Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | CARLOS VALVERDE | ||
| Descritores: | PROPRIEDADE HORIZONTAL USUCAPIÃO PARTE COMUM | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 05/20/2010 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO | ||
| Sumário: | I - Não se estando perante coisa imperativamente comum e, logo, insusceptível pela sua própria natureza de apropriação individual, a aquisição da propriedade de coisa comum através de usucapião pressupõe uma posse exclusiva durante o tempo necessário à prescrição, revelada num comportamento idóneo à inversão do título da posse, à actuação com animus possidendi; II - O ius prohibendi dos condóminos consagrado no art. 1419º, 1 do CC respeita tão só à modificação que seja levada a cabo por via negocial, mas já não é de considerar quando subjacente à modificação do título estiver a integração na titularidade exclusiva de um qualquer condómino, mediante usucapião, de uma parte presuntivamente comum do prédio, pois a regra em causa não pode impedir e evitar tal forma de aquisição da propriedade. (Sumário do Relator) | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa: P e outros intentaram acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra J e outros, pedindo que: - Sejam os RR. condenados a reconhecerem que os AA. adquiriram por usucapião o direito de propriedade sobre o apartamento dos autos; - Por via dele sejamos RR. condenados a formalizar a alteração à escritura de constituição de propriedade horizontal do prédio, dela passando a constar uma nova fracção "O" constituída pelo apartamento cave frente; - Sejam os RR. condenados numa sanção pecuniária compulsória de € 60,00dia por cada dia que passar, desde o trânsito em julgado da sentença, até ao fim em que vierem a assinar tal escritura; - Seja ordenado o cancelamento da inscrição predial do mesmo, na parte em que tal apartamento cave frente consta integrado nas partes comuns do prédio e se inscreva uma nova fracção autónoma "O" correspondente ao seu espaço, composta de uma assoalhada e de uma instalação sanitária, inscrita em nome dos AA., como seus exclusivos proprietário. Subsidiariamente, pedem que os RR. sejam condenados a reconhecerem a constituição por usucapião deste apartamento/nova fracção autónoma e sua propriedade a favor dos AA., ordenando-se se proceda ao respectivo registo predial. Alegam, para tanto, que em 9 de Setembro de 1971 adquiriram, por compra, a propriedade do prédio urbano situado na Calçada ... nº..., freguesia de Benfica, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.° ..... Por escritura pública lavrada em 22 de Outubro de 1976, os autores constituíram o prédio em propriedade horizontal, tendo constituído a partir do mesmo 13 fracções autónomas, de "A" a "N", tendo vendido as fracções autónomas "H" e "N", correspondentes aos andares 3.° direito e 5º esquerdo, em 1977, ao R. J, respectivamente, tendo este último revendido a fracção autónoma "N", em 1998, à Ré E. Na data em que adquiriram o prédio (1971), o mesmo foi-lhes entregue pelos vendedores juntamente com toda a documentação do prédio, com todas as chaves dos apartamentos e chaves comuns, incluindo da casa da porteira, da entrada e das diferentes caixas de correio e, a partir de 9 de Setembro de 1971, destinaram os apartamentos que compõem o prédio a arrendamento, celebrando contratos de arrendamento e recebendo as rendas respectivas, tudo isto publicamente, à vista de toda a gente, incluindo vizinhos e proprietários de prédios vizinhos. Em 1977 o prédio passou a ser administrado em regime de condomínio, mantendo-se o espaço sito na cave que se encontrava encerrado e contíguo à cave esquerda (fracção "A") do prédio e as demais fracções autónomas, com excepção das fracções "H" e "N", em seu poder. O espaço correspondente à cave frente, apesar de ter sido sempre uma parte individualizada do prédio, não foi constituído em fracção autónoma, sendo que, em fins de 1976, foi executada obra nesse espaço do prédio, e que consistiu na edificação de um apartamento destinado a arrecadação, com uma assoalhada e casa de banho a que chamaram cave frente. Após a conclusão da edificação desse apartamento, ainda em 1976, com exclusão de terceiros, ficaram na posse do mesmo e das suas chaves de acesso e, desde 1976, utilizam a cave frente como arrecadação de bens pessoais, aí colocando objectos antigos, malas e outros objectos, tendo-a dado de arrendamento, para escritório, recebendo