Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2330/20.6T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS PORTELA
Descritores: RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Nº do Documento: RP202205192330/20.6T8PRT.P1
Data do Acordão: 05/19/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não cumpre o ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto previsto no art.º 640º, nº1, alínea b) e nº2, alínea a) do CPC o recorrente que, apesar de indicar os concretos pontos daquela decisão que considera incorrectamente julgados e apontar a resposta que deveria ter sido dada, não individualiza os meios de prova os quais, segundo o seu entendimento, determinariam uma decisão diversa da que foi emitida.
II - O fundamento da responsabilidade pré-contratual reside na culpa na formação do contrato (cf. art.º 227.º, nº 1, do CC) e assenta na violação do dever de boa-fé que também tem de estar presente na fase pré-contratual.
III - Sendo certo que a liberdade contratual não impõe às partes o “dever pré-contratual de celebrar o contrato final”, a verdade é que o nosso sistema legal impõe àquele que negoceia a obrigação de observar o dever de boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à contra parte.
IV - O art.º 474.º do CC confere ao enriquecimento sem causa natureza subsidiária ou residual, consagrando assim o chamado princípio da subsidiariedade daquele instituto em relação a outros meios específicos de tutela jurisdicional.
V - Improcedendo o pedido “principal” de ressarcimento/restituição que tinha por fundamento a responsabilidade pré contratual da Ré, pode ser apreciado o pedido que tinha por base o enriquecimento formulado “subsidiariamente” pela Autora.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 2330/20.6T8PRT.P1
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível do Porto
Relator: Carlos Portela
Adjuntos: António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço



Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I.Relatório:
X ..., Lda., contribuinte n.º ..., com sede na Rua ..., ... Porto, intentou a presente acção declarativa de condenação, contra S... Lda., contribuinte n.º ..., com sede na Rua ..., ... Matosinhos, pedindo que a Ré seja condenada a pagar à Autora a quantia de €250.000,00 acrescida de juros de mora à taxa legal de 7% já vencidos de €13.808,22 e os vincendos até efectivo e integral pagamento.
Para tanto e em síntese alegou ser uma sociedade comercial que tem por objecto a comercialização por grosso e a retalho de produtos alimentares e bebidas, exploração de restaurantes, representação de marcas alimentares e bebidas, confecção de comida para venda no local e para o exterior, importação e exportação e equipamentos para industria alimentar.
Em determinado momento quiseram a Ré e os seus sócios, AA e BB que a Autora entrasse no seu capital social com vista a que a mesma adquirisse um imóvel para a construção de uma fábrica de indústria conserveira, fábrica essa que seria construída com acesso a fundos do programa comunitário MAR2020.
Na sequência das negociações encetadas e em Dezembro de 2017 foi elaborada entre as partes uma minuta de um contrato promessa de aumento de capital com entrada de um novo sócio na qual se previa que a Ré tivesse um aumento de capital de €2.000,00 para €648.000,00.
Sendo certo que a aqui Autora tinha a obrigação de subscrever e realizar um aumento de capital de €325.000,00 a mesma colocou à disposição da Ré em Dezembro de 2017 a quantia de €250.000,00.
Sucede que não obstante o exposto, a Ré e os seus sócios não chegaram a outorgar o contrato promessa e muito menos a realizar o aumento capital social a que se tinham obrigado, tendo utilizado a quantia de €250.000, 00 para a aquisição de um imóvel situado no lugar da Quinta, freguesia ..., concelho ... e acabando por desistir da candidatura ao programa MAR2020.
Até hoje e apesar de insistências da Autora a Ré não liquidou a identificada quantia de €250.000,00, tendo inclusivamente procedido à venda simulada da sociedade e do bem imóvel acima referido.
Devidamente citada veio a Ré contestar alegando o seguinte:
Nunca a Autora e a Ré negociaram qualquer contrato promessa de aumento de capital, com entrada de novo sócio, nem este alguma vez foi elaborado entre as partes.
A quantia de €250.000,00 foi efectivamente entregue pela Autora à Ré e destinava-se á aquisição por esta de um prédio rústico, conforme o previamente acordado.
A ideia era também que o sócio gerente da Autora, CC e o sócio da Ré, AA fossem sócios em partes iguais de um novo projecto de instalação de uma fábrica de conservas.
Em Novembro de 2017 apareceu a oportunidade de adquirir um prédio para a futura instalação da fábrica de conservas pelo referido preço de €250.000,00 e ainda antes de terem sido feitos os estudos económicos que sustentariam o projecto, foi decidido entre os identificados CC e AA adquirem o prédio em partes iguais.
Uma vez que o CC não tinha o montante suficiente para pagar a sua quota-parte e não podia aparecer como estando ligado ao projecto de instalação da fábrica, o AA comprometeu-se por si ou por entidade por si indicada, adquirir ao CC uma participação representativa do capital da autora como forma de gerar liquidez àquele.
A ser assim em 2017.12.18 o CC cedeu à sociedade maltesa W ..., Limited, indicada pelo AA, uma quota do valor nominal de €40.000,00 representativa de 20% do capital social da Autora, pelo preço “astronómico” de e 183.000,00 que aquela pagou ao CC.
A referida empresa W ... celebrou um contrato de empréstimo com a Autora no valor de €70.000,00 que lhe entregou, para complemento do valor necessário à aquisição do terreno, tudo conforme documentos juntos aos autos.
E é assim que o CC, entregou à Ré o valor de €250.000,00 destinado ao pagamento da sua responsabilidade na compra do terreno em 2017.12.18.
