Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10521/2008-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: DEMOLIÇÃO DE OBRAS
MATÉRIA DE FACTO
ABUSO DE DIREITO
INDEMNIZAÇÃO
DANOS MORAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. Não é a possibilidade de “vistas” que está em causa na protecção prevista no art. 1360º do CC, mas sim o devassamento, por “invasão”, do terreno do vizinho.
2. Não consubstancia abuso de direito pedir a demolição de escadas exteriores e patamar construídos em violação do disposto no art. 1360º do CC, e em situação idêntica à anteriormente existente no prédio de quem pede tal demolição.
3. Se uma obra realizada em violação das normas do RGEU causar prejuízos ao prédio vizinho em termos de salubridade, estética ou segurança, o dono daquele poderá adoptar medidas repressivas e/ou pedir indemnização, com base na violação dos referidos preceitos.

(sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO.

            A, e marido, B, intentaram contra C, acção declarativa, com processo ordinário, pedindo que o R. seja condenado a demolir a obra clandestina realizada, a repor as portas e as janelas exteriores nos locais e com as dimensões originais e no pagamento aos AA. da indemnização de € 15.000,00, acrescida dos juros vencidos desde a citação.

            A fundamentar o peticionado, alegaram, em síntese, que:

            Os AA. são donos de um prédio urbano designado por moradia sito no bairro da …, em C…, na  que se situa numa praceta de moradias e é geminada de ambos os lados, sendo o R. dono da moradia confinante do lado sul.

            Os imóveis das partes têm pequenos logradouros nas suas traseiras.

            O acesso ao logradouro pelo interior da casa dos AA. faz-se através de umas escadas exteriores que partem de uma varanda adjacente à cozinha, sendo a separação dos logradouros das partes feita por um murete com cerca de 1 metro de altura que acompanha a descida das referidas escadas.

            No passado mês de Novembro de 2005, o R., sem aviso prévio, contacto ou pedido aos AA. iniciou uma obra, que é o prolongamento do alçado tardoz para ampliar a cozinha do R., retirando luz e vista à casa dos AA., bem como construiu uma porta e uma janela, que lhe tira privacidade, desvalorizando a moradia dos AA.

            Os AA. intentaram providência cautelar de embargo de obra nova, na qual, por acórdão da Relação de Lisboa, foi o R. condenado a suspender a obra.

            Os AA. são emigrantes na Alemanha, e, face à conduta do R. tiveram de realizar, com urgência e de forma imprevista, uma viagem a Portugal, na qual gastaram € 2.500,00, devendo o R. ser responsabilizado por esse encargo.

            Este problema causou inúmeras angústias e tristezas aos AA., quer pelo abuso com que o R. devassou e prejudicou a casa deles, quer pelo ambiente hostil gerado, bem como gerou despesas inesperadas, nomeadamente judiciais, devendo ser condenado a pagar aos AA. uma indemnização nunca inferior a € 12.500,00.

            Regularmente citado, o R. contestou, por impugnação, alegando que a obra foi devidamente licenciada, e termina propugnando pela improcedência da acção.

Foi proferido despacho saneador, e procedeu-se à selecção da matéria de facto assente e B.I., as quais não sofreram reclamações.
Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, na qual foi indeferido o pedido de suspensão da instância formulado pelo R., por se encontrar a correr, na Câmara Municipal de C…, processo de legalização da obra em causa.
Inconformado com este despacho, dele agravou o R., que, no final das suas alegações, formulou as seguintes conclusões:
1ª- O processo camarário constitui questão prejudicial aos presentes autos, pois que, de “per si”, ocorre motivo justificativo (última parte nº 1 art. 279º do CPC);
2ª- A legalização das obras, através daquele processo, também é objecto dos autos;
3ª- A palavra directamente, empregue no nº 1 do art. 1360º do CC, pretende significar virada para, ou para, o prédio vizinho, o que não é o caso.
4ª- O projecto de alterações das obras em causa está em vias de ser aprovado pela respectiva Câmara Municipal.
5ª- Donde, devia a instância ter sido suspensa, como oportunamente requerido, aguardando os autos a decisão camarária favorável.
6ª- Violou, assim, o Mº Juiz “a quo” o nº 1 do art. 279º do CPC e o nº 1 do art. 1360º do CC.
Termina requerendo a reparação do agravo, suspendendo-se a instância até decisão camarária sobre a reapreciação do projecto de alteração das obras em causa.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Foi proferido despacho tabelar a sustentar o despacho recorrido.
 Oportunamente, veio a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo o R. dos pedidos.

