancários nos autos, mormente a fls. 980, que contrariam a sua versão.
Quanto às declarações do arguido AA, as mesmas também não mereceram credibilidade, desde logo na medida em que o mesmo tanto afiançou que a iniciativa de criar a empresa visava ajudar o seu filho e o jovem TT, como reconheceu que uma das razões pelas quais não tinha querido ser gerente (de direito) se prendia com o facto de ter tido uma empresa que tinha falido, tendo ficado “sensibilizado” com isso. Assim, é caso para perguntar: tendo passado por uma má experiência, que lhe tinha permitido ver como o mundo empresarial podia acarretar problemas e dificuldades, foi “atirar o seu filho para a boca do lobo”, sendo o mesmo pouco experiente? Também não é despiciendo referir que se tomou nota de diversas expressões curiosas proferidas por este arguido em julgamento, tais como “não tenho o meu nome atravessado em nenhuma ponta” e “a autonomia [para decidir pagar ou não] é do gerente, ele é que corre o risco”, frases que evidenciam bem a preocupação do arguido em salvaguardar-se.
E relativamente às declarações do arguido BB, diga-se que também não se considerou minimamente verosímil, por exemplo, que o mesmo fosse aconselhar o seu filho a aceitar o alegado convite do arguido AA, pessoa que já tinha sido mal sucedida noutra empresa, sem saber diversos aspectos relevantes para a tomada de decisão de se envolver, como gerente de direito, numa sociedade, tanto mais que BB admitiu a inexperiência do filho e o facto de o este até ter um trabalho junto de si.
Como dito, as declarações dos arguidos – além de não serem, em si, críveis e consistentes – também foram contrariadas pela demais prova, nomeadamente testemunhal.
Efectivamente, da conjugação dos depoimentos das testemunhas que foram trabalhadoras da sociedade arguida – que evidenciaram ter um conhecimento mais aprofundado sobre o funcionamento da A... e sobre as funções desempenhadas por cada um do que as testemunhas que foram tendo negócios pontuais com esta sociedade – pôde retirar-se inequivocamente que estas eram as três figuras relevantes na sociedade arguida, designadamente no plano da tomada de decisões.
Assim, a testemunha MM identificou os arguidos AA e BB como patrões, explicitando que tinha sido contratado pelos mesmos, mas não deixou de referir que a arguida CC já estava no escritório da empresa em 2013 e que a última reunião que tinha tido antes de sair tinha sido feita com a mesma e com o arguido BB. Esta testemunha disse ainda que, do que se apercebia, a arguida dava instruções à funcionária HH; que o arguido AA estava no escritório com regularidade, local onde também via o arguido BB, o qual também dava ordens. Finalmente há que frisar que este depoente referiu que o arguido AA tinha saído da empresa já no ano de 2014.
A testemunha HH, que deixou a sociedade arguida imediatamente antes de se iniciar o período mencionado em 2., referiu que o seu patrão e a pessoa que lhe dava ordens era o arguido AA, tendo sido este que a tinha contratado, estando igualmente presente nessa altura o arguido BB. Disse igualmente que a arguida CC já era presença assídua no escritório antes da sua saída, sendo que os três tinham um espaço próprio deles, diferente do espaço que a própria ocupava, Note-se que, em audiência, foram lidas as declarações desta testemunha em inquérito, resultando das mesmas que também via a arguida CC como dona da empresa, dando ordens, e que o arguido BB estava sempre presente quando era necessário tomar decisões importantes. Esclareceu ainda nessa altura que estes três arguidos estavam diariamente na empresa.
Quanto ao depoente NN, há que mencionar que o mesmo referiu que tinha sido contratado pelo arguido AA e pelo arguido BB, dizendo que estes dois arguidos lhe davam ordens e que tinha chegado a falar com ambos sobre atrasos em pagamentos. Também foram lidas as declarações prestadas por esta testemunha em inquérito, altura em que, embora tivesse dito que os atrasos nos pagamentos eram tratados por AA, DD e CC, não deixou de referir que era sempre o arguido BB que abria a porta do escritório de manhã e que este tratava mais se assuntos do escritório, assim como a arguida. Disse ainda que os gerentes eram estes três arguidos.
Pois bem, conjugando os depoimentos destas testemunhas – que responderam com aparente sinceridade às perguntas que lhes foram colocadas – com a prova documental junta aos autos e com as regras da experiência comum, entendeu-se que estava demonstrada a factualidade enunciada de 4. a 13. e que estava não provada a matéria consignada de A. a C.