Em 2018.06.05, os sócios da Ré, conforme o acordado com o CC, titularam a entrada do valor pela Autora mediante o aumento do capital social da Ré, incorporando neste o valor de €250.000,00 e suprimentos que o AA já lhe havia prestado e aumentando o capital social da Ré do montante de €2.000,00 para o de €282.000,00, fazendo constar que o faziam por conversão de suprimentos no valor de €280.000,00 de modo a que cada um ficasse com quotas representativas de 50% do capital social, conforme documentos juntos.
Posteriormente o AA veio a descobrir que o projecto da nova fábrica de conservas era um logro e tendo pretendo chegar a acordo com o CC para pôr termo ao mesmo e não o tendo conseguido, a referida BB manteve em seu nome a quota representativa de capital social da Ré que subscreveu e realizou por conta e no interesse do CC.
A Ré arcou sozinha com todos os custos inerentes ao projecto que ia ser levado a cabo, não resultando por isso qualquer crédito da Autora sobre a Ré.
Não estando pois verificados os pressupostos do instituto do enriquecimento sem causa já que a Ré não se locupletou com nada da Autora, nem obteve qualquer vantagem patrimonial.
Conclui pela total improcedência da acção e pela absolvição dos pedidos contra si formulados.
Os autos prosseguiram com a realização da audiência prévia onde se saneou o processo, se identificou o objecto do litígio e se enumeram os temas de prova.
Realizou-se então a audiência de discussão e julgamento no culminar da qual se proferiu sentença onde se julgou a acção totalmente improcedente por não provada e, em consequência, se absolveu a Ré do pedido.
A Autora veio interpor recurso desta decisão, apresentando desde logo e nos termos legalmente prescritos, as suas alegações.
Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho que teve o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Enquadramento de facto e de direito:
Ao presente recurso são aplicáveis as regras processuais da Lei nº 41/2013 de 26 de Junho.
É consabido que o objecto do presente recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pela autora/apelante nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC).
E é o seguinte o teor dessas conclusões:
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Por seu turno a ré/apelada conclui do seguinte modo as suas contra alegações:
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Face ao antes exposto, são as seguintes as questões suscitadas neste recurso:
1ª) A impugnação da decisão da matéria de facto;
2ª) A verificação dos fundamentos da responsabilidade pré-contratual;
3ª) A condenação da ré da restituição à autora da quantia de €250.00,00, ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa.
Ora estando em causa, como está, a decisão da matéria de facto proferida, impõe-se recordar aqui e antes do mais qual o conteúdo da mesma, bem como a sua respectiva motivação.
Assim:
Factos Provados:

A aqui Autora é uma sociedade comercial que tem por objecto a comercialização por grosso e a retalho de produtos alimentares e bebidas alcoólicas e não alcoólicas, exploração de restaurantes, representação de marcas alimentares e bebidas, confecção de comida para venda no local e para o exterior, importação e exportação e equipamentos para indústria alimentar, e outras actividades de serviço de refeições.

O sócio gerente da Autora, CC travou conhecimento com o Sr. AA e com a Sra. BB.

E demonstraram interesse em constituir uma sociedade, a aqui Ré, que se dedicaria à actividade de indústria conserveira.

Sendo intenção da Ré e dos seus sócios (os referidos AA e BB) que a aqui Autora entrasse no capital social da Ré com vista a que a mesma adquirisse um imóvel para a construção de uma fábrica de indústria conserveira.

Em 2017.12.18, o CC cedeu à sociedade maltesa W ..., Limited, indicada pelo AA, uma quota do valor nominal de €40.000, representativa de 20% do capital social da Autora, pelo preço astronómico de €183.000,00, que aquela pagou ao CC;

A W ..., Limited, indicada pelo AA, celebrou um contrato de empréstimo com a Autora no valor de €70.000,00, que lhe entregou, para complemento do valor necessário à aquisição do terreno, no montante de €250.000,00,

A autora colocou à disposição da Ré no mês de Dezembro de 2017 a quantia de €250.000,00.

Com esse valor e seguindo o acordado com o CC, a Ré, em 2018.12.19, adquiriu o prédio do prédio rústico situado no lugar de Quinta, freguesia ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Espinho sob o nº ..., mediante escritura pública, pelo preço de €250.000,00; e
9º.
Em 2018.06.05, os sócios da Ré, titularam a entrada do valor pela Autora mediante aumento do capital social da Ré, incorporando neste o valor transferido - €250.000,00 e suprimentos que o AA já lhe havia prestado - €30.000,00 -, num total de €280.000,00.
11º
O referido terreno destinava-se construir uma fábrica de conservas.
12º
Fábrica essa que seria construída com acesso a fundos do programa comunitário MAR2020.
13º
A Ré desistiu da candidatura ao MAR2020.
14º
O projecto não era economicamente viável.
15º
A Autora, através da sua mandatária, enviou no passado dia 12 de Abril de 2019 carta registada em que solicitava que a Ré liquidasse o seu débito de €250.000,00 no prazo de cinco dias.
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Factos não provados:
Não se provaram mais factos com interesse para a boa decisão da causa, nomeadamente que:
1.
O Sr. AA e a Sra. BB demonstraram interesse em constituir uma sociedade, a aqui Ré, que se dedicaria à actividade de indústria conserveira, contando para o efeito com a expertise e o know how da aqui Autora e do seu sócio gerente CC.
2.
Sendo intenção da Ré e dos seus sócios (os referidos AA e BB) que a aqui Autora entrasse no capital social da Ré com vista a que a mesma adquirisse um imóvel para a construção de uma fábrica de indústria conserveira.
3.
E na sequência das referidas negociações chegou a ser elaborado entre as partes uma minuta datada de Dezembro de 2017 (que nunca chegou a ser assinada) de um “ contrato promessa de aumento de capital com entrada de novo sócio “ , contrato esse que previa que a Requerida tivesse um aumento de capital dos atuais €2.000,00 para o valor de €648.000,00.
