Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ALBERTO TAVEIRA | ||
Descritores: | EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE CESSAÇÃO ANTECIPADA DO PROCEDIMENTO DE EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE VIOLAÇÃO DA OBRIGAÇÃO VIOLAÇÃO DE DEVERES DE CONDUTA DOLO NEGLIGÊNCIA GRAVE NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA | ||
Nº do Documento: | RP202407103252/19.9T8STS.P1 | ||
Data do Acordão: | 07/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | A violação dolosa ou negligente grave das obrigações do artigo 239.º, n.º 4 do CIRE, determina a cessação antecipada do procedimento de exoneração, desde que tais incumprimentos acarretem prejuízo para a satisfação dos créditos – artigo 243.º, n.º 1, alínea a) do CIRE. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | PROC. N.º[1] 3252/19.9T8STS.P1 * Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 4
RELAÇÃO N.º 158 Relator: Alberto Taveira Adjuntos: Artur Dionísio Oliveira Márcia Portela * ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO * I - RELATÓRIO. AS PARTES INSOLVENTES: AA e BB ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA: CC * 1) A 25.10.2019 foi proferida sentença a declarar a insolvência de AA e BB. 2) Foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante em 12.02.2020. Mais foi decidido: “Assim, e atendendo a que no caso em apreço, não foram invocados quaisquer factos concretos que pudessem conduzir ao indeferimento liminar do pedido em apreço, incluindo eventuais prejuízos sofridos pelo comportamento dos insolventes e pelo momento em que se apresentaram à insolvência, ao abrigo do disposto no artigo 239.º n.º 1 do CIRE, admito liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes. Nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 239.º e 240.º do CIRE nomeio como fiduciário o Sr. Administrador da insolvência. Consequentemente, durante os cinco anos seguintes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão), o rendimento disponível dos devedores (determinado nos termos constantes do artigo 239.º, n.º 3 do CIRE), considera-se cedido ao fiduciário supra nomeado. (…) Pelo que, determino que os insolventes cedam ao fiduciário todos os seus rendimentos que em cada mês ultrapassem tal valor, quando reunirem condições para o efeito, notificando-os expressamente que, com a notificação deste despacho, se iniciará o período de cessão. Advirtam-se expressamente os devedores das obrigações a que ficam sujeitos, constantes dos artigos 239.º, n.º 4 e 240.º, n.º 1 do CIRE.“. 3) Foi apresentado relatório pelo Fiduciário a 08.03.2021, 1.º ano de cessação, pelo qual informa: Na sequência de requerimento dos insolventes, a 22.03.2021, o sr Administrador de Insolvência veio expor: “Vistos os comprovativos remetidos pelos insolventes, constata-se que não foram enviados os recibos da insolvente dos meses de Fevereiro e Outubro de 2020. Sem prejuízo de futura junção dos recibos em falta aos autos, o rendimento disponível apurado e não entregue relativo ao 1º ano do período de cessão, ascende à quantia de 2.030,50€, conforme se poderá verificar pelo quadro em anexo (doc. n.º1). Face ao exposto, requer-se a V.Exa. que determine aos insolventes para juntarem os comprovativos em falta, bem como para procederem à entrega do montante apurado e em dívida.” Na sequência de requerimento dos insolventes, a 26.04.2021, o sr Administrador de Insolvência veio expor: “Deste modo, vistos os recibos de Fevereiro e Outubro de 2020 não se apura rendimento disponível nesses meses, mantendo-se em dívida o montante de 2.030,50€ relativo a rendimento disponível apurado e não entregue, o qual já foi referido no relatório de 08/03/2021. Face ao incumprimento verificado, requer-se a V.Exa que determine a notificação aos insolventes para entregarem o valor em dívida.” 4) Foram os insolventes por despacho de 25.05.2021, notificados: “Com cópia das últimas informações juntas pelo Sr. Fiduciário, notifique os insolventes, inclusive pessoalmente (dadas as consequências que para aqueles poderão advir) para que, em 10 dias, esclareçam o que tiverem por conveniente quanto à falta de entrega ao Sr. Fiduciário dos valores devidos à fidúcia, bem como para, pretendendo regularizar a situação, diligenciar pela entrega do valor em falta ou apresentar plano para o efeito – devendo tais entregas ocorrer durante o período de cessão, para além de eventuais valores a ceder no futuro. Mais advirta expressamente que em causa está a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante. Oportunamente, deverá o Sr. Fiduciário esclarecer nos autos acerca do cumprimento/incumprimento do despacho supra.” 5) por requerimento de 09.06.2021, vieram os insolventes pedir o pagamento do rendimento disponível em falta em prestações de 50€ mensais. O sr Administrador de Insolvência não se opôs. 6) A 05.07.2021, foi proferido despacho: “Atenta a justificação apresentada pelos insolventes, a não oposição dos credores e do Sr. fiduciário, e a intenção manifestada de entregar o valor em causa dentro do período de cessão, defiro o requerido, advertindo-se os insolventes que para além do valor já em dívida, deverão diligenciar pela entrega dos eventuais valores a vencer no futuro, dentro do período de cessão, para ultrapassar a situação de incumprimento e evitar a cessação antecipada do procedimento da exoneração do passivo restante.” 7) A 04.02.2022, é apresentado o 2.º relatório do sr Administrador de Insolvência no qual consta: “De Fevereiro de 2021 a Janeiro de 2022, os insolventes não contribuíram com qualquer montante para a fidúcia e reiteradamente não remeteram qualquer informação comprovada, apesar de notificados para o efeito, conforme documentos que se juntam. Também não regularizaram o valor apurado e em dívida no 1º ano de cessão (2.030,50€), visto que não entregaram qualquer prestação do plano prestacional que propuseram, deferido no despacho de 06/07/2021. Face ao incumprimento exposto, requer-se a V. Exa. que determine a notificação dos devedores para o cumprimento das obrigações a que estão adstritos, nos termos e para efeitos do nº4 do artigo 239º do CIRE.” 8) Devidamente notificados a 02.03.2022, os insolventes vieram aos autos expor que não têm condições económicas para liquidar tais montantes, pedindo que o sue pagamento seja em prestações de 50€. O sr Administrador de Insolvência deduziu oposição (10.03.2022). A 24.03.2022 o Ministério Público deduziu oposição. 