Inconformados com a decisão os AA. apelaram, tendo no final das respectivas alegações formulado as seguintes conclusões:

1ª- Deve ser considerado provado no quesito 4º que, também “a casa dos AA. ficou mais feia”.

2ª- Deve ser considerado como provado o quesito 5º.

3ª- A matéria de facto impugnada e aquela que se considera bem julgada, impõem decisão diferente da que foi proferida.

4ª- Com a obra do recorrido a casa dos recorrentes ficou exposta à indiscrição alheia.

5ª- Também com a obra do recorrido a casa e a intimidade dos recorrentes foi profundamente devassada.

6ª- A nova janela do recorrido está a 60 centímetros da casa dos recorrentes.

7ª- A nova porta e o seu patamar adjacente estão a 5 centímetros da casa dos apelantes e existe apenas a separar as duas moradias um murete com cerca de 50 centímetros de altura.

8ª- Ao ter decidido que os afastamentos e as distâncias legais entre construções foram respeitadas, a sentença impugnada violou os artigos 1305º e 1360º do Código Civil e 73º e 75º do R.G.E.U.

9ª- A obra do R. lesou direitos intelectuais e patrimoniais dos AA. que devem ser ressarcidos nos moldes peticionados.

Terminam pedindo que se julgue procedente a apelação e se revogue a sentença recorrida, julgando-se procedente o pedido dos AA.

            O R. não contra-alegou.

            Notificado, o agravante veio informar que desistia do recurso de agravo (fls. 225).

Corridos os vistos, cumpre decidir.

            QUESTÕES A DECIDIR.

            Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões dos recorrentes ( art. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC ) as questões a decidir são:

1ª - Reapreciação da matéria de facto quanto aos quesitos 4º e 5º da B.I.

2ª- Se, face à matéria de facto dada como provada, o pedido dos AA. deve proceder.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