Efectivamente, nenhum dos depoimentos das restantes testemunhas inquiridas (EE, PP, FF, LL, KK, GG, II e JJ) foi apto a abalar esta convicção, desde logo na medida em que nenhuma destas testemunhas demonstrou ter conhecimentos minimamente aprofundados sobre o modo de funcionamento da sociedade arguida. No entanto, não se deixa de referir que, concatenando estes depoimentos (excepto o de GG) pôde retirar-se que os três arguidos iam sendo vistos na A... e que os arguidos AA e BB iam participando em reuniões em que eram tratados assuntos relevantes para a sociedade, surgindo reforçada a convicção do Tribunal de que estas eram, de facto, as três figuras que exerciam funções relevantes, próprias da gerência da sociedade, não havendo a segmentação de funções que os arguidos quiseram fazer crer.
Para a prova dos factos referentes à situação sócio-económica dos arguidos, foram igualmente tidas em conta as declarações dos mesmos, sendo certo que, nesta parte, inexistem elementos dissonantes nos autos.
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B. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS:
Conforme jurisprudência assente, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso.
Nos presentes autos os recursos suscitam as questões seguintes:
1. Recurso do arguido AA
1.1- Inconstitucionalidade do conjunto normativo dos artigos 6.º, n.º 1, 7.º n.º 3, 105.º, n.ºs 1 e 5 e 107.º do RGIT, na interpretação de que abrange o administrador/gerente de facto, por violação do artigo 29.º, n.º 1, da CRP;
1.2- Irregularidade/falta de notificação prevista no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, por virtude de incorreção do valor devido à Segurança Social e quanto à consequência do pagamento;
1.3- Impugnação da matéria de facto (insuficiência de facto/uso de expressões genéricas/ erro de julgamento).
2. Recurso do arguido BB
2.1- Impugnação da matéria de facto provada/violação dos princípios in dúbio pro reo e da livre apreciação da prova.
1. Recurso do arguido AA
1.1- O recorrente insurge-se contra a sentença no segmento decisório que julgou não verificada a invocada inconstitucionalidade do conjunto normativo dos artigos 6.º, n.º 1; 7.º n.º 3; 105.º, n.ºs 1 e 5 e 107.º do RGIT, quando interpretado no sentido de abranger o gerente de facto como titular de um órgão de uma sociedade.
O tribunal a quo justificou o decidido nos termos seguintes:
Quanto à declaração de inconstitucionalidade do conjunto normativo dos artigos 6º nº 1, 7º nº 3, 105º n.ºs 1 e 5 e 107º do Regime Geral das Infracções Tributárias, bem como dos artigos 30º nº 2 e 79º do Código Penal, quando interpretados no sentido de a expressão “como titular de um órgão de uma sociedade” abranger o administrador de facto, por violação do artigo . n. 1 da Constituição da República Portuguesa, é nosso entendimento que não assiste razão ao arguido AA, sendo que, como o próprio admite na sua contestação, o Tribunal Constitucional já apreciou tal questão e, no referido Acórdão n.º 128/2010, constam, entre outras, as seguintes doutas considerações, que passamos a transcrever, visto que aqui se subscrevem integralmente.
“Assim, o que interessa apurar é se a expressão Quem agir voluntariamente como titular de um órgão engloba, ou não, os casos dos administradores de facto.
De modo a consagrar a punibilidade de tais administradores, a única obrigação que impende sobre o legislador é a de formular um preceito-tipo que contenha na sua previsão a actividade característica da administração de facto, não se encontrando o mesmo vinculado às construções dogmáticas de outros ramos do direito.
Semanticamente, a expressão Quem agir voluntariamente como titular de um órgão apenas impõe a actuação (voluntária) em determinadas vestes (i.e. como titular de um órgão). Não exige nem a detenção de título suficiente nem a validade de tal título. Como realça GERMANO MARQUES DA SILVA, “agir voluntariamente como órgão não é o mesmo que ser titular do órgão, mas exercer um poder correspondente ao do órgão e por essa via lesar o bem jurídico.” (cfr. ob. cit., p. 319 sublinhado adicionado).
Deste modo, a conduta típica apresenta-se apta a integrar, no seu elemento semântico, não só a conduta de quem age nas vestes de titular de um órgão como quem se apresenta nessa aparência, independentemente da inexistência de qualquer ligação funcional formal efectiva ou de eventuais vícios que rodeiam a mesma. O que o tipo exige, de modo a permitir uma imputação integrada nas fronteiras do princípio da tipicidade, é a actuação voluntária como ou enquanto titular do órgão. Esta previsão abrange assim os casos em que, como sucede nos autos, pelo exercício de facto das funções de administração societária é lesado o bem jurídico tutelado. O preenchimento do tipo prescinde, deste modo, de uma qualquer formalização, ainda que incompleta ou irregular, da relação de administração ou gerência societária”.