4.
A Ré não realizou o aumento de capital social que estava acordado.
5.
A aqui Autora tentou após a desistência da candidatura aos fundos comunitários por parte da aqui Ré, contactar e negociar com a mesma com vista à devolução da quantia de €250.000,00 que adiantou à Ré.
6.
O CC pretendia que o AA investisse num negócio de fabrico e comercialização de conservas de peixe para o qual o primeiro não tinha o dinheiro necessário, nem poderia ser formalmente sócio ou gerente, por alegada incompatibilidade com outra actividade profissional por si exercida.
7.
Porque não podia ser sócio da Ré, o CC pediu a BB - companheira do AA e amiga da mulher do CC – para tomar uma participação de 50% no capital social da Ré em seu próprio nome, mas por conta e no interesse do CC, aquando da constituição da sociedade Ré em 2017.10.04.
8.
A intervenção do CC seria feita através da BB e da participação detida por esta no interesse e por conta do CC.
9.
Em Novembro de 2017, apareceu uma boa oportunidade de adquirir um prédio para vir a instalar a fábrica de conservas pelo preço de €250.000,00 e, ainda mesmo antes de feitos os estudos económicos que sustentariam o projecto, foi decidido por CC e AA adquirirem o prédio em partes iguais.
10.
A Ré e os seus sócios percebem hoje que foram enganados pelo CC que, sem meter um euro sequer e entregando apenas uma quota representativa de 20% da Autora - que nem €75.000,00 valia ou vale -, pretendia ficar com metade do projecto da nova fábrica de conservas de peixe e, entretanto, com metade do terreno adquirido pela Ré, através da detenção pela BB de uma quota representativa de capital social daquela sociedade,
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Suporte da Convicção do Tribunal:
A compra do terreno em Espinho; a cessão à sociedade maltesa W ..., Limited, de uma quota do valor nominal de €40.000, representativa de 20% do capital social da Autora, pelo preço de €183.000,00; e o contrato de empréstimo que a W ..., Limited celebrou com a Autora no valor de €70.000,00, não é matéria controvertida.
O tribunal fundamentou a sua convicção quanto aos demais factos que considerou provados e não provados na análise crítica e integrada da globalidade da prova produzida nos autos, designadamente dos documentos juntos aos autos, em conjugação com as declarações de parte e das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, articulados entre si, de acordo com as regras da experiência comum, como oportunamente se especificará:
Das declarações de parte prestadas não resultaram confissões, apenas ficou esclarecido que foi o senhor CC que propôs ao senhor AA a participação no negócio de construção de uma fábrica de conservas (no qual, e apenas por motivos empresariais não lhe convinha aparecer como titular), que a compra do terreno foi uma decisão tomada no seguimento das imposições da candidatura ao projecto MAR2020 e que no desenho final do projecto a sociedade “X ...” deveria ficar com 50% da sociedade “S ...”.
Documentos:
A Acta nº 3 (Aumento do capital da S ... por incorporação de suprimentos pelos sócios AA e BB - fls. 75) devidamente atestada pelo contabilista certificado. A Dr.ª DD confirmou-o em audiência de julgamento.
A correspondência trocada entre as partes (fls. 71 e 72) mostra a complexidade do negócio amplamente negociado entre o AA e o CC, nomeadamente o aumento de capital e a necessidade obter recursos para o efeito da forma menos onerosa para os intervenientes.
- processo de candidatura ao Projecto MAR 2020 (fls. 84 a 124; conjugado com o depoimento da testemunha EE (funcionário do Banco 1...) quanto ao facto do projecto não ser economicamente viável;
A correspondência trocada que se encontra a fls. 80 a 82 e 125 também aponta no sentido do negócio não ser viável.
Depoimentos das testemunhas:
FF (sócio da Autora) referiu que o AA e a BB eram amigos da mulher do CC e que o AA mostrou um interesse espontâneo em investir no projecto que o CC tinha de construir uma fábrica de conservas (50% do AA e 50% da X ...). Ouviu falar de uma minuta de um contrato promessa e de um aumento de capital, mas que não acompanhou esses assuntos.
A candidatura ao MAR2020 não avançou por o AA não quis.
GG (responsabilidade pela contabilidade da Autora e da Ré) afirmou que esteve presente em reuniões entre o CC e o AA para desenhar o modelo de negócio (fabrica) que apresentaria uma candidatura ao Programa MAR2020.
Referiu uma minuta de “aumento de capital” sem assumir a sua autoria. Assumiu que não esteve presente nas negociações de relativas à venda de acções, empréstimos e aquisição de terreno.
HH salientou a impossibilidade de “alavancar o negócio” da forma como foi concebido por não ter margens de lucro rentáveis e por não conseguir financiamento bancário. Realçou que a ré precisava de €600,00’0 de capitais próprios e de 1,5 milhão de financiamento bancário para ver a candidatura aprovada e disponibilizada a primeira tranche de financiamento pelo MAR2020 e que não conseguiu atingir aqueles níveis de capitalização.
EE, (funcionário bancário do Banco 1...) enfatizou as fragilidades da candidatura apresentada ao MAR2020, nomeadamente quanto à falta de capitais próprios e de capitais financiados pelos Bancos, que não viram viabilidade no negócio.
Dos depoimentos credíveis destas duas testemunhas resulta que a desistência do projecto se deveu à falta de capitais e de viabilidade do negócio.
II (directora financeira) questionou de forma proficiente o valor atribuído à quota correspondente a 20% do capital social da Autora, nomeadamente quanto à adequação do múltiplo aplicado (13,23) considerando os resultados pouco elevados apresentados pela sociedade.
