Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
328/15.5GCETR.1.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Descritores: CONCURSO DE CRIMES
APLICAÇÃO DE PERDÃO
EXCLUSÃO
PENA ÚNICA
Nº do Documento: RP20240626328/15.5GCETR.1.P1
Data do Acordão: 06/26/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: PROVIDO O RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4.ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - Havendo concurso de crimes excludentes da aplicação de perdão e crimes não excecionados na lei, o condenado continua a beneficiar do perdão relativamente a estes últimos crimes.
II - Todavia, nesta situação de cúmulo jurídico, a medida do perdão não pode ser superior à pena parcelar que determina a aplicação do perdão, na hipótese de somente um dos crimes não excluir o perdão.
III - Na hipótese inversa de só um dos crimes estar excluído de perdão, a pena única remanescente após a aplicação do perdão não pode ser inferior à pena parcelar relativa àquele crime excluído de perdão. Neste caso, nada impõe a necessidade de nova audiência para reformulação do cúmulo já efetuado, desde que, em resultado da operação, a parte perdoada na pena única não ultrapasse a parcelar não excluída do perdão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 328/15.5GCETR.1.P1



Relator

João Pedro Pereira Cardoso

Adjuntos: Francisco Mota Ribeiro

                 Maria Deolinda Dionísio

Sumário:

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Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal da Relação do Porto

1. RELATÓRIO

No Processo 328/15.5GCETR.1.P1 que corre termos no Juízo Central Criminal de Aveiro - Juiz 1, por acórdão cumulatório de 7 de Março de 2024, o arguido AA foi condenado nas seguintes pena únicas: 
1. “Em sede do PRIMEIRO GRUPO/BLOCO procede-se ao cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas ao arguido nos processos n.ºs 215/19.8GCETR e 328/15.5GCETR e, em consequência, condena-se o arguido na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão; mantendo-se a condenação na pena acessória de proibição de contactos com a vítima BB por qualquer meio presencial ou por outros meios de comunicação, designadamente por via telefónica, escrita ou eletrónica, com exceção dos contactos necessários à regulação das responsabilidades parentais do filho de ambos, designadamente diligências judiciais ou outras necessárias a tal desiderato, e também a pena acessória de proibição se se aproximar a menos de 200 metros da residência desta vítima, aplicada nos autos de Processo n.º 215/19.8GCET;
2. Determinar a aplicação ao arguido da medida de clemência de perdão, declarando-se perdoado um ano de pena a incidir sobre a pena única de 4 anos e 6 meses de prisão.
3. Em sede do SEGUNDO GRUPO/BLOCO procede-se ao cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas ao arguido nos processos n.ºs 5/20.5GAOVR E 137/20.0GAALB e, em consequência, condena-se o arguido na pena única de 5 (cinco) anos e 5 (cinco) meses de prisão
4. As penas fixadas em 1. e 2 serão cumpridas sucessivamente.
5. As penas que o arguido já tiver cumprido nos processos identificados em 1. e 2. serão descontadas nas respectivas penas únicas aqui aplicadas nos termos e para efeitos do disposto no artigo 78.º, nº1, do Código Penal”.


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Deste acórdão veio o Ministério Público (MP) interpor recurso, em 22/03/2024, admitido por despacho de 3/04/2024, a subir de imediato, nos próprios autos e efeito suspensivo.

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O MP discorda do acórdão apenas na parte em que ali se decidiu, relativamente ao primeiro bloco de penas em cúmulo jurídico “(…) 2. Determinar a aplicação ao arguido da medida de clemência de perdão, declarando-se perdoado um ano de pena a incidir sobre a pena única de 4 anos e 6 meses de prisão (…)”,  “por se entender que vistas as medidas das penas parcelares de prisão que integraram o cúmulo jurídico referido, a aplicação do perdão previsto na Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto, na medida de 1 ano, sem mais, à pena única fixada, determina que o remanescente da pena a cumprir se situe em medida inferior à pena parcelar mais grave, que dele não beneficia por imposição legal”.

Assim, argumenta o MP, e conforme
conclusões que se transcrevem:

“1º Nos presentes autos, acha-se o arguido AA condenado, além do mais, em duas penas de cumprimento sucessivo, sendo uma delas (1º Bloco), em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas nos processos 215/19.8GCETR (3 anos e 9 meses de prisão de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1 als. b) e c) e nº 2 als. a) e b), 4 e 5 do Código Penal) e 328/15.5GCETR (2 anos e 3 três meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos art.ºs 25º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro), na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão.   

2º Face à entrada em vigor, em 01/09/2023, da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, mais decidiu o Tribunal a quo, nos termos do disposto no artigo 3.º, nºs 1 e 4, da Lei nº 38A/2023, de 2 de Agosto, a aplicação ao arguido da medida de clemência de perdão, declarando-se perdoado um ano de pena a incidir sobre a pena única, referente ao primeiro grupo/bloco conhecido, de 4 anos e 6 meses de prisão.   

3º Se é certo que o arguido está em condições de beneficiar do perdão, no que concerne à pena única do cúmulo efetuado no 1º bloco/grupo de penas em concurso, conhecido nos presentes autos de cúmulo, ao mesmo não poderá, contudo, ser-lhe perdoado 1 ano de tal pena única, conforme se mostra descrito no dispositivo da decisão de que se recorre.  