Note-se, aliás, que esta punição dos gerentes de facto tem vindo também a ser perfilhada pelos Tribunais superiores, conforme, apenas a título de exemplo, se pode verificar através da análise do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.10.2016, no processo n.º 664/13.5TAPRD.P1, onde se notar que “o artigo 6 do RGIT, em linha com o que dispõe o artigo 1 do Código Penal (CP), quando define os pressupostos da responsabilidade criminal de quem actua ou deixa de actuar como titular de um órgão de pessoa colectiva, refere à cabeça o elemento da voluntariedade. Ora, ao se exigir que a acção ou omissão típica seja voluntária, a lei afasta a responsabilidade objectiva do gerente da sociedade decorrente da relação jurídico-funcional com a mesma. A voluntariedade em que se fundamenta a responsabilidade criminal pressupõe a existência de uma relação de facto entre o agente do crime – que pode ser o gerente da empresa ou outra pessoa que exerça a gerência de facto naquela concreta decisão – e o bem jurídico protegido. Uma pessoa não pode ser criminalmente responsável pela simples circunstância de ser gerente da sociedade mas sim pelas acções ou omissões em que incorre dolosamente nessa qualidade”.
Em suma, não se verifica a mencionada inconstitucionalidade.
Por seu turno, o recorrente invoca o teor do voto de vencido exarado no citado Acórdão do Tribunal Constitucional, o qual subscreve e reproduz, ao que adita que a ordem jurídica tem outros mecanismos para activar a cobrança de tributos dos administradores de facto, designadamente a reversão prevista no art. 24º da LGT, por isso o bem jurídico em causa não carece de intervenção do Direito Penal nesta matéria (citando extrato de Acórdão da Relação de Guimarães, de 27-04-2006, proc. 582/06-2, O direito penal não tem a função instrumental de ser o «braço longo» de outros ramos de direito). Mais refere que, estando em causa um crime omissivo, não pode ser de forma generalista e leviana que se conclui pela responsabilidade por omissão por parte de quem nem sequer é administrador/gerente da empresa, responsabilidade dos administradores expressamente contemplada na alínea b) do n.º 2 do artigo 11.º do Código Penal, embora na perspectiva imediata da responsabilização das pessoas colectivas.
Vejamos.
A questão de inconstitucionalidade, por violação do artigo 29.º da CRP, que vem suscitada incide sobre a interpretação de que o preenchimento do tipo incriminador (referente ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social) não exige a demonstração da qualidade do agente, pessoa singular, como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva ou sociedade, de acordo com critérios estritamente formais e jurídicos, mas antes se basta com a comprovação de o agente voluntariamente atuar como tal, atenta a norma do artigo 6.º do RGIT.
Ora, examinada a decisão recorrida e analisada a argumentação apresentada pelo recorrente considera-se que não merece censura o decidido, seguindo-se, tal como a primeira instância, a jurisprudência que obteve vencimento no Tribunal Constitucional, no citado Acórdão n.º 128/2010[1], segundo a qual a aferição sobre se a questionada interpretação normativa constitui violação do princípio da tipicidade depende da averiguação da conformidade dessa interpretação com o alcance semântico do tipo, sendo a intentio legislatoris e as considerações de natureza sistemática e teleológica relevantes somente se e na medida em que obtêm correspondência na “letra” da lei. A certeza e previsibilidade do tipo incriminatório apenas se atém ao conteúdo que é possível extrair directamente do mesmo. A exigência de cognoscibilidade prévia das condutas incriminadas não pode abranger um esforço exegético tal que integre considerações relativas a outros elementos de interpretação jurídica, nomeadamente sistemáticos e históricos, que não os que se relacionem com o conteúdo semântico do ilícito.
Neste sentido, o que interessa, sendo aliás decisivo, para definir se tal interpretação normativa afronta ou não o aludido princípio constitucional, é averiguar se, olhando unicamente ao conteúdo do tipo incriminador, a aceção proposta pode incluir-se no texto legal, isto é, se a expressão usada pelo legislador comporta esse significado.