DD, (contabilista certificada) confirmou a realização do aumento de capital (acta de fls. 75) que certificou (fls.76) de acordo com as indicações do cliente (CC) e do chefe (JJ). Desmentiu que tenha feito a avaliação da empresa X ... que consta de fls. 34 v. e 35.
Conjugados estes depoimentos com a depoimento da testemunha KK, conclui-se que o valor atribuído à quanto não corresponde ao seu valor real mas a um valor ajustado pelas partes tendo em vista a compra do terreno/aumento do capital social.
A testemunha KK prestou um depoimento credível e relatou a operação de compra de quota e empréstimo de €70.000,00 feita pela empresa maltesa “W ...”da qual tinha conhecimento directo por força da sua participação.
O valor da quota da empresa X ... foi atribuído de acordo com o que era conveniente para o negócio (projecto de compra de propriedade para uma fábrica de sardinhas).
Relativamente aos factos dados como não provados não foi feita qualquer prova adicional em julgamento.”
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A propósito do recurso da decisão de facto aqui interposto, passamos a citar o que foi feito constar no Acórdão do STJ de 10.12.2020, processo 3782/18.0T8VCT-G1, superiormente relatado pelo Conselheiro Manuel Capelo:
“Consagrado com novidade pelo Decreto-Lei n.º 39/95 de 15 de Fevereiro, o exercício efectivo pela Relação do duplo grau de jurisdição quanto à decisão da matéria de facto, compreendendo a eventual reapreciação de depoimentos gravados ou registados prestados oralmente em audiência final e sujeitos à livre valoração do Tribunal, foi acompanhado do cuidado de prevenir que com essa faculdade não fosse possível provocar um novo julgamento, o que se deixou expressamente declarado no preâmbulo diploma. Visando tão só a detecção e correção de pontuais e concretos erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, criou-se o ónus de o recorrente apontar claramente e fundamentar tais erros no recurso, não admitindo que a impugnação se limitasse a uma forma genérica e global pedindo, por exemplo, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância.
O especial ónus de alegação, edificado sobre os princípios da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, pretendeu assegurar a seriedade do recurso intentado e garantir uma utilização eficaz e útil, o que se quis atingir com a exigência de delimitação do objecto da impugnação deduzida pelo apelante, de fundamentação minimamente concludente de tal impugnação, expressa na necessária indicação dos pontos de facto questionados e dos meios probatórios que imponham decisão diversa, complementada, pela vinculação do recorrente a indicar o exacto sentido decisório que decorreria da correta apreciação dos meios probatórios em causa, expondo, claramente, onde estava situado o invocado erro de julgamento. E este modelo inicial de 1995 manteve a sua matriz, o que se certifica quando o Código de Processo Civil de 2013, neste domínio, afastou qualquer pretensão de alterar o sistema dos recursos cíveis, manifestando a preocupação de “conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto”, como decorre da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII, sendo que essa maior eficácia ampliou os poderes da Relação, no que respeita ao julgamento do recurso da decisão de facto, mas não eliminou nem atenuou a exigência do ónus de delimitação e fundamentação do recurso.
A impugnação da decisão relativa à matéria de facto obriga ao cumprimento do ónus, a cargo do Recorrente, estatuído no art.º 640º nºs. 1 e 2 do Código de Processo Civil estabelecendo-se que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na al. b) do número anterior observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação das provas tenham sido gravados incumbe ao recorrente sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.”
Impõe-se especificar os factos, os meios probatórios que em concreto se questionem e indicar o sentido decisório que devem ter as questões de facto impugnadas, isto é, sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, quem impugnar a matéria de facto terá de indicar os concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados; os concretos meios probatórios que na óptica do recorrente impunham decisão diversa; e o sentido da decisão que deve ser proferida, sendo que no tocante aos depoimentos gravados impõe-se que indique as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.
O rigor e a seriedade do cumprimento deste ónus, entendido com a inteligência objectiva que radica na sua útil finalidade, compraz-se na ideia de “as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, próprio de um instrumento processual que visa pôr em causa o julgamento da matéria de facto efectuado por outro tribunal em circunstâncias que não podem ser inteiramente reproduzidas na 2ª instância. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” e, ainda, em o legislador concretizar “a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova”- Abrantes Geraldes, in, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, página 126 e 147.
Entendidos no contexto da respectiva função é possível e útil distinguir, quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes; e um ónus secundário - tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida - que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas - indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes, revestindo consequências substancialmente diferenciadas o incumprimento pelo recorrente do referido ónus fundamental de delimitação e estruturação do objecto da impugnação deduzida e do deficiente cumprimento daquele ónus secundário ou instrumental, tendente a permitir apenas uma localização mais fácil pelo tribunal ad quem dos meios probatórios relevantes para dirimir o objecto do recurso. Assim, em conformidade com o princípio da proporcionalidade, será de reconhecer a rejeição imediata no incumprimento daquele ónus primário ou fundamental, ao invés, não será justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando, pese embora a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, ao nível dos minutos ou segundos em que foram proferidas pela testemunha as expressões tidas por decisivas pelo recorrente, não se possa perspectivar a existência de dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o pretenso erro de julgamento, (…).
Em sentido próximo, observando que desde a versão inicial (de 1995) que ficou a constar no art.º 690-A do CPC 1961, passando pelas modificações operadas pelo D.L 183/00 e pelas introduzidas na reforma dos recursos de 2007, até ao texto do art.º 640 do CPC já enunciado, foi percorrido um caminho de procura de resolução de dúvidas e reforço do ónus de impugnação imposto ao recorrente, Abrantes Geraldes - op. cit. p. 199 e 200 - enuncia que a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto matéria de facto se verificará se: faltarem as conclusões sobre a impugnação da matéria de facto; se faltar nas conclusões a especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados; falta de especificação na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados; falta de indicação exacta na motivação, das passagens da travação em que o recorrente se funda; falta de posição expressa na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.”