9) Com data de 26.03.2022, é proferida a seguinte decisão: “Em face do exposto, e tendo em vista aferir do valor efetivamente devido, à luz destes critérios, notifique o Sr. Fiduciário para que, em 10 dias, esclareça nos autos se haveria valor a ceder, e de que montante, no caso de se incluir os subsídios de férias e de Natal auferidos pelos insolventes no seu rendimento total anual, e este dividido pelos 12 meses do ano (e a fim de se aferir se em cada mês foi ou não ultrapassado o valor do rendimento mensal indisponível fixado pelo tribunal). Após, e caso haja valor a ceder, deverão os insolventes apresentar plano de entrega do valor em dívida em prestações, mas de forma a que todo o valor em dívida seja entregue dentro do período de cessão.” 10) O sr Administrador de Insolvência veio expor: “Deste modo, o rendimento disponível apurado e em dívida reduz-se para as quantias de 1.229,40€ e 1.012,00€, respetivamente para o 1º e 2º ano, totalizando agora o montante de 2.241,40€ em dívida (doc. n.º1).“ 11) Por requerimento de 03.08.2022 os insolventes vieram pedir o pagamento em prestações, de 100€ do valor em falta. O Ministério Público deduziu oposição – n.º de prestações e tempo do período de cessão. 12) É proferido despacho: “Pelo que, deverão os insolventes apresentar um plano de pagamento em prestações do valor em dívida à fidúcia, que seja adequado a cumprir a obrigação de cedência dentro dos limites do termo do período de cessão de rendimento disponível ou, em alternativa, solicitarem oportunamente a prorrogação de tal período pelo tempo indispensável à liquidação da dívida para com a fidúcia, mas nesse caso, cumprindo os requisitos ora previstos no artigo 242.º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e cumprir as obrigações inerentes a tal prorrogação, incluindo continuar a entregar os valores disponíveis que receberem nesse período.” 13) Os insolventes vieram pedir: “(…) nos termos e em obediência ao artigo 242º-A CIRE, propor o pagamento da quantia em dívida em 22 prestações mensais e sucessivas de € 100.00, sendo que a ultima (23ª) será no montante de € 41,40.” Administrador de Insolvência e Ministério Público não apresentaram oposição a uma eventual prorrogação da cessão. 14) A 13.01.2022 é proferida a seguinte decisão: “Face ao exposto, defiro a requerida prorrogação do período de cessão, ao abrigo do atualmente consagrado no artigo 242.º - A do CIRE e, assim sendo, prorrogo o período de cessão até ao final de agosto de 2024 (mais 17 meses que o período de cessão inicialmente previsto, de forma a permitir a entrega do valor nas requeridas 23 prestações). Porém, mais uma vez se adverte que o valor de cada prestação terá de contemplar o valor vencido e o valor que se vier a vencer e devido à fidúcia até ao fim do período de prorrogação requerido. Com efeito, quer durante o período de cessão inicial ainda em curso, quer durante tal período de prorrogação, os insolventes continuam sujeitos cumprir as obrigações inerentes à admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante (cfr. artigo 239.º, n.º 4, do CIRE), incluindo com as eventuais entregas de valores disponíveis que se vençam dentro de tal período, inicial e de prorrogação, bem como terão de fornecer ao Sr. Fiduciário todos os elementos referentes aos rendimentos obtidos, nomeadamente.“, realçado nosso. 15) O sr Administrador de Insolvência a 06.02.2023 vem apresentar relatório do 3.º ano, no qual expõe: “O plano proposto pelos insolventes a 03/08/2022, deferido no despacho de V. Exa. De 13/10/2022, para pagamento do valor apurado e em dívida no 1º e 2.º ano de cessão (2.241,40€), encontra-se em incumprimento, não tendo sido entregue qualquer prestação.” De igual modo, a 14.03.2023, veio acrescentar: “Assim, no presente momento e por referência aos primeiros três anos do período de cessão, os insolventes são devedores do montante total de 3.672,80€. Apesar dos insolventes indicarem que pretendem efetuar o pagamento dos montantes devidos à fidúcia até ao final do prazo concedido, certo é que ainda não cederam um único euro nestes três anos e vão incumprindo os planos prestacionais que solicitaram.” 16) É proferido o seguinte despacho a 27.03.2023: “Assim sendo, e para evitar que os autos continuem a aguardar em vão o decurso do período de prorrogação, notifique os insolventes para, em 10 dias, esclarecerem o que tiverem por conveniente a propósito da falta de cumprimento da entrega do valor em dívida à fidúcia, e juntarem novo plano que preveja a entrega do valor total já vencido, até agosto de 2024, caso pretendam evitar a recusa da exoneração do passivo restante.” 17) Os insolventes a 10.04.2023, vieram apresentar novo plano de pagamento. “Nessa sequência, vêm apresentar novo plano para pagamento do valor em dívida à fidúcia, em concreto 3672,80 €: Pagamento de 230,00 € em 16 prestações.” 18) A 05.05.2023 é proferida decisão: “Face ao exposto, e atendendo aos motivos invocados pelos insolventes e a sua intenção de cumprirem, ainda, as obrigações dentro do aludido período de prorrogação, nos termos a que ali aludem, para evitar a recusa da exoneração do passivo restante, defiro o requerido.” 19) O sr Administrador de Insolvência a 20.09.2023, veio expor: “No presente momento e por referência aos três primeiros anos, encontra-se em falta a entrega do montante de 3.672,80€ pelos insolventes, mostrando-se e incumpridos os despachos de V. Exa.de 13/10/2022 e de 05/05/2023. Mais se informa que os insolventes, apesar de notificados para o efeito, também não procederam à entrega dos comprovativos de rendimentos do 4.º ano, em curso.” Na sequência é proferido despacho a 28.11.2023: “Não obstante o requerido pelos insolventes no requerimento de que apresentaram a 10-04-2023, e deferido por despacho de 05-05-2023, veio o Sr. Fiduciário informar que os insolventes continuam a não cumprir as obrigações impostas pelo artigo 239.