Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
326/05/7GASXL.L1-5
Relator: ANA SEBASTIÃO
Descritores: CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/23/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1 - Entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde foi estabelecido um Acordo para reconhecimento de títulos de condução emitidos pelas entidades competentes de cada uma das partes aos seus nacionais o qual foi publicado com o Decreto n.º 10/2007, de 5 de Junho.
2 -Até à data da entrada em vigor deste diploma as licenças de condução emitidas por Cabo Verde não se enquadravam em nenhuma das alíneas do art. 125º do Cod. da Estrada, pelo que os seus titulares não se encontravam legalmente habilitados a conduzir veículos a motor em território nacional, independentemente de serem ou não aqui residentes.
3 - Porém, com a entrada em vigor do acordo em causa o Estado Português reconheceu a validade dos títulos de condução emitidos pela autoridade competente de Cabo Verde para as categorias de veículos e pelo prazo para que sejam concedidos pela autoridade emitente.
Em face do que a apurada conduta do arguido deixou de ser punida, porque embora o Decreto n.º 10/2007, seja uma norma não penal repercute-se na lei criminal e neste âmbito como lei despenalizadora tem de aplicar-se retroactivamente, nos termos do art. 2º, n.º 2 do Cod. Penal e 29º, n.º 4 da CRP..
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I.
1.
No Processo Comum (Tribunal Singular) n.º326/05.7GASXL do 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Seixal foi julgado (A), tendo sido proferida sentença, em 16-10-2008, decidindo condená-lo pela prática, em autoria material, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.º 2, do Dec. Lei 2/98, de 03/01, na pena de 90 ( noventa ) dias de multa à razão diária de € 5 ( cinco euros ), o que perfaz a pena global de € 450 ( quatrocentos e cinquenta euros ) de multa a que correspondem 60 dias de prisão subsidiária.

2.
O Ministério Público interpôs recurso da sentença, apresentando motivação da qual extraiu as seguintes conclusões:
1- O arguido é titular de carta de condução emitida pela República de Cabo Verde.
2- Há que ter em consideração que, entretanto, entrou em vigor o Acordo entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde para o reconhecimento de títulos de condução, publicado com o Decreto n.º 10/2007, de 5 de Junho.
3- Tal acordo bilateral de reconhecimento recíproco da validade dos títulos de condução emitidos pelas entidades competentes de cada uma das partes aos seus nacionais veio a ser obtido em 29 de Março de 2007 e aprovado pelo Governo Português pelo Decreto n.º 10/2007, de 5 de Junho.
4-Com a entrada em vigor do referido acordo e reconhecendo o Estado Português validade aos títulos de condução emitidos pela autoridade competente de Cabo Verde para as categorias de veículos e pelo prazo para que sejam concedidos pela autoridade emitente, a conduta do arguido que o habilitava a conduzir veículos ligeiros de passageiros deixou de ser punida.
5- O Decreto n.º 10/2007, de 5 de Junho que pôs em vigor o referido acordo é uma norma não penal; contudo ela repercute-se na lei criminal.
6- Se o legislador deixa de considerar desvaliosa e criminalmente censurável uma determinada conduta, então essa nova valoração legislativa deve aproveitar a todos, mesmo os que já tinham, antes da entrada em vigor da nova lei, praticado os factos, então com relevância penal, pelo que se deveria ter declarado extinto o procedimento criminal, por descriminalização da conduta.
7- Ao não ter conhecido a Mma Juiz “a quo” de tal questão, ocorreu omissão de pronúncia nos termos do art. 379º, n.º 1, al. c) do CPP, sendo, por isso, nula a sentença, por violação de tal preceito legal em conjugação com o disposto no art. 2º, n.º 2 do Cod. Penal e Decreto n.º 10/2007, de 5 de Junho.


DEVE ASSIM CONCEDER-SE PROCEDÊNCIA AO PRESENTE RECURSO E, CONSEQUENTEMENTE, REVOGAR-SE A DECISÃO RECORRIDA, UMA VEZ QUE SÓ ASSIM SE FARÁ A COSTUMADA JUSTIÇA.

