Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JOÃO RAMOS LOPES | ||
Descritores: | EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE RENDIMENTO INDISPONÍVEL DO INSOLVENTE RENDIMENTO ESTRITAMENTE NECESSÁRIO PARA O SUSTENTO DO DEVEDOR RENDIMENTO CEDIDO AO FIDUCIÁRIO CÁLCULO SUBSÍDIO DE FÉRIAS SUBSÍDIO DE NATAL | ||
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Nº do Documento: | RP202501282031/24.6T8STS-D.P1 | ||
Data do Acordão: | 01/28/2025 | ||
Votação: | MAIORIA COM 1 VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA EM PARTE | ||
Indicações Eventuais: | 2. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - O apuramento do montante razoavelmente necessário ao sustento digno do devedor (art. 239º, nº 3, b) i) do CIRE) é determinado pela valorização casuística das concretas e peculiares necessidades do devedor, actuando a cláusula do razoável e o princípio da proibição do excesso, a ideia de justa medida e de proporção. II - O que está em causa na fixação do rendimento indisponível é garantir aos insolventes o mínimo necessário à condigna existência, ou seja, o necessário a solver as despesas razoáveis para alcançar tal desiderato – não se trata tanto de lhes excluir a possibilidade de realizar despesas que possam ser entendidas como supérfluas ou excessivas em atenção ao seu actual estado de insolvência nem de os afastar de um trem de vida que antes gozavam, mas antes ponderar, em conformidade com a cláusula do razoável e com a proibição do excesso, do grau de compressão do nível de vida (e despesas) que se lhes exige (qual correspectivo da exoneração do passivo restante) para se conformarem ao seu estatuto de insolventes, para tanto ponderando as necessidades (e correspondentes despesas) que a sua concreta situação, razoavelmente, impõe satisfazer para que não fiquem privados do mínimo necessário à condigna existência (e sendo certo que aos insolventes cabe fazer escolhas e ajustar despesas e encargos à nova realidade). III - No cálculo do valor dos rendimentos a ceder ao fiduciário deve observar-se referência anual. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Apelação nº 2031/24.6T8STS-D.P1 Relator: João Ramos Lopes Adjuntos: Raquel Lima Alberto Taveira (vencido)
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
RELATÓRIO
Apelantes (insolventes): AA e BB. Juízo de comércio de Vila Nova de Gaia (lugar de provimento de Juiz 2) – T. J. da Comarca do Porto. * Na petição com que se apresentaram à insolvência e requereram lhes fosse concedida a exoneração do passivo restante, solicitando lhes fosse fixado rendimento indisponível em montante ‘não inferior a quatro salários mínimos, de modo a poder assegurar o mínimo da subsistência do casal’ requerente, alegaram os devedores, AA e BB (ele nascido em ../../1942 e nascida ela em ../../1947), além do mais e no que releva à apreciação da presente apelação, terem como rendimentos as respectivas pensões de reforma (1.300,0€ o requerente varão e 2.800,00€ a requerente mulher), viver sozinhos em habitação em cuja renda mensal despendem 500,00€, gastando cerca de 460€ mensais em telefone, televisão, água e saneamento, gás, electricidade e empregada de limpeza, estando afectados de maleitas e patologias várias que lhes acarretam graves limitações à actividade diária (sendo por isso forçados a contratar empregada de limpeza que realize actividades que os mesmos não conseguem desempenhar), necessitando de medicação (no que despendem cerca de 70€ mensais), para lá de lhes terem sido prescritos, pelo médico dentista, tratamentos dentários que ascendem a milhares de euros (e para os quais não têm comparticipação de qualquer entidade), para os quais solicitaram orçamento/plano de pagamento faseado, também necessitando de óculos (prescritos pelo oftalmologista) que demandam revisão anual e, ainda, necessitar a requerente mulher de aparelho auditivo no que despende, a cada triénio, a quantia de 4.000,00€. Declarada a insolvência dos devedores, foi proferido despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e fixou o rendimento mensal indisponível ‘em 1 salário mínimo nacional e ½ por cada insolvente’ e ‘em 3 salários mínimos nacionais o rendimento indisponível do casal, montante que se considera ser o necessário ao seu sustento digno’, consignando terem os devedores a obrigação de entregar ao fiduciário, em cada ano do período de cessão, os montantes que recebam e excedam 12 vezes o valor fixado. Apelam os insolventes, pretendendo a revogação de tal decisão e substituição por outra que i) fixe o rendimento indisponível do casal em quatro salários mínimos e ii) determine que o valor do rendimento indisponível seja encontrado tendo em conta o valor mensal do Rendimento Mínimo Garantido Anual, extraindo das alegações as seguintes conclusões: I. No apuro dos factos essenciais para o despacho aqui em apreço, o Tribunal recorrido não tomou em conta as despesas médicas que os Recorrentes apresentaram com o seu requerimento inicial e que elencaram nos itens 43.º a 53.