Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10578/2007-2
Relator: SOUSA PINTO
Descritores: MURO
PROPRIETÁRIO
EMISSÃO DE FUMOS
SERVIDÃO NÃO APARENTE
USUCAPIÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/14/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Sumário: I - Para que a propriedade de determinado muro possa ser atribuída apenas a um dos proprietários de prédios adjacentes, torna-se necessária a verificação cumulativa de dois requisitos: que o mesmo sustente em toda a sua largura a moradia dum deles e apenas ela.
II - No âmbito do direito de propriedade previsto no nosso ordenamento jurídico, a propriedade do imóvel abrange o espaço aéreo correspondente à superfície … (n.º 1, do art.º 1344.º do CC), não podendo no entanto o proprietário proibir os actos de terceiro que, pela altura … a que têm lugar, não haja interesse em impedir (n.º 2, do mesmo preceito legal).
III - Pode no entanto o proprietário do imóvel opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos … provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam (art.º 1346.º do CC).
IV - A normal utilização duma habitação pressupõe a desnecessidade de encerramento de portas e janelas para se evitarem fumos provenientes de chaminés de prédios vizinhos, podendo afirmar-se que tal procedimento sempre constituirá um prejuízo substancial para o uso do imóvel.
V - A conjunção “ou” separa as duas situações passíveis de conduzir à oposição do proprietário afectado com o fumo – prejuízo substancial “ou” utilização anormal do prédio – não sendo por isso as mesmas cumulativas.
VI - Exige a lei que a constituição de servidões por usucapião, só possa ocorrer no caso das mesmas serem aparentes (artgs 1293.º, al. a) e 1548.º, n.º 1, ambos do CC), definindo as não aparentes como as que não se revelam por sinais visíveis e permanentes (art.º 1548.º, n.º 2 do CC).
VII - No caso em apreço, a servidão terá de se considerar como aparente, na medida em que sendo a mesma subterrânea, manifesta-se por sinais exteriores que necessariamente a constituem com caixas e tampas de esgoto directamente visíveis à superfície.
(S.P.)
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa,

I – RELATÓRIO

M, intentou acção declarativa de condenação com processo ordinário contra R, tendo pedido a condenação do Réu a:

a)         “… retirar e/ou cortar todas as plantações que estão agarradas ou encostadas às paredes externas da moradia A;

b)        … abster-se de praticar quaisquer actos da mesma natureza sobre as mencionadas paredes externas da moradia da A;

c)         … reconhecer que a A. é a proprietária exclusiva do muro de sustentação do seu terreno e da sua moradia;

d)        … permitir o acesso de Engenheiros a fim de inspeccionar o muro e a sua estabilidade;

e)         … abster-se de praticar quaisquer actos da mesma natureza sobre mencionado muro de sustentação que pertence exclusivamente à A;

f)         … reparar os estragos que efectuou nas paredes externas da moradia da A. do muro de sustentação, assumindo directamente os custos inerentes a tal reparação;

g)         … retirar a chaminé mais recente, por si mandada construir, que está ao nível e próximo da propriedade da A,

h)         … repor o algeroz e a reparar os danos que criou no interior e exterior das paredes da moradia da A. , na extensão da “lona” pelo mesmo colocada, assumindo directamente os custos inerentes tal reparação;

i)          … a abster-se de actos sobre a fossa sanitária que se encontra no seu prédio, designadamente, de cortar a ligação dos esgotos da moradia da A. a  esta fossa sanitária.

j)         … permitir a ligação dos esgotos da moradia da A. à rede pública, passando a sua canalização pelo seu terreno.

k)        … permitir o acesso dos Engenheiros a fim de inspeccionar o reservatório de águas da sua propriedade, sendo, como consequência, condenado a repor a situação anterior deste mesmo reservatório, caso os Engenheiros considerem o atulhamento do mesmo como causa das fissuras e fendas existentes na moradia A.”

     

O réu contestou impugnando.

Foi proferido despacho saneador com elaboração dos factos assentes e base instrutória, esta sujeita a reclamação que viria a ser atendida.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância de todo o formalismo legal.

Respondeu-se à Base Instrutória, não se tendo registado quaisquer reclamações.

Foram apresentadas alegações de direito.

Foi proferida sentença, na qual foi decidido julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência condenou-se o Réu:

a)        … a permitir que terceiros por conta da autora acedam ao seu prédio com o uso do equipamento próprio que se mostre necessário, tais andaimes e ferramentas, e procedam à operação de remoção das plantas e reparação do muro (como nomeadamente com reboco e pintura impermeabilizante);

b)        … a reconhecer que a autora é a proprietária exclusiva do muro de sustentação do seu terreno e da sua moradia;

c)         … a retirar (demolir) a chaminé mais recente construída na sua moradia e que está ao nível e próximo da moradia da autora;

d)        … a abster-se de cortar ou perturbar a ligação dos esgotos da moradia da autora à fossa sanitária que se encontra localizada no seu prédio;

e)         absolvo o réu de todos os demais pedidos formulados, nos termos que acima ficaram expostos.

Inconformado com tal decisão veio o Réu recorrer da mesma, tendo apresentado as suas alegações, nas quais verteu as seguintes conclusões:

1-        A sentença recorrida é nula, nos termos do art. 668°, n.° 1, alínea a) e n.° 3 do CPC, porque os fundamentos estão em oposição com a decisão sobre a matéria de facto.

2-        A sentença recorrida considerou provados factos que haviam sido julgados não provados na resposta aos quesitos de fls… dos autos.

3-        O réu, ora recorrente, sempre autorizou a inspecção do muro, quando solicitado pela autora, tendo, da mesma forma, autorizado a reparação do mesmo.

4-        O depoimento da testemunha do réu, Eng.° A, constante de gravação, não foi valorado pelo tribunal "a quo", pois o depoimento deste sobre a autorização do réu para inspecção e reparação do muro impunham decisão diversa da recorrida.

5-        A sentença recorrida não valorou, igualmente, o Relatório de Peritos de 16/03/2001, junto aos autos no decorrer da audiência de julgamento, (cfr. Acta de 25 de Setembro de 2006, tendo a sua junção sido admitida, cfr Acta de Julgamento de 16/10/2006), sendo certo que do mesmo não resulta haver qualquer perigo de aluimento de terras ou derrocada.

6-        Não foi realizada qualquer perícia nestes autos, pelo que não foi possível determinar o estado de conservação do muro ou a sua estabilidade, bem como a existência de perigo de aluimento de terras, sendo certo que estamos perante matérias que carecem conhecimento técnico e exacto.