3.
O Arguido (A) interpôs também recurso da sentença apresentando motivação, da qual, extraiu as seguintes conclusões:
1) Não houve pronúncia sobre os efeitos da entrada em vigor no ordenamento jurídico português do "Acordo entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde para o reconhecimento de Títulos de Condução", assinado na cidade de Praia em 29/03/2007 e publicado em 05/06/2007;
2) Trata-se de matéria de sucessão de leis que deveria ser apreciada em sede de sentença, designadamente para os efeitos previstos no art.º 2.°, n.º 2 do C.P.
3) Ocorre nulidade de sentença por omissão de pronúncia (cfr. art. 379.°, n.° l, alínea c) do C.P.P.
Termos em que, e nos mais de direito que V. Ex.ª doutamente suprirá, deve o presente recurso ser considerado totalmente procedente, e a douta sentença ser revogada, resultando na absolvição do arguido...
...assim se fazendo a tão acostumada justiça!

4.
Os recursos foram admitidos, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.


5.
Nesta Relação a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta lavrou parecer sufragando na íntegra a posição do Ministério Público em 1.ª Instância expressa na motivação de recurso defendendo que deverá ser julgado inteiramente procedente.

6.
Colhidos os vistos legais realizou-se a conferência.

II.
A decisão recorrida é do seguinte teor:
FUNDAMENTAÇÃO.
A) FACTOS PROVADOS.
Produzida a prova e discutida a causa, resultaram, com interesse para a decisão, os seguintes factos provados:
l. No dia 02 de Maio de 2005, pelas 08:10 horas, na Avenida da Liberdade, em Fernão Ferro, o arguido circulava ao volante do veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula OQ-XX-XX sem ser titular de carta de condução válida no território nacional.
2. O arguido quis conduzir o referido veículo, não obstante ter representado a possibilidade de não possuir a respectiva habilitação legal, conformando-se com esse resultado.
3. Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei, agindo de forma livre e consciente.
Mais se apurou que:
4. O arguido é portador da carta de condução n.° B-..., emitida em Cabo Verde.
5. Nas circunstâncias de tempo e lugar acima descritas, o arguido foi interveniente em acidente de viação, provocado por não ter respeitado o sinal STOP.
6. O dono do outro veículo foi ressarcido pela Companhia de Seguros.
7. O arguido encontra-se em Portugal desde 2004.
8. É pedreiro e aufere 900€.
9. Mora sozinho.
10. Tem como habilitações literárias o 4° ano de escolaridade.
11. Não tem antecedentes criminais.
B) FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provaram todos os factos que não se compaginam com a factualidade supra descrita.
MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A prova é, salvo quando a lei dispuser diferentemente, apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente (art. 127° do Cód. de Processo Penal).
A convicção do Tribunal quanto aos factos provados baseou-se nas declarações do arguido, que admitiu a condução do veículo e as circunstâncias em que o fez, explicando ainda ser titular de carta de condução de Cabo Verde.
Estas declarações foram corroboradas pelo testemunho de (E), militar da G.N.R. que procedeu à fiscalização do arguido e que, por isso, demonstrou conhecimento directo desses factos.
O Tribunal socorreu-se das regras da experiência de vida e da normalidade para afirmar a intenção do arguido de conduzir o veículo em vias públicas, apesar de representar a possibilidade de não possuir habilitação legal válida para o território nacional, conformando-se com esse resultado - refira-se, a este propósito, que, pertencendo as intenções à esfera íntima de cada pessoa, o Tribunal só as pode apreender de forma indirecta, através da submissão de actos
de natureza externa, empiricamente observáveis, ao crivo das regras da experiência e da ordem natural das coisas. Assim, do comportamento do arguido, é possível, com o auxílio das regras de experiência, inferir a intencionalidade que lhe esteve subjacente, bem como o conhecimento pelo arguido do carácter censurável da sua conduta. Efectivamente, não é crível que o arguido não tenha sequer representado como possível que a sua carta de condução não tivesse validade em Portugal, tanto mais que essa é, precisamente, a regra nesse domínio, pelo que as suas declarações não mereceram, neste aspecto, qualquer credibilidade.
Mais se atendeu ao depoimento de (R), outra interveniente no acidente, que confirmou o modo como este ocorreu, bem como o facto de já se encontrar ressarcida.
Finalmente, o Tribunal considerou ainda o teor do auto de notícia, da participação de acidente de viação e da cópia da carta de condução juntos aos autos.
Quanto aos antecedentes criminais, o Tribunal baseou-se no C.R.C, junto aos autos.