4º No caso vertente, a pena única aplicada ao arguido AA, no 1º bloco, resulta do cúmulo jurídico de penas parcelares relativas a crime que beneficia do perdão (crime de tráfico de menor gravidade) e outro (crime de violência doméstica) que está excluído de tal medida de clemência – cfr. ponto ii) da alínea a) do nº 1do artigo 7º da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto.  

5º O arguido apenas poderá beneficiar de tal medida de clemência relativamente à pena pelo crime que não está excluído de tal benefício, mas necessariamente sem pôr em causa a parte da pena única que respeita à pena parcelar aplicada pelo crime excluído de tal benefício.   

6º No caso em apreciação, cabe notar que a aplicação da medida de 1 ano de  perdão, sem mais, à pena única já fixada, tal como decidido pelo Tribunal a quo determina que o remanescente da pena a cumprir se situe em medida inferior à pena parcelar mais grave, que é aplicada pelo crime de violência doméstica (in casu 3 anos e 9 meses) relativamente ao qual não pode, o arguido, beneficiar do perdão em causa. 

7º Tal viola frontalmente o disposto no artigo 77º, nº 2, parte final, do Código Penal, que dispõe que a pena aplicável, em sede de punição do concurso, além do mais, tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.   

8º Cabe, pois, aplicar à pena única aplicada ao arguido AA,  em cúmulo jurídico, no 1º bloco de penas em concurso, o perdão previsto no artigo 3º, nº 1, da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, mas com o limite máximo decorrente da circunstância de não beneficiar de tal perdão a pena parcelar aplicada pelo crime de violência doméstica.  

9º Encontrando-se em cúmulo duas penas parcelares – uma que beneficia de perdão e outra que não beneficia – não há necessidade de se proceder à reformulação do cúmulo jurídico de penas, apenas há que fazer aplicação do perdão concedido de forma a que se mantenha intocada a pena que dele não beneficia e que fornece o limite mínimo daquele cúmulo jurídico.  

10º Ao não proceder do modo descrito, na parte da decisão recorrida que declarou o perdão de 1 ano da pena de 4 anos e 6 meses de prisão acima referida, o Tribunal a quo desatendeu e não fez a devida aplicação das normas que o impõem, que são as resultantes das disposições conjugadas dos artigos 3º, nºs 1 e 4, e 7º, nº 3, da Lei nº 38-A/2023, de 02/08, e do artigo 77º, nº 2, do Código Penal – assim as violando. 

11º Assim sendo, deverá a decisão recorrida, ser, nesta parte, revogada e substituída por outra que aplique o perdão previsto na Lei nº 38-A/2023, na medida em que tal medida de clemência se mostre legalmente admissível”. 


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O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

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Não houve resposta do arguido ao recurso do ministério Público.

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Neste Tribunal da Relação, o Ministério Público emitiu parecer, concluindo que o recurso deve obter provimento, pelas razões invocadas nas motivações, devendo o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que determine a aplicação ao arguido do perdão de 9 meses sobre a pena única, referente ao primeiro grupo/bloco de penas em concurso conhecido, de 4 anos e 6 meses de prisão.

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Na sequência da notificação a que se refere o art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, efetuado exame preliminar e cumpridos os vistos, foram os autos submetidos à conferencia.

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2. FUNDAMENTAÇÃO

Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior -  artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal [1]).

Posto isto,
a questão a apreciar é a seguinte:

- Dos limites do perdão na pena única composta por pena parcelar excluída e outra não excluída daquele.


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Cumpre apreciar e decidir.

Com relevo para a resolução da questão objeto do recurso, cumpre salientar que não vem questionado que no 1º Bloco, em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas nos processos 215/19.8GCETR (3 anos e 9 meses de prisão de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1 als. b) e c) e nº 2 als. a) e b), 4 e 5 do Código Penal) e 328/15.5GCETR (2 anos e 3 três meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos art.ºs 25º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro), o arguido foi condenado na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão.   

Insurge-se o recorrente Ministério Público contra a aplicação de um ano de perdão neste subjetivo-cumulo que englobava penas parcelares relativas a crime que beneficia do perdão (crime de tráfico de menor gravidade) e outro (crime de violência doméstica) que está excluído de tal medida de clemência – cfr. ponto ii) da alínea a) do nº 1do artigo 7º da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto.  

Em fundamento da sua discordância, o recorrente Ministério Público acrescenta que o arguido apenas poderá beneficiar de tal medida de clemência relativamente à pena pelo crime que não está excluído de tal benefício, mas necessariamente sem pôr em causa a parte da pena única que respeita à pena parcelar aplicada pelo crime excluído de tal benefício.   

Isto porque, acrescenta, “a aplicação da medida de 1 ano de perdão, sem mais, à pena única já fixada, tal como decidido pelo Tribunal a quo determina que o remanescente da pena a cumprir se situe em medida inferior à pena parcelar mais grave, que é aplicada pelo crime de violência doméstica (in casu 3 anos e 9 meses) relativamente ao qual não pode, o arguido, beneficiar do perdão em causa”. 