            O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
A. Os autores emigraram há muitos anos para a Alemanha, residindo habitualmente na cidade de H… (al. A) dos factos assentes).
B. São donos do prédio urbano designado por moradia, sita no bairro da …., em C… (al. B) dos factos assentes).
C. A casa dos autores situa-se numa praceta de moradias e é geminada de ambos os lados (al. C) dos factos assentes).
D. O réu é dono da moradia confinante do lado sul (al. D) dos factos assentes).
E. Os imóveis das partes têm, nas suas traseiras, pequenos logradouros contíguos (al. E) dos factos assentes).
F. O acesso ao logradouro, pelo interior da casa dos autores, faz-se através de umas escadas exteriores, que partem de uma pequena varanda adjacente à cozinha (al. F) dos factos assentes).
G. O piso onde se situa a cozinha é, pela parte da frente da casa, um rés-do-chão, e pela parte de trás, um primeiro andar, porque a casa foi construída aproveitando o desnível do terreno (al. G) dos factos assentes).
H. A separação dos logradouros das partes é feita por um murete com cerca de um metro de altura, que acompanha a descida das escadas dos autores (al. H) dos factos assentes).
I. No passado mês de Novembro de 2005, sem qualquer aviso prévio, contacto ou pedido aos autores, o réu iniciou uma obra (al. I) dos factos assentes).
J. O alinhamento contínuo com que as moradias tinham sido construídas foi violado pela obra do réu (al. J) dos factos assentes).
L. O novo corpo é um prolongamento do alçado tardoz para ampliar a cozinha do réu (al. L) dos factos assentes).
M. Um paredão que daí resultou situa-se a cerca de cinquenta centímetros da casa dos autores (al. M) dos factos assentes).
N. Da referida obra, nasceu uma nova porta a cerca de cinco centímetros da propriedade dos autores, e uma nova janela a cerca de sessenta centímetros da mesma propriedade (al. N) dos factos assentes).
O. Os autores intentaram, contra o réu, o procedimento cautelar de Embargo de Obra Nova que constitui o apenso A, tendo sido determinada a suspensão da obra por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (al. O) dos factos assentes).
P. Os autores foram condenados nas custas do procedimento cautelar, a atender na acção respectiva, encontrando-se representados por Advogado em ambos os processos (al. P) dos factos assentes).
Q. O novo corpo saliente da casa do réu tira luz à casa dos autores com o esclarecimento que tal ocorre quando tal corpo faz sombra para a casa dos autores (resposta ao quesito 1º).
R. As moradias foram construídas em alinhamento contínuo (resposta ao quesito 2º).
S. O paredão a que se alude em M. retirou luz (do sol) e amplitude de vista à casa dos autores, sendo que a vista em causa é para outras casas ali existentes (resposta ao quesito 3º).
T. Em consequência da obra do réu, a casa dos autores perdeu privacidade, luz e vistas, sendo que a luz perdida se refere exclusivamente àquela que é dada directamente pelo sol, e as vistas se referem à sua amplitude (resposta ao quesito 4º).
U. Nos dias seguintes ao início da obra os autores contactaram o réu para que parasse aquela, o que este não fez (resposta ao quesito 6º).
V. Motivo porque a autora mulher veio a Portugal (resposta ao quesito 7º).
X. A autora despendeu quantia não apurada na viagem (resposta ao quesito 8º).
Z. Este problema causou aos autores angústia e tristeza (resposta ao quesito 9º).


FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

Alegando erro na apreciação da prova produzida, pretendem os recorrentes a sua reapreciação, nomeadamente no que respeita aos artigos 4º e 5º da base instrutória.
Dispõe o art. 712º, n.º 1 do CPC que “ a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação; a) se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 690º-A, a decisão com base neles proferida; b) se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; c) se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou”.
Em causa no recurso está a alínea a) supra referida.
Por seu turno, o n.º 2 do mesmo artigo esclarece que “ no caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada ”.
Dispõe o art. 690º-A do CPC, que tem por epígrafe “ ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão de facto ”, que “ 1 – Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida. 2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando  os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522º-C. ...”.

A recorrente cumpriu o estatuído no art. 690º-A do CPC e tendo a prova testemunhal produzida sido gravada, tem esta Relação a possibilidade para proceder, se for caso disso, à alteração factual requerida, nos termos do art. 712º do CPC.
O art. 690º-A do CPC foi aditado pelo DL. 39/95 de 15.02, que previu e regulamentou a possibilidade de documentação ou registo das audiências de julgamento, gravando-se a prova nelas produzida, tendo em vista, desse modo, criar um 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes a possibilidade de reacção contra eventuais erros do julgador na apreciação da prova e na fixação da matéria de facto relevante para a decisão de mérito.
Mas, para além de apenas se visar “ a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto ”, como se refere no preâmbulo do referido decreto-lei, não se deve, também, esquecer que o processo civil continua a ser norteado pelo princípio da imediação e da oralidade, sendo as provas apreciadas livremente pelo tribunal, e segundo as regras da experiência comum.
Como se escreveu no sumário do Ac. da RP de 19.09.00, in CJ, Tomo IV, pág. 186 e ss., “ porque se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e aquela decisão, nos concretos pontos questionados ”.

O que é fundamental é que o tribunal, no seu livre exercício de convicção, indique “ os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado ” – Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 348.
            A prova produzida e cuja apreciação se questiona, reconduz-se ao depoimento das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento e sua conjugação com os documentos existentes nos autos.

            Dispõe o art. 396º do CC que “ a força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal ”, sem prejuízo da obrigação do juiz fundamentar a sua convicção, sendo certo que esta resulta da apreciação final e global que faz do que as testemunhas disseram, do seu comportamento, das suas reacções, ponderadas as regras da experiência comum e da verosimilhança do depoimento.