as rendas, passando recibos e pagando os respectivos impostos. Só a Ré E contestou, impugnando a factualidade invocada pelos AA., dizendo, em síntese, que o espaço intitulado cave frente, tal como o espaço casa da porteira não estão autonomizados na escritura de propriedade horizontal e as respectivas áreas não estão afectas ao uso de nenhum condómino em especial, sendo que nunca antes de 2006 os AA. assumiram publicamente ou divulgaram a utilização e a pretensão de se apropriarem desse espaço. Por outro lado, a competência para definir, criar e adquirir novos espaços dentro do prédio pertence ao condomínio desde a data da constituição da propriedade horizontal. Após réplica dos AA., foi proferido despacho saneador e condensada a matéria de facto tida por pertinente, devidamente repartida entre os factos assentes e a base instrutória. Procedeu-se depois ao julgamento, posto o que foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, reconheceu aos AA. o direito de propriedade de que se arrogam sobre o compartimento sito na cave do prédio identificado nos autos, contíguo à cave esquerda (fracção “A”) e condenou os RR a reconhecer esse direito. Inconformados com esta decisão, dela interpuseram recursos os AA. e a Ré E, em cujas respectivas conclusões, devidamente resumidas - art. 690º, 1 do CPC -, a questionam ambos na sua vertente de direito. Só os AA. contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso interposto pela Ré. Cumpre decidir, tendo em conta que foram os seguintes os factos provados na instância recorrida: 1 - Em 13 de Maio de 1971, os autores, por contrato-promessa celebrado com M e H, prometeram comprar-lhes o prédio urbano sito na Calçada ... n.° ..., freguesia de Benfica, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.° ... do Livro ..., e, na altura, omisso na matriz - cf, documento junto a fis. 13 e 14, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido. 2 - Na cláusula 7.a do contrato promessa ficou consignado que: «Os promitentes vendedores obrigam-se após a concessão da licença de ocupação, a mandar abrir de sua conta, uma parte da cave que se encontra encerrada e que é destinada a arrecadação, colocando as janelas nos locais onde vão ser retiradas quatro pedras, para efeitos de ventilação e recebimento de luz directa». 3 - Em 9 de Setembro de 1971, os autores celebraram escritura pública de compra e venda no ... Cartório Notarial ..., tendo adquirido, por compra, aos promitentes vendedores daquele contrato promessa, a propriedade do prédio urbano sito na Calçada ... n.° ..., freguesia de Benfica, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.° ... do Livro ..., e, na altura, omisso na matriz - cf. documento junto a fls. 15 a 18, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido. 4 - Em 24 de Setembro de 1971 foi registada definitivamente, na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, a aquisição do prédio a favor dos autores - cf. documento junto a fls. 19 a 27 (fis. 21), cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido. 5 - No ano de 1988 o prédio foi inscrito na matriz predial urbana de Lisboa sob o artigo ..., depois alterado para o artigo ... - cf. documento junto a fls. 28 e 29, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido. 6 - Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial, em 22 de Outubro de 1976, os autores constituíram o prédio em propriedade horizontal, tendo constituído a partir do mesmo 13 fracções autónomas, de "A" a "N" - cf. documento junto a fls. 30 a 35, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido. 7 - Os autores venderam as fracções autónomas "H" e “N”, correspondentes aos andares 3º direito e 5º esquerdo, em 1977, ao réu J e a M, respectivamente - cf. documento junto a fls. 19 a 27 (fls. 26), cujo teor aqui se dá por inteira mente reproduzido. 