º, n.º 4, do CIRE. Pelo que, notifique os insolventes, pessoalmente e através da sua ilustre mandatária, dadas as consequências que para aqueles poderão advir, nos termos e para os efeitos requeridos pelo Sr. Fiduciário, e para que comprovem nos autos a entrega à fidúcia das prestações já vencidas a que se obrigaram, bem como a entrega dos elementos referentes aos seus rendimentos e em falta, com a advertência expressa que em causa está a cessação antecipada do procedimento da exoneração do passivo restante, agora por referência ao período de prorrogação.” 20) Os insolventes a 28.01.2023, 11.11.2023, 23.11.2023, 13.12.2023, vieram pedir prorrogação de prazo para se pronunciarem. Foi sucessivamente deferido tal pedido mas, nada vieram expor ou requerer. 21) o Sr Administrador de Insolvência a 22.01.2024, veio expor: “Mantém-se o incumprimento dos insolventes, no que respeita à não entrega do rendimento disponível apurado (3.672,80€) e falta de comprovativos dos rendimentos obtidos no 4º ano do período de cessão, conforme informação prestada no requerimento de 20/09/2023, refª CITIUS n.º 36697207. (…) Acresce, que os insolventes vêm mantendo este comportamento de incumprimento das suas obrigações, visto que apesar do determinado no despacho de 13/10/2022 – no qual lhes foi concedido uma oportunidade para procederem à entrega do rendimento disponível apurado na altura, a requerimento destes – também não cumpriram com a entrega de qualquer uma das requeridas 23 prestações. Assim, verifica-se que ao longo do período de cessão, os insolventes vêm incumprindo as obrigações impostas pelo artigo 239º, n.º 4 do CIRE, designadamente, por não procederem ao envio dos comprovativos de rendimento, nos termos da alínea a), o que impede o apuramento da totalidade do rendimento disponível, bem como pela não entrega imediata dos valores apurados a título de rendimento disponível, os quais ascendem ao presente momento a 3.672,80€, incumprindo reiteradamente com a obrigação imposta na alínea c) da suprarreferida norma, com prejuízo para os credores. Face ao exposto, nos termos do disposto no artigo 243º, n.º 1, a) do CIRE, requer-se a V.Exa. que determine a cessação antecipada do procedimento da exoneração do passivo restante. “ Devidamente notificados os insolventes nada vieram dizer. O credor A..., S.A., a 16.04.2024, veio “requer a cessação antecipada da exoneração do passivo restante”. ** * 22) A 10.05.2024, é proferida DECISÃO, nos seguintes termos: “Face a tudo o exposto, declaro cessado antecipadamente o procedimento da exoneração do passivo restante, designadamente nesta fase de prorrogação do período de cessão e recuso a exoneração do passivo restante aos insolventes, AA e BB. “. ** * Os insolventes/devedores, AA e BB, vêm desta decisão interpor recurso, pedindo: “Nestes Termos, deve ser dado provimento ao recurso e revogado o douto despacho recorrido.” Os recorrentes apresentam as seguintes CONCLUSÕES: “1º - O Douto Despacho não faz a correta aplicação do direito aos factos. 2º - Dispõe o art. 238.º, nº 1, al. g), do C.I.R.E. que “o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.”. 3º - O pedido de exoneração é liminarmente indeferido nos casos taxativamente enumerados no n.° 1 do art. 238° do C.1.R.E., nos quais se definem, pela negativa, os requisitos de cuja verificação depende a exoneração. 4º - O primeiro requisito é ordem processual (o prazo em que deve ser formulado o pedido) e os restantes, de ordem substantiva. 5º - Estes últimos reconduzem-se a três grupos diferentes: - a) o primeiro, respeitante a comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência que, de algum modo, para ela contribuíram ou a agravaram (alíneas b), d) e e) do n.º 1 do art. 238º do C.1.R.E.) - b) o segundo, respeitante a situações ligadas ao passado do insolvente (alíneas c) e 1) do n.° 1 do art. 238° do C.LR.E.) e, finalmente. - c) o terceiro, relacionado com condutas adoptadas pelo devedor que consubstanciem violação dos deveres que lhe são impostos no decurso do processo de insolvência (alínea g) do n.° 1 do art. 238° do C.I.R.E.). 6º - Se não houver motivo para indeferimento liminar, diz o art. 239° n.° 1 do Código em apreço que deve ser proferido despacho inicial que determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade (fiduciário) escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência. 7º - No caso em apreço, refere-se no douto Despacho em crise: …«Ora, na situação em apreço, de tudo o que acima pormenorizada e propositadamente se expôs, resulta, por um lado, que o Sr. Fiduciário e pelo menos um dos credores, pronunciaram-se contra a concessão da exoneração do passivo restante e requerendo a cessação antecipada do procedimento, dado que os insolventes não entregou qualquer valor do devido à fidúcia, nem os documentos comprovativos de parte dos rendimentos. …os insolventes não cumpriram com os seus deveres e, alertados, e durante todo o período de cessão já decorrido para cumprir tais obrigações, não entregaram o valor em falta à fidúcia.» 8º - Ora, ainda que possa admitir-se que os Requerentes/Recorrentes não vieram entregar qualquer valor à fidúcia, justificaram que não tinham condições para o fazer, sob pena da sua subsistência. 9º - Por outro lado, essas omissões não chegam para se concluir que tenha havido uma intenção de, com dolo ou culpa grave, violar os deveres de informação, apresentação e colaboração, muito menos que tais omissões tivessem a finalidade de impedir o tribunal de obter elementos, dos quais decorresse o incumprimento do dever a que alude o nº 1, da alínea d), do citado art. 238º do CIRE. 10º - Não se afigura legítima a conclusão final de que a Insolvente violou o dever previsto no art. 83º, nº 1 a) do CIRE de forma grave porquanto a omissão praticada não permite ao tribunal aferir designadamente, se ocorre ou não culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art. 186º do CIRE. 11º - Com efeito, este normativo, refere no seu n.