            “ Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorizados por quem os presencie e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá apreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador ” ( cfr. Temas da Reforma do Processo Civil, pág. 274 ).

Feitas estas considerações preliminares, apreciemos da bondade do recurso.

Perguntava-se no quesito 4º da B.I. se “Em consequência da obra do R., a casa dos AA. perdeu privacidade, luz, vistas e ficou mais feia ?”.

Respondeu o tribunal a quo “provado apenas que em consequência da obra do R., a casa dos autores perdeu privacidade, luz e vistas, com o esclarecimento que a luz perdida se refere exclusivamente àquela que é dada directamente pelo sol, e as vistas se referem à sua amplitude”.

Insurgem-se os recorrentes quanto ao facto do tribunal não ter considerado como provado, também, que, em consequência de tais obras, a sua casa ficou mais feia, baseando tal discordância quer por ser tal resposta contraditória com as respostas dadas aos quesitos 1º, 2º e 3º, quer pelo teor do depoimento das testemunhas R e M.

O tribunal recorrido justificou as respostas dadas à B.I. “na análise conjugada de toda a documentação junta aos autos principais e apenso (com especial relevância para as fotografias juntas), e dos depoimentos das testemunhas inquiridas” em audiência de julgamento (fls. 147).

E, concretamente, quanto ao quesito 4º (bem com aos quesitos 1º a 3º), o tribunal recorrido especificou que: “A factualidade expressa nas respostas dadas resultou inequívoca do depoimento das testemunhas M e N, as quais depuseram de modo objectivo e desinteressado e, nessa medida, credível, sendo que as mencionadas testemunhas revelaram possuir conhecimento de tal factualidade pela razão que vivem naquele local. Tais depoimentos são inequívocos no sentido de que, com a construção do réu, a casa dos autores (as traseiras) perdeu luz directa do sol (“dá-lhe sombra mais cedo”), perdeu amplitude de vista e privacidade (aqui face às escadas e nova porta construída). Acresce que tais factos são facilmente perceptíveis das fotografias juntas aos autos de procedimento cautelar apenso, com especial relevância para as seguintes: .... Acrescente-se que as testemunhas arroladas pelo réu não contrariam directamente este facto, limitando-se a afirmar, neste particular, que a perda de sol é, temporalmente, insignificante. A parte da factualidade que não se provou ficou a dever-se à circunstância das testemunhas não terem conhecimento directo da mesma (quesito 2º), e/ou por se tratar de juízos de valor que variam de pessoa para pessoa (questão estética da casa)”.

Em primeiro lugar, não se alcança onde está a contradição invocada pelos recorrentes, sendo certo que se concorda com o Mmo Juiz recorrido que em causa estão juízos de valor que variam de pessoa para pessoa.

E tanto assim é, que não obstante as testemunhas R e M terem referido que a casa dos AA., em consequência da obra do R., ficou “muito mais feia”, as restantes testemunhas [1], e, nomeadamente a testemunha N (cujo depoimento foi decisivo para a resposta ao quesito em questão), referiram que a obra em causa não teve qualquer interferência com a estética da casa dos AA. [2].

Se aquelas 2 testemunhas confirmaram o que se perguntava no quesito a tal respeito, não menos certo é que as restantes testemunhas responderam em sentido contrário, sendo certo que, em relação à testemunha R, o tribunal concluiu que a mesma revelou “pouca credibilidade face à forma afincada e não justificada factualmente” como defendeu a posição dos AA., o que resulta manifesto da audição do depoimento gravado daquela testemunha.

Assim sendo, conclui-se ter o tribunal recorrido respondido ao quesito 4º de acordo com a prova produzida, não ocorrendo erro (muito menos manifesto) de julgamento na apreciação daquela, improcedendo o recurso, nesta parte.

Perguntava-se no quesito 5º da B.I., se, na sequência do perguntado no quesito 4º, a moradia dos AA. ficou desvalorizada comercialmente.