º do mesmo. II. Como tal, ponderados os documentos 10 a 13 juntos com o requerimento inicial, deve ser dado como provado o seguinte: a. A cada um dos Requerentes foi prescrito, pelo médico dentista de cada um, tratamentos dentários, o da Requerente mulher orçado em €10.500,00 e do Requerente marido em €18.850,00 b. Ambos os Requerentes usam óculos, prescritos pelo oftalmologista, os quais anualmente necessitam de revisão c. A Requerente mulher necessita também da ajuda de um aparelho auditivo, no que despende cerca de €4.500,00. III. Tal como tem sido entendido pela mais recente jurisprudência de vários Tribunais da Relação, o rendimento correspondente ao antigo salário mínimo, agora retribuição mínima mensal garantida, não deve ser achado assim, mas antes multiplicando o valor mensal considerado para cada ano por 14 meses e dividindo esse valor pelos 12 meses do ano, em particular os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, Acórdão de 27 de fevereiro de 2018, processo 1809/17.1T8BRR.L1-7, do Tribunal da Relação do Porto, Acórdão de 15 de junho de 2020, processo 1719/19.8T8AMT.P1 e do Tribunal da Relação do Porto, Acórdão de 22 de maio de 2019, processo 1756/16.4T8STS-D.P1 IV. O “sustento minimamente digno” é uma decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana, como resulta do artigo 1.º da Constituição, na sua dimensão de preservação do mínimo de subsistência condigna, que será “o mínimo dos mínimos” para se sobreviver. V. Não têm os Recorrentes dúvida que uma decisão justa no que tange à fixação dos seus rendimentos indisponíveis será a que fixar o seu rendimento tendo em conta o valor mensal do Rendimento Mínimo Garantido Anual. VI. Deflui da douta sentença recorrida que a mesma assenta numa interpretação que sublinha, na fixação do valor indisponível do casal, a punição dos Insolventes pela situação de insolvência em que se encontram. VII. Tal como refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 2 de Fevereiro de 2016, as interpretações punitivas da lei correspondem, quantas vezes, a preconceitos e, num domínio em que o conceito de dignidade e a ideia de subsistência são primordiais, o padrão a adoptar deve ser aquele que, sem descurar os direitos dos credores, não afecte o devedor, remetendo-o aos limites de uma sobrevivência penosa, socialmente indigna, sob pena de a proclamada intenção de o recuperar economicamente constituir uma miragem. VIII. A insolvência dos Recorrentes não ficou a dever-se a culpa sua, mas antes ao insucesso de sociedades das quais os Recorrentes se constituíram fiadores, na sequência de uma crise mundial que arrastou consigo todo o tipo de sociedades, até mesmo bancos. IX. No caso dos autos, a penalização dos Recorrentes por força da fixação de um montante indisponível muito baixo, aparece como uma decisão injusta para quem caiu numa situação de insolvência por motivos exógenos à sua vontade. X. Sempre com o devido respeito, é de recusar tal leitura e aplicação punitiva na fixação do rendimento indisponível dos devedores. XI. Os Recorrentes são ambos reformados, um está com 82 anos e o outro com 77 anos, e para além das despesas com a sua residência têm que prover a avultadas despesas com a sua saúde, normais para quem tem a sua idade. XII. O valor que foi fixado pelo Tribunal recorrido, salvo o devido respeito, é insuficiente para assegurar as despesas com o dia a dia dos Requerentes, com a sua residência, os gastos com electricidade, água, gás, telecomunicações, alimentação e vestuário. Aos quais devem ser somados os custos com os medicamentos, com as consultas médicas e com os tratamentos, nomeadamente dentários, auditivos e oftalmológicos, de que os insolventes necessitam. XIII. Considerando todas essas despesas, os 3 salários mínimos nacionais para o casal são manifestamente insuficientes para que estes mantenham uma vida condigna no final da sua vida. XIV. Tendo em atenção principalmente os custos destes com a sua saúde e tendo em conta que estes custos provavelmente aumentarão, atenda a idade de cada um deles, deve o rendimento indisponível dos Recorrentes ser fixado em 4 salários mínimos, calculados estes como 1/12 do valor anual garantido, correspondente a 14 prestações do salário mínimo nacional. Não foram apresentadas contra-alegações. * * Objecto do recurso Considerando a decisão recorrida e as conclusões formuladas nas alegações, o objecto do recurso consiste em apreciar: - da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, - da justeza do montante fixado aos devedores apelantes para o seu sustento minimamente digno, nos termos do art. 239º, nº 3, b), subalínea i), do CIRE, a excluir dos rendimentos a entregar ao fiduciário nomeado (foi fixado o montante correspondente a uma vez e meia o salário mínimo nacional para cada insolvente e em três vezes o salário mínimo nacional o rendimento indisponível do casal, pretendendo os insolventes que seja fixado o rendimento indisponível do casal em quatro salários mínimos), - da referência temporal a utilizar no apuramento do rendimento indisponível -referência puramente mensal, ponderando singelamente os doze meses do ano, como determinado na decisão apelada ou antes referência anual, dividindo o rendimento anual globalmente auferido pelos doze meses do ano, como pretendido pelos apelantes. * FUNDAMENTAÇÃO * Fundamentação de facto Na decisão apelada fez-se constar como relevante, a propósito da questão, a seguinte matéria de facto: 1. Os requerentes apresentaram-se à insolvência por petição inicial de 3.7.2024 e por sentença de 23.7.2024 veio a mesma a ser declarada. 2. Na indicada petição inicial, os requerentes deduziram pedido de exoneração do passivo restante, declarando o disposto no art. 236º, n.º 3 do CIRE, apresentando tal declaração, por si assinada, em 19.7.2024. 3. Os requerentes apresentam um passivo reconhecido provisoriamente no montante de 8.143.382,68€. 