º1 que a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação dolosa ou com culpa grave do devedor, nos três anos anteriores ao início do processo e no n.º 2, com referência à sua alínea a), acrescenta que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja pessoa singular quando os administradores tenham, além do mais, “destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor”. Finalmente, o artigo 186.º, n.º4 esclarece que o disposto no seu n.º 2 é aplicável, com as necessárias adaptações, à actuação da pessoa singular insolvente. 12º - De facto, sem mais, não pode afirmar-se que a devedora actuou com a finalidade de causar a impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas ou agravar essa situação (dolo directo), ou que, prevendo essa impossibilidade ou o seu agravamento como consequências necessárias e seguras da sua conduta (dolo necessário), ou mesmo que actuou (comportamento omissivo) não confiando que essa impossibilidade ou agravamento não viessem a ocorrer (dolo eventual). 13º - Pode pensar-se que tenha havido alguma imponderação, falta de diligência e de cautela, porém à Insolvente também não foi dada a possibilidade de demonstrar que essa omissão não se deveu a mero esquecimento, ou quiçá à falta de tais elementos, sendo certo que os credores possuem na sua contabilidades dados sobre a data de constituição dos empréstimos, do início do incumprimento e dos valores exatos. 14º - Mas, para além da falta de elementos fácticos dos quais se conclua a existência de dolo ou negligência grave, também não serve de argumento a conclusão constante da decisão recorrida, de que se tratou de omissão dolosa, pelo que referir que preenche a previsão do art. 238º, nº 1 al. g) do CIRE», afigura-se prematura. 15º - Com efeito, ainda que não seja unânime a jurisprudência, sobre a quem compete alegar e provar os requisitos a que alude o artigo 238.º, n.º 1, CIRE, enquanto factos impeditivos do direito. Para uma orientação, cabe ao devedor a prova de tais requisitos. Para outra, a que aderimos, a prova destes requisitos compete aos credores e administrador, considerando que estamos perante factos impeditivos do direito. 16º - Assim, para quem conclua que não é ao devedor que cabe fazer prova dos requisitos do artigo 238.º, n.º 1, CIRE, pois estes constituem fundamento de indeferimento liminar e não factos constitutivos do seu direito, sempre seriam os credores e o administrador da insolvência, que se pretendam prevalecer do indeferimento liminar, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, CC, deveriam ter vindo aos autos elementos que inviabilizassem o deferimento do pedido de exoneração. 17º - Convém não esquecer que estamos em sede de despacho de indeferimento liminar, ainda que sui generis por ser antecedido da audição de credores e do administrador da insolvência (artigo 238.º, n.º 2, CIRE), não estando o tribunal impedido de apurar se houve da parte do Insolvente a intenção de omitir informações ou falsear a verdade. 18º - O incidente de exoneração do passivo restante não fica logo decidido definitivamente com o deferimento a proferir nesta fase processual e na ponderação dos interesses em conflito (devedores versus credores). 19º - Como resulta do art. 239.º/1 e 2, o despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, que a lei denomina período da cessão, o rendimento disponível auferido pelo devedor se considere cedido ao fiduciário, que distribui os rendimentos do devedor nos termos do art. 241.º/1. 20º - E mesmo antes de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, ou do fiduciário, quando o devedor incorra em alguma das situações descritas nas alíneas do n.º 1 do art. 243.º do CIRE. 21º - Nesta fase, o que se lhe faculta ao Insolvente é um período experimental, como que a ver se merece que, a final, lhe seja concedida a exoneração. 22º - Não estão, pois, salvo melhor opinião, provados factos que permitam concluir pela existência de dolo, culpa grave, a intenção de prejudicar os credores, a intenção de se frustrar a pagar aos credores, o prejuízo dos credores e respetivo nexo causal, e a culpa no agravamento da situação como é exigido nas diversas alíneas referidas no despacho de indeferimento. 23º - Mostra-se necessária comprovação da existência de dolo ou culpa grave e que as condutas consubstanciadoras das mesmas tenham sido levadas a cabo com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições ou com o fim de evitar pagamentos aos credores, o que, no caso não se mostra de todo demonstrado. 24º - Inexistem, assim, nos autos, elementos que preencham, nomeadamente, o disposto no art. 238º, nº 1, al. g) do CIRE. 25º - O Douto Despacho recorrido, viola por errada interpretação a aplicação do disposto nos artigos 238º e 243 do CIRE e art.º 18º CRP. “ * Não foram apresentadas contra-alegações. *** * II-FUNDAMENTAÇÃO. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil
A questões a decidir, é a seguinte: Errada interpretação do instituto da cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante. ** * OS FACTOS Os factos com interesse para a decisão da causa e a ter em consideração são os constantes no relatório, e que aqui se dão por reproduzidos, e bem como os seguintes constante das decisão recorrida – embora ocorra duplicação, não podemos deixar de os fazer constar. “A factualidade/elementos a considerar para o efeito é a seguinte: 1) A 13-02-2020 foi proferida decisão a admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes, a fixar o valor indisponível aos insolventes (no total correspondente a dois salários mínimos nacionais), e a encerrar o processo, ainda que com efeitos limitados, por insuficiência da massa insolvente. 2) Na 1.ª informação anual, o Sr. Fiduciário informou que os insolventes não tinham fornecido os elementos relativos aos rendimentos auferidos e, notificados de tal, vieram os insolventes juntar aos autos recibos de vencimentos. 3) Após, veio o Sr. Fiduciário dar conta que não foram enviados os recibos da insolvente dos meses de fevereiro e outubro de 2020 e que sem prejuízo da junção de tais elementos, o rendimento disponível apurado e não entregue relativo ao 1º ano do período de cessão, ascendia à quantia de 2.030,50€. 