Dentro dos limites assim definidos, considera-se, em consonância com o sentido da decisão do tribunal constitucional, que o artigo 6.º do RGIT, ao referir-se a quem agir voluntariamente como titular de um órgão de uma pessoa coletiva ou sociedade, abrange no seu conteúdo a atuação de quem se apresente e atue como tal, isto é, como titular de um órgão da pessoa coletiva ou sociedade, apesar de não ter uma efetiva ligação funcional formal com a mesma.
O respeito pelo princípio da tipicidade exige e basta-se com a demonstração de uma atuação voluntária como ou enquanto titular do órgão, por isso, o preenchimento do tipo incriminador não depende da existência dessa ligação formal, sendo igualmente típica a conduta de quem, sem o devido vínculo jurídico, efetivamente exerce as funções inerentes ao cargo de administrador da pessoa coletiva ou gerente da sociedade, de acordo com a norma do referido artigo 6.º do RGIT[2] e sob pena de se retirar eficácia à mesma norma.
Assim sendo, não se verifica a arguida inconstitucionalidade.
Ademais, a alegação produzida quanto à existência de mecanismos legais para efetivar a cobrança de tributos dos administradores de facto (como a reversão), com vista a justificar a desnecessidade de intervenção do Direito Penal, revela-se distanciada da razão de ser da incriminação e do bem jurídico protegido no tipo de ilícito, que nenhuma conexão tem com a invocada cobrança de impostos.
Igualmente carece de fundamento a alegação de, por via da interpretação normativa referida, se permitir concluir de forma generalista e leviana pela responsabilidade por omissão por parte de quem nem sequer é administrador/gerente da empresa, posto que, ante a exposição antecedente, o administrador ou gerente de facto atua e responsabiliza-se em representação da empresa como aquele que se encontra formalmente investido nessas funções.
Improcede, pois e quanto a este aspeto, o recurso.
1.2- O recorrente sustenta que não deve considerar-se cumprida a notificação prevista no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do R.G.I.T, por dois motivos: a notificação efetivada refere um valor (6.813,08€) superior ao constante da acusação (6.750,29€); a mesma notificação indica que o pagamento das quantias devidas à Segurança Social pode determinar um “eventual” arquivamento do processo.
Quanto a esta matéria a sentença recorrida convoca jurisprudência que entende não ser exigível a indicação do valor a pagar (acórdãos da Relação do Porto, de 07.01.2015, no processo n.º 735/09.2TAOAZ.P1; da Relação de Évora, de 23.02.2021, processo n.º 1129/18.4T9MTA-A.E.1; Relação de Coimbra de 08.09.2021, no processo n.º 180/19.1T9SRT.C1); ao que adita que, no caso concreto, a diferença entre o valor constante da notificação e o valor referido no despacho de acusação é indubitavelmente um valor diminuto, pelo que se torna notório, até de acordo com as regras da experiência comum, que não foi certamente este motivo que impossibilitou o arguido de efectuar o pagamento total da quantia, de forma a ter conseguido evitar a dedução do despacho de acusação.
Além disso, o facto de nessa notificação constar uma referência ao “eventual arquivamento”, em nada afecta a regularidade dessa mesma notificação, que cumpriu todos os requisitos legais.
Com efeito, tal notificação concedeu a possibilidade ao arguido de, caso assim o pretendesse, ter praticado uma conduta que teria levado ao arquivamento dos autos.
A alegação recursiva reitera a argumentação apreciada pelo tribunal a quo e contrapõe ao decidido que a apreciação sobre a regularidade da notificação e a responsabilidade criminal de alguém tem de ser feita com base em factos e não com base em crenças ou fé; mais convoca jurisprudência relativa aos requisitos da notificação (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/03/2009, Rec. Penal nº 7944/08), concluindo que o arguido deve ser absolvido por não estar verificada a condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, e subsidiariamente, que deve ser repetida a notificação por padecer de irregularidade que afeta o valor do ato praticado.
Vejamos.
A mencionada norma legal estabelece uma condição objectiva de punibilidade, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão n.º 6/2008[3], na medida em que alude a uma circunstância em relação directa com o facto ilícito, mas que não pertence nem ao tipo de ilícito nem à culpa. Constitui um pressuposto material da punibilidade. Portanto, para a conduta ilícita típica poder ser punida exige-se que a aludida a notificação se mostre cumprida e o arguido não proceda, dentro do prazo legal, ao pagamento das quantias devidas, no caso, a título de cotização à Segurança Social e legais acréscimos[4]. Na situação presente é incontroverso que o arguido AA foi notificado, nos termos do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT (cfr. fls. 362; 396 dos autos), porém, segundo a alegação recursiva, a notificação não foi regularmente realizada, pelos motivos indicados supra, que acarretam a sua invalidade e ineficácia.