Este quesito mereceu a resposta de “não provado”, com a seguinte justificação: “A factualidade deste quesito foi dada como não provada por o tribunal entender não ter sido produzida prova suficiente relativamente à mesma. O facto das testemunhas arroladas pelos autores, todas elas, terem afirmado que, em sua opinião, a casa dos autores se desvalorizou com a obra em questão (o contrário foi dito pelas testemunhas arroladas pelo réu), a verdade é que tais testemunhas não revelaram possuir conhecimentos específicos sobre a matéria em causa. Ora, sabendo-se que a valorização/desvalorização de uma casa depende de múltiplos factores, aquelas simples afirmações são insuficientes para o tribunal poder, com segurança, concluir no sentido do quesito. Daí a sua não prova”.

Discordam os recorrentes desta fundamentação, dizendo não se compreender como o tribunal recorrido deu como não provado tal facto face à matéria dada como provada nos quesitos 1º a 4º e aos depoimentos “consistentes, óbvios e sinceros” das testemunha R, M e N, sendo certo que se trata de matéria corriqueira da vida em sociedade.

Desde logo haverá que relembrar as reticências feitas ao depoimento da testemunha R.

Por outro lado, não têm razão os recorrentes quando defendem que “se trata de matéria corriqueira da vida em sociedade”.

Aquilatar da desvalorização de um imóvel prende-se, como referiu o Mmo Juiz recorrido, com múltiplos factores, sendo as pessoas ligadas ao sector imobiliário, ou os peritos nestas áreas, as mais indicadas para se pronunciarem sobre tais questões.

Optaram os AA., como os próprios referem nas suas alegações de recurso, por não requererem a intervenção de peritos, por entenderem excessivo para uma tal questão.

Contudo, ao terem optado por arrolar, também, testemunhas que nenhuma relação têm com o sector imobiliário, que apenas depuseram de acordo com a sua opinião, sujeitaram-se à contraprova sobre esta matéria (cfr. o art. 346º do CC).

Ora, as testemunhas arroladas pelo R., nomeadamente O, P, Q e T, também se pronunciaram sobre esta questão, no sentido da moradia dos AA. não ter sofrido qualquer desvalorização comercial, também apenas de acordo com a sua opinião, não estando nenhuma delas ligada ao sector imobiliário, o que se mostra suficiente para ter criado no espírito do julgador as dúvidas que determinaram a resposta dada e de acordo com o ónus da prova.

Também nesta matéria, nenhuma crítica há a fazer à apreciação da prova produzida, improcedendo o recurso.

Passemos, agora, 2ª questão suscitada pelos recorrentes: se, de acordo com a matéria de facto dada como provada, a decisão recorrida violou o disposto nos arts. 1305º e 1360º do CC e 73º e 75º do RGEU.

A sentença recorrida fez uma análise exaustiva sobre a natureza e âmbito do direito de propriedade e restrições de direito público e limitações de direito privado ao mesmo [3], sendo despiciendo estar, agora, a repetir tais considerações, remetendo-se, pois, para o que aí foi dito.

Conforme resulta da matéria de facto dada como provada, a moradia dos AA. é geminada, pelo lado sul, com a moradia do R., tendo nas traseiras dos imóveis, pequenos logradouros contíguos, separados por um murete com cerca de 1 metro de altura.

Tendo a casa dos AA. sido construída aproveitando um desnível do terreno, o piso onde se situa a cozinha é, pela parte da frente, um r/c, e, pela parte de trás, um 1º andar, onde existe uma varanda, da qual partem umas escadas exteriores, que acompanham o mencionado murete,  e dão acesso ao logradouro.

A obra que o R. fez, e que os AA. pretendem ver demolida, consistiu num prolongamento do alçado tardoz da sua casa, para ampliar a cozinha, sendo que o paredão que daí resultou se situa a cerca de 50 cm da casa dos AA., ou melhor dizendo e conforme resulta das fotografias juntas aos autos, a 50 cm do mencionado murete, tendo sido quebrado o alinhamento contínuo com que as moradias tinham sido construídas.

