Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3098/2005-7
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
INDEFERIMENTO LIMINAR
EFEITO ANTECIPATÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/03/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - A providência cautelar não especificada, como, aliás, qualquer providência cautelar, não se propõe dar realização directa e imediata ao direito substantivo, mas tomar medidas que assegurem a eficácia duma providência subsequente, esta destinada à actuação do direito material.
II - O que se pretende, com tal providência, é eliminar o periculum in mora, ou seja, defender o presumido titular do direito contra os danos e prejuízos que lhe pode causar a formação lenta e demorada da decisão definitiva, e não obter a antecipação desta.
III - No entanto, nos termos do art.381º, nº1, do C.P.C., a providência requerida tanto pode ser conservatória como antecipatória, desde que concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado, o que significa que a lei admite expressamente a possibilidade de, através de providências cautelares não especificadas, se decretar uma medida com efeitos antecipatórios da decisão definitiva.
VI - Assim, tendo a requerente alegado factos que não excluem, liminarmente, a possibilidade de se decretar uma medida cautelar, ainda que implique uma provisória antecipação no tempo dos efeitos da decisão definitiva a proferir sobre o mérito da causa, não há que indeferir liminarmente o requerimento inicial, sendo que, o prosseguimento do processo não descaracteriza o procedimento cautelar, o qual mantém a sua natureza instrumental em relação à acção principal (cfr. o art.383º, do C.P.C.).

(sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – Relatório.

A, intentou providência cautelar não especificada contra B, nos termos do art.381º e segs., do C.P.C., alegando que, em Junho de 2004, adquiriu um prédio urbano sito em C, com o objectivo de aí proceder à construção de um edifício habitacional, existindo nesse prédio um conjunto de casas abarracadas em elevado estado de degradação.
Mais alega que, nessas casas, viviam cinco arrendatários, tendo a requerente conseguido que todos pacificamente as abandonassem, excepto a requerida, que paga € 6,90 de renda e que se recusa a entregar a casa, apesar de várias propostas que lhe tem feito nesse sentido, pelo que, em Abril de 2005, propôs acção de despejo contra ela, que á a acção principal a que a presente providência deve ser apensada.
Alega, ainda, que custeou o alvará da licença de construção, no montante de € 19.776,46, o qual tem uma validade de 16 meses, caducando após o decurso desse prazo, sendo que, a obra em questão será feita com financiamento bancário no valor de € 1.500.000,00, razão pela qual lança mão desta providência cautelar, predispondo-se a realojar provisoriamente a requerida até à decisão judicial definitiva.
Conclui, assim, que deve ordenar-se o realojamento da requerida em habitação disponibilizada pela requerente, até à decisão judicial definitiva.
Aberta conclusão, foi proferido despacho, indeferindo liminarmente o pedido, por ser manifestamente improcedente.
Inconformada, a requerente interpôs recurso de apelação daquele despacho.
Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – Fundamentos.
2.1. A recorrente remata as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª – Ao indeferir liminarmente a providência cautelar com vista ao realojamento da ré, o Tribunal a quo violou o disposto nos arts.381º e 383º, nº1, do C.P.C..
2ª – O objecto da acção principal não é posto em causa com a presente providência, uma vez que se mantém para discussão e julgamento em 1ª instância a questão da resolução do contrato de arrendamento.
3ª – Por outro lado, também porque nos autos principais se pede, e fundamenta-se no articulado da p.i., a denúncia do arrendamento por necessidade de demolição do prédio em ruína.
4ª – A junção do documento enviado pela Junta de Freguesia de C à Protecção Civil de D, requerendo a intervenção da mesma junto da fracção objecto dos autos é a prova concludente de que a referida fracção está em perigo eminente de derrocada, oferecendo por isso real perigo para a segurança de pessoas e bens.
5ª – Pelo que, outro destino não tem a referida fracção senão o da sua demolição, tudo tendo feito a recorrente para que perigos maiores não advenham para os que, abusivamente, utilizam a casa.
6ª – Em última análise, o objecto da acção principal é o mesmo que se pretende acautelar pelo procedimento cautelar.
Termos em que deve a decisão do Tribunal de 1ª instância ser alterada, conduzindo então ao deferimento da providência cautelar.
2.2. A única questão que importa apreciar no presente recurso consiste em saber se, no caso, o pedido era manifestamente improcedente, estando, assim, justificado o indeferimento liminar da petição.