7-        Nenhuma das testemunhas da autora referiu haver qualquer perigo de aluimento de terras devido à vegetação que cresce junto ao muro de sustentação, pelo que a matéria constante do art. 15° da Base Instrutória deveria ter sido julgada como não provada.

8-        As testemunhas da autora, apesar de terem afirmado que viram vegetação encostada à parede da moradia da autora, não souberam explicar que tipo de danos tais plantas poderiam causar, nem tão pouco ficou estabelecido qualquer nexo de causalidade entre as alegadas manchas de humidade e as plantas existentes na parede exterior da moradia da autora.

9-        O limite divisório das propriedades da autora e do réu é constituído por um muro, que se estende desde a parede exterior da casa da autora até ao limite da propriedade do réu, que sustenta também o imóvel propriedade deste e que não sustenta em toda a sua largura o terreno da autora.

10-      Existe, assim, uma presunção de compropriedade, nos termos do art. 1371° n.° 1, uma vez que se trata de um muro divisório que sustenta, também, a propriedade do R. face à sua inclinação.

11-      A emissão de fumos da chaminé do réu está inserida nas normais relações de vizinhança e resulta da normal utilização do prédio por parte deste, não importando prejuízo substancial algum para a autora.

12-      Em clara contradição e incoerência com a Resposta aos Quesitos, e por erro manifesto, a sentença recorrida vem considerar como provado que, em consequência do fumo emitido pela chaminé do réu, a autora é obrigada a manter sempre fechada a porta da sua cozinha e da sala (cfr. Facto Provado n.° 29, pág. 6 da sentença); sucede que tal facto não ficou provado, de acordo com a Resposta ao Quesito n.° 22, o que constitui nulidade da sentença (668°, n.° 1, alínea c) e n.° 3 do CPC ).

13-      Os arts. 19°, 20° e 21° da Base Instrutória deveriam ter sido considerados Não Provados de acordo com a prova produzida em audiência de julgamento.

14-      Ainda que assim não se entenda, a douta sentença não aplicou correctamente o direito aos factos, pois não resultou provada a existência de qualquer prejuízo substancial para a autora, nem tão pouco ficou demonstrado que a emissão de fumos não resulta da normal utilização do prédio do réu.

15-      A sentença recorrida está em manifesta contradição com a Resposta aos Quesitos, de 25/10/2006. pois ao Quesito 34° da Base Instrutória decidiu o tribunal a quo responder "Não Provado, o mesmo sucedendo com o Quesito 35°, o que constitui nulidade da sentença, nos termos do art. 668°, n.° 1, alínea c) e n.° 3 do CPC.

16-      Erradamente, a douta sentença considerou provado que o "réu vem ameaçando desde há algum tempo a autora de que irá cortar a ligação dos esgotos do prédio desta à fossa séptica ..." afirmando que a autora o deve fazer passar por baixo da sua moradia para uma outra fossa séptica que não a dele" (cfr. Factos Provados n.° 37 e 38, pág. 6 da Sentença), pelo que a decisão do tribunal “a quo” assenta em factos que não se verificaram.

17-      A sentença recorrida não valorou o Relatório de Peritos elaborado em 16/03/2001 no âmbito do Procedimento Cautelar n.° 519/2000, em que era requerente a ora autora e requerido o ora réu, documento este que foi junto aos autos na audiência de Julgamento de 25/09/2006, cfr. Acta de Julgamento.

18-      Se o tivesse feito, seguramente teria decidido de maneira diferente pois o relatório referido no número anterior determina que, quando a rede pública de esgotos domésticos estiver em serviço, será possível dar outro destino às águas residuais da moradia da autora que não passe pela fossa séptica do terreno do réu: "Logo que a Câmara Municipal de Sintra autorize a ligação das redes domiciliárias à rede pública, é possível alterar a rede interna da moradia (da autora) por forma a ligá-la directamente à rede pública, pelo terreno da requerente (a autora), para a caixa colectora existente na via pública, em frente à entrada da propriedade." (cfr. Relatório de Peritos de 16/03/2001).

19-      Ficou provado que desde a data de construção das moradias, os esgotos da moradia da autora não podiam passar por baixo desta, mas sim lateralmente (cfr. Factos Assentes M) e P) do Despacho Saneador e Factos Provados n.° 12 e 15 da Sentença), sendo que actualmente é possível a autora fazer a ligação pelo seu terreno, o que é resulta suficiente e manifestamente do Relatório de Peritos junto aos autos.

20-      A sentença recorrida é totalmente omissa quanto às conclusões do referido Relatório de Peritos de 16/03/2001.

21-      É totalmente injustificado que o réu, ora recorrente, tenha de suportar a actual situação relativa à condução dos esgotos da moradia da autora.

22-      A condução dos esgotos da moradia da autora à fossa séptica situada no terreno do réu constituiu, desde sempre, um acto de mera tolerância do proprietário, não podendo conduzir à aquisição de qualquer direito, por mais tempo que dure.

23-      Não existindo qualquer servidão, não assiste à autora, ora recorrida, o direito de manter a utilização da fossa séptica situada no terreno do recorrente, uma vez que o seu terreno está preparado para fazer a ligação à rede pública de esgotos, já existente.

24-      Em conclusão, a sentença recorrida é nula, nos termos do art. 668°, n.° 1, alínea c) e n.° 3 do CPC.

25-      Ainda que assim não se entenda, e à cautela, sempre se dirá que o tribunal a quo deveria ter apreciado e valorado a prova produzida em julgamento, nomeadamente o depoimento da testemunha do réu A e o Relatório de Peritos de 16/03/2001, junto aos autos na Audiência de Julgamento de 25/09/2006 e, consequentemente, absolvido o réu de todos os pedidos.

26-      Além disso, e salvo o devido respeito, o tribunal não interpretou correctamente o art. 1346° CC, pois da prova produzida em julgamento não resultou nenhum prejuízo substancial para a autora com a emissão de fumos da chaminé mandada construir pelo ora recorrente, nem ficou demonstrado que este não faça um uso normal do imóvel em causa.

27-      Julgando de forma diversa, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 1371°, n.° 1, 1346° e 1543°, ambos do CC.

Face às arguidas nulidades proferiu o Senhor Juiz o seguinte despacho:

Arguiu o recorrente, réu Rui Palma, a nulidade da sentença, nos termos do disposto no artº 668º, nº 1, alínea c) e nº 3, do CPC.

Compulsados verifica-se que, na verdade, os fundamentos da sentença não estão em oposição com a decisão, visto que o dispositivo da sentença não está em contradição com a fundamentação de facto ou de direito nela vertida.

Contudo sucede que, em substância, assiste razão ao réu na parte em que alega terem sido vertidos na sentença alguns factos julgados não provados na decisão quanto à matéria de facto e que vieram a ser incorporados na fundamentação de facto enunciada na sentença sob o capítulo II – Factos provados.

Trata-se, no entanto de lapso manifesto, sem consequências quanto à decisão de fundo, que, não obstante importa corrigir, o que de seguida e especificadamente se fará, quer nos termos do disposto no artº 668º, nº 4, porque arguida em sede de nulidade da sentença, mas sobretudo nos termos do disposto no artº 669º, nº 1, alínea a), nº 3, o qual aliás remete para o disposto no artº 668º, nº 4, todos do CPC.

                                                           *

E, por considerarmos que se trata de lapso manifesto que importaria sempre corrigir, com vista a agilizar a tramitação subsequente, procederemos desde logo a tal reforma embora as alegações ainda não se mostrem notificadas à parte contrária, questão sobre a qual adiante nos pronunciaremos.

                                                           *

Ainda no capítulo em que se refere à nulidade, alega o recorrente:

“Desde logo, na sentença recorrida, o Mm° Juiz do tribunal a quo veio alterar a numeração da matéria de facto assente e da matéria levada à Base Instrutória no Despacho Saneador de 21/04/2005, de fls… dos autos. A sentença recorrida apresenta uma numeração incoerente com tal despacho e com a Resposta aos Quesitos de 25/10/2006, de fls… dos autos”.

A tal respeito apenas se adiantará que não se vislumbra de onde decorre a imposição legal de manter a numeração (meramente indicativa e que poderia mesmo não constar da decisão mas que preferimos adoptar para facilidade de leitura e inteligibilidade de cada peça processual) em todas as peças processuais e nem mesmo que seja prática (ou deva ser adoptada como boa prática) corrente a manutenção dessa numeração…

Quanto a essa matéria não existindo qualquer imposição ou consequência processual nada há a decidir.

                                                           *

No que respeita à reforma da sentença:

Primeiramente verifica-se que o facto 29, com efeito correspondente à matéria vertida no quesito 21, teve resposta distinta (restritiva e explicativa) na decisão de facto.

Os factos que derivaram da decisão de facto foram no entanto vertidos nos pontos 30 e 31 dos factos provados da sentença.

Importa assim suprimir o facto 29, ficando apenas a matéria contida nos pontos 30 e 31, o que em nada alterará a decisão do mérito da causa neste ponto.

*

Quanto aos pontos 37 e 38 do capítulo II – Factos provados, derivam dos quesitos 34 e 35 que, na verdade, mereceram resposta de não provado, havendo, assim, que suprimi-los da factualidade provada.

Contudo, estes factos não foram concretamente utilizados para a fundamentação de direito que se seguiu sobre esta matéria.

A fundamentação de direito da decisão assentou em factos distintos e que interessavam à usucapião.

Assim, a eliminação destes factos, apenas por lapso elencados na sentença, em nada alterará a decisão do mérito da causa.

Procede-se, de seguida, a nova impressão da sentença, com a correcção acima explicada.

Notifique.

                                                           *

Tendo sido reimpressa nova sentença, veio posteriormente a Apelada apresentar as suas contra-alegações, nas quais defendeu a bondade da decisão recorrida (tendo já em conta as alterações introduzidas na nova sentença, por via do deferimento das nulidades suscitadas).

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo recorrente, sendo certo que o objecto de tal apreciação se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 660.º, n.º 2, 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil (CPC).

São as seguintes as questões suscitadas pelo apelante:

1. Nulidade da sentença – art.º 668.º, n.º 1, al. c), do CPC

2. Correcção de erro material – exclusão do ponto 31 da matéria de facto constante da sentença e inclusão das respostas dadas aos quesitos 19, 23, 24, 27 e 30 da Base Instrutória

3. Impugnação da matéria de facto – artgs. 15.º, 19.º, 20.º e 21.º da Base Instrutória

4. Erro de julgamento

III - FUNDAMENTOS

Começaremos por apreciar as três primeiras questões que podem ter repercussão na matéria de facto, para em seguida se elencar em definitivo esta, relegando-se para o final a questão do erro de julgamento.

1. Nulidade da sentença – art.º 668.º, n.º 1, al. c), do CPC

O senhor juiz, como se referiu supra, em cumprimento do estipulado no art.º 668.º, n.º 4 do Código de Processo Civil (CPC), apreciou as nulidades arguidas pelo apelante e supriu as que se relacionavam com o facto de na sentença se terem elencado factos tidos como provados que anteriormente, nas respostas à Base Instrutória, tinham sido dado como não provados.

Certo é que quanto às demais entendeu não serem as mesmas de atender.

Debrucemo-nos então sobre essas.

Salientou o apelante que se verificava a nulidade prevista no art.º 668.º, n.º 1, al. c), por os fundamentos estarem em oposição com a decisão.

Esta nulidade só se verifica quando (nas doutas palavras do Prof. Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 141”) «…os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão mas a resultado oposto».

No caso em apreço, verificamos que o raciocínio seguido na sentença, assenta na valoração feita dos factos (corrigida que se mostra a sentença com a eliminação dos factos que anteriormente aí constavam indevidamente), revelando-se o mesmo perfeitamente coerente e lógico com a decisão proferida, não podendo por isso afirmar-se que exista qualquer oposição entre o decidido e a factualidade dada por provada.

Questão distinta desta nulidade será o entendimento diverso que o apelante tem quanto aos factos que foram dados por provados, questão que será de apreciar em sede de impugnação da matéria de facto e que conheceremos adiante.

Ainda no âmbito desta nulidade, refere o recorrente que a circunstância de na sentença se não ter feito a elencagem dos factos provados de acordo com o ordenamento que constava da Base Instrutória, torna a mesma confusa e obscura.

Afigura-se-nos que também aqui não assiste razão ao apelante, pois nada na lei impõe que na sentença se tenha de seguir a enumeração dos factos tal como resultaram elencados na fase de condensação. Importante é que a mesma surja inteligível, o que acontece no caso.

Por tudo o que se deixa dito, há pois que concluir que, após a correcção feita pelo Senhor Juiz, não há a registar qualquer outra nulidade que afecte a sentença. 

2. Correcção de erro material – exclusão do ponto 31 da matéria de facto constante da sentença e inclusão das respostas dadas aos quesitos 19, 23, 24, 27 e 30 da Base Instrutória

Verifica-se que a sentença encerra ainda alguns lapsos manifestos no tocante aos factos aí elencados, como provados, situação que carece de ser corrigida e o será à luz do disposto nos artgs. 666.º, n.º 2 e 667.º, do CPC.

Assim, será de excluir dos factos provados o constante do ponto 31, que corresponde ao quesito 26.º da Base Instrutória, pois que como se pode ver da resposta à matéria de facto (fls. 226-229) a esse quesito respondeu-se: “Provado apenas o que consta da resposta ao quesito 24”.

Esse facto será pois eliminado, sendo que na elencagem que adiante se fará ele dela não constará.

Por outro lado será de incluir na matéria de facto constante da sentença as respostas que foram dadas aos quesitos 19.º, 23.º, 24.º 27.º e 30.º da Base Instrutória, dado que por manifesto lapso dela não constam.

Tal factualidade passará assim a integrar a matéria de facto, aditando-se letras à numeração inicial que constava da sentença e transcrevendo-se os mesmos em itálico.

3. Impugnação da matéria de facto – artgs. 15.º, 19.º, 20.º e 21.º da Base Instrutória

O apelante impugna a matéria de facto apurada, sustentando que os artgs. 15.º, 19.º, 20.º e 21.º, da Base Instrutória foram indevidamente apreciados, pois que tendo sido dados como provados, deveriam ter sido dados como não provados.

Em defesa da sua tese, referiu o recorrente, quanto à resposta ao quesito 15.º, não ter sido valorado o depoimento da testemunha A e de nenhuma das testemunhas da Autora ter referido haver o perigo de aluimento de terras, não ter sido requerida a realização de qualquer perícia nos autos para apurar do risco de aluimento de terras e não ter sido tomado em consideração o relatório de peritagem realizado em 16/03/2001.

Quanto às respostas aos quesitos 19.º, 20.º e 21.º, salientou que, com excepção do Arquitecto L, nenhuma das demais testemunhas da Autora terá referido que a chaminé situada no prédio do Réu emite com carácter de continuidade vapores que perturbem a utilização normal do prédio da Autora.

Para se apreciar esta questão importa ter presentes algumas considerações inerentes à forma como pode e deve ser apreciada a prova pelo Tribunal da 2.ª instância em sede de recurso.

A este respeito, tem a jurisprudência unanimemente aceite que tal reapreciação não pode subverter o princípio da livre apreciação das provas consagrado no art.º 655.º do CPC. 

Como muito bem é salientado no Acórdão da Relação do Porto de 19/9/2000, in CJ, Ano XXV, T. 4, págs. 186 “…o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados”

Este é aliás o sentido que o legislador pretendeu dar à possibilidade do duplo grau de jurisdição, em sede de matéria de facto, pois que expressamente refere no preâmbulo do diploma que possibilitou a documentação da prova (Dec.-Lei n.º 39/95, de 15/12) que “…a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.

Compreende-se que assim seja, pois que na convicção do julgador da 1.ª instância “… não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.

“Na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, as suas frases, o contexto em que é prestado o depoimento, o ambiente gerado em torno da testemunha, o modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo contribuindo para a formação da convicção do julgador.

“Daí que em termos semióticos, a comunicação vá para além das palavras e mesmo estas devem ser valoradas no contexto da mensagem em que se integram, pois como informa Lair Ribeiro, as pesquisas neurolinguísticas referem que numa situação de comunicação apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra sendo que o tom de voz e a fisiologia, que é a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder (“Comunicação Global”, Lisboa, 1998, pág. 14).

“Por isso já Enrico Altavilla escrevia que “o interrogatório como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras” (“Psicologia Judiciária”, vol. II, Coimbra, 3.ª ed., pág. 12).

“Contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto de julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta o mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.

“O que se torna necessário é que no seu livre exercício da convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto dado como provado ou não provado, possibilitando assim, um controle sobre a racionalidade da própria decisão (cfr. Michel Taruffo, “La Prueba de los Hechos”, Editorial Trotta, 2002, pág. 435 e ss.).

“De resto, a lei determina a exigência de objectivação, através da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (art.º 653.º, n.º 2, do CPC).

“Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras de experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.

“Conforme orientação jurisprudencial prevalecente, o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1.ª instância deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição.”

Transpondo estes princípios para o caso em apreço e após termos ouvido toda a gravação dos depoimentos testemunhais, fica-nos a convicção de que a interpretação que foi feita pelo Senhor Juiz do Tribunal a quo acerca do conteúdo das provas produzidas é perfeitamente plausível.

Com efeito, no tocante à resposta positiva que foi dada ao quesito 15.º - “Tais plantas dificultam o escoamento das águas subterrâneas, situação que pode causar, a todo o momento, um aluimento de terras, pondo em perigo a integridade das moradias referidas em A) e em B)” – encontramos os depoimentos das testemunhas L (arquitecto de interiores e pessoa experiente, com os seus mais de setenta anos de idade) e B (engenheiro civil, também pessoa experiente com mais de sessenta anos), que não só observaram a estrutura da moradia da autora e o muro que a sustenta, como realizaram testes com placas de gesso, sendo que o resultado dos mesmos apontou para o indicado risco de aluimento, verificando-se ainda que os boieiros do muro (saídas de água) encontrando-se obstruídos podem levar à sua destruição.

O facto de não ter sido feita referência na fundamentação da resposta à matéria de facto ao relatório de peritagem elaborado em 16/03/2001, não afecta em nada as respostas dadas, pois que esse mesmo relatório está sujeito ao princípio da livre apreciação, não estando por isso o julgador obrigado a fazer uso dele, pois que não estamos face a factos para os quais a lei exija prova específica (vd. art.º 655.º, do CPC). A circunstância da junção do relatório ter sido admitida – para mais com a reserva do seu conteúdo ser posteriormente analisado na perspectiva do seu eventual contributo para a matéria em discussão – não vinculava à sua necessária utilização.

Adiante-se ainda que o relatório data de Março de 2001, sendo certo que a presente acção foi intentada em 3/06/2003, podendo pois espelhar já uma realidade distinta da registada àquela data.

Refira-se, por outro lado, que o facto da lei não exigir prova específica para demonstração da factualidade em causa, permitia que o tribunal desse como provado – como o fez – esse art.º 15 da Base Instrutória, sem necessidade de recorrer a qualquer prova pericial, sendo bastante a testemunhal, tanto mais que, no caso, a mesma revelou-se ser detentora de bons conhecimentos sobre a matéria em causa, realçando-se até o facto duma das testemunhas - B – ter sido perito no âmbito da peritagem a que se refere o relatório de 16/03/2001.

Entende-se assim, nenhuma razão existir para se proceder à alteração da resposta que foi dada ao apontado quesito 15.º da Base Instrutória.   

No que concerne, à pretensão de ver alteradas as respostas aos quesitos 19.º, 20.º e 21.º, também aqui não colhem as objecções levantadas pelo apelante.

Rezam assim as respostas a tais quesitos:

19.º - Em resultado da proximidade indicada nos pontos 16 e 17 e dos ventos que habitualmente se fazem sentir na zona dos prédios em causa, o fumo que é emitido desta chaminé tem invadido o jardim da moradia referida em 1, onde a Autora tem não só as suas plantas como também as gaiolas dos pássaros.

20.º - O fumo emitido pela chaminé construída pelo réu atinge em certas circunstância, de vento favorável, o interior da moradia da autora.

21.º -   Nas circunstâncias referidas em 20, a autora, para evitar a entrada do fumo na moradia, tem que fechar portas e janelas.  

Da audição dos depoimentos testemunhais ficou-nos efectivamente a convicção de que tais quesitos foram respondidos adequadamente, dado o testemunho de Leonel Gonçalves, que se revelou pessoa acertiva e convicta das afirmações que proferiu, tendo declarado que o fumo emitido pela chaminé, invadia não só o jardim da moradia, como também o seu interior, pelo que tal obrigaria a autora a ter de fechar portas e janelas.

Fez ainda referência ao facto da chaminé em causa se encontrar construída em desrespeito pelas normas de edificação urbana, razão pela qual, associada à situação ventosa da zona, o fumo da chaminé criava os indicados problemas.

A clareza deste depoimento, associado aos documentos fotográficos, designadamente os constantes de fls. 44, 110 e 196, levam-nos a considerar como adequada a resposta dada pelo Senhor Juiz, não sendo bastante para a contrariar a alusão contraditória quanto ao sentido dos ventos dominantes (entre as testemunhas, L que referiu que estes são de Norte e J que disse que são de Sudoeste), pois que os quesitos foram respondidos com a salvaguarda do incómodo do fumo decorrer da existência de ventos que habitualmente se fazem sentir na zona dos prédios em causa, não se fazendo referência específica à sua proveniência, e ainda com a ressalva, no que concerne à afectação do interior da moradia, de tal ocorrer só em certas circunstâncias.

Pelo que se deixa dito entendemos pois não assistir razão ao apelante na impugnação que formula.

Factualidade provada

Face ao que se deixou exposto nas questões que antecederam são os seguintes os factos que se têm por provados:

1.         Encontra-se registada a favor da autora a aquisição por compra do prédio urbano sito em Eugaria, freguesia de Colares, Sintra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o nº, como: “URBANO – Eugaria – casa de r/c, habitação: 46,50 m2 e logradouro: 587 m2, composição actual: casa de r/c e 1º andar (…)”;

2.         Encontra-se registada a favor do réu a aquisição por compra dos prédios registados na 2ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob os números , descritos, respectivamente como: “RÚSTICO – Pomar da Fonte, Fonte, Eugaria – cultura arvense – 2400 m2 –  – Sul: caminho,  e “URBANO – Eugaria – casa de r/c: 45 m2 e logradouro: 168 m2 – ;

3.         O prédio referido em 1 tem um elevado grau de inclinação, sendo que a moradia ali existente foi construída por socalcos;

4.         Os prédios referidos em 2, urbano e rústico, situam-se num plano inferior em relação ao prédio referido em 1, com menor grau de inclinação, divididos por um muro de sustentação que suporta o terreno, bem como a moradia da mesma;

5.         Em consequência da acentuada inclinação do prédio referido em 1, algumas das paredes exteriores da moradia daquele prédio confinam com os prédios referidos em 2;

6.         Em Junho de 2001, os exteriores da moradia referida em 1 foram integralmente pintados com tinta especial impermeável, o que implicou o acesso do pintor aos prédios referidos em 2, para proceder à pintura e representou um custo para a autora no valor de € 1.000,00;

7.         Em 22OUT02, a autora requereu a notificação judicial avulsa do réu, efectuada em 27NOV02, nos seguintes termos: “(…) deverá o Requerido ser notificado para, no prazo de 15 dias a contar do recebimento da notificação, remover todas as plantas plantadas na sua propriedade que estejam agarradas ou encostadas às paredes exteriores da moradia da Requerente, ou que, por alguma forma, impeçam tais paredes de receber luz solar, bem como para, em sequência, suportar os encargos da requerente com a reposição da pintura exterior da sua moradia, de acordo com o orçamento a apresentar por aquela, mas que desde já se estimam em € 560, e para, no mesmo prazo de 15 dias, permitir o acesso à muralha de sustentação de um técnico designado pela Requerente para a respectiva limpeza, suportando os respectivos custos no valor de cerca de € 450. Note-se que a remoção das plantas agarradas à muralha por pessoas sem conhecimentos técnicos pode conduzir à simultânea remoção de pedras dessa mesma muralha e à consequente derrocada. Deverá, ainda, ser notificado ao Requerido que, não o fazendo no prazo indicado, será interposta a competente acção judicial, no âmbito da qual serão efectuados estes e outros pedidos, entre os quais o da condenação do mesmo no pagamento de uma indemnização para reparação de todos os danos causados pelas suas sucessivas condutas ilícitas, incluindo honorários de Advogado.”;

8.         O R. tem, no telhado da moradia referida em 2, uma chaminé situada na parte da frente da mesma, a qual era, a única existente no telhado da casa e, em data indeterminada, foi construída uma segunda chaminé, do lado oposto mas sobre o mesmo telhado;

9.         Nas extremidades confinantes das moradias existia um algeroz destinado ao escoamento das águas que ali caíam, provenientes dos telhados de ambas as moradias;

10.       As moradias referidas em 1 e 2 assentam em solo rochoso onde existem também várias nascentes de água, razão pela qual esta propriedade era conhecida pela “Quinta da Fonte”;

11.       Nos prédios referidos em 2, prédio inferior, existia um reservatório de águas, ao qual afluía uma nascente de água, mas em relação ao qual o réu decidiu atulhar com terra e pedras;

12.       Desde a construção da moradia referida em 1 (que é anterior a 1951) que os esgotos de ambos os prédios – 1 e 2 – são conduzidos à fossa séptica situada em 2;

13.       Esta rede de esgotos passa, pelo terreno referido em 2, e não pelo terreno referido em 1 e é naturalmente conduzida para a fossa séptica;

14.       Tal construção verificou-se, por um lado, porque o prédio 2 se encontra num plano inferior ao 1, sendo feita naturalmente a condução dos esgotos no sentido descendente;

15.       Por outro lado, como o prédio da autora assenta em solo rochoso e ocupa toda a largura desse mesmo prédio, os esgotos desta moradia não podiam passar por baixo desta, mas sim lateralmente;

16.       A segunda chaminé referida em 8 encontra-se a cerca de 1 metro de distância da moradia referida em 1;

17.       ...e ao mesmo nível dessa mesma moradia em consequência dos socalcos;

18.       O crescimento de plantas na parede da moradia referida em 1, confinante com o prédio referido em 2 e com origem neste último prédio, impediram o recebimento da luz do Sol na referida parede que separa ambos os prédios;

19.       O crescimento de plantas tal como referido em 18 favorece a acumulação de humidade, que se faz notar no interior da moradia da autora;

20.       O arrancamento de heras, pelo réu ou por terceiro por ordem do réu, deixou marcas dessas plantas na tinta da parede do prédio referido em 1;

21.       O réu, notificado, não desenvolveu qualquer actividade constante da notificação judicial avulsa, para além do referido em 20;

22.       As plantas mencionadas em 18, depois de arrancadas voltaram a crescer no mesmo local;

23.       O acesso ao exterior do muro referido em 4 só poderá ser feito através dos prédios referidos em 2;

24.       O réu procedeu à abertura de um roço ao longo da muralha;

25.       …o qual foi, entretanto, tapado;

26.       Existe vegetação que cresce junto ao muro de sustentação da construção do prédio referido em 1;

27.       Tais plantas dificultam o escoamento das águas subterrâneas, situação que pode causar, a todo o momento, um aluimento de terras, pondo em perigo a integridade das moradias referidas em 1 e em 2;

28.       A remoção das plantas agarradas ao muro por pessoas sem conhecimentos técnicos pode conduzir à simultânea remoção das pedras desse mesmo muro e à consequente derrocada;

28-A.  Em resultado da proximidade indicada nos pontos 16 e 17 e dos ventos que habitualmente se fazem sentir na zona dos prédios em causa, o fumo que é emitido desta chaminé tem invadido o jardim da moradia referida em 1, onde a Autora tem não só as suas plantas como também as gaiolas dos pássaros (resposta ao quesito 19.º da Base Instrutória).

29.       O fumo emitido pela chaminé construída pelo réu atinge em certas circunstância, de vento favorável, o interior da moradia da autora;

30.       Nas circunstância referidas em 29, a autora, para evitar a entrada do fumo na moradia, tem que fechar portas e janelas;

30-A.  O Réu retirou o algeroz referido em 9. e decidiu substituí-lo por uma lona prateada (resposta ao quesito 23 da Base Instrutória);

30-B.   Desde a colocação da referida lona verifica-se a existência de inúmeras infiltrações nas paredes do prédio referido em 1., as quais se encontram ao mesmo nível e na sua extensão da mencionada “lona” (resposta ao quesito 24 da Base Instrutória);

30-C.  As paredes externas da moradia referida em 1 têm um aspecto humedecido com uma coloração esverdeada (verdete) junto a esse mesmo algeroz (resposta ao quesito 27 da Base Instrutória);

31.       Eliminado.

32.       As águas que afluíam ao reservatório referido em 11., impossibilitadas de seguir o seu curso habitual e natural, começaram a infiltra-se nas fundações da moradia referida em 1.;

32-A. Como consequência em Agosto foram detectadas fendas percorrendo cerca de 10/15 metros do pavimento do plano mais elevado da moradia referida em 1. (resposta ao quesito 30 da Base Instrutória);

33.       Foram colocadas camadas de gesso (vigias) em alguns pontos das fendas no sentido de permitir observar a sua evolução;

34.       As “vigias” colocadas já apresentam fissuras revelando o aumento da largura das fendas no pavimento do prédio referido em 1;

35.       Esta infiltração nas fundações do prédio referido em 1 pode provocar um aluimento de terras e desmoronamento parcial da moradia.

4. Erro de julgamento

No âmbito desta questão, o apelante aponta quatro sub-questões que passaremos a apreciar.

Começa por referir que quanto à sua condenação em ter que permitir que terceiros por conta da autora acedam ao seu prédio com o uso do equipamento próprio que se mostre necessário, tais andaimes e ferramentas, e procedam à operação de remoção das plantas e reparação do muro (como nomeadamente com reboco e pintura impermeabilizante), sempre removeu e permitiu o acesso de técnicos ao local.

Neste particular não é desenvolvido qualquer raciocínio jurídico, ou enunciada a violação de qualquer normativo legal aplicado que abale a decisão recorrida, razão pela qual face à total ausência de fundamentação jurídica nos dispensamos de apreciar esta sub-questão e mantemos o decidido.

Em seguida, face à condenação de que foi alvo, no sentido reconhecer que a autora é a proprietária exclusiva do muro de sustentação do seu terreno e da sua moradia, entende que a prova existente não permitia concluir em tal sentido antes se registando relativamente a esse muro uma situação de compropriedade.

Vejamos.

O art.º 1371.º, do Código Civil (CC), estabelece nos seus n.ºs 1 e 2 o regime de presunção de compropriedade entre muros que dividam prédios urbanos e ou rústicos, podendo afirmar-se ser esse o regime regra.

O mesmo dispositivo, consagra no entanto excepções a esse princípio, indicando três situações no seu n.º 3 que excluirão tal presunção e adiantando ainda no seu n.º 5 que Se o muro sustentar em toda a sua largura qualquer construção que esteja só de um dos lados, presume-se do mesmo modo que ele pertence exclusivamente ao dono da construção.

Na sentença recorrida, foi à luz deste dispositivo legal que se entendeu que o muro em causa seria propriedade exclusiva da Autora.

Os factos que se relacionam com esta matéria são apenas dois e constam dos pontos 4 e 26 da matéria provada. A saber:

“4.      Os prédios referidos em 2, urbano e rústico, situam-se num plano inferior em relação ao prédio referido em 1, com menor grau de inclinação, divididos por um muro de sustentação que suporta o terreno, bem como a moradia da mesma;

26.       Existe vegetação que cresce junto ao muro de sustentação da construção do prédio referido em 1;”

Afigura-se-nos que esta factualidade é manifestamente insuficiente para integrar a previsão daquele n.º 5 do art.º 1371.º e assim permitir a conclusão de que o muro é propriedade exclusiva da Autora.

Com efeito, a Autora não logrou comprovar, como lhe competia (art.º 342.º, n.º 1, do CC) que o muro sustentava em toda a sua largura a sua moradia e apenas ela.

Efectivamente, para que a propriedade de determinado muro possa ser atribuída apenas a um dos proprietários de prédios adjacentes, torna-se necessária a verificação cumulativa desses dois requisitos.

Não tendo ficado demonstrado que o muro sustentava em toda a sua largura a moradia e que apenas havia esta construção, e não outra também,  pertença do Réu, não era admissível a conclusão de que o muro seria apenas propriedade da Autora.

Nesta sub-questão assiste assim razão ao recorrente sendo por isso de revogar a sentença nessa parte, não se julgando procedente o pedido de condenação do Réu a reconhecer o indicado muro como propriedade exclusiva da Autora.

Outra sub-questão suscitada pelo apelante prende-se com o seu entendimento de que também a sua condenação a retirar (demolir) a chaminé mais recente construída na sua moradia e que está ao nível e próximo da moradia da autora, deveria ser revogada, sendo ele absolvido do pedido correspondente, dado que na sua óptica não se terá apurado a existência de qualquer prejuízo substancial para a Autora, decorrente dos fumos emitidos por essa chaminé, nem que a emissão dos mesmos não resulta da normal utilização desta.

No âmbito do direito de propriedade previsto no nosso ordenamento jurídico, a propriedade do imóvel abrange o espaço aéreo correspondente à superfície … (n.º 1, do art.º 1344.º do CC), não podendo no entanto o proprietário proibir os actos de terceiro que, pela altura … a que têm lugar, não haja interesse em impedir (n.º 2, do mesmo preceito legal).

Pode no entanto o proprietário do imóvel opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos … provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam (art.º 1346.º do CC).

A matéria de facto que se prende com esta questão consta dos pontos 16., 17., 28-A., 29. e 30., que aqui se reproduzem:

16.       A segunda chaminé referida em 8 encontra-se a cerca de 1 metro de distância da moradia referida em 1;

17.       ...e ao mesmo nível dessa mesma moradia em consequência dos socalcos;

28-A.   Em resultado da proximidade indicada nos pontos 16 e 17 e dos ventos que habitualmente se fazem sentir na zona dos prédios em causa, o fumo que é emitido desta chaminé tem invadido o jardim da moradia referida em 1, onde a Autora tem não só as suas plantas como também as gaiolas dos pássaros (resposta ao quesito 19.º da Base Instrutória).

29.       O fumo emitido pela chaminé construída pelo réu atinge em certas circunstância, de vento favorável, o interior da moradia da autora;

30.       Nas circunstâncias referidas em 29, a autora, para evitar a entrada do fumo na moradia, tem que fechar portas e janelas.

Quanto a nós é manifesto que tal factualidade integra a previsão do apontado art.º 1346.º do CC, pois que a normal utilização duma habitação pressupõe a desnecessidade de encerramento de portas e janelas para se evitarem fumos provenientes de chaminés de prédios vizinhos, podendo afirmar-se que tal procedimento sempre constituirá um prejuízo substancial para o uso do imóvel.

Refira-se que a conjunção “ou” separa as duas situações passíveis de conduzir à oposição do proprietário afectado com o fumo – prejuízo substancial “ou” utilização anormal do prédio – não sendo por isso as mesmas cumulativas.

É de facto intolerável que um comum cidadão não possa usufruir das diversas valências da sua habitação - tanto mais quando se trata de habitações detentoras de quintal ou jardim, que permitem um contacto muito assíduo com o espaço aberto - estando obrigado a ter as suas portas e janelas encerradas por via da utilização duma chaminé de prédio vizinho que a tal obriga.

Entendemos tratar-se de situação em que a substancialidade do prejuízo deriva do confronto entre os direitos inerentes aos proprietários dos dois prédios vizinhos, pois que se considera prevalecer o resultante do exercício normal de utilização da habitação, com o inerente usufruto de ar puro, face à possibilidade de utilização do consumo de matérias geradoras de fumos, perturbadoras do ambiente de terceiro.

Estamos perante situação objectivamente penalizante para a Autora e não apenas reveladora de hipersensibilidade da sua parte.

Tal objectividade é aliás patente pelo facto da própria legislação sobre edificação urbanas (RGEU) prever que em regra as condutas de fumo se devam erguer a, pelo menos, 0,50m acima da parte mais elevada das coberturas do prédio e, bem assim, das edificações contíguas existentes num raio de 10 metros (art.º 113.º), situação que não se verificava no caso em apreço. O legislador ao consagrar tais directivas pretendeu acautelar os direitos de vizinhança.

Por aquilo que se deixa expresso, há pois que concluir não assistir ao recorrente razão nesta sub-questão, sendo assim de manter o decidido quanto ao pedido correspondente.

Finalmente, importará apreciar a sub-questão inerente à condenação do Réu a abster-se de cortar ou perturbar a ligação dos esgotos da moradia da autora à fossa sanitária que se encontra localizada no seu prédio.

Neste âmbito, para além da questão factual já resolvida anteriormente, refere o apelante que contrariamente ao que é sustentado na sentença, não existe qualquer servidão predial referente à condução do esgoto do prédio da A. para a fossa séptica situada no prédio do Réu, pois que o que sempre existiu foi um mero acto de tolerância.

Os factos que se mostram relacionados com esta matéria são os constantes dos pontos 10, 12, 13, 14 e 15, que se passam a transcrever:

10.       As moradias referidas em 1 e 2 assentam em solo rochoso onde existem também várias nascentes de água, razão pela qual esta propriedade era conhecida pela “Quinta da Fonte”;

12.       Desde a construção da moradia referida em 1 (que é anterior a 1951) que os esgotos de ambos os prédios – 1 e 2 – são conduzidos à fossa séptica situada em 2;

13.       Esta rede de esgotos passa, pelo terreno referido em 2, e não pelo terreno referido em 1 e é naturalmente conduzida para a fossa séptica;

14.       Tal construção verificou-se, por um lado, porque o prédio 2 se encontra num plano inferior ao 1, sendo feita naturalmente a condução dos esgotos no sentido descendente;

15.       Por outro lado, como o prédio da autora assenta em solo rochoso e ocupa toda a largura desse mesmo prédio, os esgotos desta moradia não podiam passar por baixo desta, mas sim lateralmente.