Daí que, no 1º bloco de penas em concurso, deva aplicar-se à pena única o perdão previsto no artigo 3º, nº 1, da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, mas com o limite máximo decorrente da circunstância de não beneficiar de tal perdão a pena parcelar aplicada pelo crime de violência doméstica, de forma a que se mantenha intocada a pena que dele não beneficia e que fornece o limite mínimo daquele cúmulo jurídico.

Assim não procedendo, conclui o recorrente, o tribunal a quo não fez a devida aplicação das normas que o impõem, que são as resultantes das disposições conjugadas dos artigos 3º, nºs 1 e 4, e 7º, nº 3, da Lei nº 38-A/2023, de 02/08, e do artigo 77º, nº 2, do Código Penal – assim as violando.

Conhecendo,

havendo concurso de crimes excludentes da aplicação de perdão e crimes não excecionados na lei, o condenado continua a beneficiar do perdão relativamente a estes últimos crimes.

Todavia, nesta situação de cúmulo jurídico, a medida do perdão não pode ser superior à pena parcelar que determina a aplicação do perdão, na hipótese de somente um dos crimes não excluir o perdão, assim como, na hipótese inversa de só um dos crimes estar excluído de perdão, a pena única remanescente após a aplicação do perdão não pode ser inferior à pena parcelar relativa àquele crime excluído de perdão – cfr. ac Relação do Porto, de 29-11-2000, processo n.º 10861, relator Manuel Braz, in www.datajuris.pt, RP 11-10-2023, processo 31/21.7SPPRT.P1, Relator Paulo Costa, www.dgsi.pt e RP 10-01-2024, processo 441/07.2JAPRT-E.P1, Relator Maria dos Maria dos Prazeres Silva, www.dgsi.pt.

No mesmo sentido concluiu o ac RP 24-01-2024, processo 408/16.0GCOVR-E.P1, Relator José Quaresma, www.dgsi.pt, assim sumariado: “A aplicação do perdão decorrente da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08 a pena única que integre, na sua composição, penas parcelares pela prática de crimes excluídos do benefício não impõe a necessidade de nova audiência para reformulação do cúmulo já efetuado, por decisão transitada, conquanto, em resultado da operação, a parte perdoada na pena única não ultrapasse a parcelar não excluída do perdão e se mantenha um remanescente, após perdão, não conflituante com a moldura mínima do concurso.”

Também na doutrina Pedro José Esteves de Brito, “Mais algumas notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, in JULGAR Online, janeiro de 2024, pg.8-9: “Por outro lado, ainda no caso de cúmulo jurídico de penas parcelares aplicadas por crimes não abrangidos pela amnistia, que englobe penas parcelares de prisão aplicadas por crimes não excluídos do perdão e apenas uma pena parcelar de prisão aplicada por crime excluído do perdão, a conjugação dos arts. 3.º, n.º 4, e 7.º, n.º 3, da dita Lei impõe que o remanescente da pena única de prisão resultante da aplicação àquela do perdão não pode ser inferior à pena parcelar de prisão aplicada pelo único crime excluído do perdão.  Acresce que, caso tal cúmulo englobe várias penas parcelares de prisão aplicadas por crimes excluídos do perdão, por força da conjugação dos ditos preceitos legais e das regras de determinação da pena única em caso de cúmulo jurídico, o remanescente decorrente da aplicação do perdão não poderá ser inferior à mais elevada da pena parcelar de prisão aplicada por crime excluído do perdão”.

Por conseguinte, seguindo jurisprudência dominante que aqui se acolhe, salvo o devido respeito, o acórdão recorrido não merece acolhimento na parte recorrida, concordando-se inteiramente com os fundamentos exaustivamente plasmados de forma clara, lógica e consistente no recurso do Ministério Público, profusamente apoiados em elementos doutrinais e jurisprudenciais, na correta interpretação das disposições conjugadas dos artigos 3º, nºs 1 e 4, e 7º, nº 3, da Lei nº 38-A/2023, de 02/08, e do artigo 77º, nº 2, do Código Penal.

Nestes termos, deve o acórdão recorrido ser revogado no tocante ao ponto 2 do dispositivo e substituído por outro que ali determine a aplicação ao arguido do perdão de 9 meses sobre a pena única, referente ao primeiro grupo/bloco de penas em concurso conhecido, de 4 anos e 6 meses de prisão.


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3. DECISÃO

Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência:

I) revoga-se o acórdão recorrido no tocante ao ponto 2 do dispositivo, determinando-se, em substituição, a aplicação ao arguido do perdão de 9 meses (e não um ano) sobre a pena única, referente ao primeiro grupo/bloco de penas em concurso conhecido, de 4 anos e 6 meses de prisão.

Sem custas.

Notifique.

(Elaborado e revisto pelo relator – art. 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).


Porto, 26 de junho de 2024

João Pedro Pereira Cardoso

Francisco Mota Ribeiro

Maria Deolinda Dionísio


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[1] Diploma ao qual pertencem os normativos adiante citados sem indicação da respetiva origem legal.