4) Os insolventes vieram juntar os recibos em falta, mas nada disseram em relação ao valor em dívida à fidúcia. 5) A 16-04-2021 e a 20-05-2021, veio o Sr. fiduciário informar os autos que se mantinha em dívida à fidúcia o valor que anteriormente aludira e que os insolventes não estavam a enviar os elementos relativos ao 2.º ano do período de cessão. 6) Foi proferido despacho a determinar a notificação dos insolventes para que esclarecessem o que tivessem por conveniente quanto à falta de entrega ao Sr. Fiduciário dos valores devidos à fidúcia, bem como para, pretendendo regularizar a situação, diligenciar pela entrega do valor em falta ou apresentar plano para o efeito – devendo tais entregas ocorrer durante o período de cessão, para além de eventuais valores a ceder no futuro, e com a advertência expressa que em causa estava a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante. 7) Os insolventes vieram requerer a entrega em prestações de 50€, pelos motivos a que aludiram, o que foi deferido. 8) A 04-02-2022, veio o Sr. Fiduciário informar que os insolventes não entregaram qualquer valor à fidúcia e não remeteram qualquer informação apesar de notificados para o efeito, pelo que foi novamente determinada a notificação dos insolventes advertindo-os para comprovar o cumprimento das obrigações em causa e advertidos expressamente que seria cessado antecipadamente o procedimento da exoneração do passivo restante. 9) Os insolventes vieram aos autos juntar os documentos em falta e requerer novamente o pagamento em prestações, invocando o facto do valor a entregar se referir aos subsídios de férias e de natal e o destino que lhes davam. 10) O Sr. Fiduciário alertou para o facto de, a entregar em prestações no valor aludido pelos insolventes, estes não iriam conseguir entregar o valor em dívida durante o período de cessão, pelo que os insolventes apresentaram proposta de entrega em prestações de € 100,00. 11) Atendendo ao alegado pelos insolventes e motivos de não estarem a cumprir a obrigação de entrega dos valores à fidúcia, foi proferido despacho, a 26-03-2022, e, pelos fundamentos que do mesmo constam, foi decidido incluir os subsídios de férias e de Natal auferidos pelos insolventes no seu rendimento total anual, e este dividido pelos 12 meses do ano (e só depois se aferir se em cada mês foi ou não ultrapassado o valor do rendimento mensal indisponível fixado pelo tribunal). 12) Atendendo a tal critério, o Sr. Fiduciário informou que o valor em dívida à fidúcia na altura, já contando o 2.º ano, reduzia para 1.229,40€ e 1.012,00€, respetivamente para o 1.º e 2.º anos, totalizando agora o montante de 2.241,40€ em dívida. 13) A 27-07-2022, veio o Sr. Fiduciário informar que os insolventes não regularizaram o montante de 2.241,40€ referente ao valor apurado no 1.º e 2.º ano do período de cessão de rendimentos. 14) Os insolventes vieram, novamente, requerer o pagamento em prestações do valor em dívida e, pelos motivos que constam dos autos, vieram a requerer a prorrogação do período de cessão, o que veio a ser deferido e prorrogado o período de cessão até ao final de agosto de 2024 (mais 17 meses que o período de cessão inicialmente previsto, de forma a permitir a entrega do valor nas requeridas 23 prestações). Mais uma vez foram advertidos os insolventes que o valor de cada prestação deveria contemplar o valor vencido e o valor que se viesse a vencer e devido à fidúcia até ao fim do período de prorrogação requerido. 15) Entretanto, porém, veio o Sr. Fiduciário informar que os insolventes não estavam a cumprir com as entregas das prestações à fidúcia, pelo que foi proferido o despacho de 27-03-2023 a invocar as informações juntas e a determinar a notificação dos insolventes para esclarecerem acerca da pertinência dos autos continuarem a aguardar a entrega das prestações à fidúcia e o fim do período de prorrogação, face ao incumprimento e para juntarem novo plano que preveja a entrega do valor total já vencido, até agosto de 2024, caso pretendessem evitar a recusa da exoneração do passivo restante. 16) A 10-04-2023, vieram os insolventes dizer que estiveram doentes e por isso não entregaram o valor à fidúcia, e a apresentar novo plano para pagamento do valor em dívida à fidúcia. 17) Foi deferido o requerido. 18) Porém, a 20-09-2023, veio o Sr. Fiduciário informar do incumprimento dos insolventes, que não tinham entregue a totalidade dos comprovativos mensais, bem como as prestações do plano proposto. 19) Foi proferido o despacho de 13-10-2023 a invocar o informado pelo Sr. Fiduciário quanto ao não cumprimento, pelos insolventes, das aludidas obrigações e a determinar nova notificação dos insolventes, inclusive pessoalmente, dadas as consequências que para aqueles poderiam advir, e para que comprovassem nos autos a entrega à fidúcia das prestações já vencidas a que se obrigaram, bem como a entrega dos elementos referentes aos seus rendimentos e em falta, com a advertência expressa que em causa estava a cessação antecipada do procedimento da exoneração do passivo restante, agora por referência ao período de prorrogação. 20) Os insolventes apresentaram sucessivos requerimentos de prorrogação de prazo para responderem, o que foi deferido, mas nada vieram comprovar nos autos nem nada mais justificaram. 21) Pelo que, e face ao silêncio dos insolventes, foi determinada a notificação do Sr. Fiduciário para que informasse se os insolventes procederam, entretanto, à entrega à fidúcia do valor das prestações já vencidas a que se obrigaram, bem como a entrega dos elementos referentes aos seus rendimentos e que estavam em falta. 22) A 22-01-2024, veio o Sr. Fiduciário informar que se mantinha o incumprimento dos insolventes, no que respeita à não entrega do rendimento disponível apurado (3.672,80€) e falta de comprovativos dos rendimentos obtidos no 4.º ano do período de cessão. Mais invocou o incumprimento reiterado por parte dos insolventes, das obrigações que sobre os mesmos impendem e requereu a cessação antecipada do procedimento da exoneração do passivo restante. 