Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
950/11.9PIVNG.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME HABITUAL
PRINCIPIO NE BIS IN IDEM
CASO JULGADO
Nº do Documento: RP20151028950/11.9PIVNG.P2
Data do Acordão: 10/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O principio ne bis in idem engloba uma verdadeira proibição de dupla perseguição penal, sempre que tenha ocorrido um qualquer ato processual do Estado que represente uma tomada definitiva de posição relativamente a determinado facto penal, quer seja através de uma sentença, do arquivamento do inquérito pelo MºPº, da decisão de não pronuncia pelo Juiz de Instrução Criminal, da declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, prescrição do procedimento criminal ou até por mera desistência de queixa.
II – E engloba não só o que foi conhecido no 1º processo mas também o que ai poderia ter sido conhecido.
III – O crime de violência domestica é um crime habitual ou de reiteração, onde as várias condutas isoladas são unificadas pela violação do mesmo bem jurídico (a saúde, física, psíquica e mental), nele se exaurindo ou esgotando.
IV- Se um dado facto, embora novo, se integra no mesmo pedaço de vida do arguido e da vitima subsumível ao crime de violência doméstica, já definitivamente julgado, é abrangido pelo caso julgado e a sua consideração autónoma viola o principio ne bis in idem.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 950/11.9PIVNG.P2
Gondomar

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
- 2ª secção criminal –
Relatora: Fátima Furtado; adjunta: Elsa Paixão.

I. RELATÓRIO
No processo comum singular nº 950/11.9PIVNG, da instância local de Gondomar, secção criminal, juiz 2, da comarca do Porto, foi submetido a julgamento o arguido B…, com os demais sinais dos autos.
A sentença, proferida a 5 de fevereiro de 2015 e depositada no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, decido:
a) Condenar o arguido B…A como autor material de um crime de ameaça, previsto e punível pelo art. 153.º, n.º 1, do CP, na pena de 10 (dez) meses de prisão, pena de prisão suspensa pelo período de 1 (um) ano;
b) Subordinar o período de suspensão a regime de prova e aos seguintes deveres e obrigações: pagamento, durante o período da suspensão, à assistente da quantia fixada na alínea d) deste dispositivo; obrigação de não contactar a assistente, por qualquer forma;
c) Condenar o arguido nas custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC;
d) Condenar o demandado B… a pagar à demandante C… a quantia de €2.000,00 (dois mil euros), quantia acrescida juros de mora a contar da data da presente sentença e até efectivo e integral pagamento, à taxa de 4%;
e) Não condenar em custas na parte cível por dela estarem isentos – art. 4.º, n.º 1, n), do RCP.
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Após trânsito, envie boletim à DSIC e solicite a elaboração de plano à DGRS.
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Após trânsito, abra vista para eventual cúmulo com a pena aplicada no processo n.º 949/10.2SLPRT, que correu termos na 4.ª vara criminal do Porto.
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Deposite a presente sentença na secretaria deste tribunal – art. 372.º, n.º 5, do CPP.”
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Inconformado, o arguido recorreu, apresentando a competente motivação, da qual extrai as seguintes conclusões:
A. “O Recorrente deve ser absolvido do crime de ameaça por que foi condenado e julgado improcedente o pedido de indemnização civil.
B. Os factos b) a k) e t) a v) devem ser julgados como não provados, o que resulta da reapreciação da prova produzida em audiência.
C. A sentença recorrida reflete na fundamentação apenas uma parte da prova que foi produzida em audiência.
D. Os factos acusados e consubstanciadores do crime de ameaça são situados imediatamente em frente da Esquadra da PSP de ….
E. Tal ocorrência foi presenciada pelo Agente da PSP D…, que elaborou auto da ocorrência, que consta de fls. 4 do inquérito nº 1417/11.0PEGDM apenso a estes autos. Agente que ouvido em audiência de discussão e julgamento confirmou o teor do auto e que o que do mesmo consta corresponde ao que observou (cfr. acta da audiência de 12-01-2015, depoimento gravado com início pelas 16:52:52 e fim pelas 17:07:42).
F. Relativamente a este auto da PSP, a Sentença recorrida não lhe dedica sequer uma linha.
G. Nesse auto não são descritas quaisquer ações ou palavras observadas pelo senhor Agente, por parte do Recorrente, dirigidos à Ofendida.
H. Os depoimentos das testemunhas E… (cfr. acta da audiência de 12-01-2015, depoimento gravado com início pelas 16:26:02 e fim pelas 16:42:07), F… (cfr. acta da audiência de 12-01-2015, depoimento gravado com início pelas 16:01:41 e fim pelas 16:26:00) e C… (cfr. acta da audiência de 12-01-2015, depoimento gravado com início pelas 15:20:30 e fim pelas 16:01:38) foram definidos na sentença como sendo credíveis e sinceros, mas na realidade não se mostram credíveis e foram contraditórios entre si e com o restante da prova produzida.
I. A secretária da testemunha F…, E… afirma ter tido um papel meramente apaziguador da ocorrência e o auto da PSP refere que se envolveu em insultos e agarrões com o Recorrente;
J. A prima da ofendida, F…, afirma que o Recorrente ainda dirigia palavras à ofendida, barafustava, gesticulava, sem auto-controlo quando regressou ao local com o agente da PSP vinda da esquadra dizendo que este “logo desceu as escadas”. Por sua vez, o mesmo agente da PSP não refere quaisquer ações concretas, palavras ou ameaças do Recorrente dirigidas à ofendida;
K. A testemunha e ofendida C… depôs pormenorizadamente sobre as ações do Recorrente e da testemunha E… afirmando que esta não se envolveu em contactos físicos com o Recorrente (disse que esta estava do lado oposto do carro). Mais, nem sequer referiu que teve de se baixar no carro com a cabeça entre as pernas, ao contrário do que afirmaram as restantes testemunhas, o que contraria a fundamentação vertida na sentença de que este gesto serve como pedra de toque para demonstrar que a ofendida fora ameaçada.
L. Tal como a prima F…, a ofendida C… afirmou que quando chegou o agente da PSP, o Recorrente, exaltado, gesticulava, e afirmava que tinha de falar com a ofendida. O agente da PSP não refere ações, palavras ou ameaças do Recorrente dirigidas à ofendida.
M. Em decorrência, não é verdade que o Recorrente houvesse desistido dos seus propósitos face à ofendida aquando da chegada da Polícia, como referem os factos provados, quando o próprio agente não relatou ter observado esses intentos.
N. A sentença recorrida afirma a existência de discrepâncias entre os depoimentos mas justifica-os pelo passar do tempo e que as mesmas não assumem carácter desvalioso. No entanto, a sentença recorrida não as descreve ou analisa para que se perceba o itinerário crítico que permite ao Tribunal chegar a tal conclusão. Nem sequer descreve ou analisa as concretas ações e palavras que as testemunhas atribuem ao Recorrente.
O. Sendo estes depoimentos contraditórios impõem, para além da não prova directa dos factos h) a k), a não prova dos factos e) a g), e as afirmações neles contidas de “atitude persecutória” do Recorrente, perseguição automóvel deste e receio de que o Recorrente agredisse a ofendida.
P. A testemunha G…, funcionário bancário na dependência de …, estando presente nos factos dados como provados b) a d) não afirmou que o Recorrente houvesse proferido quaisquer ameaças dirigidas à Ofendida. Confirmou que o Recorrente se deslocou aquela dependência tendo este realizado um depósito bancário – situação que foi confirmada pela própria Ofendida. Teve a percepção que o Recorrente também procurou falar com a Ofendida sobre assuntos não relacionados com o banco, afirmou que o Recorrente saiu daquela dependência pacificamente após ter lhe ter sido comunicado que assuntos particulares não poderiam ser falados dentro do banco.