8 – M revendeu a fracção autónoma "N", em 1998, à ré E - cf. documento junto a fls. 19 a 27 (fls. 25), cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido. 9 - O réu J, em seu nome e em nome do seu irmão, M, assinou a seguinte declaração, datada de 20 de Outubro de 1983: «J, proprietário e residente no terceiro andar direito do lote ... da Calçada..., freguesia de Benfica nesta cidade de Lisboa, declaro em meu nome e em nome do meu irmão, proprietário do quinto andar esquerdo do citado prédio, residente em França, e de qual sou bastante procurador, que nos foi comunicado aquando da compra dos citados andares, a existência de uma arrecadação ao nível da cave situada por debaixo do "hall" da entrada do prédio e tendo como área o correspondente às quatro assoalhadas que dão para a frente do prédio, tendo concordado em que esta cave continuaria pertença total dos anteriores proprietários J e P, não sendo portanto considerada como arrecadação comum do prédio e como tal prescindindo de quaisquer eventuais direitos sobre a referida cave» - cf. documento junto a fls. 36, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido. 10 - Os autores requereram, no ano de 1986, junto da Câmara Municipal de Lisboa, a legalização do espaço correspondente à cave frente do prédio - cf. documentos juntos a fls. 37 a 55, cujos teores aqui se dão por reproduzidos. 11 - A Câmara Municipal de Lisboa emitiu a licença de utilização, para escritório, referente à cave frente do prédio, em 5 de Dezembro de 1988, a que atribuiu a licença n.° ..., do Proc. n.° ..., relativo à obra municipal n.° ... - cf. documento junto a fls. 56, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido. 12 - Os autores requereram, ao Bairro Fiscal de Lisboa, a avaliação da cave frente do prédio e a respectiva inscrição matricial em seu nome - cf. documentos a fls. 57 a 61, cujos teores aqui se dão por reproduzidos. 13 - Os autoras efectuaram adicional ao seguro de incêndio, englobando a cave frente em seu nome - cf. documento junto a fls. 62/63, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido. 14 - A cave frente do prédio tem contratos de fornecimento de água e de luz, respectivamente, desde Julho de 1988 e Janeiro de 1988 - cf. documentos juntos a fls. 64 a 66, cujos teores aqui se dão por reproduzidos. 15 - Em 7 de Novembro de 2002, os autores deram de arrendamento a F a cave frente do prédio - cf. documento junto a fls. 67 e verso, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido. 16 - Em 1 de Setembro de 2005, os autores deram de arrendamento a A a cave frente do prédio - cf. documento junto a fls. 68 e verso, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido. 17 - Os autores pagaram a contribuição autárquica da cave frente dos anos de 1989 e 1990 - cf. documentos juntos a fls. 69 e 70,cujos teores aqui se dão por reproduzidos. 18 - Os autores remeteram carta registada à ré, datada de 2 de Outubro de 2006, com o seguinte conteúdo na parte relevante: «Como é do seu conhecimento somos donos e possuidores de um espaço correspondente à cave frente do prédio onde habita e é condómina, que ainda não faz parte da constituição da propriedade horizontal, apesar de há muito ter sido, por nós, legalizado a nível camarário e fiscal. É nossa intenção proceder à rectificação da actual constituição da propriedade horizontal sendo necessário o acordo de todos os condóminos. Porém o Sr. R tem vindo a manifestar a sua oposição relativamente ao reconhecimento da nossa total propriedade sobre o citado espaço. Para se proceder a tal rectificação sem o acordo da totalidade dos condóminos há a alternativa de recorrer aos tribunais com despesas e incómodos daí decorrentes para as partes envolvidas. No sentido de evitar os referidos incómodos fico a aguardar uma resposta, manifestando a sua anuência à citada rectificação, até ao dia dez do mês corrente, após o que consideraremos que se mantém a divergência em relação à nossa posição (...)» - cf. documento junto a fls. 71 (72), cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido. 19 - A ré respondeu àquela carta, em 24 de Novembro de 2006, nos seguintes moldes, na parte relevante: «O Código Civil art. 1421 n° 2 c) e a escritura de propriedade horizontal do prédio com o n° ..., Calçada ... em Lisboa, estipulam que se presumem comuns as coisas que não sejam afectadas ao uso exclusivo de um dos condóminos. A escritura de propriedade horizontal apenas instituiu a existência das fracções autónomas individualizadas pelas letras A até N, deixando expressamente de fora dois espaços: um que veio a ser conhecido como casa da porteira e outro que tanto pode ser o resto da casa de porteira como uma sala de convívio dos condóminos. A soma das permilagens revela claramente que a não autonomização do espaço cave frente não constitui um lapso de escrita mas sim de um acto voluntário, de valor equivalente à não autonomização da cave direita. O aludido espaço cave frente, tal como o espaço casa da porteira não estão autonomizadas na escr. de p.h. e as respectivas áreas não estão afectas ao uso de nenhum