Relativamente ao conteúdo da notificação considera-se que a indicação do montante a pagar pelo arguido à Segurança Social constitui informação relevante que deve constar da mesma, tendo em conta a finalidade que lhe subjaz de alertar o infrator para a derradeira oportunidade de proceder ao pagamento e evitar a sujeição a julgamento, pois, a menção imediata do quantitativo que tem de entregar permite ao arguido que logo pondere se tem condições financeiras para pagar no prazo legal ou pretende desenvolver esforços para obtenção de meios de pagamento, a fim de atempadamente decidir se irá proceder à liquidação do respetivo quantitativo. Pelo que neste ponto se diverge do decidido, seguindo-se a orientação da jurisprudência de sentido contrário[5].
Todavia, a incorreção do quantitativo mencionado na notificação não equivale à ausência de tal ato e a sua influência na validade ou regularidade do mesmo deve ser avaliada casuisticamente em face das circunstâncias concretas, nomeadamente da dimensão do erro. Na situação em análise o erro cometido consistiu na indicação de um montante superior ao devido, que veio a resultar de acerto posterior, sendo a diferença em causa no valor de 62,79€ (6.813,08€-6.750,29€). Tal diferença de valor não se mostra objetivamente significativa atentos os montantes em causa, sempre superiores a 6.500,00€, não existindo motivos para admitir que essa divergência possa influenciar a decisão do arguido quanto ao pagamento das cotizações devidas à Segurança Social.
Assim sendo, considera-se que, no caso, a indicação incorreta da quantia a pagar pelo arguido não acarreta a invalidade da notificação[6].
Quanto à menção na notificação da consequência do pagamento a fórmula utilizada na notificação do arguido AA não assume perentoriedade ao referir que pode determinar eventual arquivamento do processo, mas é complementada com a referência subsequente de que o notificado deve fazer prova do pagamento sob pena de o processo criminal prosseguir. De todo o modo, a questionada expressão não afeta a validade da notificação, uma vez que a mesma transmite de modo acessível ao notificado qual o benefício que decorre do pagamento, dessa forma cumprindo o ditame legal. Por conseguinte, improcede também quanto a este aspeto, o recurso.
1.3- Insurge-se o recorrente contra a decisão da matéria de facto provada.
Os poderes de cognição deste tribunal abrangem a matéria de facto e de direito, nos termos do disposto no artigo 428.º do Código Processo Penal.
Como se sabe, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias:
- no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;
- na impugnação ampla, com base em erro de julgamento, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência[7] 7.
Quanto a esta última modalidade de impugnação impõe-se ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa. Tal ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e bem assim referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.
Este modo de impugnação não permite nem visa a realização de um segundo julgamento sobre a matéria de facto, ou seja, não pressupõe uma reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes constitui um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, isto é, trata-se de uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados[8].
De notar ainda que a censura quanto ao modo de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente por não existirem os dados objetivos que se apontam na motivação ou por se terem violado os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou ainda por não ter existido liberdade de formação da convicção. Doutra forma ocorreria uma inversão da posição das personagens do processo, mediante a substituição da convicção de quem tem de julgar pela convicção de quem espera a decisão[9].
*
No presente recurso, ao deduzir impugnação da matéria de facto alega o recorrente, entre o mais, insuficiente o que consta sucintamente da Acusação e da Sentença no sentido do que o requerente AA conjuntamente com outros arguidos exercia a gerência de facto desde a data da constituição da sociedade; e noutro passo, considera também que não foram realizadas todas as diligências tendentes ao apuramento dos factos. Doutra forma, facilmente se apurariam as efetivas competências da gerência e os visados na mesma.
Ora, apreciando este segmento do recurso, sob a perspetiva da impugnação restrita, apenas se pode aventar que a alegação pretenda invocar insuficiência da matéria de facto para a decisão.
O referido vício, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código Processo Penal, ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito alcançada na decisão e sempre que o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto contida no objeto do processo e com relevo para a decisão final[10].
A insuficiência em causa neste vício decisório reporta-se aos factos indispensáveis para a decisão de direito, daí que se considere demonstrado quando a sentença, por si só considerada, evidencie que os factos dados como provados não permitiam atingir a decisão de direito a que se chegou. Ou seja, o vício ocorre quando a matéria de facto provada se mostra exígua para fundamentar a decisão de direito, em resultado de o tribunal ter omitido o dever de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão.