4. Foram apreendidos para a massa insolvente bens, encontrando-se em curso a liquidação do ativo. 5. Os requerentes são casados entre si no regime de comunhão de bens adquiridos. 6. O agregado familiar dos requerentes é integrado pelos próprios. 7. Os requerentes alegam (mas não provam) residir em casa na qual despendem 500€, não esclarecendo a que título, e ainda 460€, em água, gás, eletricidade, telefone e televisão, empregada de limpeza. 8. Os requerentes alegam despender ainda cerca de 70€ / mês em medicação e carecer de consultas regulares em diversas especialidades médicas, por serem pessoas de idade avançada e com diversas patologias. 9. Os requerentes encontram-se reformados, auferindo pensões mensais nos valores base de 1338,00€ e 2962,00€. 10. É com as pensões que auferem que os requerentes custeiam as despesas necessárias à sua sobrevivência. 11. Os requerentes não beneficiaram da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência. 12. Os requerentes não forneceram, por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, com dolo ou culpa grave, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza. 13. Não constam do processo nem foram fornecidos até ao momento elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa dos devedores na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art. 186º. 14. Não resulta dos autos nem foi alegado e provado que os devedores, com dolo ou culpa grave, violaram os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do CIRE, no decurso deste processo. 15. Os insolventes não têm antecedentes criminais registados no seu CRC relativos a crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data. * Fundamentação de direito A. A censura da decisão sobre a matéria de facto. Censuram os apelantes a decisão sobre a matéria de facto, pretendendo se considere provado - em vista de suprir a deficiência que tal decisão apresenta (a matéria em causa não mereceu pronúncia do tribunal a quo) -, valorizando os documentos que juntaram com a petição com que se apresentaram à insolvência (documentos juntos sob os números 10 a 13 com tal peça processual), que: - a cada um dos requerentes foi prescrito pelo médico dentista tratamento dentário, o da requerente orçado em 10.500,00€ e o do requerente em 18.850,00€, - ambos os requerentes usam óculos, prescritos por oftalmologista, que necessitam de revisão anual, - a requerente mulher necessita de ajuda de aparelho aditivo, no que despende cerca de 4.500,00€. Reconhece-se que prescrições médicas, recibos, facturas e orçamentos de tratamentos elaborados por entidades que prestam cuidados de saúde são elementos probatórios que permitem concluir, com o grau de probabilidade bastante, face às circunstâncias do caso e às regras da experiência da vida (com o grau de probabilidade suficiente para as necessidades praticas da vida)[1], pela veracidade da matéria que documentam. Assim que ponderando a idade dos requerentes, as patologias e tratamentos que os documentos em causa retratam apresentam grau de probabilidade suficiente para se terem por demonstradas. De aceitar, também, que documentos emitidos por tais entidades (orçamentos, facturas e recibos) são bastantes para demonstrar em juízo (em casos como o presente) o custo de ajudas técnicas (oftalmológicas e auditivas) e de tratamentos prescritos/recomendados/aconselhados. O que vem de dizer-se não significa, porém, que os documentos juntos pelos requerentes demonstrem (retratem) a matéria que pretendem ver demonstrada – melhor, que a demonstrem nos exactos termos por eles pretendidos. Desde logo, não aludem tais documentos a qualquer necessidade de revisão anual dos óculos dos requerentes – apenas demonstram que a devedora consulta oftalmologista e que é também seguida nessa especialidade médica (a primeira folha do documento 10 consubstancia factura/recibo de uma consulta de oftalmologia da requerente mulher) e que o devedor adquire artigos/produtos relacionados com o uso de óculos (o documento nº 12 constitui uma factura emitida e a ele passada concernente a artigos/produtos relacionados com óculos). De tais documentos (ou dos demais documentos juntos pelos requerentes) não se pode concluir (pois que os mesmos não o retratam), como pretendem, que ambos usem óculos e que, anualmente, precisem de os alterar/modificar/rever, com os inerentes custos (atente-se que o relevo de tal materialidade incide nas despesas que daí poderiam advir e que devessem ser atendidas na ponderação a efectuar na determinação do montante a fixar como rendimento indisponível dos requerentes – e a necessidade de tal revisão periódica anual, com mudança de lentes e/ou armações, não se mostra minimamente indiciada, sequer aludida nos documentos juntos pelos requerentes). Relativamente à despesa com o aparelho auditivo – despesa que os apelantes pretendem se julgue existir com natureza periódica (o tempo verbal proposto para o facto que pretendem ver julgado provado isso inculca) –, importa ponderar que o documento junto com a petição (documento 13 – factura concernente à aquisição, em Novembro de 2023, de um aparelho auditivo) demonstra que tal aparelho foi já adquirido em 2023, pelo valor de 4.500,00€; comprova, assim, tal documento, a existência de uma dívida pretérita, contraída previamente à insolvência, e não qualquer despesa futura, muito menos periódica, que deva ser ponderada no juízo que demanda a fixação do rendimento indisponível. Diversamente se tem de concluir quanto aos tratamentos dentários prescritos aos