condómino em especial porque aliás essa afectação só seria legal se estivesse mencionada na composição de alguma fracção actualmente existente. A afectação (ao uso exclusivo de um dos condóminos) referida no código civil e na escritura de p.h. reporta-se às fracções existentes e não a pessoas individualmente consideradas, isto é: uso exclusivo de um dos condóminos quer dizer uso exclusivo do proprietário de uma fracção autónoma que tem uma composição certa e definida na escritura de constituição da p. h. Tal afectação não pode assim ser desligada da composição e do proprietário de uma determinada fracção, sendo que, no caso concreto não existe fracção alguma que Inclua o espaço "casa da porteira JJ ou espaço "cave frente JJ por isso ambos c s espaços são comuns. Assim sendo: 1 - não concordo com a suposição de que V. Exas são donos da cave frente, 2 - não concordo com a autonomização desse mesmo espaço, 3 - tendo em conta a ocupação exclusiva (abusiva e não permitidas) da cave frente por parte de V. Exas, não autorizo a celebração de um novo arrendamento da cave direita - conhecida como casa da porteira, enquanto não for regularizada a utilização de ambos os espaços comuns do prédio. 4 - se V. Exas persistirem na ocupação exclusiva e abusiva da cave frente vão ter de indemnizar os demais condóminos pelos prejuízos decorrentes do não aproveitamento desse mesmo espaço pelos mesmos, designadamente eventual arrendamento a terceiros, com o fim de custear despesas e melhorias das partes comuns do prédio ( ... ) »- cf. documento junto a fis. 73 e 74 (75), cujo teor aqui se dá por inteira mente reproduzido. 20 - Na data da aquisição do prédio pelos autores (1971), o mesmo foi-lhes entregue pelos vendedores juntamente com toda a documentação do prédio, com todas as chaves dos apartamentos e chaves comuns, incluindo da casa da porteira, da entrada e das diferentes caixas de correio. 21 - A partir de 9 de Setembro de 1971, os autores destinaram os apartamentos que compõem o prédio a arrendamento, celebrando contratos de arrendamento e recebendo as rendas respectivas. 22 - Os autores pagam os respectivos impostos, quer se trate de impostos sobre rendimento obtido com as rendas dos inquilinos - contribuição predial e imposto complementar, e após 1982, IRS -, quer sejam os impostos que oneravam a propriedade - contribuição predial, mais tarde contribuição autárquica e mais tarde IMT. 23 - E realizam as obras de manutenção no prédio e nos apartamentos que o compõem. 24 - E contrataram uma porteira para o prédio e pagaram a respectiva remuneração. 25 - Os autores têm suportado os gastos com a limpeza do prédio, como as entradas e escadas. 26 - Tudo isto publicamente, à vista de toda a gente, incluindo vizinhos e proprietários de prédios vizinhos. 27 - Em 1977 o prédio passou a ser administrado em regime de condomínio, mantendo-se a cave frente do prédio e as demais fracções autónomas, com excepção das fracções "H" e “N”, em poder dos autores. 28 - A cave frente não foi constituída em fracção autónoma. 29 - Em fins de 1976 foi executada a obra no espaço do prédio sito na cave que se encontrava encerrado e contíguo à cave esquerda (fracção "A"), e que consistiu na edificação de um apartamento destinado a arrecadação, com uma assoalhada e casa de banho e que os autores chamaram cave frente. 30 - Após a conclusão da edificação desse apartamento, ainda em 1976, os autores, com exclusão de terceiros, ficaram na posse do mesmo e das suas chaves de acesso. 31 - Desde 1976, os autores utilizam a cave frente como arrecadação de bens pessoais, aí colocando objectos antigos, malas e outros objectos. 32 - Os autores negociaram a venda das duas fracções indicadas na alínea G), com cada um dos respectivos compradores, e nessa negociação acordaram com eles que o apartamento correspondente à cave frente era e seria sempre propriedade exclusiva dos autores. 33 - E que não era nem seria parte comum do prédio. 34 - Os compradores aceitaram que os autores tivessem e mantivessem a posse exclusiva e fruição, como tinham até aí, e assim continuassem a ter mesmo após a formalização da constituição como fracção autónoma, incluindo fazer suas as rendas recebidas pelo arrendamento daquele espaço. 35 - Além dos arrendamentos referidos nas alíneas P) e Q), a cave frente foi dada de arrendamento pelos autores, para escritório, no ano de 1998, tendo eles recebido as rendas, passado recibos e pago os respectivos impostos. 36 - Foram os autores que suportaram todas as obras de edificação da cave frente. 37 - A cave frente sempre foi uma parte individualizada do prédio, na posse dos autores. Tal como as partes apresentam a lide, o que, nuclearmente, está em causa é a resposta à questão de se saber se os AA. adquiriram por usucapião o espaço contíguo à cave esquerda do prédio que, por escritura pública de 22-10-1976, constituíram em propriedade horizontal. Não se estando, como nos parece apodíctico, perante coisa imperativamente comum (v.g., o telhado) e, logo, insusceptível pela sua própria natureza de apropriação individual, a aquisição da propriedade de coisa comum através de usucapião pressupõe uma posse exclusiva durante o tempo necessário à prescrição, revelada num comportamento idóneo à inversão do título da posse, à actuação com animus possidendi. "Para a usucapião de parte comum pelo condómino não basta que os outros condóminos se tenham abstido de usar a coisa comum, pois o direito de propriedade não se extingue pelo não-uso. O poder de facto que um dos condóminos exerça sobre a quota dos outros não pode determinar a usucapião enquanto não for unívoco, sendo possível determinar se ele possui a quota de outrem no seu próprio e exclusivo interesse et animo dominio ou por conta dos outros condóminos, os quais têm a disponibilidade material de toda a coisa comum. O comportamento do condómino sobre a coisa tem de ser idóneo a inverter o título de posse, não basta uma utilização da coisa mais intensa do que a dos outros condóminos" (Sandra Passinhas, A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, págs. 147/148). A aquisição (originária) de um direito real de gozo depende, antes de mais: a) da posse; b) do decurso de certo lapso de tempo. A doutrina dominante (cfr., v.g., Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. III, 2ª ed., pág. 5, Mota Pinto, Direitos Reais, pág. 189 e Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, págs. 69 e sgs.) tem vindo a entender que no nosso direito prevalece a concepção subjectiva de posse (Savigny). Nesta concepção a posse é integrada por dois elementos: o corpus, que consiste no domínio de facto sobre a coisa e o animus, que é a intenção de exercer sobre ela, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto (Henrique Mesquita, ob e loc. citados). Por outro lado, nos termos dos arts. 1294º e sgs. do CC, para que haja lugar à aquisição de um determinado direito real de gozo por usucapião, a posse tem de, como sobredito ficou, de se manter durante um certo período de tempo, variável em função da natureza da coisa possuída (móvel ou imóvel) e das características da posse (posse de boa ou má fé, titulada ou não titulada). Acresce que só a posse pacífica (art. 1261º do CC) é susceptível de conduzir à prescrição aquisitiva, porquanto o prazo para tal só começa a correr quando cessa a violência ou quando a posse passa a se exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados (art. 1297º do CC). Por isso, enquanto a má fé possessória, a falta de justo título ou a falta de registo da mera posse implicam um agravamento dos prazos de aquisição do direito real por usucapião, a violência e a posse oculta vedam a possibilidade de se iniciar o cômputo de tais prazos. Alinhavados, sinopticamente, estes princípios, olhemos agora para o concreto dos autos, por forma a podermos responder à questão que se enunciou. Em 9-9- 971, os AA. adquiriram por escritura pública a propriedade do prédio urbano em que se insere o espaço questionado. Por escritura pública de 22-10-1976, os AA. constituíram esse prédio em propriedade horizontal: Em finais de 1976, os AA. fizeram obras, totalmente a seu custo, no espaço questionado que consistiram na edificação de um apartamento destinado a arrecadação, com uma assoalhada e casa de banho, a que chamaram cave frente, tendo ficado, ainda em 1976 e com exclusão de terceiros, na posse do mesmo e das suas chaves de acesso. Desde 1976, os AA. utilizam a cave frente como arrecadação de bens pessoais, aí colocando objectos antigos, malas e outros objectos, tudo à vista de toda a gente, incluindo vizinhos e proprietários dos prédios vizinhos. Em 1977, quando o prédio passou a ser administrado em regime de condomínio, a cave frente do prédio, juntamente com as demais fracções autónomas, com excepção das fracções “H” e “N”, manteve-se em poder dos AA. Em 1988, os AA. deram de arrendamento o espaço questionado para escritório, recebendo as rendas, passando recibos e pagando os respectivos impostos. O mesmo espaço foi sempre uma parte individualizada do prédio na posse dos AA.. Das fracções autónomas do prédio em que se insere o espaço questionado, os AA. venderam a fracção “H” ao R. J e a fracção “N” a M que, por sua vez, a vendeu à Ré E. Aquando da negociação dessas fracções, os respectivos compradores aceitaram que o espaço questionado seria sempre propriedade exclusiva dos AA., tendo, inclusive, em 1983, o R. J, proprietário da fracção “H”, por si e em representação do proprietário da fracção “N”, assinado uma declaração nesse sentido. Ora, mesmo a entender-se que, sendo omissa qualquer referência no título da propriedade horizontal ao espaço questionado, este é de ter como parte comum, pois a regra é a de que tudo que não estiver descrito no título constitutivo como parte própria é propriedade comum dos condóminos (art. 1418º, 1), ainda assim, os factos que vêm de se descrever permitem retirar que os AA., condóminos e detentores inequívocos desse espaço, inverteram o título de posse em 1983, ao fazerem sentir aos restantes condóminos (os proprietários das fracções “H” e “N”) a sua intenção de actuar como seus proprietários (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 30), deles obtendo, inclusivé, esse reconhecimento e, desde então e, como tal, à vista de todos e sem oposição de ninguém até à altura (24 -11- 2006) em que a Ré não aceitou a sua solicitação para a rectificação do título constitutivo da propriedade horizontal, seja, durante mais de 20 anos, sempre exerceram sobre o espaço em causa poderes de detenção e fruição. Estamos, pois, perante uma situação típica de posse pelos AA. do espaço ajuizado e, tendo esta durado mais de 20 anos, eles adquiriram, por usucapião, mesmo na ausência de título e seu registo e ainda que de má fé, o respectivo direito de propriedade (arts. 1287º e 1296º do CC), nada adiantando à recorrente/Ré esgrimir com a posse em nome alheio dos AA., oculta, não pacífica e não continuada, conclusões que não encontram qualquer sustentáculo nos factos que a instância recorrida teve como provados e não temos outros, até porque não foi peticionada a alteração da decisão factual. Por tudo, a sem razão da recorrente/Ré, acompanhando-se, por isso, a sentença quando reconhece aos AA. o direito de propriedade sobre o espaço questionado e condena os RR. a reconhecê-lo, devendo ainda dizer-se que, ao assim decidir, a sentença não incorreu no vício formal que a recorrente, de forma meramente enunciativa, lhe imputa. A oposição apontada na alínea c), do nº 1 do art. 668º do CPC, que constitui a nulidade alegada é a que, como observa Rodrigues Bastos, “se verifica no processo lógico, que das premissas de facto e de direito que o julgador tem por apuradas, este extrai a decisão a proferir. Não é, por isso, relevante, para esse efeito, a contradição que se diga existir entre os factos que a sentença dá como provados e outros já apurados no processo, designadamente por haverem sido incluídos na especificação. Poderá haver nesse caso erro de julgamento, mas não nulidade da decisão.” (in ob. e loc. citados). Por outras palavras, para que exista esta nulidade é necessário que a fundamentação da decisão aponte num sentido e que esta siga caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente (cfr. Ac. do S.T.J. de 19-2-91, AJ, 15º/16º, pág. 31). Tal não aconteceu na decisão posta em crise em que, na atenção da factualidade provada e na valoração jurídica que se entendeu como correcta desta, se concluiu pelo atendimento dessa pretensão dos AA.. Pode, é certo, entender-se que a decisão errou na subsunção dos factos ao direito ou na interpretação deste, mas tal é questão de mérito que não da sua nulidade. Já, todavia e entrando no conhecimento do recurso dos AA., não se segue o sentenciado quando se absolve os RR. do pedido da condenação destes a formalizar a escritura de alteração do título da propriedade horizontal, na consideração de que não é possível modificar este título por meio de decisão judicial. É certo que, nos termos do art. 1419º, 1 do CC, sem prejuízo do disposto no art. 1422º-A do mesmo Código, a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal terá de constar de escritura pública, com a intervenção e acordo de todos os condóminos. A interpretação deste normativo não tem recebido resposta unânime da jurisprudência, mas e salvo o devido respeito por todos aqueles que, entendendo como imperativa