Regressando ao caso concreto, o que verificamos é o seguinte:
É verdade que neste seu recurso a autora/apelante indica quais os factos que considera incorrectamente julgados, a saber os dos pontos 5º e 14º dos factos provados e o do ponto 2º dos factos não provados.
Requer também que sejam aditados aos factos provados os factos que alegou nos artigos 17º da petição inicial e nos artigos 15º, 16º e 30º da resposta à contestação.
No entanto e relativamente a cada um dos referidos factos, não individualiza os meios de prova segundo o seu entendimento determinariam uma decisão diversa da que foi emitida.
Assim e no que toca ao ponto 5º, limita-se a referir que tal facto não podia ter sido dado como provado tendo apenas por base o depoimento da testemunha II.
E o mesmo ocorre relativamente ao ponto 14º, quando se limita a afirmar que tal facto não podia ter sido dado como provado, tendo apenas por base os depoimentos prestados pelas testemunhas HH e EE.
Quanto ao ponto 2º dos factos provados limita-se a dizer que tal matéria não pode ser dada como provada por ter sido dada como provada no ponto 4 dos factos provados.
Mais ainda, relativamente a tais pontos de facto, no corpo das suas alegações de recurso nem sequer indica as passagens da gravação dos depoimentos prestados em julgamento, nas quais e segundo o seu entendimento se poderia fundamentar a alteração proposta.
Ou seja, se tal ocorresse e no limite, haveria a possibilidade de se proceder à audição da totalidade dos depoimentos prestados a fim de se verificar se é verdade o que alega quanto à inexistência de qualquer referência quanto a esta matéria por parte das outras testemunhas então inquiridas.
Por fim e no que se refere à matéria cujo aditamento aos factos provados agora vem requer, só diz que tal pretensão tem por base o facto da mesma não ter sido objecto de impugnação por parte da ré/apelada.
Em suma, não cumpre os ónus previstos no art.º 640º, nº1, alínea b) e 2, alínea a) do CPC.
E a ser assim, impõe-se pois rejeitar o recurso na parte correspondente à impugnação da decisão da matéria de facto.
Deste modo, os factos provados e não provados são aqueles que ficaram melhor descritos na sentença recorrida e que face ao exposto mantêm.
É por isso esta a decisão (de facto) que cabe ter em conta na análise das restantes questões suscitadas.
Como ficou já visto, nas suas alegações de recurso a autora/apelante alega que na decisão recorrida foram violadas as regras do art.º 227º do Código Civil.
Vejamos, pois, se com fundamento.
Nesta norma, sob a epígrafe “Culpa na formação dos contratos”, dispõe a lei da seguinte forma:
“1. Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte.”
A propósito deste artigo e citando o acórdão do STJ de 22.11.2018, processo 1156/12.5TVL.SB.L1.S1, www.dgsi.pt. o que importa considerar é o seguinte:
“O fundamento da responsabilidade pré-contratual reside na culpa na formação do contrato – artigo 227 n.º 1 citado – e assenta na violação do dever de boa-fé que também tem de estar presente na fase pré-contratual.
Como se afirma no Acórdão do STJ de 31-03-2011 «A razão de ser deste preceito está na tutela da confiança e da expectativa criada entre as partes, na fase pré-contratual de um negócio, assegurada pela imposição de comportamentos que devem ser conformes à boa-fé.
Esta obrigação de actuação de boa-fé tanto nos preliminares como na formação do contrato, inculca, sem margem para dúvidas, que a responsabilidade pré-contratual abrange a fase negociatória que decorre desde o início dos contactos e das negociações até à obtenção de acordo sobre todas as condições e termos tidos como relevantes (incluindo, portanto, a aceitação da proposta contratual) e a fase da perfeição e execução do acordo conseguido que inclui a formalização (se não bastar o mero consenso das partes) e cumprimento do contrato.
Isto porque o mero facto de se entrar em negociações é susceptível de criar uma situação de confiança na outra parte, confiança essa que é imediatamente tutelada pelo Direito, mesmo antes de ter surgido qualquer contrato».
Como se escreveu no Acórdão recorrido e citando Almeida Costa in Direito das Obrigações, 12ª ed. rev. e act., págs. 302 e 303, “Entende-se que, durante as fases anteriores à celebração do contrato – quer dizer, na fase negociatória e na fase decisória – o comportamento dos contraentes terá de pautar-se pelos cânones da lealdade e da probidade. De modo mais concreto: apontam-se aos negociadores certos deveres recíprocos, como, por exemplo, o de comunicar à outra parte a causa de invalidade do negócio, o de não adoptar uma posição de reticência perante o erro em que esta lavre, o de evitar a divergência entre a vontade e a declaração, o de se abster de propostas de contratos nulos por impossibilidade do objecto, e, ao lado de tais deveres, ainda, em determinados casos, o de contratar ou prosseguir as negociações com vista à celebração de um acto jurídico. Através da responsabilidade pré-contratual tutela-se directamente a confiança fundada de cada uma das partes em que a outra conduza as negociações segundo a boa- fé; e, por conseguinte, as expectativas legítimas que a mesma lhe crie, não só quanto à validade e eficácia do negócio, mas também quanto à sua futura celebração”.
No mesmo sentido os Acórdãos também aí citados deste STJ de 9.2.1999, in CJASTJ, Tomo I, pág. 85 e de 11.09.2007, P. 07A2402, ambos em www.dgsi.pt.