apelantes. Na verdade, demonstra o documento em questão (primeira página do documento 11 quanto à requerente apelante e última página do mesmo documento quanto ao requerente marido) que na sequência de avaliações clínicas dentárias foi proposto pelo dentista: à requerente mulher, uma ‘reabilitação oral com substituição de peças ausentes por implantes e coroas fixas em cerâmica’, importando tal tratamento no valor global de 10.500,00€ (à data de Dezembro de 2023), pressupondo a colocação de sete implantes; ao requerente marido, uma ‘reabilitação oral em edêntulo total com implantes e próteses fixas implanto-suportadas’, importando tal tratamento no valor global de 18.850,00€ (à data de Maio de 2024), pressupondo a colocação de mais de uma dezena de implantes. Procede, assim, parcialmente, a impugnação dirigida à decisão sobre a matéria de facto, devendo aditar-se à factualidade apurada facto (a acrescer aos provados) com a seguinte redacção: - na sequência de avaliações clínicas, foi proposto por médico dentista: à requerente, mulher uma ‘reabilitação oral com substituição de peças ausentes por implantes e coroas fixas em cerâmica’, importando tal tratamento no valor global de 10.500,00€ (à data de Dezembro de 2023), pressupondo a colocação de sete implantes; ao requerente marido, uma ‘reabilitação oral em edêntulo total com implantes e próteses fixas implanto-suportadas’, importando tal tratamento no valor global de 18.850,00€ (à data de Maio de 2024), pressupondo a colocação de mais de uma dezena de implantes. B. O montante do sustento minimamente digno dos devedores. O regime da exoneração do passivo restante, instituído nos art. 235º e seguintes do CIRE, específico da insolvência das pessoas singulares, é um instituto ‘tributário da ideia de fresh start’, sendo propósito da lei ‘libertar o devedor das suas obrigações, realizar uma espécie de azzeramento da sua posição passiva, para que depois de «aprendida a lição», ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua actividade económica ou empresarial’ – o objectivo é, pois ‘dar ao sujeito a oportunidade de (re)começar do zero’[2]. Ao consagrar o instituto da exoneração do passivo restante assumiu o CIRE o propósito de conjugar inovadoramente ‘o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica.’[3] Tributário do conceito de fresh start, o modelo da exoneração adoptado no nosso ordenamento aproxima-se, indiscutivelmente, do modelo do earned start ou da reabilitação – o modelo puro do fresh start baseia-se na ‘ideia de que a liquidação patrimonial e o pagamento das dívidas devem ter lugar no curso do processo de insolvência, sendo que uma vez concluído este, restem ou não dívidas por pagar, o devedor deverá ser libertado de forma a poder retomar, com tranquilidade, a sua vida’; o modelo da reabilitação (earned start) ‘assenta ainda no fresh start mas desenvolve um raciocínio diferente: o raciocínio de que o devedor não deve ser exonerado em quaisquer circunstâncias pois, em princípio, os contratos são para cumprir (pacta sunt servanda)’ e, assim, o ‘devedor deve passar por uma espécie de período de prova, durante o qual parte dos seus rendimentos é afectada ao pagamento das dívidas remanescentes’ e só findo esse período, demonstrado que merece (earns) a exoneração, deverá ser-lhe concedido o benefício[4]. A obtenção do benefício [libertação dos débitos não satisfeitos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste[5] – a exoneração, em rigor, qualifica-se como uma (nova) causa de extinção das obrigações, extraordinária ou avulsa relativamente ao catálogo de causas tipificado nos arts. 837º a 874º do CC[6]; o seu regime ‘implica fundamentalmente que, depois do processo de insolvência e durante algum tempo, os rendimentos do devedor sejam afectados à satisfação dos direitos de crédito remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção dos créditos que não tenha sido possível cumprir por essa via, durante tal período’[7]] justificar-se-á se o devedor observar a conduta recta que o cumprimento dos requisitos legalmente previstos pressupõe (arts. 239º, 243º e 244º do CIRE) – tem de merecer a concessão do benefício. Efectivamente, o incidente de exoneração do passivo restante não pode redundar num ‘instrumento oportunística e habilidosamente empregue unicamente com o objectivo de se libertarem os devedores de avultadas dívidas, sem qualquer propósito mesmo de alcançar o seu regresso à actividade económica, no fundo o interesse social prosseguido’[8]. Não havendo razões para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelo devedor, o juiz proferirá despacho inicial (art. 239º nº 1 e 2 do CIRE) determinando que, durante os três anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência (o período da cessão), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, o fiduciário, para os fins do art. 241º do CIRE (ou seja, pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efectuadas e, por fim, distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência). No final do período da cessão, proferir-se-á decisão sobre a concessão ou não da exoneração (art. 244º, nº 1 do CIRE) e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados (art. 245º do CIRE). O rendimento disponível do devedor objecto da cessão ao fiduciário, nos termos do art. 239º, nº 2 do CIRE, é integrado por todos os rendimentos que ao devedor advenham, a qualquer título, no referido período, com exclusão, no que interessa à economia da