III.
APRECIANDO.
O objecto de ambos os recursos

ENQUADRAMENTO JURÍDICO DOS FACTOS
Estabelecido o quadro factual, importa efectuar o respectivo enquadramento jurídico.
O crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, tipificado pelo art. 3°, n.° 2, do Dec.-Lei n.° 2/98, de 03 de Janeiro, é um crime de perigo abstracto, já que "a acção é incriminada em razão da sua potencialidade causal de perigo; corresponde à violação de disposições preventivas, cautelares, elevada à categoria de crime para permitir uma mais grave penalização do agente, que a prevenção geral justificará" (Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários, Universidade Católica Editora, 1a edição, 1996, pág. 16).
De facto, foi a necessidade de prevenção de condutas que, por colocarem frequentemente em causa valores de particular relevo, como a vida, a integridade física, a liberdade e o património, se revestem de acentuada perigosidade, que impôs a criminalização da condução sem habilitação legal para o efeito (cfr. Preâmbulo do Dec.-Lei n.° 2/98). Assim se percebe que o bem jurídico protegido pela norma incriminadora em análise seja o "perigo para a segurança rodoviária, perigo presumido pela falta de habilitação legal, que pressupõe a verificação das condições indispensáveis para o exercício da condução" (Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 69).
São elementos objectivos deste tipo: a condução; de veículo automóvel; sem possuir habilitação para o efeito, nos termos do Código da Estrada; em via pública ou equiparada.
O acto de conduzir exige que o agente tenha, efectivamente, posto o veículo a circular, já que só assim existe perigo para a segurança rodoviária.
A definição de veículo automóvel é-nos dada pelo art. 105°, do Código da Estrada (aprovado pelo Dec.-Lei n.° 114/94, de 03 de Maio, na redacção do Dec.-Lei n.° 44/2005, de 23 de Fevereiro), como sendo o veículo com motor de propulsão, dotado de pelo menos quatro rodas, com tara superior a 550 Kgs, e que se destina, pela sua função, a transitar na via pública, sem sujeição a carris.
A condução de veículos automóveis na via pública exige habilitação legal (art. 121°, n.° l, do Código da Estrada), designando-se como "carta de condução" o documento que titula a habilitação para conduzir automóveis (art. 122°, n.° l, do Cód. da Estrada), só podendo obter esse título quem, entre outros requisitos, tenha a necessária aptidão física, mental e psicológica, e tenha sido aprovado no respectivo exame de condução (art. 126°, n.° l, alínea b) e e), do
Cód. da Estrada).
No que concerne aos títulos emitidos por Estados estrangeiros, apenas habilitam à condução de veículos a motor em território nacional os previstos no n.° l do art. 125° do Cód. Estrada e apenas nas condições aí estabelecidas, em conjugação com o art. 128°.
Via pública ou equiparada são as vias de comunicação terrestre afectas ao trânsito público/ incluindo as do domínio privado que se encontrem abertas ao trânsito público (art. 1°, alíneas u) e v), do Cód. da Es trada).
Perante a factualidade que resultou provada, dúvidas não restam de que, com a sua conduta, o arguido preencheu todos os elementos objectivos do tipo, já que conduziu um veículo automóvel em vias públicas sem possuir habilitação legal para o efeito, na medida em que Cabo-Verde não aderiu, em data posterior à sua independência (cfr. artigos 16° e 17° da Convenção de Viena de 1978), à Convenção de Genebra sobre Trânsito Rodoviário, nem existe entre os dois países qualquer acordo bilateral ou regime de reciprocidade no reconhecimento de títulos de condução (ao contrário do que sucede, por exemplo, em relação ao Brasil, a Angola, a Moçambique e a São Tomé e Príncipe).
Quanto ao tipo subjectivo, exige-se o dolo, em qualquer das suas modalidades (cfr. art. 14° do Código Penal), verificando-se também este elemento preenchido, na modalidade de dolo eventual, uma vez que o arguido representou como possível a realização daquele resultado, conformando-se com o mesmo e agindo animado pelo propósito de assumir a condução do referido veículo, sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.
Assim, o arguido preencheu objectiva e subjectivamente o crime de condução sem habilitação legal, não se verificando a existência de causas de justificação ou de exclusão da culpa.