Q. Por isso os factos provados b) a e) devem ser julgados como não provados quando deles se retira que o Recorrente se deslocou aquele banco apenas para tratar de assuntos particulares e que insistiu de forma anómala às regras da urbanidade, no contacto com a Ofendida, a qual se conclui da narração dada a esses factos provados.
R. Em decorrência de tudo o exposto, quanto à impugnação da matéria de facto e à não existência de prova dos factos b) a k) quanto ao crime de ameaça, os factos t) a v) relativos a danos morais resultantes do crime de ameaça devem causalmente ser julgados não provados e o P.I.C. julgado improcedente.
S. Nestes autos, o Recorrente foi inicialmente acusado por mais um crime de violência doméstica face à ofendida (crime pelo qual já havia sido julgado e condenado no Proc. 949/10.2SLPRT (4ª Vara Criminal do Porto) em 2 anos e seis meses de prisão suspensa na execução), tendo sido não pronunciado quanto ao mesmo e pronunciado agora quanto à prática de um crime de ameaça.
T. Na Sentença recorrida, a condenação naquele processo volta a ser chamada à colação na fundamentação, como um dos índices para a condenação do Recorrente nestes autos, com a menção da certidão do acórdão condenatório por violência doméstica, autonomamente, nos factos provados e a menção da violência doméstica na fundamentação dos elementos objectivos e subjectivos do crime de ameaça. Sendo mesmo dito que os factos destes autos não são “uma mera ameaça”.
U. Os factos discutidos neste processo surgem três dias após os últimos que foram julgados no processo 949/10.2SLPRT.
V. No Processo nº 949/10.2SLPRT foi atendido, quanto aos diversos episódios espaçados no tempo nele integrados (em período que situa entre 2003 e 2011), e concretamente até à data de 16/09/2011, o quadro de uma única – unidade - de intenção criminosa e afirmado um todo de sentido de desvalor jurídico-penal dominante: o crime de violência doméstica.
W. Pelo que se afigura insofismável que o episódio destes autos nunca se pode enquadrar com autonomia face aqueles outros já julgados no Proc. 949, não se tratando de situação de concurso real de crimes, crime continuado ou renovação de intenção criminosa.
X. O episódio discutidos nestes autos integra o mesmíssimo quadro motivacional do relacionamento entre os sujeitos processuais, que originou a condenação do Recorrente naquele processo por um crime de violência doméstica, assumindo este crime o todo de ilícito e de desvalor jurídico-penal dominante.
Y. Sendo evidente que a condenação do Recorrente em prisão, na medida de 10 meses, próximo do seu limite máximo (porque não é uma “mera ameaça” diz a Sentença), teve em conta de facto um novo julgamento que assimilou no processo cognitivo do julgador, os factos provados e o crime por que foi condenado no processo 949.
Z. Agravando desde logo a situação penal do Recorrente ainda a montante do cúmulo jurídico que ocorrerá posteriormente em virtude do funcionamento das regras do conhecimento superveniente do concurso (que agora já será real) de crimes!.
AA. Na sentença é levada em conta tacitamente um novo sentido autónomo de ilicitude (sem que se afirme a causa da autonomia face ao processo 949 que se pressente ser apenas o atraso na tramitação deste último processo), situação que foi negada expressamente no processo nº 949/10.2SLPRT. Este que qualificou todas as condutas nele inseridas (2003 a 2011) como um crime unitário.
BB. Pelo que os factos ora julgados teriam de ter sido integrados no Proc. 949/10.2SLPRT e objecto de decisão naquele processo pelo crime de violência doméstica discutido naquele processo.
CC. A ausência de um entendimento unívoco quanto ao tratamento dos diferentes factos nestes autos e no processo 949 é evidente, e fere a certeza e segurança jurídicas.
DD. A não afirmação expressa ou sequer tratamento crítico na sentença recorrida da análise de um distinto quadro motivacional, de resolução ou um sentido de desvalor distinto do exposto no processo nº 949/10.2SLPRT implica que o Recorrente deve ser absolvido deste crime por que foi condenado autonomamente, não existindo verdadeiro concurso real de crimes.
Sem prescindir, caso assim não se considere,
EE. O Recorrente foi condenado na pena de prisão de 10 meses, fundamentando a medida da pena, próxima do seu limite máximo, entre outros, na prática de crime de violência doméstica, cuja condenação é posterior aos factos discutidos nestes autos, sendo estes contemporâneos aos discutidos naquele processo nº 949/10.2SLPRT.
FF. Mostrando-se inverificado quanto ao crime de violência doméstica que este possa funcionar como elemento que demonstre que o Recorrente atuou com culpa agravada por não se conformar com condenação anterior pelo crime de violência doméstica. Condenação que de resto, é bastante posterior.
GG. No processo nº 949 a medida da pena foi fixada a menos de metade da moldura penal do crime de violência doméstica. Sendo pois manifestamente excessiva a medida da pena de 10 meses de prisão pelo crime de ameaça.
HH. É ilegal a suspensão da pena de prisão condicionada ao pagamento de pedido de indemnização civil quando os factos provados não comportam qualquer averiguação prévia da situação financeira do Recorrente quanto aos respectivos rendimentos periódicos no período designado para o pagamento, mostrando-se violado o comando previsto na lei criminal de que os deveres impostos não podem em caso algum representar obrigações cujo comprimento não seja razoavelmente de exigir ao arguido. Critério de razoabilidade cuja apreciação a sentença recorrida omitiu.
II. Normas jurídicas violadas:
Artº 51º, 71º, 153º, todos do Código Penal
Artº 374º/2 do Código de Processo Penal
Artº 29º/5 da Constituição da República Portuguesa”
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação do Porto, por despacho datado de 23 de março de 2015.
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O Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu, concluindo que:
1. “A prova produzida em audiência de discussão e julgamento é suficientemente elucidativa da prática dos factos pelos quais o arguido vinha acusado e evidenciaram o seu cometimento.
2. Com efeito, a prova produzida, apreciada, ponderada ao longo da audiência de discussão e julgamento foi valorada pelo tribunal segundo os cânones legais — cfr. artigo 127.º do Código de Processo Penal —, suporta objectivamente os factos dados como assentes na sentença recorrida e empresta a todo o processo decisório de formação da convicção do Mmo. Juiz, foros de justeza, correcção e comportabilidade juridicamente.
3. Na verdade, o recorrente, pegando nas declarações por si prestadas — nas quais, relatou uma versão em tudo inverosímil e nada compatível com as regras da experiência de vida — pretende retirar credibilidade às declarações prestadas pela ofendida e aos depoimentos prestados pelas testemunhas que a acompanhavam, F… e E…, empolando «o acessório» e pretende fazer crer a esse Venerando Tribunal que o Mmo. Juiz a quo julgou mal e erroneamente, alegando que o Mmo. Juiz a quo escrutinou à exaustão as declarações por si prestadas ao invés do que fez com os depoimentos prestados quer pela ofendida, quer pelas duas testemunhas acima referenciadas, por contraposição ao depoimento do senhor agente da Polícia de Segurança Pública D….
4. Todavia, o recorrente parece olvidar que face à inverosimilhança do que por si foi declarado, tais declarações mereceram uma análise circunstanciada pelo Tribunal para demonstrar por que motivos as mesmas não mereciam qualquer credibilidade ou aparência de realidade.
5. Por contraposição, os depoimentos das demais testemunhas mostraram ser, em grande parte, coincidentes — até por que a realidade não é estática mas dinâmica e as percepções de cada um são diversas — pelo que as discrepâncias que existiram entre tais depoimentos não se mostraram relevantes no que ao cerne e objecto dos autos se refere.