presente decisão, do que seja razoavelmente necessário para o seu (e do seu agregado) sustento minimamente digno, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional (art. 239º, nº 3, b), i) do CIRE) e do que seja razoavelmente necessário para outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor (art. 239º, nº 3, b), iii) do CIRE). Estabeleceu o legislador na exclusão prevista na subalínea i) da alínea b) do nº 3 do art. 239º do CIRE, um limite máximo por referência a um critério quantificável objectivamente – o equivalente a três salários mínimos nacionais (sendo certo que este limite máximo pode ser excedido em casos justificados, mas excepcionais) – e um limite mínimo por referência a um critério geral e abstracto – o razoavelmente necessário ao sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar –, a preencher pelo aplicador, caso a caso, conforme as circunstâncias concretas e peculiares do devedor. O critério do ‘razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar’ é matéria de particular complexidade, visando a conciliação de dois interesses conflituantes: um, apontando no sentido da protecção dos credores dos insolventes; outro, na lógica da ‘segunda oportunidade’ concedida ao devedor, visa proporcionar-lhe condições para se reintegrar na vida económica quando emergir da insolvência, passado o período da cessão a que fica sujeito com compressão da disponibilidade dos seus rendimentos[9]. Foi propósito afirmado do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, ao instituir o incidente da exoneração do passivo restante, o de conjugar inovadoramente ‘o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica’[10]. Critério (para se determinar o montante a excluir do rendimento disponível a ceder ao fiduciário – e a reservar, assim, para o sustento do devedor) conformado pela chamada ‘função interna do património, enquanto suporte de vida económica do seu titular’, referindo-se o preceito (a subalínea i) da alínea b) do nº 3 do art. 239º do CIRE), ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar – donde decorre a prevalência da função interna do património sobre a sua função externa (a garantia geral dos credores)[11]. A função interna do património, enquanto alicerce da existência digna das pessoas (suporte da sua vida económica) tem tradução em várias normas da legislação ordinária, designadamente em normas destinadas a conferir justo e adequado equilíbrio entre os conflituantes interesses legítimos do credor (obtenção da prestação) e do devedor (inalienável direito à manutenção de um nível de subsistência condigno), como é o caso do artigo 239º, nº 3, b), i) do CIRE. A exclusão do rendimento a ceder ao fiduciário do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar é exigência do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de direito, afirmado no art. 1º da CRP e aludido também no artigo 59º, nº 1, a) da CRP. Reconhecimento do princípio da dignidade humana que exige do ordenamento jurídico o estabelecimento de normas que salvaguardem a todas as pessoas o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna. Na subalínea i), alínea b), do nº 3 do art. 239º do CIRE está em causa a garantia e salvaguarda do sustento minimamente digno das pessoas – a exclusão prevista no preceito é a ‘resposta natural, forçosa e obrigatória às necessidades e exigências que a subsistência e sustento colocam ao devedor insolvente e ao seu agregado familiar’[12]. A garantia do sustento minimamente digno das pessoas (em última análise, a defesa da dignidade humana) é o fundamento axiológico da norma – e por isso que o artigo 239º, nº 3, b), i) do CIRE consagra um inalienável direito à manutenção de um nível de subsistência condigno. Sendo a determinação do montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar obtido por uma ponderação casuística por parte do intérprete das concretas e peculiares necessidades do devedor e seu agregado familiar, fazendo actuar a cláusula do razoável e o princípio da proibição do excesso[13], pode ter-se por seguro que não está em causa reservar-lhe um montante que assegure ‘apenas e tão só um mínimo de sobrevivência’ – poderá existir a ‘tendência de considerar que o requerente beneficiário da exoneração não pode pretender manter o trem de vida económico prévio à sua agora débil situação económica’, assim devendo ser-lhe ‘reservado como disponível um montante que assegure apenas e tão só um mínimo de sobrevivência, sob pena de não sentir os efeitos da sua quiçá imprudente administração’, mas ‘sustento minimamente digno’ não equivale à ‘atribuição de um mínimo pecuniário de estrita sobrevivência’, não podendo negar-se ao ‘instituto da exoneração a sua finalidade precípua de regeneração do insolvente para voltar à inclusão económica e social, expurgado de um passivo que não consegue solver’[14]. De excluir, pois – num campo onde intervém o conceito de dignidade, a ideia de subsistência digna –, interpretações punitivas, devendo erigir-se como padrão de referência ‘aquele que, sem descurar os direitos dos credores, não afecte o devedor, remetendo-o aos limites de uma sobrevivência penosa, socialmente indigna, sob pena de a proclamada intenção de o recuperar economicamente constituir uma miragem’[15]. O critério geral e abstracto utilizado pela lei para a determinação do montante mínimo do sustento digno do devedor (‘o razoavelmente necessário ao sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar’) tem, pois, como referencial primordial, a existência condigna do insolvente, ponderando a sua concreta situação, o que aponta para as peculiaridades e singularidades de cada pessoa. Deve aceitar-se que tal critério geral e abstracto para determinação do montante mínimo do sustento digno do devedor deve ser harmonizado e conjugado com a ponderação efectuada pelo ordenamento jurídico quanto ao que deva ser considerado como o montante mínimo para acudir às despesas inerentes a uma existência condigna – o salário mínimo nacional (remuneração mínima mensal garantida, de acordo com a actual designação legal que a estabelece – para o pretérito ano de 2024, o DL n.