23) A 15-02-2024 foi, ainda, proferido despacho a determinar a notificação dos insolventes para que se pronunciassem acerca da requerida cessação antecipada do procedimento da exoneração do passivo restante, e para comprovarem nos autos o cumprimento das obrigações em falta, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 243.º, n.º 3, do CIRE. 24) Os insolventes nada responderam. 25) O Sr. Fiduciário veio confirmar que também a ele os insolventes não tinham fornecido os comprovativos de rendimento em falta, nem entregaram qualquer valor. 26) Também o credor “A..., S.A.” veio requerer a cessação antecipada da exoneração do passivo restante.“, numeração nossa para melhor identificação do segmento de facto. ** * DE DIREITO. A norma base que está em causa nestes autos é o disposto no artigo 243.º do CIRE, que tem a seguinte epígrafe, Cessação antecipada do procedimento de exoneração. 1 - Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando: a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência; b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente; c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência. 2 - O requerimento apenas pode ser apresentado dentro dos seis meses seguintes à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respetiva prova. 3 - Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las. 4 - O juiz, oficiosamente ou a requerimento do devedor ou do fiduciário, declara também encerrado o incidente logo que se mostrem integralmente satisfeitos todos os créditos sobre a insolvência. Com relevância para decisão temos o artigo 244.º, com a epígrafe, “Decisão final da exoneração”. 1 - Não tendo havido lugar a cessação antecipada, ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor. 2 - A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior. 3 - Findo o prazo da prorrogação do período de cessão, se aplicável, o juiz decide sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante nos termos dos números anteriores. * Errada interpretação do instituto da cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante. Sustentam, os insolventes, que a mera “mora” do insolvente, não permite, por si só, concluir por ocorrer um incumprimento doloso ou negligência grave das suas obrigações e que que tal tenha causado prejuízo aos credores.
Vejamos o que resulta da decisão recorrida. “(…) Ora, na parte que ora releva, das obrigações impostas aos insolventes constam a de informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado (cfr. n.º 4, al. a)); bem como entregar de imediato à fidúcia eventuais valores obtidos para além do montante fixado como indisponível. A violação destas obrigações, pode ser causa da cessação antecipada do procedimento em curso, conforme resulta do disposto no art. 243.º, n.º 1, al. a), do CIRE, que dispõe: (…) E consagra o artigo 244.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, que “(…)”. Ou seja, deve o juiz recusar a exoneração do passivo restante ou cessar antecipadamente o procedimento, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, ou do fiduciário, quando o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo art. 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência. Ora, na situação em apreço, de tudo o que acima pormenorizada e propositadamente se expôs, resulta, por um lado, que o Sr. Fiduciário e pelo menos um dos credores, pronunciaram-se contra a concessão da exoneração do passivo restante e requerendo a cessação antecipada do procedimento, dado que os insolventes não entregou qualquer valor do devido à fidúcia, nem os documentos comprovativos de parte dos rendimentos. Tal falta de entrega do valor à fidúcia ocorre desde o 1.º ano do período de cessão, e prolongou-se por todo o período inicial e grande parte deste período de prorrogação do período de tal cessão, tendo os insolventes acumulado sempre valor disponível que não cederam, não obstante o tribunal ter permitido que os subsídios de natal e de férias fossem distribuídos pelo ano. E, não obstante todas as restantes oportunidades dadas aos insolventes, designadamente com o pagamento em prestações desde o 1.º ano do período de cessão e posteriormente perante a possibilidade ora legalmente prevista de prorrogação do período de cessão, aqueles nunca conseguiram regularizar a situação (e provavelmente nem tentaram, tendo em conta que não entregaram qualquer valor). Acresce que nunca apresentaram justificação cabal para o incumprimento logo no 1.º ano do período de cessão, nem nunca requereram nem justificaram qualquer alteração do valor indisponível fixado. Deve referir-se, como salienta também o citado aresto, que “diferentemente do caso da revogação da exoneração já concedida (cfr. art. 246.º do CIRE), em que a lei é mais exigente, exigindo o dolo do devedor e um prejuízo relevante, no caso da cessação antecipada do procedimento ou da sua recusa a lei basta-se com uma violação gravemente negligente de qualquer obrigação do insolvente, da qual resulte um prejuízo para a satisfação dos créditos sobre aquele (não precisando de ser relevante)”. Ora, e mais uma vez descendo ao caso em apreço, os insolventes não cumpriram com os seus deveres e, alertados, e durante todo o período de cessão já decorrido para cumprir tais obrigações, não entregaram o valor em falta à fidúcia. Conforme defendido no aludido aresto que temos vindo a citar, o insolvente atua dolosamente desde que tenha a intenção de realizar, ainda que não diretamente, a violação de um daqueles deveres, designadamente quando se decidiu pela atuação contrária ao direito. A concessão do benefício da exoneração pressupõe uma conduta reta e de boa fé dos insolventes no período da cessão, o que não sucedeu, sendo certo que o procedimento da exoneração constitui já um limite ponderado no equilíbrio entre o ressarcimento dos credores e a atribuição aos devedores singulares da possibilidade de se libertarem de algumas dívidas, com vista à sua reabilitação económica. E, a tal instituto não eram os insolventes obrigados a recorrer, pelo que, tendo-o feito, deveriam cumprir as inerentes obrigações. Conclui-se, pois, no caso em apreço, que os insolventes não tiveram o comportamento exemplar que lhes é exigido.”