E, da referida obra, nasceu uma nova porta a cerca de 5cm da propriedade dos AA. e uma nova janela a cerca de 60 cm da mesma propriedade.

O novo corpo saliente da casa do R. tira luz do sol, quando faz sombra, à casa dos AA., retirou-lhe amplitude de vistas, sobre outras casas ali existentes, fazendo-a perder privacidade.

Dispõe o art. 1360º do CC, sob a epígrafe “Abertura de janelas, portas, varandas e obras semelhantes”, que “1. O proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio. 2. Igual restrição é aplicável às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela. 3. Se os dois prédios forem oblíquos entre si, a distância de metro e meio conta-se perpendicularmente do prédio para onde deitam as vistas até à construção ou edifício novamente levantado; mas, se a obliquidade for além de quarenta e cinco graus, não tem aplicação a restrição imposta ao proprietário”.

Como se referiu na sentença recorrida, o que a lei pretende com as restrições e limitações contidas neste artigo é a inexistência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados e outras obras semelhantes que deitando directamente sobre o prédio vizinho permitam o devassamento deste.

Não tanto o devassamento com a vista [4], mas sim a possibilidade de “invasão” do terreno do vizinho, debruçando-se, ou deitando objectos para este.

Insistem os AA. que a janela aberta na nova construção permite “mirar-se de cima para baixo para o logradouro daqueles. Bastando para lá olhar sem sequer rodar a cabeça” [5].

Repete-se que não é a possibilidade de “vistas” que está em causa na protecção prevista no mencionado artigo, mas sim o devassamento, por “invasão”, do terreno do vizinho, o que não se configura no caso em apreço, relativamente à janela em questão.

Tanto mais quanto é certo que, como se refere na sentença recorrida, a janela em causa está virada para o logradouro do R. e não para o terreno dos AA., nesta conformidade se entendendo que a janela não deita directamente para o terreno dos AA.

Não assiste, pois, razão aos recorrentes na impugnação que, nesta parte, fazem da sentença recorrida.

E a abertura da nova porta, respectivo patamar e escadas exteriores que o R. construiu viola o disposto naquele artigo ?

Afigura-se-nos que sim.

Não obstante a porta estar virada para o logradouro do R., o que é um facto é que a mesma, bem como o respectivo patamar e escadas exteriores que do mesmo saem [6], deitam directamente para o prédio dos AA., estando a porta a 5 cm do mesmo e as escadas encostadas ao murete, de apenas 1 metro de altura, que faz a separação entre as duas propriedades.

O devassamento daqui resultante é obvio.

Entendeu, porém, o Mmo Juiz recorrido que, atendendo a que esta nova situação equivale à situação anteriormente existente, em que as escadas exteriores de acesso ao logradouro dos AA. encosta ao mencionado murete, que a acompanha, deitando directamente sobre a propriedade do R., actuam os AA. em abuso de direito ao vir invocar a falta de privacidade resultante da proximidade das escadas.

Insurgem-se os recorrentes contra este entendimento, dizendo que as situações são diferentes, sendo o prejuízo dos AA. muito superior ao que era o do R., uma vez que a “privacidade perdida pelos AA. foi da sua intimidade, foi para dentro de sua casa, o que nunca se passou com o R.”, para além de que a sentença recorrida não ponderou, devidamente, a ausência de queixa por parte do R. e o facto das escadas terem sido projectadas pelo loteador original.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, afigura-se-nos assistir razão aos recorrentes.

A situação, ora, criada pelo R. e a situação anterior em que se encontravam os AA. é substancialmente diferente.

A existência de escadas no terreno dos AA. encostada ao murete que separa este da casa do R., e o respectivo devassamento daí proveniente, resulta ab initio [7], nunca se tendo o R. insurgido contra tal situação, aceitando-a.

Já para os AA., a situação ora criada pelo R. é nova, alterando, completamente, as expectativas de utilização da sua casa e respectivo logradouro.

E não se pode dizer que, ao reagir contra a construção da porta (e escadas) na casa do R. nas condições concretas em apreço, esteja a actuar em sentido contrário ao que vinha fazendo, e através do qual criou expectativas no R. de que iria aceitar as referidas construções, nos termos em que foram feitas.

