Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1692/08.8TJLSB-A.L1-7
Relator: MARIA AMÉLIA RIBEIRO
Descritores: COMPETÊNCIA TERRITORIAL
CONSUMIDOR
FIADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário: I. A circunstância de ter sido demandado, como co-ré, uma pessoa singular, não elimina a possibilidade de o A. optar de acordo com art.º 74.º/1, CPC, pois, importa aferir se essa pessoa singular é ou não consumidor no sentido que lhe é conferido na exposição de motivos da Lei n.º 14/2006.
II. Não estará nessa situação a pessoa singular demandada na qualidade de fiadora.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam na Relação de Lisboa

Apelante/A.: Banco
Apelados/RR.: P, Lda. e J
Pretensão sobre recurso: revogação da decisão que declarou os juízos cíveis de Lisboa incompetentes em razão do território.

Foi proferida decisão que declarou os juízos cíveis de Lisboa incompetentes em razão do território, para conhecer da presente acção e a consequente remessa dos autos ao Tribunal de Tavira por ter sido considerado o territorialmente competente.

É contra esta decisão que se insurge o recorrente, formulando as conclusões que a seguir se sintetizam:
1. Por ter considerado competente o Tribunal Judicial da Comarca de Tavira e não os Juízos Cíveis de Lisboa, a decisão recorrida violou os art.ºs 74.º/1 e 87.º/1, CPC.
2. A primeira R. é uma pessoa colectiva, tendo o A. optado pela Comarca de Lisboa ao abrigo dos art.ºs 74.º/1, CPC, na redacção da Lei 14/2006, de 26.04 e 87.º/1, CPC.

A questão a decidir consiste em saber qual o Tribunal territorialmente competente para decidir da questão colocada pelo A..

Com relevo para a decisão, os autos permitem fixar os seguintes factos:
1. O A. intentou a presente acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, nos termos do Decreto Lei nº 269/98, de 1 de Setembro, contra os RR.;
2. Pediu a condenação solidária destes a pagarem-lhe 9.339,84€, acrescidos de 996,53€, de juros vencidos e de 39,86€ de imposto de selo sobre os juros e ainda os juros vincendos à taxa anual de 13,81%, desde de 19.07.2008, até integral pagamento, bem como o imposto de selo à taxa de 4% sobre estes juros;
3. A acção foi instaurada em 18.07.2008;
4. O A. fundamenta a sua pretensão no facto de ter celebrado com a R. um contrato de mutuo, cujo reembolso devia ter sido efectuado através de prestações mensais e sucessivas, que a R. não cumpriu integralmente, tendo o R. assumido o termo de fiança a responsabilidade de fiador solidário da R..
5. A R. tem a sua sede em Tavira e o R. reside em Tavira.


II. 2. Apreciando:
O caso dos autos está regulado pelo art.º 74.º/1 do CPC, na redacção da Lei n.º 14/2006 que contém uma norma especial (foro obrigacional) quanto à fixação da competência territorial, no âmbito das acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações, indemnização pelo não cumprimento, cumprimento defeituoso e resolução do contrato por falta de cumprimento.
Esse desvio da regra geral prevista no art.º 85.º do CPC (foro do R.), traduz-se na possibilidade de “o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o R. seja pessoa colectiva ou, quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o R. tenha domicílio na mesma área metropolitana”.

Por sua vez, o art.º 87.º, n.º1, do CPC dispõe que havendo mais do que um réu na mesma causa, devem ser todos demandados no Tribunal do domicílio do maior número ou, se for igual o número dos diferentes domicílios, pode o autor escolher o de qualquer deles.
Já o n.º 2 do mesmo artigo dispõe que se o autor cumular pedidos para cuja apreciação sejam territorialmente competentes diversos Tribunais, pode escolher qualquer deles para a propositura da acção, salvo se a competência para apreciar algum dos pedidos depender de algum dos elementos de conexão que permitem o conhecimento oficioso da incompetência relativa (ou seja, as situações referidas no art.º 110.º do CPC), caso em que a acção terá de ser proposta nesse Tribunal.
Parece-nos, salvo o devido respeito, que no presente caso não há lugar à aplicação do referido n.º 2 do art.º 87.º do CPC, uma vez que não estamos perante uma situação de cumulação de pedidos, mas sim de um único pedido, contra dois RR., ambos residentes em Tavira.
Assim sendo, não há que falar na competência de tribunais diversos para conhecer de uma inexistente cumulação de pedidos, não se verificando, pois, a situação prevista na segunda parte do n.º 2 do art.º 87.º do CPC.

No caso que nos ocupa, o A. demanda dois RR.: uma pessoa colectiva e uma pessoa singular.