6. E desde logo se destaca, em primeiro lugar, que as referidas testemunhas estavam presentes e, à excepção do senhor agente de autoridade, presenciaram a quase totalidade dos factos.
7. Depois, o desenrolar dos factos faz com que cada pessoa que o vivenciou tenha a sua própria perspectiva dos mesmos, tendo-se verificado que, em suma, os factos percepcionados pela ofendida e testemunhas que a acompanhavam, foram no seu essencial coincidentes — o que confere foros de verosimilhança e credibilidade àqueles depoimentos.
8. Daí que o Tribunal a quo não tenha tido necessidade de especificar as contradições, por se demonstrar, como explicou na sua motivação, que as mesmas eram inerentes ao passar do tempo, pois os factos remontam a Setembro de 2011.
9. Por outro lado, não se pode afirmar que pelo facto de o Senhor Agente de Autoridade que se deslocou ao local não referir ter visto ou ouvido o que o arguido estaria a dizer quando se aproximou do local onde os factos estavam a ocorrer aquando da sua chegada, que nada foi dito, pois se atentarmos no seu depoimento, o mesmo referiu não se recordar pormenorizadamente deste episódio aqui em questão, na medida em que os factos já ocorreram há bastante tempo, remetendo-se para o auto de notícia que elaborou e o que nele constava, cuja cópia se encontra a fls. 4 do apenso a estes autos, o que se nos afigura como perfeitamente natural.
10. É que, se para as demais testemunhas e para a ofendida, o episódio em questão foi marcante, tendo até em conta o circunstancialismo que rodeou os acontecimentos em causa — vejam-se os pontos a) a e) dos factos provados — para o agente de autoridade em questão, cujo trabalho passa pela percepção de factos de idêntica natureza com uma regularidade superior à que seria de desejar, não tendo qualquer relação pessoal ou profissional que lhe permitisse ter maior proximidade dos aqui intervenientes, é natural que os pormenores que rodearam os factos e aquilo que presenciou se diluam na sua memória e não os consiga ter tão presentes quanto a ofendida e as testemunhas que comprovadamente a acompanhavam.
11. E, salvo o devido respeito por melhor opinião, que é muito, as transcrições que se fizeram dos diversos depoimentos no recurso a que ora se responde, não permitem extrair as conclusões que o arguido daí pretende retirar, pois nem as apontadas contradições — de pormenor, diga-se — se verificaram de forma a permitir concluir que os factos não se passaram nos termos em que foram dados como provados, nem por o Senhor Agente de Autoridade que esteve presente em parte daqueles factos não se recordar com exactidão da forma como os mesmos ocorreram permite concluir que os factos não se passaram daquela forma.
12. Mas mais, há um facto inquestionável: a forma como a ofendida se encontrava — em pânico, receosa, sem querer sequer sair do veículo mesmo na presença da Polícia de Segurança Pública — facto percepcionado por aquele agente de autoridade que disso se recordava ainda, permite concluir que, pelo menos, o arguido algo fez para a atemorizar e, para isso, socorremo-nos dos demais depoimentos prestados em audiência que foram claros quanto à ocorrência dos factos dados como provados.
13. Por fim e no que concerne ao depoimento da testemunha G… que, de forma clara, espontânea e desprendida, relatou os acontecimentos ocorridos no interior da dependência bancária onde a ofendida se encontrava a trabalhar, quando aí se dirigiu o arguido para com ela falar, desde logo se note que o mesmo referiu que efectivamente se dirigiu ao arguido, com quem falou, dando-lhe nota que ali não era nem o momento nem o local para tratar dos assuntos de natureza pessoal que o ligavam à ofendida, tendo o mesmo aceite o seu pedido para que se deslocasse para o exterior daquela agência bancária.
14. Todavia, anote-se, esta testemunha, ao invés do que refere o recorrente, não afirmou que este “houvesse proferido quaisquer ameaças dirigidas à ofendida”, porquanto aquela testemunha nunca afirmou, como não o afirmou a própria ofendida e, aliás, nem tais factos constavam do despacho de pronúncia pelo qual foi o arguido julgado.
15. Aquela testemunha veio dar conta ao tribunal foram dos factos mencionados nas alíneas b), c) e d) dos factos provados, onde não se menciona que tenha sido proferida pelo arguido qualquer expressão ameaçadora à ofendida, permitindo tais factos, assim, como o constante da alínea a) enquadrar o circunstancialismo em que ocorreram os demais.
16. Assim, a análise conjugada de todos os depoimentos prestados pelas acima mencionadas testemunhas, conjugadas com os demais elementos probatórios coligidos nos autos, impuseram que se concluísse que aqueles factos deveriam ser dados como provados nos termos em que o foram, pelo que o arguido teria que ser condenado pela sua apurada conduta.
17. Assim, dando aqui por integralmente reproduzida a fundamentação explanada na decisão ora posta em crise no que à convicção do Tribunal concerne, verifica-se não merecer a mesma qualquer censura, porquanto explanou devidamente como tal convicção foi atingida e por que não se deu credibilidade à versão dos factos trazida aos autos pelo arguido.
18. Por outro lado, nem tão-pouco se diga que os factos que foram agora objecto de julgamento teriam necessariamente que ser integrados no âmbito do processo n.º 949/10.2SLPRT, no âmbito do qual foi o arguido / recorrente julgado e condenado, por decisão transitada em julgado, pela prática de um crime de violência doméstica, pelo simples facto de, a terem-se por verificados, se incluírem na continuidade criminosa inerente ao crime de violência doméstica, por serem distanciados apenas por três dias dos factos pelos quais foi julgado no âmbito do referido processo.
19. Não podemos concordar com semelhante pretensão que, aliás, foi já apreciada superiormente por esse Venerando Tribunal para onde agora o arguido novamente recorre, conforme tal melhor resulta da decisão sumária do Tribunal da Relação do Porto de 10.09.2014, a fls. 599-605 dos autos (3.º volume), onde se refere expressamente que “os factos constantes da pronúncia são factos novos ocorridos após a última situação denunciada no processo que foi levado a julgamento, pelo que, sempre teriam de ser apreciados em processo autónomo, não se vislumbrando qualquer fundamento para que ficassem sem punição e sendo um crime contra bens eminentemente pessoais sempre se aplicaria o art. 30 nº 3 do Código Penal, não podendo integrar a continuação criminosa”.
20. De facto, tratando-se de facto diverso, com relevância jurídico-penal, apresentada a necessária queixa, o procedimento criminal tem que correr o seu normal curso e, neste caso, apenas estes factos não poderiam ser apreciados caso a ofendida tivesse manifestado a vontade de desistir do procedimento criminal em curso, o que não aconteceu.
21. Na verdade, tais factos deveriam ter sido apreciados em conjunto. Mas, na impossibilidade de o terem sido, não podem ficar impunes por se distanciarem tão-somente três dias após dos últimos factos pelos quais o arguido foi julgado anteriormente, pois que tendo relevância jurídico-penal — como têm — e mostrando-se verificados todos os pressupostos de prosseguimento do procedimento criminal, terá que o arguido ser naturalmente julgado por eles.
22. Questão diversa será a posterior aplicação do disposto no artigo 77.º do Código Penal, no que se reporta à aplicação de uma pena única.
23. Por outro lado, o facto de se trazer à colação a decisão proferida no âmbito do mencionado processo n.º 949/10.2SLPRT não serviu para fundamentar a condenação do arguido, nem é facto novo para o mesmo, uma vez que tal decisão foi já determinante para que o mesmo fosse despronunciado do crime de violência doméstica que aqui lhe foi imputado no despacho final de acusação proferido nestes autos e apenas se mantivessem por apreciar os factos que ali não puderam ser valorados, por terem ocorrido em momento posterior.