A sentença considerou que perante esta factualidade estaríamos perante uma verdadeira servidão predial aparente, constituída por usucapião, posição com a qual concordamos.

Com efeito, a realidade descrita mostra-nos estarmos face a uma situação enquadrável na previsão do art.º 1543.º, do CC, pois que deparamo- nos perante um encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente.

A constituição deste direito real de gozo pode ocorrer por via de usucapião (art.º 1547.º, n.º 1, do CC), como será o caso dos autos, sendo que a sua concretização depende de dois elementos: a posse (corpus/animus) e o decurso de certo período de tempo (art.º 1287.º do CC).

Exige porém a lei que a constituição de servidões por usucapião, só possa ocorrer no caso das mesmas serem aparentes (artgs 1293.º, al. a) e 1548.º, n.º 1, ambos do CC), definindo as não aparentes como as que não se revelam por sinais visíveis e permanentes (art.º 1548.º, n.º 2 do CC).

No caso em apreço, secundamos a posição defendida na sentença que considerou a servidão em causa como aparente, na medida em que sendo a mesma subterrânea, manifesta-se por sinais exteriores que necessariamente a constituem com caixas e tampas de esgoto directamente visíveis à superfície.

É que a visibilidade destina-se a garantir a não clandestinidade, por ela os sinais denunciam a prestação duma utilidade não transitória mas estável que constitui o conteúdo da prestação (fls. 435).    

Encontramo-nos assim face a uma servidão que, por aparente, pode ser constituída por usucapião.

Regressando aos elementos constitutivos deste direito real, por usucapião, há que dizer que no que concerne àquele primeiro elemento, ou seja a posse, o mesma traduz-se na prática reiterada, de actos materiais correspondentes ao direito que se reclama ou se reivindica.

Como é sabido, nesse domínio, o nosso ordenamento jurídico, aderiu à concepção ou corrente subjectivista da posse (cfr. art.ºs 1251.º e 1253.º do CC).

Assim, como componentes da posse temos, por um lado, o corpus que enquanto elemento externo, revela-se pela prática de actos materiais sobre a coisa, ou seja, com o exercício de certos poderes de facto sobre o objecto, de modo contínuo e estável; Por outro, o “animus” - elemento interno – que se revela na vontade ou intenção do autor da prática de tais actos se comportar como titular ou beneficiário do direito correspondente a esses actos realizados.

A aquisição de determinado direito real por via da usucapião exige a presença simultânea e permanente desses dois elementos, ao longo do tempo que a lei estipula como necessário para a sua concretização.

A verificar-se a presença apenas do elemento objectivo (o corpus) a situação configura apenas uma mera detenção (precária), insusceptível de conduzir à dominialidade, ou seja, ao direito real de gozo que se reclama (cfr. art.º 1253.º).

Certo é porém que face à reconhecida dificuldade de demonstrar o referido animus, a lei estabeleceu, em caso de dúvida, uma verdadeira presunção (iuris tantum) do mesmo a favor de quem detém ou exerce os poderes de facto sobre a coisa, ou seja, presume-se que quem tem o corpus tem também o animus[1].

Desta forma, podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa.

Ora, tendo presente estas noções genéricas, vejamos agora se face à matéria de facto que enunciámos se registava, ou não, o circunstancialismo bastante para que se possa dizer que existia um verdadeiro poder de facto reflectido na passagem do esgoto pelo prédio do Réu, tendo como destino a fossa séptica também aí colocada.

Resultou apurado que desde data anterior a 1951 que essa canalização e forma de escoamento se regista, o que terá resultado da impossibilidade da mesma ser efectuada no prédio da Autora e de, por outro lado, a morfologia do terreno assim o determinar, situação que se mantém desde então até ao presente, sem notícia de qualquer oposição.

É do conhecimento comum que a existência de tais fossas implica a existência de tampas visíveis à vista desarmada, o que desde logo lhes confere, a um tempo, as características da sua publicidade e aparência. 

Há assim a assinalar, de forma clara, que em termos de posse só se mostra preenchido o corpus, não se vislumbrando, em termos de factos, a existência do animus.

Porém, e pelas razões supra aludidas, quem tem o corpus, presume-se que também tem o animus (cfr. ainda art.º 350.º, n.º 1, do CC), sendo certo que não se mostra que tenha sido ilidida tal presunção (iuris tantum), nomeadamente através da prova da ocorrência de alguma das situações contempladas no art.º 1253.º do CC, como competia a Réu, ora apelante (cfr. art.º 342.º, n.º 2, do CC).

Neste enquadramento, teremos pois de concluir que a Autora terá exercido o poder de facto correspondente ao direito de servidão em causa, com a intenção de ser real beneficiária do mesmo, pelo que mostrando-se assim preenchido o requisito da posse desse direito, a ele se terá de associar o do decurso do tempo que, sendo superior a cinquenta anos, supera em muito qualquer dos prazos previstos nos artgs. 1294.º, 1295.º e 1296.º, do CC, assim se concluindo que a mesma justificou a sua qualidade de possuidora de tal direito de servidão.

Desta forma, face ao exposto, há que concluir não assistir razão ao recorrente quanto a esta sub-questão, sendo por isso de manter a sua condenação nessa parte.

IV – DECISÃO

Assim, face a tudo o que se deixa dito, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente, no que concerne à condenação do Réu/apelante a reconhecer que a autora é a proprietária exclusiva do muro de sustentação do seu terreno e da sua moradia, assim se revogando a sentença nessa parte, concluindo-se pela sua absolvição quanto a esse pedido.

No mais, julga-se a apelação improcedente e, nessa conformidade, mantém-se o decidido na sentença recorrida.

Custas por apelante e apelada na proporção de ¾ para o primeiro e de ¼ para a segunda.

Lisboa, 14/02/08

(José Maria Sousa Pinto)

(Jorge Vilaça Nunes)

  (João Vaz Gomes)

_____________________________________________________________
[1](cfr. art.º 1252.º, n.º 2, e assento, hoje acórdão uniformizador de jurisprudência, do STJ de 14/5/96, inDR, II S, de 24/6/96, e ainda acórdãos do STJ de 9/1/97 e de 2/5/99, respectivamente, in “CJ/STJ, T5 – 37” e “CJ/STJ, T2 – 126”)