a regra em referência, afastam, em todo e qualquer caso, a possibilidade do suprimento judicial do consentimento dos condóminos recusantes da pretendida alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, cremos que o ius prohibendi dos condóminos de que aqui se trata respeita tão só à modificação que seja levada a cabo por via negocial, mas já não é de considerar quando subjacente à modificação do título estiver a integração na titularidade exclusiva de um qualquer condómino, mediante usucapião, de uma parte presuntivamente comum do prédio, pois a regra em causa não pode impedir e evitar tal forma de aquisição da propriedade. Neste sentido, Henrique Mesquita observa que o objecto do preceito substantivo que nos ocupa “é apenas impedir que a posição relativa de cada condómino seja alterada por via negocial, sem o seu consentimento. Sempre que isso não esteja em causa, já não há motivo para impedir a modificação do título” (in A propriedade horizontal no Código Civil Português, RDES, 1976, Ano XXIII, págs. 117/118). Lembrando que “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (nº 3 do art. 9º do CC), cada vez mais a interpretação jurídica das normas vai deixando de se restringir a um conceptualismo formativista, totalmente despido das consequências práticas que dele provinham. Conforme se escreve lapidarmente no Ac. do STJ de 19-9-89, BMJ 389, págs. 536 e segs., (maxime, a fls. 547), “a ponderação das consequências constitui ainda um momento da argumentação jurídica, pelo menos para todos quantos entendem - e são hoje muitos - que a inferência jurídica não pode ficar alheia aos efeitos práticos da solução inferida”. Ora, a ponderação dessas consequências parece demonstrar a irrazoabilidade do afastamento da possibilidade, em termos absolutos, seja, em todas e quaisquer circunstâncias, do suprimento judicial do consentimento dos condóminos que não querem dar o seu acordo à modificação do título constitutivo da propriedade horizontal. É que não faz qualquer sentido permitir a aquisição originária da propriedade de coisa não imperativamente comum, com a forçosa alteração da própria propriedade horizontal que daí resulta e não permitir a consolidação jurídica dessa situação, com a conformidade desta com o respectivo título, só porque um condómino, sem qualquer sustentação objectiva e razoável, se recusa a viabilizar a escritura de adequação do título à realidade material que passou a existir, não se descortinando razão para sacrificar o interesse colectivo a um mero interesse singular e limitando-se, de forma sensível, os direitos daquele que passou a ser o dono exclusivo da coisa usucapida, como se estivéssemos perante um novo tipo de direito de propriedade. Em conclusão, a regra em causa não pode impedir o funcionamento das normas legais atinentes à usucapião que, levando à aquisição por um dos condóminos da propriedade exclusiva de parte do prédio não imperativamente comum, alterou substancialmente o objecto da própria propriedade horizontal. E sendo assim e tendo em atenção o reconhecimento aos AA. do direito de propriedade sobre o espaço questionado, não vemos obstáculo ao suprimento judicial do consentimento dos RR. à modificação do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio ajuizado, a levar a efeito pelo meio processual próprio (art. 1425º do CPC) e, obtido este, proceder-se, então, à outorga da respectiva escritura pública. Todavia, o que vem de dizer-se não invalida - e aqui acompanhe-se a decisão censuranda - que o tribunal se possa substituir aos condóminos, modificando o título através de decisão judicial, ou condenando estes a fazer a modificação, por tal lhe estar vedado pelo disposto no art. 1419º, 1 do CC, que impõe que a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal terá sempre de constar de escritura pública, com o acordo de todos os interessados, ainda que o de alguns deles, na situação e nos termos sobreditos, possa ser obtido através de suprimento judicial. Quanto aos pedidos relacionados com a regularização registral do direito de propriedade reconhecido aos AA., não podem os mesmos ser aqui atendidos, porque tal regularização, como há-de convir-se, só após a formalização da escritura de alteração do título da propriedade horizontal poderá ter lugar. Pelo exposto, na improcedência de ambas as apelações, confirma-se a sentença. Custas respectivas pelos apelantes Lisboa, 20-05-2010 Carlos Valverde Granja da Fonseca Pereira Rodrigues |