24. Tal decisão transitada em julgado, cujo acórdão consta inicialmente a fls. 280-296 e certidão consta dos autos a fls. 690 e ss., não é algo novo de que o arguido não tenha conhecimento, não se verificando, assim, qualquer violação do princípio da igualdade de armas.
25. Se atentarmos, tal decisão já consta dos autos desde momento anterior ao despacho que pronunciou o arguido para julgamento, tendo sido, aliás, um elemento que permitiu assegurar um outro princípio constitucionalmente consagrado, do ne bis in idem, que impôs que dos factos que constavam da acusação pública tivessem que ser expurgados aqueles que já haviam sido objecto de julgamento anterior.
26. Portanto, não foi um elemento novo com o qual o arguido fosse confrontado em sede de julgamento, porquanto tinha sido já um elemento probatório que constava dos autos e que, aliás, foi determinante para que o arguido não fosse julgado pelos mesmos factos por que já havia o agora recorrente sido submetido a julgamento.
27. Acresce ainda que, tratando-se de decisão devidamente transitada em julgado, podia a mesma ser valorada como elemento probatório no âmbito destes autos, sendo certo, porém, que não foram os factos nela constantes que determinaram a condenação do arguido que apenas estava a ser julgado por um facto ocorrido posteriormente, conforme tal resulta expressamente da motivação da decisão no que à matéria dada como provada concerne e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzida.
28. Assim, estão verificados todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de ameaça previsto e punível pelo artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal, pelos quais o arguido foi — e bem — condenado.
29. Do mesmo modo, na determinação da medida concreta da pena, o tribunal recorrido considerou todas as circunstâncias, quer atenuantes, quer agravantes, que militam quer a favor, quer contra o arguido e foram consideradas todas as circunstâncias enunciadas no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, tendo-se determinado aquelas condições para a suspensão da execução da pena de prisão, sendo que face aos seus rendimentos, é perfeitamente possível ao arguido proceder ao pagamento da quantia atribuída à ofendida a título de pedido de indemnização civil, pelo que foram atendidos todos os factores que ponderavam contra e a favor do arguido.
30. A sentença recorrida explanou os motivos e fundamentos pelos quais entende ser sob estas condições a que deverá estar sujeita a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado, não merecendo a decisão recorrida, também nesta parte, qualquer censura, devendo manter-se nos exactos termos em que foi proferida.
31. A pena aplicada na sentença recorrida obedeceu a rigorosos critérios de dosimetria penal, observando escrupulosamente a culpa e a reintegração do recorrente, bem como, ponderou as exigências decorrentes das necessidades de prevenção geral e especial, é equilibrada, adequada ao caso, obedece aos critérios legais na sua determinação, não ultrapassa a medida da culpa, razões pelas quais deverá valer e permanecer.
32. A sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada, quer de facto quer de direito, e não é possuidora de qualquer vício que inquine a sua validade substancial ou formal, devendo ser mantida nos seus precisos termos, julgando-se assim o recurso improcedente.”
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Nesta Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, expressando o entendimento de que “integrando-se o comportamento imputado ao recorrente no crime único de violência doméstica anteriormente apreciado, naturalmente que não poderia ter sido novamente apreciado neste processo, pelo que, tendo-o sido, parece-nos que se deve julgar verificada a exceção do caso julgado por violação do princípio ne bis in idem e, em consequência, revogar a sentença recorrida, ficando, com isso precludido o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso.”
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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer[1].
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1. Questões a decidir
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, são as seguintes as questões a decidir:
A. impugnação da matéria e facto, por erro de julgamento;
B. inexistência de autonomia dos factos objeto deste processo relativamente aos factos objeto do processo comum coletivo nº 949/10.2SLPRT, da extinta 4ª Vara Criminal do Porto;
C. medida da pena de prisão;
D. ilegalidade da condição a que foi subordinada a suspensão da execução da pena de prisão.
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2. Factos Provados
Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respetiva motivação, constantes da sentença recorrida:
1.1 – Dos factos provados
a) Desde o ano de 2003 até 25/12/2010, o arguido e C… mantiveram entre si um relacionamento afectivo, o qual findou por iniciativa da assistente contra a vontade do arguido.
b) No dia 19 de Setembro de 2011, por volta da hora do almoço, mais concretamente pelas 13h30, o arguido dirigiu-se pessoalmente ao balcão do H…, local de trabalho da assistente, sito na avenida …, em …, e dirigindo-se à mesma, insistiu em falar com ela sobre assuntos particulares.
c) Tal pedido foi negado pela assistente, alegando esta que ali era o seu local de trabalho e que não podia falar de assuntos da vida privada, tendo o arguido insistido em tratarem naquele local de assuntos da vida particular.
d) O arguido apenas se retirou do local após o Senhor G…, gerente daquela instituição bancária, se ter dirigido ao mesmo, informando-o que se a sua presença no local fosse para tratar de assuntos relacionados com o banco, que o próprio o atendia, caso fossem assuntos particulares, informou-o que os mesmos teriam de ser tratados noutro lugar, tendo o arguido se ausentado do lugar.
e) A assistente, receosa com as atitudes persecutórias do arguido, telefonou à sua prima F… pedindo-lhe que a fosse buscar ao local de trabalho.
f) Por volta das 16h30, após a assistente ter saído do seu local de trabalho, na companhia da sua prima, F…, dirigiram-se à viatura desta e iniciaram a marcha, sendo logo de seguida surpreendidas pela viatura de marca citroen …, matrícula ..-IX-.., conduzida pelo arguido, a qual se aproximou muito da traseira do veiculo daquela, tentando por várias vezes ultrapassá-la, embora sem sucesso.
g) Com receio que o arguido agredisse a assistente, F… continuou a marcha e dirigiram-se à Esquadra da PSP de …, no sentido de procurar protecção policial.
h) Já próximo da esquadra e no instante em que a D. F… imobilizou o seu veículo, o arguido encostou a sua viatura junto à porta do condutor daquela, para impedir que a D. F… saísse do veiculo, e de imediato se encaminhou para o lado do passageiro, onde se encontrava a assistente C…, tentando abrir a porta, o que não conseguiu, e dirigindo-se à assistente ordenou que esta saísse do carro, que queria falar com ela pois “ela era sua mulher e como tal tinha que sair”; e procurando amedrontá-la disse-lhe “não te adianta ter este tipo de atitude, eu hei-de descobrir sempre onde estás”, “este tipo de atitude é pior para ti porque quanto mais queixas apresentes mais irás pagar por elas”., “já sei a tua nova morada”, “hei-de te fazer uma visita”.
i) O arguido só desistiu dos seus propósitos aquando da chegada da polícia, onde se procedeu à identificação de todos os intervenientes.
j) Ao agir da forma descrita, o arguido quis provocar na assistente medo e inquietação e prejudica-la na sua liberdade de determinação.
k) Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei.
*
l) O arguido foi condenado por tribunal do Reino de Espanha pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por decisão transitada em 2004.
m) O arguido foi condenado no processo n.º 421/99.0TAPRD, que correu termos na Comarca de Paredes, por decisão transitada a 26-6-2001, pela prática de um crime de ameaça numa pena de 150 dias de multa.
n) O arguido foi condenado no processo n.º 197/01.2IDPRT, que correu termos na Comarca de Valongo, por decisão transitada a 4-6-2003, pela prática, a 1-9-1999, de um crime de abuso de confiança fiscal numa pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa.
o) O arguido foi condenado no processo n.º 949/10.2SLPRT, que correu termos na 4.ª vara criminal do Porto, por decisão transitada a 31-10-2013, pela prática, a 17-5-2011 e 25-12-2010, de um crime de detenção de arma proibida e um crime de violência doméstica (contra a assistente) numa pena de 3 anos de prisão suspensa por 3 anos, com a obrigação de não contactar, por qualquer forma, a aqui assistente.
p) O teor da certidão judicial de f. 691-706 que aqui se dá por reproduzido.
q) O arguido é comerciante de automóveis pesados.
r) O teor do relatório social de f. 670-675 que aqui se dá por reproduzido, designadamente que, não obstante os confrontos experimentados e as condenações sofridas, que questiona, não revela censura nem análise reflexiva dos seus comportamentos, denotando postura de displicência e impunidade e de ausência de receptividade à intervenção que consubstancia, em nosso entender, factor de risco agravado em termos de reincidência criminal.
s) Durante as suas declarações, o arguido disse que a assistente não tinha qualquer razão para ter receio dele, pois nunca lhe fez nada.