Portanto a insuficiência diz respeito aos factos e não à prova, por isso, o que importa indagar é se a sentença contém falha, hiato ou omissão ao nível dos factos e não se a decisão da matéria de facto tem apoio na prova ou se era exigível ao tribunal produzir outra prova.
Acontece que, no caso presente, o recorrente não questiona a suficiência dos factos que o tribunal julgou provados e em que baseou a decisão de direito, ou seja, não indica qualquer falha factual derivada de falta de apuramento imputável ao tribunal e que pudesse ser relevante para a decisão sobre o cometimento do ilícito imputado ao arguido ou sobre a matéria da pena. Diversamente o que resulta da alegação é meramente a discordância do recorrente relativamente à matéria de facto provada, inscrevendo-se no combate da decisão de facto a menção da necessidade de realização de diligências (aliás não discriminadas) com vista a demonstrar quem efetivamente assumia a gerência da sociedade e, desse modo, concluir que não era o recorrente.
Do modo descrito o recorrente ignorou os pressupostos da impugnação de facto, por via restrita, não logrando demonstrar insuficiência da matéria de facto para a decisão.
Ademais, a sentença não enferma de qualquer vício decisório.
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Invoca também o recorrente que a sentença (tal como sucedera na acusação) faz uso de formas gerais, imprecisas, sem individualização dos factos, com utilização de fórmulas “vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras. Convoca a propósito jurisprudência sobre o tema no âmbito do crime de violência doméstica.
Todavia, a alegação produzida enferma da generalidade e vaguidade que invoca, pois em momento algum especifica qual a concreta matéria vertida na sentença que preenche os alegados conceitos, isto é, jamais refere quais as concretas fórmulas vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras que a sentença integra, ou ainda, qual o ponto ou pontos da matéria de facto provada que padece de tal defeito ou imperfeição.
De todo o modo, não se deteta na matéria de facto provada, nomeadamente no facto 4 (impugnado no recurso), indeterminação ou falta de concretização factual que possa comprometer o direito de defesa do arguido, antes a narração de facto vertida na sentença obedece às exigências de concretização factual e mostra-se inteiramente compatível com o exercício dos direitos de defesa do arguido e contraditório do arguido, nos termos dos artigos 31.º e 32.º da CRP.
Assim sendo, não se reconhece razão ao recorrente quanto à narração dos factos provados.
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No âmbito da impugnação ampla o recorrente indica como erradamente julgados o facto provado 4, no segmento: decidiam e procediam ao pagamento de salários, impostos e contribuições/quotizações e dirigiam as relações comerciais no que concerne a pagamentos a clientes, fornecedores e instituições bancárias, e os factos não provados dos pontos B e C. Todavia, não cumpre, com rigor o ónus de indicação da prova concreta que impõe decisão em sentido diverso do tomado pela sentença[11], não tendo também especificado em que sentido deveriam ser decidido os questionados factos, ainda que seja possível deduzir do alegado que, na tese recursiva, deveriam julgados provados os factos B e C da matéria não provada e não provado o segmento do facto provado 4.
No concernente à prova, alega que nenhuma prova em concreto foi feita relativamente ao arguido AA quanto ao segmento impugnado do facto provado 4, depois tece considerações pessoais sobre factos relativos à gerência da empresa, sobre factos pessoais referentes à arguida CC e ao arguido AA; além disso, afirma que a prova testemunhal permitiu perceber quem geria o trabalho em obra/direção técnica e quem geria a parte administrativa e financeira da A..., designadamente o pagamento dos tributos ao Estado: a arguida CC!, tendo de seguida reproduzido extratos dos depoimentos das testemunha EE; FF; Dr.ª GG; HH; II; JJ; KK; LL; JJ; MM; após conclui que eram a arguida CC e o arguido BB quem, conjugadamente com o gerente DD, geriam o dinheiro da empresa e os pagamentos, designadamente tributários.
Ora, como decorre da afirmação acima transcrita, que antecede a referência à prova testemunhal, os excertos da prova transcrita destinam-se a comprovar a alegação relativa à conduta da arguida CC, à responsabilidade da mesma na empresa arguida, e não propriamente a ancorar a impugnação de facto deduzida, ou seja, a demonstrar que os factos não provados B e C e o facto provado 4, no segmento indicado, deveriam ser julgados como pretende o recorrente, salvo em parte no que respeita ao facto não provado B. Ainda assim, analisados os segmentos dos aludidos depoimentos verifica-se que resulta dos mesmos a intervenção ativa da arguida CC em nome da empresa, mas deles não decorre nitidamente a exclusão do arguido AA, como pretendido no recurso, por isso, a mencionada prova não impõe, como exigido, a modificação da matéria de facto fixada na sentença, da qual consta a gerência conjunta de ambos os arguidos e do arguido BB.