Em suma, dúvidas não subsistem, nem as Recorrentes isso questionam, de que as partes, mesmo na fase das negociações, devem agir com lealdade, com boa-fé.
Cabe ainda salientar, as regras desta norma se aplicam não apenas aos casos em que haja contrato, seja este válido ou inválido, mas também aos casos em que o contrato não chega a ser celebrado, em virtude de ruptura de negociações já iniciadas.
Neste sentido, vai também o supra citado Acórdão do STJ quando a dado passo afirma:
“E, como afirma o Acórdão recorrido, se em regra, a «ruptura das negociações não se assume como ilícita» essa ruptura «torna-se ilegítima se a parte que rompe as negociações o faz sem um motivo válido, violando, notoriamente, os valores impostos pela boa-fé, à luz das circunstâncias e das especificidades do caso».”
Assim o que se exige é que com a negociação ou celebração se hajam violado deveres impostos pela boa-fé e com isso se tenha causado danos à outra parte.
Tudo isto, sem esquecer as regras que regem o princípio da liberdade contratual, segundo o qual as partes conservam até ao último minuto a sua autonomia negocial.
A ser deste modo e no que mais concretamente respeita à responsabilidade pré-contratual por ruptura de negociações, têm vindo a ser aceites como sendo pressupostos da mesma os seguintes:
1º) A existência de efectivas negociações e que elas tenham permitido ao contratante em relação ao qual se realiza a sua interrupção formar uma razoável base de confiança (de que o negócio se iria celebrar ou concluir);
2º) A ilegitimidade da ruptura das negociações, ou seja, uma ruptura arbitrária, intempestiva, sem justa causa e desleal.
Por outro lado, é aceite por todos que para que se verifique um caso subsumível na precisão legal do art.º 227º, é necessária a verificação cumulativa dos pressupostos da responsabilidade civil, a saber, o facto voluntário, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Regressando ao concreto, ficou já visto que segundo a autora/apelante a decisão recorrida não foi a correcta porque nesta o Tribunal “a quo” não deu como provada a tese da responsabilidade civil pré contratual por ruptura infundada de negociações.
Assim, neste seu recurso volta a afirmar a tese de que efectuou uma transferência de €250.000,00 para a ré/apelada, por conta de um futuro aumento de capital e que com esse dinheiro a mesma acabou por adquirir um prédio rústico.
Defende, mais ainda, que posteriormente a ré/apelada desistiu do referido projecto e procedeu à venda do referido terreno, sem lhe entregar qualquer quantia.
Em suma, advoga que a desistência por parte da ré/apelada da candidatura ao MAR2020 traduz uma violação dos deveres de lealdade, confiança e boa-fé pondo em causa todas as regras impostas pelo art.º 227º do CC.
Cabe pois apurar se os factos provados nos autos permitem ou não concluir nesse sentido.
São os seguintes os factos provados que para este efeito relevam:
A autora colocou à disposição da Ré no mês de Dezembro de 2017 a quantia de €250.000,00. (Ponto 7º dos Factos Provados)
Com esse valor e seguindo o acordado com o CC, a Ré, em 2018.12.19, adquiriu o prédio do prédio rústico situado no lugar de Quinta, freguesia ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Espinho sob o nº ..., mediante escritura pública, pelo preço de €250.000,00; e (Ponto 8º dos Factos Provados)
Em 2018.06.05, os sócios da Ré, titularam a entrada do valor pela Autora mediante aumento do capital social da Ré, incorporando neste o valor transferido - €250.000,00 e suprimentos que o AA já lhe havia prestado - €30.000,00 -, num total de €280.000,00. (Ponto 9º dos Factos Provados)
O referido terreno destinava-se construir uma fábrica de conservas. (Ponto 11º dos Factos Provados)
Fábrica essa que seria construída com acesso a fundos do programa comunitário MAR2020. (Ponto 12º dos Factos Provados)
A Ré desistiu da candidatura ao MAR2020. (Ponto 13º dos Factos Provados)
O projecto não era economicamente viável. (Ponto 14º dos Factos Provados)
Perante tais factos, deve resultar evidente para todos que o aumento de capital melhor identificado foi deliberado e efectivamente subscrito e realizado por quem era previsto fazê-lo, no caso os então e atuais sócios da ré/apelada S... Lda.
Resulta também claro que a quantia de €250.000,00 entregue pela autora à ré te à Recorrida se destinava e se destinou de facto à aquisição por esta última de um prédio rústico, tudo isto conforme havia sido previamente acordado entre ambas.
Ora como já vimos, no entendimento da autora/apelante, com a desistência da candidatura da ré/apelada ao projecto comunitário MAR2020, a mesma viu frustrada a sua expectativa de participar do projecto de construção de uma fábrica de conservas, projecto esse que estava na base da sua participação financeira.
No entanto, o que resultou dos autos foi que de facto não ocorreu qualquer desistência por parte da ré, mas sim o seguinte: desde logo que o projecto aprovado não correspondia ao projecto inicial e em relação ao qual as partes tinham assentado a sua vontade em celebrar este negócio; mais ainda que as partes envolvidas no projecto não tinham os capitais exigidos pela candidatura do Mar2020 para injectar na sociedade ré, já que não houve qualquer instituição bancária que aprovasse o seu financiamento.
Em face destes dados, tem pois razão a ré/apelante quando defende que na hipótese dos autos o caso ficou demonstrado que a sua “desistência” no prosseguimento do projecto se ficou a dever à inviabilidade económica do mesmo, inviabilidade económica essa que só se tornou clara com o avançar das conversações e da candidatura a apresentar ao Mar2020.