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t) A assistente sentiu muito receio e medo com a actuação do arguido.
u) Vivendo que até hoje perturbada.
v) Por força da conduta do arguido, a assistente viveu sobressaltada, teve que alterar o seu quotidiano diário pessoal e laboral.
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1.2 – Dos factos não provados
Por força da conduta do arguido, a assistente carece de ajuda médica.
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1.3 – Indicação e exame crítico das provas
O tribunal formou a sua convicção do seguinte modo:
O arguido veio narrar uma versão manifestamente inverosímil. No fundo, quis dizer que a ida ao banco onde trabalhava a ex-companheira configurou uma visita totalmente vulgar (foi depositar dinheiro) para depois dizer que lhe quis, isso sim, entregar correspondência. Isto é, tratou-se, a nosso ver, de um subterfúgio para contactar a visada. Além disso, negou qualquer discussão com o gerente da agência bancária. Tudo decorreu dentro da normalidade. Ora, não é usual o gerente de uma agência dirigir-se como o arguido disse que ele se dirigiu. Isto embora tenha tentado descrever o evento de uma forma dir-se-ia limpa. Sempre no mesmo tom inconsistente de negação, contou que, por coincidência, nesse mesmo dia, de tarde, na rotunda da igreja, próxima da agência, como que esbarrou com a assistente. Exactamente à hora em que a assistente sai do seu local de trabalho, no carro da sua prima, ora, exactamente nesse mesmo momento, o arguido também estava, por coincidência, note-se e repita-se, a fazer a rotunda que o carro daquela fazia. E logo atrás desse carro, carro que o arguido não podia conhecer. Quanto à razão para este sincronismo, o arguido disse, de um modo singelo, que se dirigia para …, local onde reside.
Apesar da ofendida que, por casualidade, também estava a fazer a rotunda e que se dirige, por força do avistamento do arguido, para a PSP de …, através da Rua …, o arguido quis fazer crer que, para ir para …, o caminho seria aquele. Isto é, para … era usual seguir por aquela rua. Ora, isto é totalmente implausível. Para um conhecedor mínimo daquela zona, este trajecto é absurdo (D…, agente da PSP, há imensos anos a trabalhar em … declarou exactamente nesse sentido: o trajecto mais curto para … é, definitivamente, o contrário, ainda para mais tendo em conta a rua onde mora o arguido). Contudo, as declarações do arguido não ficaram por aqui. Ia para casa, por aquela rua, logo atrás do veículo da sua ex-companheira. Tudo por força do acaso, repita-se. Porém, como ela estacionou o carro nessa rua, decidiu fazer o mesmo. Naturalmente que explicou que o fez para entregar a dita correspondência. Nessa altura, a amiga dela insulta-o, negando, assim, que ele tivesse feito o que quer que fosse.
Tratou-se, como se depreende, de uma versão inverosímil, atentas as regras do bom senso, a raiar mesmo o absurdo, denotando-se igualmente que, à medida que eram feitas perguntas sobre determinados aspectos, o arguido tentava, toscamente diga-se, acomodar as suas iniciais declarações (por exemplo, quando disse que vinha duma zona perto do estádio do dragão, quando depois disse que estava no mercado abastecedor, tudo para querer colocar-se do outro lado da vci de forma a justificar a ida até … para daí seguir para … o que, volte a repetir-se, não é minimamente lógico).
Por força dos depoimentos das testemunhas da acusação, o tribunal convenceu-se, com toda a segurança, que a ida à agência bancária foi agitada e que o arguido depois, de modo não concretamente apurado, esperou pela sua ex-companheira, decidindo persegui-la de carro, ameaçando-a posteriormente à imobilização dos carros. E isto com base nos depoimentos da assistente (C… prestou um depoimento sincero, verosímil e consistente atentas as regras da experiência), de F… (a prima daquela foi muito descritiva, peremptória e sincera) e de E… (no mesmo registo). De referir que estas duas testemunhas disseram que a assistente, aquando da imobilização dos veículos e quando o arguido se lhe dirigiu, curvou-se como que ficando com a cabeça para baixo junto às suas pernas, encontrando-se ela em pânico.
Ora, foi exactamente isso que D…, agente da PSP, percepcionou quando chegou ao local: a mulher que se encontrava no lugar do pendura estava no carro agachada, tendo-lhe dito que podia sair que não havia problema nenhum, o que não ocorreu logo, pois ela não queria sair do carro por estar com medo. Após insistência, a assistente acabou por sair da viatura. Este detalhe, a concatenação entre estes depoimentos e a congruência daí resultante, permite ao tribunal convencer-se dos factos tal como vertidos na acusação. A própria versão absurda do arguido contribui para aquela convicção.
Não se diga que houve certas discrepâncias entre os depoimentos daquelas testemunhas. Não se pode olvidar que os factos são de Setembro de 2011. Mal seria que não resultasse qualquer discrepância. Acresce que as mesmas não atingiram qualquer patamar desvalioso. Não, apenas revelaram o que é comum ocorrer, designadamente na fixação/memorização de determinados e diversos detalhes, processo esse que varia de pessoa para pessoa mesmo quando perante o mesmo evento. Mais, a assistente, na posição em que estava, não podia percepcionar o que as outras percepcionaram.
Quanto ao episódio do balcão, G…, gerente do H…, veio contar aquilo que já constava a f. 24, corroborando assim a assistente e desmentindo o arguido (sentiu este nervoso o qual usou um tom de voz alto). De destacar que declarou que a assistente tinha pouquíssimos dias nessa agência, agência para a qual foi transferida, segundo informações internas do banco, pelas idas e pelos contactos telefónicos insistentes e repetitivos do arguido no anterior balcão da assistente no sentido de chegar à fala com ela. Chamadas telefónicas que se repetiram neste novo balcão. Também referiu que a assistente ficou agitada, nervosa, constrangida. Estas consequências, confirmadas e descritas também por aquelas, resultavam desde logo das regras da experiência. Por fim, diga-se que a assistente teve que sair da agência, passando a trabalhar num departamento, onde não existe contacto com o público.
Por isso se estranhou o depoimento de I…, pessoa que trabalha no balcão do H… de …, antigo colega da assistente, que, insolitamente, referiu que nada sabia e nada constava sobre a aparente má relação entre arguido e assistente. Esta saiu daquele balcão, isso sim, porque se dava mal com o gerente da agência. Assim, a informação dada ao outro gerente seria inverídica. Como o são as sucessivas transferências da assistente. Face ao que ficou supra referido, entendeu-se que este depoimento, além de nada saber em concreto sobre o caso dos autos, não se mostrou sincero.
Em síntese, o tribunal saiu convencido da versão vertida na acusação concatenando todos aqueles depoimentos atentas as regras da experiência.
Quanto aos elementos subjectivos considerados provados, o tribunal considera que a forma como os factos foram praticados e atentas as regras da experiência, bem como o supra dito, é forçoso concluir pela sua ocorrência.
Os antecedentes criminais resultam do teor do CRC junto aos autos.
Facto não provado: não foi junta qualquer prova documental nesse sentido.
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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
Uma das questões suscitadas no recurso, com precedência lógica relativamente a todas as outras, é a de que a factualidade em causa neste processo não tem autonomia relativamente aos factos objeto do processo comum coletivo nº 949/10.2SLPRT, da extinta 4ª vara criminal do Porto, onde o arguido já foi condenado, por decisão transitada em julgado, pela prática de um crime de violência doméstica.
Vejamos.
O instituto jurídico do caso julgado, embora não regulado expressamente na lei processual penal, decorre do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, onde se prescreve que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
Esta proibição do duplo julgamento pelos mesmos factos, como efeito processual da sentença transitada em julgado, assenta em razões de segurança jurídica, impedindo que o que nela se decidiu seja atacado quer dentro do mesmo processo (caso julgado formal), quer noutro processo (caso julgado material).
O caso julgado material pressupõe, assim, para além da identidade do acusado e da existência de decisão definitiva, transitada em julgado, a identidade do objeto do processo.
Com efeito, só dentro de tal condicionalismo se compreende que o tribunal não possa voltar a reapreciar aquilo que apreciou ou, ainda que não tenha apreciado, que podia e devia apreciar.
Por sua vez, a proibição do ne bis in idem mais não é do que a manifestação substantiva daquele princípio do caso julgado, enquanto garantia básica de que ninguém pode ser submetido a um processo duas vezes pelo mesmo facto, seja de forma simultânea ou sucessiva.
Englobando tal garantia uma verdadeira proibição de dupla perseguição penal, sempre que tenha ocorrido um qualquer ato processual do Estado que represente uma tomada definitiva de posição relativamente a um determinado facto penal, quer seja através de uma sentença, do arquivamento do inquérito pelo Ministério Público, da decisão de não pronúncia pelo Juiz de Instrução Criminal, da declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, prescrição do procedimento criminal ou até por mera desistência da queixa.
Não se podendo esquecer que a garantia da proibição da dupla perseguição penal se estende não só ao que foi conhecido no primeiro processo, mas também a tudo o que aí poderia ter sido conhecido. O que decorre da estrutura acusatória do processo penal, com a delimitação do objeto do processo pela acusação.
Nas expressivas palavras de Henrique Salinas[2], “a preclusão, contudo, não diz apenas respeito ao que foi conhecido, pois também abrange o que podia ter sido conhecido no processo anterior. Para este efeito, teremos de recorrer aos poderes de cognição do acto que procedeu à delimitação originária do processo, a acusação em sentido material, tendo em conta um objecto unitário do processo. Desde logo, como neste acto não existe qualquer limitação à qualificação jurídica dos factos no mesmo descritos, pode concluir-se que não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto, diversamente qualificados. De igual modo, neste acto podiam ter sido conhecidos factos que traduzem uma alteração, substancial ou não substancial, dos que nele foram incluídos, uma vez que, em qualquer dos casos, estamos ainda dentro dos limites do mesmo objecto processual. Por esta razão, não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto.”
*
Revertendo agora ao caso sub judice, urge averiguar se os factos em causa nos presentes autos estão, ou não, cobertos pelo caso julgado emergente dessa outra condenação no processo comum coletivo nº 949/10.2SLPRT, da extinta 4ª Vara Criminal do Porto, ou seja, se estão, ou não, contidos no acontecimento histórico ou pedaço da vida do arguido que foi já objeto daquele primeiro processo e que aí foi considerado subsumível ao crime de violência doméstica.
Para tanto, atentemos antes de mais na factualidade dada como provada e não provada no referido processo comum coletivo nº 949/10.2SLPRT, que é a seguinte:
“Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos:
1. Desde data imprecisa de 2003 até 25/12/2010, o arguido e a ofendida C… mantiveram entre si um relacionamento afectivo, como se de marido e mulher se tratasse, residindo embora em domicílios separados – a ofendida residia com a mãe na Rua …, nº .., nesta Cidade e Comarca do Porto.
2. No decurso de tal relação, o arguido foi-se progressivamente revelando cada vez mais possessivo.
2A. Várias vezes, o arguido trazia consigo a faca/navalha apreendida nos autos, colocada na bolsa da porta dos automóveis em que se fazia transportar, mostrando-a também várias vezes à ofendida, causando-lhe medo.
3. Em data não concretamente apurada de 2006, no interior da residência da ofendida, o arguido desferiu uma estalada na cara da ofendida, agarrando-a pelo cabelo e arrojando-a ao chão, no que lhe causou dores e hematomas nos braços e no pescoço.
4. Tal relacionamento findou em 25/12/10, por iniciativa da ofendida; no entanto, desde então, o arguido passou a importunar diariamente a ofendida, abordando-a quer pessoalmente, quer através do telemóvel, em postura agressiva, insultuosa e intimidatória, quer junto à residência daquela, quer nos seus locais de trabalho, perseguindo-a, em suma, em qualquer lugar onde a mesma se encontrasse.
5. Assim, no aludido dia 25 de Dezembro de 2010, cerca das 18h e 45m, o arguido dirigiu-se à referida residência da ofendida C…, saltou o portão que veda a habitação e, do pátio, chamou-lhe, aos gritos “sua puta!”, “tens um homem aí dentro!”, “vou-te matar!”, “tenho uma arma para te matar!”. Antes de abandonar o local, por se aperceber que a ofendida tinha chamado a PSP, o arguido ainda lhe gritou “é melhor estrangulares-te porque vou-te cortar o pescoço!”.
6. Naquele mesmo dia, no decurso das duas horas subsequentes a tais factos, o arguido ligou várias vezes para o telemóvel da ofendida e para o telefone fixo da sua habitação acima referida, afirmando à mãe da ofendida, que então lhe atendia o telefone: “se não fodo a sua filha, fodo-a a si”.
7. No dia seguinte – 26 de Dezembro de 2010 –, o arguido ligou para o telemóvel da ofendida, com o nº ……… e para o telefone fixo nº ………, a partir dos telefones com o nº ……… e com o nº ………, e afirmou-lhe: “a tua situação piorou a partir do momento em que ligaste à Polícia, se eu sofrer consequências, a tua vida estará bem pior”.
8. A partir de então, o arguido passou a importunar quase diária e constantemente a ofendida, seguindo-a para todo lado, afirmando-lhe “nunca te vou deixar”, “se não fores minha não serás de mais ninguém”, “se arranjares outro homem, dou cabo dos dois”, “se não tirares a queixa, vais tu e a casa pelos ares”; a par de tais desmandos, apodou-a também de “louca”, “puta” e “vaca”.
9. Entre tais situações, que desde então se verificaram praticamente todos os dias, algumas houve que assumiram particular relevância e gravidade, nomeadamente:
10. - No dia 30 de Dezembro de 2010, o arguido dirigiu-se à residência da ofendida, chamou-a para a sua viatura, onde lhe exibiu uma faca/navalha (apreendida nos autos), que então lhe passou pelo corpo, afirmando-lhe “se quisesse fazia-te mal já aqui!”.
11. - No dia 31 de Dezembro de 2010, afirmando-lhe que o fazia “para ela não fugir” o arguido transportou a ofendida C…, no seu veículo automóvel até ao local de trabalho desta, então sito em Valongo. A ofendida acedeu a tal propósito, dado que o arguido apresentava sinais de forte exaltação, pelo que temeu que, caso a sua mãe se apercebesse de qualquer situação mais violenta, se transtornasse. Ao longo do percurso, o arguido foi afirmando à ofendida “é pior para ti teres chamado a Polícia!” e” vai ser o teu mal se houver consequências”.
12. Uma vez chegados a Valongo, o arguido teve um acesso de fúria devido ao facto de a ofendida lhe ter perguntado se tinha gravado a conversa que acabavam de ter. Quando a ofendida abandonou a viatura, assustada com a postura agressiva do arguido, este saiu do carro e perseguiu-a. Quando a alcançou, o arguido agarrou-lhe os cabelos, puxou-lhos e tapou-lhe a boca para que não gritasse.
13. Com as descritas agressões físicas, o arguido pretendeu e conseguiu atingir a ofendida na sua integridade física, magoando-a e causando-lhe dores.
14. Tentou em seguida forçar a ofendida a entrar novamente na viatura, agarrando-a e empurrando-a, resultado que não conseguiu apenas devido à intervenção de um cidadão, cuja identidade se não logrou apurar, que auxiliou a ofendida a opor-se a tal propósito. Furioso, o arguido insultou então a ofendida C…, chamando-lhe “vaca!“.
15. Após abandonar o local, o arguido ligou, de imediato, inúmeras vezes, quer para a residência da ofendida quer para o local de trabalho desta.
16. - No dia 17 de Fevereiro de 2011, cerca das 08.00 horas, quando a ofendida aguardava na paragem de transportes públicos junto à sua residência, no Porto, foi ali abordada pelo arguido que, após tentar forçar um diálogo, a seguiu para o interior do autocarro no qual a ofendida entrou, afirmando-lhe, em tom de voz intimidatório, “vou para junto do teu trabalho, talvez aí consigamos falar”.
17. Já no interior do autocarro, o arguido mandou a ofendida estar quieta, e impediu-a de pedir ajuda, arrancando-lhe o telemóvel que esta tinha nas mãos. Na posse do telemóvel da ofendida, o arguido efectuou então diversas chamadas para colegas e familiares da ofendida, querendo saber quem eram, ou mesmo insultando-os.
18. - Em 21/02/2011, tendo tomado conhecimento do falecimento da própria mãe, a ofendida deslocou-se à sua residência.
19. De imediato recebeu uma chamada do arguido, através do telefone fixo daquele domicílio, questionando o que estava ela a fazer em casa; poucos minutos volvidos, o arguido tocou à campainha da residência da ofendida, e do portão, gritou-lhe “ porque estás aí?” não sais daí sem falares comigo!”.
20. - Em 17/05/2011, no decurso de busca domiciliária concretizada por elementos da PSP na residência do arguido, sita na Rua …, …, em …, estes encontraram e apreenderam no quarto de dormir:
- Uma navalha, de abertura lateral e com fecho manual, com lâmina com o comprimento de 100 mm, pertença do arguido, e que este guardara na gaveta da mesinha de cabeceira;
- Uma pistola de alarme de marca “KIMAR”, modelo “…”, com carregador, transformada mediante intervenção mecânica modificadora, que lhe conferiu características permitindo o seu funcionamento como arma de fogo, através da adaptação de um cano de alma estriada e da obstrução do orifício que originalmente possuía na parte superior, passando assim a poder deflagrar cartuchos metálicos carregados com carga propulsora de pólvora, escorva e projéctil metálico (bala) com calibre 7,65 mm Browning, em mau estado de conservação mas de bom funcionamento, pertença do arguido, e que este ocultara num tecto falso.
21. Na sequência de tal busca, o arguido não só manteve a sua atitude persecutória em relação à ofendida – que entretanto se viu forçada a mudar de casa, numa tentativa de dificultar tais atitudes – como passou a afirmar-lhe que fora alvo de uma busca por causa dela, e que estivera detido por dois dias também por sua causa, ainda, que a ofendida tinha que retirar as queixas; afirmou-lhe que, caso contrário, iria “pagar por isso”, e ainda: “se olhavas para trás agora tens mesmo que olhar”.
22. Afectada psicologicamente por tais desmandos e constante intimidação, a ofendida entrou de baixa médica, até 12 de Setembro de 2011.
23. Em 14 de Setembro seguinte, foi transferida para a Agência do H… de ….
24. No dia 16 de Setembro de 2011, pelas 11.00 horas, o arguido dirigiu-se pessoalmente àquela agência bancária, onde a ofendida passara a trabalhar, insistindo falar com ela. Como a ofendida, intimidada, se negasse a tal propósito, o arguido afirmou-lhe em tom de voz agressivo, “vou-te esperar!”, “a culpa é tua de ter começado um inquérito!” e ainda “vou-te fazer a folha!”.
25. Amedrontada, a ofendida só conseguiu sair do local de trabalho para a rua acompanhada por uma prima.
26. -------------------------------------------------------------------------------.
27. A par das supraditas condutas, o arguido deslocou-se recorrentemente à residência da ofendida, retirando da caixa de correio toda a correspondência que esta recebe.
28. Pelo facto do arguido se deslocar com regularidade aos locais de trabalho da ofendida perturbando o normal funcionamento daquela instituição, a ofendida viu-se na contingência de, por quatro vezes, esclarecer o seu drama pessoal perante a entidade patronal, e assim lograr mudar de balcão, tentando trabalhar em local ao qual o arguido não tenha acesso.
29. Por via das supra descritas condutas, o arguido pretendeu e conseguiu atingi-la na sua integridade física, causando-lhe dores, e também na sua honra e consideração, enxovalhando-a e perturbando-a profundamente, dado se comprazer em insultá-la em alta voz, na presença de familiares, amigos e colegas, e mesmo dos transeuntes que frequentam as vias públicas onde a aborda.
30. Por via das supra descritas afirmações intimidatórias que lhe dirigiu, ou aos seus colegas, sabendo que estes lhas transmitiriam, o arguido logrou infundir na ofendida sentimentos de medo profundo, fazendo-a recear, como foi seu propósito, pela sua integridade física e pela própria vida.
31. De igual modo, com as supra descritas condutas, o arguido faz sentir à ofendida que não passa de um joguete, pois controla não só os seus movimentos, mas a sua vida e contactos pessoais, acedendo aos seu telefone, e incomodando os seus familiares, amigos e colegas de trabalho, perante os quais a ofendida se sente subsequentemente humilhada e constantemente vexada.
32. O arguido faz assim com que a ofendida viva em constante sobressalto, transtornando-a a todos os níveis: pessoal, físico, emocional, social, familiar e profissional, redundando em situação de esgotamento, pelo que a ofendida necessitou de apoio psicológico na APAV, a partir de Janeiro de 2011, e psiquiátrico, a partir de Maio do mesmo ano.
33. A par de tais condutas, o arguido detinha a pistola e faca/navalha supra descritas, cujas características conhecia perfeitamente, nomeadamente, a sua idoneidade para serem utilizados como meio de causar lesões físicas, ou mesmo a morte, única finalidade para a qual foram concebidos e, no caso da pistola, única finalidade que para a qual foi alvo das descritas alterações.
34. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de, ao longo do tempo, movido por uma mesma e doentia resolução, causar dores físicas à ofendida, fazê-la viver em sobressalto e, de modo gratuito, atingi-la psíquica e emocionalmente, fazendo-a sentir-se controlada e ofendendo-a na sua honra e magoando-a nos seus sentimentos.
35. Tinha perfeita consciência de que, procedendo do modo descrito, praticava condutas ilícitas e criminalmente puníveis.
36. Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que não lhe era permitido por lei praticar tais condutas, e, bem assim, possuir e deter as supra descritas armas e que, assim agindo, como quis e fez, praticava condutas criminalmente puníveis.
*
37. O arguido apresenta os seguintes antecedentes criminais:
No âmbito do processo comum singular nº 421/99.0TAPRD, do 1º Juízo do Tribunal de Paredes, por sentença de 21 de Maio de 2000, foi condenado em multa pela prática de um crime de ameaças. Tal pena foi declarada extinta por despacho de 24 de Março de 2003.
No âmbito do processo comum singular nº 197/01.2IDPRT, do 3º Juízo do Tribunal de Valongo, por sentença de 20 de Maio de 2003, foi condenado em um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução, pela prática, em Setembro de 1999, de um crime de abuso de confiança fiscal.
No âmbito do processo comum singular nº 9/05.8GAVLG, do 2º Juízo do Tribunal de Valongo, por sentença de 6 de Dezembro de 2006, foi condenado na pena única de 300 dias de multa pela prática, em 7 de Janeiro de 2005, de um crime de injúrias e de um crime de ofensas à integridade física simples. Tal pena foi julgada extinta, em 5 de Junho de 2008, perlo pagamento.
No âmbito do processo comum colectivo nº 57/07.3IDPRT, do 1º Juízo do Tribunal de Valongo, por acórdão de 6 de Outubro de 2010, foi condenado em pena de prisão de 3 anos, suspensa na sua execução, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal.
*
38. O arguido B… é oriundo de uma família grande, sendo 1 de entre 5 irmãos.
Aos 7 anos de idade dá-se a separação dos pais, tendo ido viver com os avós maternos, depois de um período a viver em casa dos avós maternos.
Aos 12 anos vai viver com a mãe para França.
Nessa altura tinha já completado a 4ª classe.
Tem dois filhos, um com 23 anos e outro com 13 anos, fruto de relacionamentos diferentes.
À data dos factos vivia, como vive, com o filho mais velho.
Trabalhava numa empresa da irmã de compra e venda de veículos pesados, auferindo cerca de € 500,00 por mês.
Nesta data perspectiva voltar a viver com a irmã.
*
39. Em 26/10/2011, no âmbito dos presentes autos, foi aplicada ao arguido B… a medida de coacção de proibição de contactar por qualquer forma com a ofendida.
Em 09/03/2012, foi determinada a fiscalização da referida medida de coacção através de meios técnicos de controlo à distância (vigilância electrónica), tendo os mencionados meios técnico sido instalados em 14/03/2012.
Desde tal data, o arguido não mais abordou e/ou importunou a ofendida.
*
2.3. Matéria de facto não provada
Com interesse para a decisão da causa, não resultaram provados, os seguintes factos:
1. Decorridos dois meses sobre o início de tal relação, o arguido começou a impedir, sob ameaças de agressão, que a ofendida fosse a casa sempre que a sua mãe, de idade avançada e padecendo de diabetes, necessitava de assistência.
2. Antes de 2010, eram recorrentes as afirmações do arguido à ofendida de que tinha um revólver guardado para a matar caso o deixasse ou “tivesse outra pessoa”.
3. Nesse mesmo dia (16 de Setembro de 2011) o arguido tentou contactar telefonicamente, sem sucesso, a ofendida, pelo que afirmou a I…, colega daquela: “diz-lhe que se ela fizer queixa à polícia por eu ter aparecido no balcão vai sofrer as consequências”.

Foi pois com base nesta factualidade que o arguido, no âmbito desse mesmo processo comum coletivo nº 949/10.2SLPRT, veio a ser condenado numa pena de prisão, suspensa na sua execução, pela prática, como autor material e em concurso real, de um crime de violência doméstica, na pessoa da ofendida C…, e de um crime de detenção de arma proibida.
Sendo que, como resulta da respetiva factualidade submetida a julgamento e que já transcrevemos, o crime de violência doméstica é relativo a factos ocorridos no decurso do relacionamento afetivo que o arguido e a ofendida mantiveram entre o ano de 2003 e 25.12.2010 (cfr. nºs 1 a 3 dos Factos Provados e nº 1 dos factos não provados), bem como entre esta última data (que corresponde ao fim da relação) e o dia 26.10.2011, quando foi aplicada ao arguido a medida de coação de proibição de contactar com a ofendida, altura a partir da qual ele não mais abordou/importunou a ofendida, como igualmente consta do elenco dos factos provados (cfr. nº 39 dos Factos Provados).
Ora, como decorre do artigo 152.º do Código Penal, que prevê e pune o crime de violência doméstica, este tipo exige, como elemento objetivo, a prática de maus tratos físicos ou psíquicos, tais como ofensas à integridade física, ameaças, humilhações, provocações, injúrias, cometidos dentro de determinadas relações familiares ou análogas.
Embora a verificação do tipo de ilícito não exija a repetição de condutas ofensivas da integridade física ou moral[3], podendo verificar-se com uma única conduta, desde que a sua gravidade intrínseca permita o enquadramento na figura dos maus tratos, o crime de violência doméstica não deixa de ser, em regra e tipicamente um crime habitual ou de reiteração.
Assim, na sua vertente regra, o crime de violência doméstica engloba a prática de uma multiplicidade de condutas, ainda que de natureza diversa, reiteradas ao longo de determinado período de tempo, reportadas a maus tratos físicos e/ou psíquicos, que assumam uma gravidade tal que justifique a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar. Surgindo as várias condutas isoladas unificadas pela violação do bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica, nele se exaurindo ou esgotando[4]. Sendo esse bem jurídico, nas palavras de Taipa de Carvalho, “a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental -“[5]
Revertendo de novo à análise direta do caso sub judice, constamos que a conduta do arguido em causa no presente processo, isoladamente subsumível à prática de um crime de ameaça, ocorreu a 19.09.2011, três dias após o último episódio com particular gravidade e relevância, que foi descrito exemplificativamente no processo comum coletivo nº 949/10.2SLPRT, e alguns dias antes da aplicação ao arguido da medida de coação de proibição de contactar com a ofendida, altura a partir da qual ele não mais abordou ou importunou a ofendida, como consta do elenco dos factos provados naquele processo.
Tal episódio de ameaça do dia 19 de setembro de 2011 integra-se, pois, no período de tempo que foi considerado para a anterior condenação por violência doméstica e, se bem que o facto naturalístico respeitantes a esse dia não tenha sido expressamente considerado no primeiro processo, ele mais não é do que um novo facto contido no âmbito daquele crime de violência doméstica, dada a sua natureza de crime reiterado ou exaurido.
De onde decorre que a consideração, nos presentes autos, daquele facto que, embora novo, integra o mesmo pedaço da história de vida do arguido e da vítima, subsumível ao crime único de violência doméstica, já definitivamente julgado, corresponde a uma violação do princípio do ne bis in idem[6].
Impondo-se consequentemente a revogação da sentença recorrida, por verificação da excepção do caso julgado.
Ficando precludido o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação do Porto, em conceder provimento ao recurso do arguido B…, absolvendo-o do crime de ameaça, previsto e punível pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal.
Sem custas.
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Porto, 28 de outubro de 2015
(Elaborado e revisto pela relatora)
Fátima Furtado
Elsa Paixão
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[1] Cfr. artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
[2] Henrique Salinas, “Os Limites Objetivos do ne bis in idem”, Dissertação de Doutoramento - fevereiro de 2012, página 694.
[3] “... de forma reiterada ou não...”
[4] cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 17.04.2013, proferido no proc. n.º 790/09.5GDALM.L1-3, disponível em www.dgsi/jtrl.pt.
[5] cfr. Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, T. I, Coimbra Editora, pág. 132.
[6] Cfr., em absoluta consonância, e também num caso de violência doméstica, o acórdão desta Relação do Porto de 10.07.2013, proc. 130/10.0GAMTR.P1. Em situação com idênticos contornos, mas quanto ao tráfico de estupefacientes, o acórdão desta Relação do Porto de 13.01.2010, proc. 665/07.2PRPRT.P1 e o acórdão da Relação de Évora de 26.06.2012, proc. 40/09.4PEEVR.E2, todos disponíveis em www.dgsi.pt.