É certo que, como se alcança da exposição de motivos transcrita em nota de rodapé, com a alteração legislativa introduzida pela Lei 14/2006, a mens legislatoris visou primordialmente a salvaguarda da defesa do consumidor[1],[2], numa perspectiva de aproximação da justiça do cidadão.
Nesta linha de raciocínio a protecção do R. consumidor não pode ficar dependente da simples contingência de o mesmo ser demandado isoladamente ou em conjunto com outro – que tenha a natureza de ente colectivo. Os seus direitos terão necessariamente que ser salvaguardados incondicionalmente, em qualquer uma das circunstâncias referidas[3].
Porém, da circunstância de ter sido demandado, como co-ré, uma pessoa singular, não elimina a possibilidade de o A. optar de acordo com art.º 74.º/1, CPC. Importa aferir, antes de mais, se o R. pessoa singular é ou não consumidor no sentido que lhe é conferido pela exposição de motivos acima transcrita.

No caso dos autos, o co-R. J foi demandado na qualidade de fiador. Quer isto dizer, então, que quem adquiriu o bem cujo pagamento foi financiado pelo mútuo a que os autos aludem foi a R. sociedade, sendo o R. J mero garante do cumprimento da obrigação que aquela assumiu perante o autor.

Na verdade, muito embora a noção de consumidor seja de contornos variáveis e indefinidos, quer na legislação interna e europeia, quer no plano doutrinário, parece, todavia, consensual que: “todos os conceitos de consumidor integram um elemento teleológico. As fórmulas mais comuns oscilam entre a indicação da finalidade do uso dos bens, enunciada de forma positiva (uso pessoal, privado, familiar, doméstico) […] ou negativa (uso não profissional, finalidade estranha ao seu comércio ou profissão […], e a (equivalente) qualificação do consumidor como «destinatário final» (em contraste com o consumidor intermédio)[4].
Verificamos, assim, que o fiador não tem a qualidade de consumidor a que alude a referida exposição de motivos. Por isso mesmo, estamos perante o pleno funcionamento da excepção contemplada no art.º 74.º/1 do CPC, a qual autoriza a opção feita pelo autor.

III. Pelo exposto e decidindo, de harmonia com as disposições legais citadas, concedendo provimento ao recurso, revoga-se o despacho recorrido, determinando-se a sua substituição pela decisão em falta.
Custas: pelo vencido afinal.

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2010

Maria Amélia Ribeiro
Graça Amaral
Ana Resende
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[1] Vide, a este respeito, a “Exposição de motivos” da Proposta de Lei nº 47/X (Diário da Assembleia da República, II Série - A, nº 69, de 15 de Dezembro de 2005, págs. 11-15), proposta que esteve na base daquele diploma legal, onde se pode ler:
“1 – O Programa do XVII Governo Constitucional assumiu como prio­ridade a melhoria da resposta judicial, a consubstanciar, designadamente, por medidas de descongestionamento processual eficazes e pela gestão racional dos recursos humanos e materiais do sistema judicial.
A necessidade de libertar os meios judiciais, magistrados e oficiais de justiça para a protecção de bens jurídicos que efectivamente mereçam a tutela judicial, e devolvendo os tribunais àquela que deve ser a sua função, constitui um dos objectivos da Resolução do Conselho de Ministros n.º 100/2005, de 30 de Maio de 2005, que, aprovando um Plano de Acção para o Descongestiona­mento dos Tribunais, previu, entre outras medidas, a «introdução da regra de competência territorial do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações, sem prejuízo das especificidades da litigância característica das grandes Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto.
A adopção desta medida assenta na constatação de que grande parte da litigância cível se concentra nos principais centros urbanos de Lisboa e do Porto, onde se situam as sedes dos litigantes de massa, isto é, das empresas que, com vista à recuperação dos seus créditos provenientes de situações de incumprimento contratual, recorrem aos tribunais de forma massiva e geografi­camente concentrada.
Ao introduzir a regra da competência territorial do tribunal da comarca do demandado para este tipo de acções reforça‑se o valor constitucional da defesa do consumidor – porquanto se aproxima a justiça do cidadão, permi­tindo‑lhe um pleno exercício dos seus direitos em juízo – e obtém‑se um maior equilíbrio da distribuição territorial da litigância cível […]
O demandante poderá, no entanto, optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o demandado seja pessoa colectiva ou quando, situando‑se o domicílio do credor na Área Metropolitana de Lisboa ou do Porto, o demandado tenha domicílio nessa mesma área. No primeiro caso, a excepção justifica‑se por estar ausente o referido valor constitucional de pro­tecção do consumidor; no segundo, por se entender que este intervém com menor intensidade. Com efeito, nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto não se afigura especialmente oneroso que o réu ou executado singular continue a poder ser demandado em qualquer das demais comarcas da área metropoli­tana em que reside, nem se descortinam especiais necessidades de redistribui­ção do volume processual hoje verificado em cada uma das respectivas comar­cas.”, Apud Ac. RL, 22.04.2008, Rel. Des. Luís Espírito Santo, in www.dgsi.pt/jtrl, citado, aliás, na decisão recorrida.
[2] Valor, aliás, constitucionalmente consagrado no art.º 60.º da Constituição
[3] Vd. o citado Ac. RL.
[4] Almeida, Carlos Ferreira de (2005), Direito do Consumo, Coimbra, Almedina, p. 32-33.