III.
APRECIANDO.
Segundo ambos os recorrentes verifica-se omissão de pronúncia nos termos do art. 379º, n.º 1, al. c) do CPP, sendo, por isso, nula a sentença, por violação de tal preceito legal em conjugação com o disposto no art. 2º, n.º 2 do Cod. Penal e Decreto n.º 10/2007, de 5 de Junho.
Afigura-se-nos que lhes assiste razão.
Na verdade embora o Arguido não seja possuidor de carta de condução emitida pelas autoridades nacionais, uma vez que nos termos consignados na matéria provada, o certo é que sendo titular de carta de condução emitida pela República de Cabo Verde a mesma é válida em território nacional.
Como alega o Ex.mo Magistrado do Ministério Público entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde foi estabelecido um Acordo para reconhecimento de títulos de condução emitidos pelas entidades competentes de cada uma das partes aos seus nacionais o qual foi publicado com o Decreto n.º 10/2007, de 5 de Junho.
Até à data da entrada em vigor deste diploma as licenças de condução emitidas por Cabo Verde não se enquadravam em nenhuma das alíneas do art. 125º do Cod. da Estrada, pelo que os seus titulares não se encontravam legalmente habilitados a conduzir veículos a motor em território nacional, independentemente de serem ou não aqui residentes.
Porém, com a entrada em vigor do acordo em causa o Estado Português reconheceu a validade dos títulos de condução emitidos pela autoridade competente de Cabo Verde para as categorias de veículos e pelo prazo para que sejam concedidos pela autoridade emitente.
Em face do que a apurada conduta do arguido deixou de ser punida, porque embora o Decreto n.º 10/2007, seja uma norma não penal repercute-se na lei criminal e neste âmbito como lei despenalizadora tem de aplicar-se retroactivamente, nos termos do art. 2º, n.º 2 do Cod. Penal e 29º, n.º 4 da CRP..
A decisão recorrida deveria ter-se pronunciado acerca dos efeitos da entrada em vigor no ordenamento jurídico português do citado Acordo publicado em 05/06/2007, pois uma norma que descriminaliza determinadas condutas deve aproveitar a todos, mesmo as anteriores à entrada em vigor dessa norma. Não o tendo feito violou art. 379.°, n.° l, alínea c) do C.P.P., o que determina a nulidade da sentença.
Assim sendo como na realidade é, ambos os recursos procedem inteiramente.

DECISÃO.
Por todo o exposto acorda-se em conceder provimento aos recursos e consequentemente:
Declarar nula a sentença por omissão de pronúncia ordenando que seja elaborada outra que se pronuncie acerca da questão equacionada

Declarar extinto o procedimento criminal, por descriminalização da conduta.
A Relação pode pronunciar-se suprindo a nulidade? Qual norma.

Não há lugar a custas.

Lisboa 23-06-2009.

Ana Sebastião
Simões de Carvalho