Este Tribunal de recurso adere na integra à fundamentação e consequentemente ao decidido pelo Tribunal de primeira instância. O despacho inicial sobre o pedido de exoneração do passivo restante, nos termos do artigo 239.º, n.º 2 do CIRE estabelece para período de cessão (actualmente de 3 anos a contar do encerramento do processo de insolvência) o rendimento disponível que os insolventes venham a auferir no futuro com obrigação de o entregar ao fiduciário. Como consequência de tal deferimento, os insolventes ficaram obrigados a cumprir as obrigações que decorrem do artigo 239.º, n.º 4 do CIRE. A violação dolosa ou negligente grave de tais obrigações determina a cessação antecipada do procedimento de exoneração, desde que tais incumprimentos acarretem prejuízo para a satisfação dos créditos – artigo 243.º, n.º 1, alínea a) do CIRE. Estamos perante um caso “anormal” de cessação do procedimento de exoneração do passivo restante. Pois, o normal é que o procedimento tenha o seu fim nos termos do artigo 244.º, n.º 1 do CIRE. “Temos, assim, que a cessação antecipada da exoneração pode ocorrer: - Logo que se verifique a satisfação integral dos créditos da insolvência – art.º 243º, nº 4; - Sempre que o procedimento venha a ser extinto antes de ser concedida ao devedor a exoneração do passivo restante; e - Sempre que, de modo superveniente, se verifique que o devedor não se mostra digno de obter a exoneração. Esta última situação ocorrerá a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência se ainda se encontrar em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, nos casos tipificados no nº 1 do art.º 243.º: a) Se o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência incumprido algumas das obrigações que lhe incumbem em relação à cessão do rendimento disponível - art.º 243.º, n.º 1, a), e 239.º; b) Se vier a ser apurado (supervenientemente) algum dos fundamentos de indeferimento liminar previstos nas alíneas b), e) e f) do art.º 238.º - art.º 243.º, nº 1, b); c) Quando a decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência - art.º 243.º, nº 1, c).”, Ac Tribunal da Relação do Porto, 1201/11.1TBGDM.P1, de 01.07.2021, relatado pelo Des FILIPE CAROÇO, dgsi.pt.
O artigo 243.º do CIRE prescreve também o regime processual para o tratamento de um tal incidente: “2 - O requerimento apenas pode ser apresentado dentro do ano seguinte à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respectiva prova. 3 - Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.”
No caso dos autos, o sr Administrador de Insolvência após as diligências descritas nos autos, veio pedir a cessação antecipada da exoneração do passivo restante – ponto 21) do relatório e ponto 22) da sentença. O credor veio deduzir pedido de cessação antecipada da exoneração do passivo restante– ponto 21) do relatório, e bem como ponto 26) da sentença em crise. Os insolventes, devidamente notificados, não se pronunciaram. Da factualidade dada como provada resulta que os insolventes não procederam a pagamento de qualquer quantia, nem responderam às solicitações de informações formuladas pelo Sr. Fiduciário e pelo Tribunal. Como se comprova, os insolventes optaram por se alhear pro completo às sucessivas interpelações que lhe eram feitas neste autos. Reafirmando, como resulta da factualidade dada como provada, foi devidamente cumprido o disposto no n.º 3 do artigo 243.º do CIRE, designadamente, foram ouvidos os insolventes. Estes nada vieram dizer aos autos.
Constata-se do supra expendido, que a conduta dos insolventes terá que ser uma conduta dolosa ou gravemente negligente que viole alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.°. E que tal violação prejudique a satisfação dos créditos sobre a insolvência. Portanto, estamos perante a obrigatoriedade cumulativa da verificação daquela relação psicológica entre o agente e o facto (dolo ou grave negligência), e a verificação de prejuízo para a satisfação dos créditos e que entre a conduta e o dano exista nexo casual. Com efeito, uma das obrigações que o devedor fica adstrito é: “Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado” – alínea a) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE. De igual modo é obrigado a: “Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão” – alínea b) do n.º 4 do artigo 238.º do CIRE.