É que antes (da nova construção) o R. não podia devassar o terreno e casa dos AA. e, agora, pode.

E antes os AA. já podiam “devassar” a casa e terreno do R., mas por força de uma situação criada desde o início e tacitamente aceite.

Não se verificando uma situação de abuso de direito, ao contrário do que entendeu a sentença recorrida, e tendo o R. construído a porta (patamar e escadas exteriores) em violação ao disposto no art. 1360º do CC, deverá proceder, nesta parte, a pretensão dos AA., revertendo-se à situação anterior, fechando-se a porta em questão (e demolindo-se o patamar e as escadas), o que se enquadra no âmbito do pedido (demolição da obra).

Impugnam, ainda, os AA. a decisão recorrida, na parte em que considerou não violar a obra em questão ([8]) o disposto nos arts. 73º e 75º do RGEU, defendendo que a obra viola, efectivamente, aqueles preceitos legais, criando emsombramento e perda de vistas da sua casa, pelo que pretendem a sua demolição.

Resulta da matéria de facto dada como provada que o novo corpo saliente da casa do R. tira luz do sol à casa dos AA., fazendo-lhe sombra [9], e retirou-lhe amplitude de vista, para outras casas ali existentes.

Como resulta do preâmbulo do DL 38.382 de 7.08.1951, que aprovou o RGEU, este diploma visa garantir as condições de salubridade (arejamento, iluminação e exposição directa à acção dos raios solares), estética e segurança das edificações urbanas, referindo-se a edifícios a construir (art. 58º), não consubstanciando nenhum direito subjectivo para os proprietários dos prédios vizinhos, que, contudo, poderão ser ressarcidos dos danos derivados da realização de trabalhos em violação das normas do RGEU que afectem o seu património.

Certo é, como refere a decisão recorrida, que as normas invocadas pelos recorrentes (art. 73º e 75º) respeitam às próprias construções que se pretendem erigir e não aos prédios vizinhos, não estando em causa a salvaguarda dos direitos subjectivos desses mesmos vizinhos.

Contudo, se a obra realizada em violação dos mencionados preceitos causar prejuízos no prédio vizinho em termos de salubridade, estética ou segurança, afigura-se-nos que o proprietário daquele poderá adoptar medidas repressivas e/ou pedir indemnização, com base na violação daqueles preceitos [10].
No caso, não resulta posta em causa a salubridade da casa dos AA., uma vez que a mesma não deixou de beneficiar de iluminação e exposição directa aos raios solares, apenas tendo passado a sofrer uma diminuição de tal exposição, quando a referida obra lhe faz sombra, sendo certo que a invocada “diminuição” estética (desvalorização) não resultou provada e a invocada diminuição de vistas não tem protecção subjacente no âmbito das normas em causa.
Assim sendo, não poderá proceder a pretensão dos AA., de ver demolida a construção efectuada pelo R., com base na violação dos mencionados preceitos legais.
Do que se deixa dito resulta que o recurso (e a pretensão dos AA.) apenas procede no que respeita à porta existente na nova construção efectuada pelo R., com as consequências já supra referidas.
E terão os recorrentes direito à indemnização peticionada ?
Inquestionavelmente que sim.
Os AA. sofreram danos, com a conduta negligente do R., que, ilicitamente, violou o seu direito de propriedade, nos termos expostos (art. 483º, nº 1 do CC), e conforme resulta da matéria de facto dada como assente sob as alíneas P, U, V, X e Z.
Relativamente aos danos patrimoniais peticionados, provou-se que, em virtude da conduta do R., a A. mulher se deslocou a Portugal (vivendo os AA. habitualmente na Alemanha), em cuja viagem despendeu quantia não apurada.

Não lograram, portanto, os AA. fazer prova do valor alegadamente despendido  no pagamento da referida viagem, e que peticionavam.

Dispõe o art. 661º, n.º 2 do CPC que “ se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que vier a ser liquidado, sem prejuízo da condenação imediata na parte que já seja líquida ”.