Também a prova documental que o recurso convoca, consistente em documentação bancária, fichas de assinaturas de contas bancárias, cheques, livrança ordem de levantamento de numerário, ordem de encerramento de conta, documentos em que não consta a assinatura do arguido AA, não impõe decisão diversa da tomada pelo tribunal a quo, atento que, na sua maioria, trata-se de documentação que apenas poderia ser assinada por quem era titular de direito do cargo de gerente ou administrador da empresa.
Além disso, a motivação da decisão de facto vertida na sentença revela a ponderação e exame crítico do conjunto da prova, não tendo sido ignorados os meios de prova mencionados no recurso, ainda que no confronto com as declarações dos arguidos e a restante prova não tenham merecido a prevalência que lhe atribui o recurso, nomeadamente no que se refere à matéria atinente à gerência da sociedade.
Por conseguinte, a argumentação expendida e a prova concreta convocada no recurso não permitem afastar o juízo probatório formulado pelo tribunal a quo, baseado em critérios objetivos e consentâneo com as regras da experiência comum.
Ademais, importa notar que não basta a demonstração de ser possível uma diferente avaliação ou ponderação da prova para que a impugnação possa obter provimento mas antes se exige que a prova especificada no recurso obrigue efetivamente uma alteração factual no sentido proposto, desiderato que não foi alcançado no presente caso.
Por conseguinte, improcede a impugnação da matéria de facto.
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Em face do exposto, improcede na totalidade o recurso.
2. Recurso do arguido BB
2.1- O recurso incide sobre a matéria de facto provada.
Reiteram-se neste ponto as considerações tecidas supra (ponto 1.3) quanto à impugnação da matéria de facto regulada nos artigos 410.º e 412.º do Código Processo Penal.
A motivação de recurso não aponta a existência de vícios decisórios que afetem a sentença (ainda que contenha a menção, em título, INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA a mesma não tem correspondência alguma com alegação subsequente que é totalmente omissa quanto à existência de vícios decisórios) pelo que a impugnação está sujeita ao condicionalismo legal previsto no 412.º, n.º 3, 4 e 6, do Código Processo Penal.
Contudo, a alegação recursiva não individualiza, como exigido, os concretos factos sobre os quais recai a impugnação, assim, como não discrimina as concretas provas que, na ótica do recorrente, determinam decisão diversa da recorrida quanto à matéria de facto impugnada, nos termos enunciados supra[12].
O recorrente transcreve na íntegra a factualidade provada e de imediato tece considerações e comentários pessoais sobre a avaliação da prova pelo tribunal a quo, ao que adita a narração de acontecimentos que não encontram apoio na matéria provada, referindo no decurso de tal alegação que não existe prova de que o arguido foi gerente de facto da sociedade arguida, nunca “cabendo-lhes os poderes de administração e gestão da mesma, no uso dos quais dirigiam os respectivos negócios, davam ordens e instruções aos trabalhadores, decidiam e procediam ao pagamento de salários, impostos e contribuições/quotizações e dirigiam as relações comerciais no que concerne a pagamentos a clientes, fornecedores e instituições bancárias...”, matéria que corresponde a segmento do facto provado 4. Posteriormente, nenhuma outra menção é feita sobre a matéria de facto impugnada.
Ademais, o recorrente, após transcrever a motivação de facto da sentença, procede a apreciações e comentários sobre a prova a que o tribunal a quo alude, nomeadamente a prova testemunhal em que se estribou a convicção sobre os factos atinentes à gerência da sociedade, neste contexto faz referência ao conteúdo dos depoimentos das testemunhas RR; MM; HH; NN; EE; OO; PP; FF; LL; GG; II; UU e JJ, indicando em alguns casos o momento da gravação dos depoimentos. No seguimento de tal alegação conclui: No global dos depoimentos, quer os trabalhadores, quer as testemunhas indicam o arguido AA como sendo o patrão da empresa, a pessoa a quem pediam trabalho, que os conhecia e convidou para integrarem a sua nova empresa, sendo essa situação posteriormente assumida pela arguida CC (em declarações da própria); Quanto às testemunhas Sra. Inspetora RR e Dra. GG, nada nos compete dizer, dado que em momento algum do seu depoimento referem o nome do arguido BB o que é bem demonstrativo de que a própria Autoridade Tributária nunca reconheceu o Arguido/Recorrente como gerente de facto ou de direito da sociedade; não há 1 único documento assinado pelo arguido, muito menos que este tem necessidades de ocultação de património!. Prossegue depois com a reprodução de excertos das declarações dos arguidos ao que adita considerandos pessoais.