Face ao exposto e à descrita factualidade, nenhuma censura merece o silogismo judiciário da decisão em crise, pelo que bem andou o Tribunal a quo ao decidir a dita cessação antecipada da cessão do rendimento disponível. Com efeito, a “A falta injustificada de fornecimento dos documentos necessários ao apuramento dos seus rendimentos, quando solicitados, indicia a sua ocultação e a violação do dever consignado na al. a) do nº 4 do art.º 239º. (…) A inércia dos insolventes configura violação dos deveres previstos nas al.s a) e c) do nº 4 do art.º 239º, ex vi art.º 243º, al. a). É evidente a verificação do elemento intelectual do dolo, à luz das regras da experiência: os devedores não podiam deixar de ter conhecimento dos seus próprios rendimentos, do rendimento disponível, do dever de informar e das obrigações a que estavam obrigados desde o despacho liminar. Já o elemento volitivo do dolo emerge necessariamente da recusa persistente da entrega dos recibos de vencimento pelos quais se descortinaria a existência do seu real rendimento disponível para entrega ao fiduciário. Há uma evidente vontade dos insolventes dirigida ao incumprimento. Está configurada a causa de cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos do art.º 243º, nº 1, al. a), com referência ao art.º 239º, nº 4, al.s a) e c), no que respeita à existência de dolo. “, Ac Tribunal da Relação do Porto, supra citado.
É inequívoco que o comportamento dos insolventes em não prestar as devidas informações ao Sr. Fiduciário e ao Tribunal, designadamente, quanto aos seus rendimentos, de modo repetido, sabendo que os rendimentos não comunicados prejudica os credores, pois assim não vêm satisfeitos os seus créditos, configura comportamento doloso nos termos supra descritos. “A violação será cometida com culpa grave quando, em face das circunstâncias do caso, só um devedor especialmente descuidado no cumprimento das suas obrigações é que não teria cumprido ou cumprido com verdade a obrigação de informação que recaia sobre si - não é requisito de relevância da violação do dever de informação para efeitos da alínea g) que, de tal violação, resulte um beneficio para o devedor ou um prejuízo para os credores, pois tal exigência também não tem o mais leve apoio na letra da lei. Está-se perante um caso em que a lei se basta com o desvalor da acção – neste preciso sentido, por ex. os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, de 18.01.2011, e desta Relação de Coimbra, de 29.01.2013, ambos pesquisáveis em www.dgsi.pt.”, in Ac Tribunal da Relação de Coimbra, 1502/13.4TBLRA.C1, de 15.02.2022, relatado pelo Des JOSÉ AVELINO GONÇALVES, dgsi.pt. No mesmo sentido Acs Tribunal da Relação do Porto, 1193/21.9T8VNG.P1, de 22.11.2021, relatado pela Des EUGÉNIA CUNHA e 6018/12.3TBMTS.P1, de 21.06.2021, relatado pelo Des JOAQUIM MOURA, Ac Tribunal da Relação de Évora, 454/10.7TBGLG.P1, de 10.05.2018, relatado pelo Des CANELAS BRÁS, dsgi.pt. Por fim, é de mencionar o constante no Ac Tribunal da Relação de Lisboa, 24377/11.3T2SNT.L1-7, de 06.03.2018, relatado pelo Des CARLOS OLIVEIRA: O comportamento passivo do devedor insolvente, que ao longo dos 5 anos previstos no n.º 2 do Art. 239.º do CIRE não demonstra qualquer interesse no procedimento destinado à exoneração do passivo restante; não cumprindo despachos que lhe são notificados; não dando conta que mudou de residência; de nada informando o fiduciário durante todo o tempo, apesar de notificado por este para esse efeito; não provando que diligenciou ativamente pela procura de emprego e apenas se inscrevendo no Serviço de Emprego do IEFP depois de notificado para justificar o motivo pelo qual não entregou qualquer valor durante o período de cessão, é sintomático do manifesto desinteresse do requerente e constitui motivo bastante para ser recusada a exoneração do passivo restante, nos termos do Art. 243.º n.º 1 al. a) do CIRE, por negligência grave resultante do incumprimento dos deveres legais impostos pelo Art. 239.º n.º 4 al.s b) e d) do CIRE.“
Por fim, é de anotar que, como se viu, a M.ma Juíza cumpriu os comandos legais, tendo ordenado a notificação pessoal dos insolventes, e bem como a do seu Il. Mandatário. No caso em apreço, não se está perante um qualquer acto, notificação, cuja finalidade seja chamar o insolvente para a prática de um acto pessoal. Como se viu, o fim da notificação era dar a conhecer aos insolventes o teor do constante do relatório do Administrador de Insolvência e sobre ele tomar posição, e bem como comprovar junto do Tribunal o cumprimento das suas obrigações previstas no n.º 4 do artigo 239.º do CIRE.[2] É patente da factualidade descrita e bem como do compulsar dos autos, os insolventes tiveram plena disponibilidade e possibilidade de se pronunciar sobre o teor do ordenado pelo despacho do M.mo Juiz datado de 27.10.2022 e constante do facto 5). Teve, assim, o insolvente à sua disposição, de acordo com a sua vontade, a possibilidade de poder influenciar a decisão do Tribunal que subsequentemente foi tomada, datada de 13.01.2023, que ordenou a cessação antecipada da exoneração do passivo restante. Improcedem, assim, a pretensão dos insolventes. *** * III DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pela R. (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil). * Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil. ……………………………… ……………………………… ……………………………… * Alberto Taveira Artur Dionísio Oliveira Márcia Portela ____________________ [1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria. [2] Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores. |