Dos elementos que constam dos autos mostra-se possível subscrever tal entendimento e concluir que no caso não estão verificados os pressupostos que permitiriam a aplicação do previsto no art.º 227º do Código Civil.
Assim sendo e não estando preenchidos, como não estão, os pressupostos da responsabilidade civil pré-contratual, não podia a autora/apelante e ao abrigo de tais regras, vir aos autos e a este título requerer o pagamento da apontada quantia de €250.000,00.
Por isso, bem decidiu o Tribunal “a quo” quando julgou tal pedido improcedente por não provado e dele absolveu a ré aqui apelada.
Mas para além do que ficou exposto, vimos também que neste seu recurso veio a autora/apelante alegar que na sentença recorrida foram violadas as regras do enriquecimento sem causa previstas nos artigos 473º e 474º do Código Civil.
E isto por considerar que no caso a ré viu o seu património enriquecido com a transferência da quantia de €250.000,00 para a sua conta, quantia essa que na sua tese, foi utilizada para a compra de um terreno destinado à construção da fábrica de conservas e que posteriormente passou a integrar o seu património.
A propósito do instituto do enriquecimento sem causa e por pertinentes, passamos a citar o que ficou consignado no Acórdão do STJ de 24.03.2017, processo 1796/12.5TBCTX.E1.S1., www.dgsi.pt e que foi o seguinte:
“A obrigação de restituir fundada no injusto locupletamento, à custa alheia, pressupõe, como resulta do artigo 473º, nº 1, do Cód. Civil, a verificação simultânea de três requisitos: a existência de um enriquecimento; obtenção deste à custa de outrem; e falta de causa justificativa dessa valorização patrimonial […].
O enriquecimento representa uma vantagem ou benefício, de carácter patrimonial e susceptível de avaliação pecuniária, produzido na esfera jurídica da pessoa obrigada à restituição e traduz-se numa melhoria da sua situação patrimonial, «encarada sob dois ângulos: o do enriquecimento real, que corresponde ao valor objectivo e autónomo da vantagem adquirida; e o do enriquecimento patrimonial, que reflecte a diferença, para mais, produzida na esfera económica do enriquecido e que resulta da comparação entre a sua situação efectiva (real) e aquela em que se encontraria se a deslocação se não houvesse verificado (situação hipotética)»[…].
A vantagem patrimonial obtida por alguém tem como contrapartida, em regra, uma perda ou empobrecimento efectivo de outrem, ou seja, ao enriquecimento de um corresponde o empobrecimento de outro, existindo entre esses dois efeitos uma «correlação, no sentido de que o facto ou factos que geram um geram também o outro. Numa palavra, enquanto o património de um valoriza, aumenta ou deixa de diminuir, com o outro dá-se o inverso: desvaloriza, diminui ou deixa de aumentar» […].
Essa deslocação patrimonial, quando realizada, sem causa justificativa, obriga à restituição que tem por objecto o que for, indevidamente, recebido, ou o que for recebido, por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou (artigo 473º, n.º 2, do Cód. Civil). Prevêem-se aí, numa enumeração exemplificativa destinada a dar uma linha de rumo interpretativa, três situações especiais de enriquecimento desprovido de causa: condictio in debiti (repetição do indevido), condictio ob causam finitam (enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir) e condictio ob causam datorum (enriquecimento derivado da falta de resultado previsto) […].
A noção de falta de causa do enriquecimento […] é, contudo, muito controvertida e difícil de definir, inexistindo uma fórmula unitária que sirva de critério para a determinação exaustiva das hipóteses em que o enriquecimento deve considerar-se privado de justa causa. Perante tais dificuldades, há que saber, em cada caso concreto, «se o ordenamento jurídico considera ou não justificado o enriquecimento e se portanto acha ou não legítimo que o beneficiado o conserve» […] ou, então, se «o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, ou se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa”[…].
Pode, assim, dizer-se que «o enriquecimento carece de causa, quando o Direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios jurídicos, justifique a realizada deslocação patrimonial», hipótese em que a lei «obriga a restabelecer o equilíbrio patrimonial por ele rompido, por não desejar que essa vantagem perdure, constituindo o «accipiens» no dever de restituir o recebido». Deste modo, operando-se deslocação patrimonial mediante uma prestação, a causa há-de ser a relação jurídica que essa prestação visa satisfazer, e se esse fim falta, a obrigação daí resultante fica sem causa.
De frisar, no entanto, que, sendo o enriquecimento fonte autónoma da obrigação de restituir, embora subsidiária (art.º 474º do Cód. Civil), a falta de causa da atribuição ou vantagem patrimonial que integra o enriquecimento terá de ser alegada e demonstrada por quem invoca o direito à restituição dela decorrente, em conformidade com as exigências das regras gerais sobre os ónus de alegação e prova (art.º 342º do Cód. Civil). A mera falta de prova da existência de causa da atribuição não é suficiente para fundamentar a restituição do indevidamente pago, sendo necessário provar também que efectivamente a causa falta […].”
A propósito desta questão, foi a seguinte a argumentação que sustentou a decisão recorrida e que agora se transcreve nos seus segmentos mais relevantes:
“A autora argumenta ainda, de forma algum incidental, que a ré viu o seu património enriquecido com a transferência de €250.000, 00 das contas da autora para as suas (utilizada para a compra do terreno em Espinho destinado à construção da fábrica de conservas) que passou a integrar o património da ré. Será que esta situação poderá ser apreciada ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa?
(…)
Ora, no caso concreto, como causa de pedir a autora veio invocar a existência de responsabilidade pré contratual, uma vez que entende que foi a perspectiva de adquirir uma posição na sociedade ré que iria construir uma fábrica de conservas co-financiada pelos fundos do projecto MAR2020, que motivou a transferência de €250.000,00, eventualmente a título de empréstimo.