É certo que sobre a interpretação do mencionado artigo foram já defendidas 2 posições: para uns, o art. 661º, n.º 2 do CPC só poderá ser aplicado por inexistência de factos provados, por não serem conhecidos ou estarem em evolução no momento em que é instaurada a acção, ou no da decisão quanto à matéria de facto, não podendo ser razão para relegar para execução de sentença a falta da prova dos factos; para outros, a faculdade concedida no mencionado artigo tanto tem aplicação ao caso de ser formulado inicialmente pedido genérico, como ao caso de se ter formulado pedido específico mas não se chegarem a coligir dados suficientes para se fixar, com precisão e segurança, o objecto ou quantidade da condenação.

Este último entendimento tem vindo a ser seguido maioritariamente, e é, também, o por nós perfilhado, pelo que, demonstrada a verificação do dano, haverá que, ao abrigo do art. 661º, n.º 2 do CPC, relegar o seu apuramento para momento posterior ( art. 378º e ss. do CPC).

Alegaram, ainda, os AA. terem sofrido “inúmeras angústias e tristezas” resultantes do comportamento do R., e, efectivamente, resultou provado que “este problema causou aos autores angústia e tristeza”.

A lei apenas prevê o ressarcimento dos danos de natureza não patrimonial que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496º, nº 1 do CC).

Não é a um qualquer dano não patrimonial que a lei reconhece a possibilidade de ressarcimento, mas apenas àquele que revele gravidade, entendendo-se que os simples incómodos ou contrariedades não justificam ser indemnizados.

A gravidade do dano tem de ser apreciada segundo um padrão objectivo (embora não se possa deixar de ter em conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos [11].

No caso sub judice, aquilo que se provou nesta matéria é manifestamente pouco e vago, em especial se se tiver em consideração o montante da indemnização peticionado e que estamos no âmbito de conflitos de vizinhança [12], pelo que se entende justo e equilibrado fixar em € 1.000 o montante da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos.

Quanto às “despesas judiciais inesperadas”, para além de não concretamente alegadas, terão o seu ressarcimento nos termos das custas judiciais e de parte.

DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida e substitui-se por outra, nos termos da qual se condena o R.:
a) a fechar a porta que abriu na obra que efectuou, melhor identificada sob a alínea N) da matéria de facto assente, e, consequentemente, a demolir o patamar e escadas exteriores adjacentes à referida porta; e
b) a pagar aos AA.
- a título de danos patrimoniais, a quantia que vier a ser liquidada;
- a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 1.000 (mil euros), acrescida de juros de mora vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, à taxa legal.
Absolvendo-se o R. do demais peticionado.
Custas pelos recorrentes e recorrido, na proporção de 1/3 e 2/3, respectivamente.
                                                           *
                                               Lisboa, 2009.03.17
Cristina coelho
Soares Curado
Roque Nogueira

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[1] N, O, P, Q e T.
[2] A testemunha N referiu que “a casa em si, propriamente, não ficou mais feia, nem mais bonita”.
[3] Entre as quais se integram as que visam regular os conflitos de vizinhança que se suscitam entre proprietários.
[4] Uma vez que o intervalo de metro e meio que a lei impõe não constituirá, em princípio, obstáculo ao gozo dessas vistas  sobre o prédio vizinho.
[5] Repare-se que, como se observa das fotografias juntas aos autos, já das janelas anteriormente existentes na cozinha do R. se podia “mirar” o logradouro dos AA.
[6] Entendendo-se que na previsão do art. 1360º, nº 2 do CC se integram quer os patamares, quer as escadas exteriores.
[7] De acordo com os elementos existentes nos autos.
[8] Avançado da cozinha que forma um corpo saliente.
[9] Não se devendo esquecer que a casa do R. fica a sul da casa dos AA.
[10] Cfr. o Ac. da RL de 14.11.96, in CJ, Tomo V, pág. 96 e ss.
[11] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anotado, Vol. I, pág. 434.
[12] Em que está em causa o exercício do direito de propriedade de ambas as partes.