º 107/2023, de 17/11, fixou tal valor em 820,00€, sendo que tal valor ascende já, desde 1/01/2025, por força do DL 112/2024, de 19/12, a 870,00€) deve considerar-se como ‘o montante mínimo para acudir às despesas inerentes a uma vida que se pretende seja vivida com dignidade, tendo em conta despesas’ de sobrevivência, ‘como são as relacionadas com a habitação, alimentação, vestuário, consumos de bens essenciais (água, luz, transportes) e assistência médica’, constituindo, assim, o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, não podendo nenhum devedor ser ‘privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar uma vida digna’; utilizando a lei (subalínea i), alínea b), do nº 3 do art. 239º do CIRE) como referência quantitativa o salário mínimo nacional para estabelecer o limite máximo isento da cessão do rendimento disponível, a tal referência se deve atender também para, em cada caso concreto, a partir dele, se ponderar o quantum que deve considerar-se como o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar[16]. Porém, ainda que deva entender-se que a remuneração mínima mensal garantida contém a ponderação do ordenamento jurídico sobre o que se deve ter por mínimo de remuneração estritamente indispensável à satisfação das necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador[17] (e assim que a remuneração mínima mensal garantida é tida pelo ordenamento como o montante estritamente indispensável mínimo à satisfação das necessidades impostas pela sobrevivência digna do devedor[18]), sempre o montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar terá de ser determinado pela valorização casuística das concretas e peculiares necessidades daquele (e seu agregado familiar, seja esse o caso), fazendo operar a cláusula do razoável e o princípio da proibição do excesso, a ideia de justa medida e de proporção – justa medida, cláusula do razoável e proibição do excesso que devem sempre reflectir-se na fixação do montante do rendimento indisponível do devedor em vista de prover à sua condiga existência, qual primordial referência na concreta ponderação dos interesses conflituantes (como se disse, o interesse do devedor em prover às necessidades fundamentais duma existência digna e o interesse dos credores em solver, tanto quanto possível, os seus créditos). As particulares necessidades do devedor devem ter tradução no montante a considerar como razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor – e por isso que o art. 239º, nº 3, b), ii) do CIRE prevê que, excepcionalmente, tal valor possa exceder três vezes o salário mínimo nacional. A decisão apelada entendeu como sustento minimamente digno dos insolventes/apelantes o montante equivalente a uma vez e meia o salário mínimo nacional para cada um deles e de três salários mínimos nacionais para o casal (montante que considerou ‘ser o necessário ao seu sustento digno’). Vem-se entendendo que nos casos de coligação de insolventes (como é o caso dos autos) se deve individualizar o rendimento indisponível de cada um deles, pois não existe ‘fundamento legal para, no caso de ambos os membros do casal terem sido declarados insolventes e lhes ter sido concedida a exoneração do passivo restante, se atribuir um valor global não discriminado’, sem que se deixe de enfatizar que deve considerar-se que a economia familiar importa peculiar gestão dos rendimentos auferidos[19] e por isso que caso haja sido respeitada tal autonomia de patrimónios e feita uma tal fixação individual tem a mesma de ser havida como fixada em favor do rendimento familiar (não em contra ou em desfavor deste)[20] - pondera-se que quando se trata de um casal de insolventes, a exclusão do valor considerando necessário para cada um (no juízo de apuramento do sustento minimamente digno) deve ser conjuntamente imputada nos rendimentos agregados de ambos (independentemente do que cada um aufira), afastando-se a simples exclusão individual, autónoma e separada. Assim o fez a decisão apelada, nessa parte não impugnada – os devedores apelantes questionam tão só o valor do rendimento indisponível, que entendem ter sido ponderado com avareza, pretendendo seja fixado em montante equivalente a quatro salários mínimos (isto, é, ponderando o valor da remuneração mínima mensal garantida para o ano de 2005, pretendem seja fixado o rendimento indisponível mensal do casal no valor de 3.480€). Não se tendo apurado que os insolventes tenham particulares ou especiais necessidades, a bitola a ponderar é a da normalidade – ou seja, têm necessidades de saúde ajustadas à idade (ele nascido em ../../1942, ela nascida em ../../1947), que se vão incrementando em razão dos cuidados acrescidos que o acumular dos anos vai aportando. A circunstância de lhes ter ido proposto, na sequência de avaliação clínica, a realização de tratamentos de reabilitação oral (a colocação de implantes e próteses dentárias – tratamento orçado em montante superior a dez mil euros quanto à apelante, em montante próximo dos dezanove mil euros no caso do apelante) não altera o que vem de dizer-se – trata-se de cuidados de saúde de natureza extraordinária, que assumem esta magnitude em razão de terem descurado, no passado, a saúde oral (veja-se a quantia de implantes que tais tratamentos pressupõem), sendo por isso que a sua realização deve pelos devedores ser ponderada em atenção ao critério de justa medida, de proporção, também em referência à cláusula do razoável e da proibição do excesso (certamente em pagamentos prestacionais – os valores são incompatíveis com outra forma de cumprimento que não o pagamento prestacional). Não pretende significar-se que a situação de insolvência lhes imponha prescindir de tais tratamentos – o que se trata é de afirmar, positivamente, que aos insolventes se impõe a realização de escolhas, mais comedidas e austeras no período da cessão, atendendo a que a sua particular situação implica (em vista da obtenção do benefício da exoneração) a compressão das despesas[21] (um dever de adaptação a nível de vida condizente com o estatuto da insolvência, contrapartida decorrente da concessão do benefício da exoneração[22], cabendo ao devedor adequar-se à condição de insolvente, ajustando as despesas e encargos à nova realidade[23]). O que está em causa na fixação do rendimento indisponível é garantir aos insolventes o mínimo necessário à condigna existência, ou seja, o necessário a solver as despesas razoáveis para alcançar tal desiderato – não se trata tanto de lhes excluir a possibilidade de realizar despesas que possam ser entendidas como supérfluas ou excessivas em atenção ao seu actual estado de insolvência nem de os afastar de um trem de vida que antes gozavam, mas antes ponderar, em conformidade com a cláusula do razoável e com a proibição do excesso, do grau de compressão do nível de vida (e das despesas) que se lhes exige (qual correspectivo da exoneração do passivo restante) para se conformarem ao seu estatuto de insolventes, para tanto ponderando as necessidades (e correspondentes despesas) que a sua concreta situação, razoavelmente, impõe satisfazer para que não fiquem privados do mínimo necessário à condigna existência (e sendo certo que aos insolventes cabe fazer escolhas, ajustar despesas e encargos à nova realidade). Atendendo ao montante dos rendimentos do casal (cerca de 4.300€ mensais - ele com pensão de reforma mensal de 1.338,00€ e ela com reforma mensal de 2.962,00€) e às despesas correntes que alegam suportar (habitação, electricidade, gás, comunicações) e às que se devem (factos notórios – art. 412º do CPC) ter atenção a título de alimentação, vestuário e saúde (quanto a estas, apenas as ordinárias, ainda que com incremento ajustado à idade), apelando ao critério do razoável prescrito na lei (em vista de conciliar os dois interesses em presença, um traduzido na função interna do património, e o outro conformado pela sua função externa – sem olvidar que ao devedor se exige a assumpção de comportamento que, de acordo com as suas capacidades económicas, retribua o sacrifício imposto aos credores, que vêm extintos os seus créditos por força do instituto da exoneração do passivo restante) e ao princípio da proibição do excesso, a decisão recorrida mostra-se justa, adequada, equilibrada e ponderada – o valor equivalente a três vezes a remuneração mínima mensal garantida (retribuição mínima mensal garantida que no corrente ano de 2025 ascende a 870€) mostra-se adequado[24] a proporcionar aos apelantes o necessário a permitir escolhas (de despesas) condizentes com uma existência condigna. Improcede, pois, neste segmento, a apelação, mantendo-se a fixação do rendimento indisponível do casal no valor mensal equivalente a três vezes a remuneração mínima garantida. C. A referência temporal a utilizar no apuramento do valor a ceder ao fiduciário. A decisão censurada estabeleceu a observância de referência temporal mensal em vista do apuramento do valor a ceder ao fiduciário, contra o que se insurgem também os apelantes. Não sufragamos o entendimento da decisão apelada, pois tem-se como legal atender à referência anual – essa a única forma de assegurar que, durante todo o período de cessão de rendimentos, o devedor usufrui o valor fixado como indispensável ao seu sustento minimamente digno (art. 239º, nº 3, b), i) do CIRE), pois que a dignidade de tal sustento se impõe dia a dia, durante todos e em cada um dos meses, ao longo do ano[25]. Diferente solução não seria compaginável com o princípio da dignidade humana, não se compreendendo que dispondo um devedor de rendimento anual que, proporcionalmente distribuído pelos meses do ano, lhe permita aproximação ao que foi fixado como o mínimo (mensal) necessário à sua subsistência (mas sem sequer o atingir nos meses do ano em que não recebe os subsídios), pudesse ser privado da garantia de tal subsistência minimamente digna por nos meses de recebimento dos subsídios de férias e de Natal (acaso em tais meses o valor mensal auferido – somado o valor do salário/pensão ao do subsídio – suplantasse aquele), considerando o cálculo mensal, ter de ceder à fidúcia o excedente relativamente ao valor fixado como rendimento mensal indisponível – não operando a diluição mensal desse rendimento regular anual acumulado em subsídios de férias e de Natal, o devedor poderia então não só não atingir, em cada mês, o valor equivalente ao rendimento indisponível fixado, como nos meses de pagamento de tais subsídios poderia vê-los afectados à cessão e, assim, paradoxalmente, ainda que se pretendesse garantir-lhe um rendimento minimamente digno, acabaria o mesmo por lhe ser parcialmente retirado, deixando-a abaixo do limiar de subsistência que se entendeu ser de conferir-lhe (numa situação de ‘pobreza indevida e inaceitável’ à custa de um rendimento que, em rigor, lhe estava reservado, por ser indisponível à luz do art. 239º, nº 3, b) do CIRE)[26]. Sendo a retribuição mínima mensal garantida recebida catorze vezes por ano (artigos 263º e 264º, nº 1 do Código do Trabalho), pode afirmar-se que o mínimo digno de sustento terá de reportar-se à retribuição mínima anual garantida[27] – conceito de retribuição mínima anual garantida adoptado pelo legislador no art. 3º, alínea a) do DL 158/2006, de 8/08 (diploma que estabelece os regimes de determinação do rendimento anual bruto corrigido e de atribuição do subsídio de renda nos arrendamentos para habitação). Os subsídios de férias e de Natal são parcelas de retribuição e ‘não extras para umas férias ou um Natal melhorados’ – por isso que no cálculo da retribuição mínima mensal garantida têm de considerar-se, proporcionalmente, tais subsídios: a retribuição mínima nacional anual é constituída pela retribuição mínima mensal garantida multiplicada por 14, pelo que o apuramento desta última se obtém dividindo a remuneração mínima anual garantida (os 14 pagamentos dos salários ou pensões) por doze, sendo este o valor médio mensal que as pessoas dispõem para o seu sustento e que o Estado entende como o mínimo necessário para o sustento digno[28]. Solução[29] que tutela efectivamente o interesse garantido pelo art. 239º, nº 3, b), i) do CIRE e que é conforme ao princípio da equidade na aferição e distribuição dos rendimentos – importa assegurar ao insolvente, durante todo o período da cessão, o valor judicialmente fixado como seu sustento minimamente digno (e do seu agregado) e só o seu cômputo com base numa matriz anual permite alcançar tal desiderato, salvaguardando os princípios constitucionais da equidade, confiança e tutela efectiva[30]. Impõe-se assim observar referência anual na fixação do rendimento indisponível, dividindo o rendimento anual globalmente auferido pelos devedores insolventes pelos doze meses do ano - ou seja, no ano, devem somar-se todas as pensões de cada um dos insolventes (incluindo subsídios de Natal e de férias) e dividido o total por doze, assim se apurando o rendimento disponível a ceder à fidúcia relativamente a cada um dos doze meses do ano. C. Síntese conclusiva. Em razão do exposto, procede parcialmente a apelação, mantendo-se a fixação do rendimento indisponível do casal insolvente em montante mensal equivalente a três vezes a remuneração mínima garantida, mas determina-se que no cálculo do valor a ceder ao fiduciário se observe referência anual – ou seja, que se somem todas as pensões auferidas por cada um dos insolventes durante o período anual (incluindo subsídios de férias e de Natal) e tal valor seja dividido por doze, assim se apurando o rendimento mensal disponível a ceder à fidúcia. Os argumentos decisórios podem sintetizar-se (nº 7 do art. 663º do CPC) nas seguintes proposições: ……………………………………………. ……………………………………………. ……………………………………………. *
DECISÃO * Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível, na parcial procedência do recurso, em manter a fixação do rendimento indisponível do casal de insolventes no valor mensal equivalente a três vezes a remuneração mínima garantida, determinando que no apuramento do valor a ceder à fidúcia se observe referência anual, nos termos que se deixaram expostos. Custas pela massa insolvente. *~
Porto, 28/01/2025 (por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem) João Ramos Lopes Raquel Lima Alberto Taveira – [Voto[31] de vencido: Não acompanho a decisão pelas seguintes razões: Os subsídios de férias e de natal são considerados prestações complementares destinadas a retribuir o trabalhador, em alturas do ano em que os gastos são mais elevados, com um acréscimo monetário destinado, justamente, a permitir a satisfação dessas necessidades. Estamos perante rendimentos que visam a satisfação das necessidades básicas da pessoa que aufere tais rendimentos, mas que não podem ser considerados imprescindíveis e, nesse sentido, devem ser adstritos ao pagamento dos credores. A referência do salário mínimo nacional fundamenta-se no entendimento que o Tribunal Constitucional tem explanado no sentido de que constitui uma remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades decorrentes da sobrevivência digna do trabalhador. A Lei constitucional e a lei ordinária quando se refere ao mínimo indispensável, não o faz com referência a uma remuneração anual, mas sim mensal. Entendo assim que está afastada a possibilidade do achamento do rendimento indisponível do insolvente ser determinado, quer seja por referência a um cálculo anual, quer o afastamento dos subsídios de férias e de Natal. Os subsídios de férias e de natal, tal como outras prestações retributivas auferidas pelo devedor, integram ou não o rendimento indisponível consoante se contenham no ou excedam o valor fixado como indisponível. Julgaria, pois, em conformidade, pela improcedência da apelação, neste segmento (aludido em C) da fundamentação).]
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