Do modo descrito, a motivação de recurso não observa as regras próprias da impugnação ampla, incumpre o ónus legal que incumbe ao impugnante, inviabilizando a reapreciação da prova e o reexame da matéria de facto, sendo certo que a este tribunal ad quem não é lícito superar as omissões e/ou deficiências da alegação recursiva.
Ademais, as considerações tecidas no recurso expressam a subjetiva e pessoal interpretação do recorrente sobre os meios de prova, que não pode prevalecer sobre a convicção formada pelo tribunal a quo, sob pena de se postergar o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código Processo Penal, do qual decorre que a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente.
Outrossim, revela-se infundada a alegação de violação do referido princípio, aliás invocado de forma genérica, uma vez que o tribunal a quo avaliou a prova com base em critérios objetivos, formou a sua convicção sobre a matéria de facto com apoio em raciocínio lógico dedutivo e de acordo com as regras da experiência comum.
Também carece de fundamento a alegada violação do princípio in dúbio pro reo, atento que não demonstra a existência de quadro dubitativo que justifique a convocação do mesmo princípio.
A motivação de facto desenvolvida na sentença recorrida não suscita a existência de dúvida razoável e insanável sobre a ocorrência dos factos ilícitos e a sua autoria, que tivesse surgido no espírito do julgador, ao invés verifica-se que os factos provados assentam em convicção segura formada pelo tribunal a quo, inexistindo motivos objetivos que permitam colocar em causa a firmeza de tal decisão, pelo que não existe motivo para a convocação do princípio.
Por conseguinte, não foram violados os princípios invocados no recurso, permanecendo inalterada a factualidade provada.
Nestes termos, improcede o recurso.

III – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto, em negar provimento aos recursos e, em consequência, confirmam na íntegra a sentença recorrida.
Custas a cargo dos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça individual em 5 UC.

Porto, 30/11/2022
Maria dos Prazeres Silva
José António Rodrigues da Cunha
William Themudo Gilman
___________________
[1] Acórdão n.º 128/2010, de 13-04-2010, proc. 441/09, consultável em www.tribunalconstitucional.pt.
[2] Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 24-03-2004, proc. 0342179, disponível em www.dgsi.pt, citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra sobre o qual incidiu o Acórdão n.º 128/2010.
[3] Vd. Acórdão do STJ, de 9-4-2008, publicado no DR. I série de 15/5/2008, que fixou a jurisprudência seguinte: A exigência prevista na alínea b) do nº4 do artigo 105 do RGIT, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2 nº4 do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo [alínea b) do nº4 do artigo 105 do RGIT].
[4] Conforme se refere no citado Acórdão n.º 6/2008, as condições objectivas da punibilidade são aqueles elementos da norma, situados fora do tipo de ilícito e tipo de culpa, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção antijurídica tenha consequências penais.
[5] Vd., entre outros, Acórdão da Relação do Porto de 11-03-2009, proc. 0847944, citado no recurso; Acórdão da Relação de Évora, de 24-11-2020, proc. 1192/16.2T9STR.E1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[6] Vd., referido Acórdão da Relação de Évora, de 24-11-2020, proc. 1192/16.2T9STR.E1; Acórdão da Relação do Porto de 28-10-2015, proc. 7748/08.0TDPRT.P1, acessíveis em www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal Justiça de 05-06-2008, proc. 06P3649; de 14-05-2009, proc. 1182/06.3PAALM.S1, disponíveis em www.dgsi.pt.
[8] Cfr. Acórdãos do STJ de 29-10-2008, proc. 07P1016 e de 20-11-2008, proc. 08P3269, disponíveis em www.dgsi.pt.
[9] Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional 198/2004 de 24-03-2004, DR, II S, de 02-06-2004.
[10] Cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., p. 74; vd. também Acórdão da Relação de Coimbra de 09-12-2009, proc. 522/08.5GAACB.C1 e jurisprudência do STJ aí citada, disponível em www.dgsi.pt.
[11] Quer na motivação do recurso quer nas respetivas Conclusões.
[12] O que é patente quer na motivação do recurso quer nas conclusões do recurso.