Na decisão recorrida considerou-se que à requerente, em termos de direito substantivo, não assiste o direito de exigir o decretamento da providência cautelar que peticiona e que, por força da instrumentalização entre o procedimento cautelar e a acção, o mesmo teria que ser julgado improcedente. Daí que tenha sido liminarmente indeferido o pedido da requerente.
Segundo a recorrente, tal despacho violou o disposto nos arts.381º e 383º, nº1, do C.P.C., pelo que, deve ser deferida a requerida providência.
Vejamos.
Como é sabido e resulta do disposto nos arts.381º e 387º, do C.P.C., o decretamento de uma providência cautelar não especificada depende da concorrência dos seguintes requisitos (cfr. Abílio Neto, Código de Processo Civil, Anotado, 13ª ed., pág.187):
a) que muito provavelmente exista o direito tido por ameaçado;
b) que haja fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito;
c) que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas nos arts.393º a 427º, do C.P.C.;
d) que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado;
e) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar.
Conforme refere Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil, Anotado, vol.I, 3ª ed., págs.623 e segs., que seguiremos muito de perto, para a reconstituição exacta da figura da providência cautelar, não basta conhecer os requisitos de que depende o seu sucesso, sendo necessário, também, definir a sua função jurisdicional. Ora, sob este aspecto, o traço fundamental a assinalar é o de que a providência cautelar não se propõe dar realização directa e imediata ao direito substantivo, mas tomar medidas que assegurem a eficácia duma providência subsequente, esta destinada à actuação do direito material. O que significa que a 1ª é posta ao serviço da 2ª, sendo que, esta é que há-de definir, em termos definitivos, a relação jurídica litigiosa. Daí que aquela tenha carácter provisório e esta tenha carácter definitivo (cfr. o art.383º, do C.P.C.).
Assim, o que justifica a emissão duma providência provisória é o chamado periculum in mora, já que, há casos em que a formação lenta e demorada da decisão definitiva expõe o presumido titular do direito a riscos sérios de dano jurídico. E é para afastar estes riscos que se admite a emanação duma providência provisória ou interina, destinada a durar somente enquanto não se profere o julgamento definitivo.
Por conseguinte, a função das providências cautelares consiste, justamente, em eliminar o periculum in mora, submetendo a relação jurídica litigiosa a um exame sumário, e por isso rápido, tendente a verificar se a pretensão do requerente tem probabilidades de êxito e se, além disso, da demora do julgamento final pode resultar, para o interessado, lesão grave e dificilmente reparável. E se o tribunal decreta a providência, quer dizer que autoriza os actos ou meios necessários e aptos para pôr o requerente a coberto do perigo iminente de insatisfação do direito.
Nos termos do citado art.381º, nº1, a providência requerida pode ser conservatória ou antecipatória, desde que concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado. Aquela dicotomia não era expressa na lei anterior, admitindo-se agora, claramente, a possibilidade de, através de providências cautelares não especificadas, se decretar uma medida com efeitos antecipatórios da decisão definitiva. Assim, conforme refere Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, pág.275, enquanto que as providências conservatórias visam manter inalterada a situação de facto que pré-existe à acção, tornando-a imune à possível ocorrência de eventos prejudiciais, as providências antecipatórias visam obstar ao prejuízo decorrente do retardamento na satisfação do direito ameaçado, através de uma provisória antecipação no tempo dos efeitos da decisão a proferir sobre o mérito da causa.
Trata-se, no fundo, de assegurar o princípio da efectividade da tutela jurisdicional, permitindo que o titular do direito possa obter, em tempo útil e na medida do possível, a necessária protecção. Protecção esta que, na verdade, em determinadas circunstâncias e através da ponderação dos diversos interesses em jogo, só será eficaz mediante a antecipação de um determinado efeito que até pode ter carácter definitivo. Por isso que, Sónia Teixeira, in R.O.A,, ano 58º, pág.894, conclui que as medidas antecipatórias, de certo modo, consomem o pedido material, na medida em que o antecipam, embora reconheça que a alteração está sujeita a confirmação na decisão da acção principal. Por seu turno, Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil, Anotado, vol.2º, pág.9, refere que as providências antecipatórias constituem também antecipação da realização do direito.
Mas será que, no caso sub judice, a requerente da providência invoca uma situação que justifique a emissão duma providência provisória de tipo antecipatório? Ou será que o decretamento da requerida providência implicaria que os autos principais ficassem sem objecto, retirando carácter instrumental ao procedimento cautelar relativamente à acção?
No despacho recorrido considerou-se que, dada essa relação instrumental, o pedido formulado pela requerente teria que ser julgado improcedente. Razão pela qual, por se ter entendido que tal pedido era manifestamente improcedente, foi o mesmo liminarmente indeferido (cfr. o art.234º-A, nº1, do C.P.C.).
A petição inicial, como é sabido, só deve ser indeferida liminarmente quando a improcedência da pretensão for tão evidente que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é, quando o seguimento do processo seja desperdício manifesto de actividade judicial, redundando em pura perda (cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Anotado, vol.II, 3ª ed., pág.385).
A problemática supra referida reconduz-nos, deste modo, à questão que cumpre apreciar no presente recurso, qual seja, a de saber se, no caso, o pedido era manifestamente improcedente, a justificar, pois, o indeferimento liminar da petição.
Para o efeito, haverá que atentar no que, de relevante, foi alegado pela requerente no requerimento inicial. Assim, foram aí articulados os seguintes factos:
- em Junho de 2004, a requerente adquiriu um prédio urbano sito em C, com o objectivo de aí proceder à construção de um edifício habitacional;
- nesse prédio, existia um conjunto de casas abarracadas em elevado estado de degradação, pelo que, outro destino não lhe podia ser dado do que a mera demolição;
- apesar disso, viviam aí cinco arrendatários, tendo todos eles abandonado as casas, mediante negociação, excepto a requerida;
- a requerida, que paga € 6,90 mensais de renda de casa e que tem uma reforma superior a € 800,00 mensais, tem recusado todas as propostas que a requerente lhe apresentou, inclusive a do realojamento;
- perante tais recusas, a requerente intentou, em Abril de 2005, acção de despejo contra a requerida, por violação contratual, designadamente, por não habitar na casa e ter outra residência na mesma zona, servindo aquela apenas para estaleiro e oficina de actividade profissional do filho da requerida;
- aquela acção esteve suspensa por 60 dias, para se tentar obter um acordo, que passava pelo realojamento da requerida numa casa com as seguintes condições, aceites pela requerida:
· ter uma área aproximada à da casa original
· ficar próxima da zona da casa original
· ser um rés-do-chão, para a requerida se movimentar bem
· ter as mesmas condições de habitação;
- a requerente arranjou duas habitações com todos aqueles requisitos, remodeladas e incomparavelmente melhores, porém, a requerida declinou logo uma e recusou visitar a segunda;
- ao longo destes 4 ou 5 anos a requerente andou a tratar de tudo o que é necessário para o licenciamento da obra que pretende levar a efeito;
- na expectativa de que tudo estivesse resolvido com a requerida e de que esta já tivesse abandonado a casa, quando tivesse a licença de construção pronta para ser levantada na Câmara Municipal de D;
- o alvará da licença de construção foi posto a pagamento para ser levantado, o que já aconteceu, tendo a requerente suportado o custo de € 19.776,46;
- aquele alvará, além de licenciar a construção, também licenciou a demolição da construção existente, dado o estado de degradação das várias casas aí existentes, que representam inclusivamente um perigo para a circulação das pessoas;
- a licença tem uma validade de 16 meses, contados desde Novembro de 2008, tempo necessário para os preparativos da demolição e da posterior construção;
- esgotando-se esse prazo a mesma caduca, com todas as consequências desastrosas e irremediáveis para a requerente, sob o ponto de vista financeiro e pessoal;
- a requerente vão proceder a essa obra com financiamento bancário, no montante de € 1.500.000,00, pelo prazo necessário à construção e venda das fracções, a que acrescem juros à taxa da Euribor+2%, calculados a esse prazo;
- esgotado esse prazo, sem que o empréstimo esteja liquidado, a entidade bancária ou executa a hipoteca ou renegoceia o empréstimo em condições bem mais gravosas para a requerente.
Consta, também, dos autos fotocópia de um ofício enviado pelo Presidente da Junta de Freguesia de C ao Serviço Municipal de Protecção Civil de D, datado de 16/5/07, onde se refere o seguinte: «Vimos solicitar a vossa intervenção urgente nos prédios sitos na Av. … pois estes prédios encontram-se em péssimas condições e em risco de ruir» (cfr. fls.33).
Consta, ainda, dos autos cópia certificada da informação 1…Proc.º 0.., do Serviço Municipal de Protecção Civil da Câmara Municipal de D, sobre o assunto: Imóveis degradados em C – Avenida de …, onde, a dada altura, se refere:
«Por intermédio da denúncia apresentada pelo Sr. Presidente da Junta de Freguesia de C, e dentro do âmbito da inventariação de imóveis degradados do SMPC, o signatário e o Operacional da Zona (Sr. F) deslocaram-se aos imóveis em apreço, sitos na Avenida …, no dia 18 de Maio de 2007, tendo realizado o levantamento da situação.
Os imóveis apresentam sinais de um estado de degradação elevado, onde é notório que colocam em perigo pessoas e bens. O imóvel ….. não cumpre satisfatoriamente a sua função».
Verifica-se, por outro lado, que, tendo sido ordenada a junção aos autos da certidão integral do processo principal, na petição inicial da acção de despejo a autora requereu o despejo por defender que deve ser considerado resolvido o contrato de arrendamento com base nas als.b), d) e i), do nº1, do art.64º, do RAU, ou, se assim não se entender, que deverá aquele contrato ser considerado denunciado para o fim do prazo do arrendamento, com fundamento na necessidade de demolição por degradação do prédio, nos termos da Lei nº2088, de 3/6/1957, com as alterações introduzidas pelo DL nº329-B/2000, de 22/12.
Face à matéria de facto alegada e ao teor daqueles documentos, poder-se-á afirmar que é evidente a improcedência da pretensão da requerente, isto é, que o seguimento do processo redunde em pura perda? A nosso ver, a resposta é negativa. Na verdade, não se pode dizer que a situação invocada pela requerente não seja de molde a justificar a emissão de uma providência provisória, na medida em que a demora no julgamento final é susceptível de criar um estado de perigo que poderá expor a titular do direito a danos graves e dificilmente reparáveis. Note-se que a requerente intentou a acção de despejo em Abril de 2005 e que, decorridos quase 4 anos, ainda nem sequer foi proferida sentença na 1ª instância, tudo levando a crer que, quando a mesma for proferida e transitar em julgado, já terá caducado o alvará de licença administrativa de construção, pois que o mesmo é válido por 16 meses e termina no dia 3/3/2010, tendo o valor de € 19.776,46 (cfr. fls.22 e 22 v.º). Acresce que o invocado financiamento bancário atinge, alegadamente, o valor de € 1.500.000,00, pelo que, a demora do julgamento final pode acarretar prejuízos significativos à requerente, que recebe de renda da requerida a módica quantia de € 6,90 mensais. Refira-se, ainda, que há entidades oficiais que confirmam o elevado estado de degradação do prédio em questão, aludindo mesmo ao risco de ruir e ao perigo para pessoas e bens.
Perante este cenário, não é de excluir, liminarmente, a possibilidade de vir a ser decretada uma medida cautelar, ainda que implique uma provisória antecipação no tempo dos efeitos da decisão a proferir sobre o mérito da causa, designadamente, a medida proposta pela requerente. Estamos, ainda, no âmbito do despacho liminar, onde apenas se trata de formular, ou não, um juízo de manifesta improcedência, sendo que, as circunstâncias do caso não apontam no sentido da formulação de um tal juízo, pelo que, se impõe o seguimento do processo. E só após instrução e discussão posterior será possível, através da aferição dos interesses em presença, concluir se a urgência da situação invocada justifica ou não o decretamento da requerida providência ou de outra que proteja eficazmente os interesses da requerente. Isto sem embargo de, eventualmente, se for caso disso, a concessão da mesma poder vir a ser condicionada à prévia prestação de caução adequada pela requerente, como forma de salvaguardar o ressarcimento de prejuízos causados à requerida, derivados da providência (cfr. o art.390º, do C.P.C.).
Seja como for, o que é certo é que o nosso sistema permite, como já vimos, que, através de providências cautelares, se decretem medidas com efeitos antecipatórios da decisão definitiva, sem que daí resulte a descaracterização do procedimento cautelar, nomeadamente, no que respeita à sua natureza instrumental em relação à acção principal (cfr. o art.383º, do C.P.C.).
Haverá, deste modo, que concluir que o pedido, no caso, não é manifestamente improcedente, não estando, assim, justificado o indeferimento liminar da petição.
Procedem, pois, as conclusões da alegação da recorrente, pelo que, não pode manter-se o despacho recorrido.
3 – Decisão.
Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o despacho apelado, devendo os autos prosseguir seus regulares termos.
Sem custas.  
 
                                   Lisboa , 3 de Março de 2009

                                   Roque Nogueira
                                   Abrantes Geraldes
                                   Tomé Gomes