Tem assim a autora ao seu dispor de outro meio, que não o enriquecimento sem causa, para exigir da autora a restituição dos valores em discussão.
Não pode, pois, a autora, atenta a natureza subsidiária do instituto do enriquecimento sem causa, accionar tal meio (art.º 474º, do C. Civil).
Por último, sempre se dirá que estando em causa aqui uma pretensão fundada num negócio jurídico (contrato bilateral), este, por si só, constitui causa justificativa da deslocação patrimonial (enriquecimento) operada pela autora a favor da ré, por conta da obrigação a que a primeira se vinculara, sendo assim inaplicável in casu, por falta de um dos pressupostos legais (ausência de causa justificativa), o enriquecimento sem causa (art.º 473º, do C. Civil).
Concluímos, pois, que deverá soçobrar a pretensão da autora.”.
Cabe-nos dizer no caso concreto e atentos os elementos que temos ao nosso dispor nos autos, tal entendimento não pode ser subscrito.
Vejamos, pois.
É consabido que o funcionamento do instituto do enriquecimento sem causa, atenta a sua natureza subsidiária, pressupõe necessariamente a ausência de outro meio jurídico alternativo para o ressarcimento do empobrecido (cf. art.º 474º, do Código Civil).
Neste sentido vai a esmagadora maioria da nossa jurisprudência, como são exemplos, entre muitos outros, os Acórdãos do STJ de 28.06.2018, processo 1567/11.3TVLSB.S2 e de 24.01.2019, processo 948/14.5TVLSB.L1.S1, ambos em www.dgsi.pt.
Assim e transcrevendo a redacção da parte que releva dos respectivos sumários o que importa salientar é o seguinte quanto ao primeiro:
“II. Segundo o art.º 473.º, n.º 1, do CC, o enriquecimento sem causa tem como pressupostos fácticos essenciais:
a) -a ocorrência de um enriquecimento na esfera patrimonial de alguém à custa de outrem;
b) -a falta de causa jurídica justificativa para essa vicissitude.
III. Além disso, o art.º 474.º do CC confere ao enriquecimento sem causa natureza subsidiária ou residual, consagrando assim o chamado princípio da subsidiariedade daquele instituto em relação a outros meios específicos de tutela.
IV. O referido princípio da subsidiariedade do enriquecimento sem causa deve ser interpretado na linha da sua articulação com um concorrente meio de tutela específico visto na sua funcionalidade em relação aos contornos do litígio em causa e não de forma absoluta ou meramente genérica.”
E no segundo:
“I - O art.º 474º do CC, afirmando a subsidiariedade do enriquecimento sem causa face a outro instituto, nomeadamente a responsabilidade civil, ao qual possa ser reconduzido o mesmo conjunto de factos que também preencha os requisitos daquele, aponta para a impossibilidade de se recorrer ao primeiro por o segundo ser, no caso, configurável.”
Em suma, o instituto do enriquecimento sem causa surge como fonte autónoma das obrigações, sendo certo que, atento o princípio da subsidiariedade, o empobrecido só pode recorrer à acção de enriquecimento à custa de outrem, quando não tenha outro meio que suporte os prejuízos que alega ter sofrido.
Ora nos autos o que se consta é o seguinte:
Como de forma expressa é referido na decisão recorrida, “no caso concreto, como causa de pedir a autora veio invocar a existência de responsabilidade pré contratual, uma vez que entende que foi a perspectiva de adquirir uma posição na sociedade ré que iria construir uma fábrica de conservas co-financiada pelos fundos do projecto MAR2020, que motivou a transferência de €250.000,00 a título de empréstimo.”
Mas como também se afirma na mesma decisão, “a autora argumenta ainda, de forma incidental, que a ré viu o seu património enriquecido com a transferência de e 250.000,00 das contas da autora para as suas (utlizada para a compra do terreno em Espinho destinado à construção da fábrica de conservas) que passou a integrar o património da ré.”
E é o próprio Tribunal “a quo” que pergunta o seguinte: “Será que esta situação poderá ser apreciada ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa”.
A ser deste modo podemos pois afirmar que o pedido de restituição da referida quantia entregue à ré ao abrigo do instituto do enriquecimento se causa, foi formulado subsidiariamente.
E sendo assim e na improcedência do pedido “principal”, pode o mesmo ser apreciado.
O que importa pois é saber se no caso estão verificados os pressupostos previstos no art.º 473º, nº1, do Código Civil.
Como ficou já dito “o enriquecimento, à custa de outrem, verifica-se quando careça de causa justificativa, nomeadamente por nunca a ter tido ou por a ter perdido, tornando-se, por isso, injusto e, como tal, inaceitável para o Direito (neste sentido cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, 4ª edição, pág.454; e M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, 11ª edição, pág. 499.).
Da prova produzida nos autos e já amplamente referida (cf. pontos 7º a 14º) resulta para nós evidente que tais requisitos se verificam.
E sendo assim, deve a Autora e a este título ser ressarcida da referida quantia de €250.000,00.
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Sumário (cf. art.º 663º, nº7 do CPC):
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III. Decisão:
Pelo exposto, julga-se o presente recurso de apelação procedente e, em consequência, revoga-se nos seguintes termos a decisão proferida:
Julga-se a acção procedente e em consequência, condena-se a Ré a pagar/restitui à Autora a quantia de €250.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sua citação para a acção e até ao seu integral pagamento/restituição.
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Custas em ambas as instâncias a cargo da ré/apelada (cf. art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.

Porto, 19 de Maio de 2022
Carlos Portela
António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço