Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2340/2002-7
Relator: PIMENTEL MARCOS
Descritores: UNIÃO DE FACTO
CENTRO NACIONAL DE PENSÕES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/10/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Sumário: O direito à pensão da pensão de sobrevivência, nos termos do art. 8º do Dec. Lei nº 322/90, de 18-10, e do Dec. Reg. nº 1/94, de 18-1, depende da prova (a fazer pelo requerente nos termos do art. 342º, nº 1, do CC) de que se verificam os seguintes requisitos exigidos pelo art. 2020º:
a) A vivência de duas pessoas de sexo diferente em condições análogas às dos cônjuges (união de facto) durante mais de dois anos, contados até à data da morte do beneficiário das pensões sociais;
b) Ser essa pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens;
c) Que o requerente careça de alimentos;
d) Que este não possa obter esses alimentos das pessoas referidas nas alíneas a) a d) do art. 2009º do CC.
Independentemente de a herança ter ou não bens, as pessoas que estejam nas condições referidas no art. 2020º do CC têm direito às prestações de sobrevivência por morte do respectivo beneficiário.
À face do art. 36º, nº 1, da CRP, não existe equiparação entre a união de facto e o casamento.
Não viola o princípio constitucional da igualdade o nº 1 do art. 8º do Dec. Lei nº 322/90, interpretado no sentido de o requerente das pensões de sobrevivência ter de provar que não tem possibilidade de obter os alimentos de que carece das pessoas referidas nas als. a) a d) do art. 2009º do CC.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.

M.... intentou a presente acção declarativa com processo ordinário
 
contra

CENTRO NACIONAL DE PENSÕES,

pedindo que lhe fosse reconhecido o direito a receber a pensão de sobrevivência, nos termos do Decreto Regulamentar nº  1/94, de 18 de Janeiro, por inexistência de bens da herança do falecido “M”, com quem diz ter vivido em “união de facto” durante cerca de 14 anos.

Alega, em síntese, que:
viveu em união de facto desde Maio de 1977 até à data da sua morte, em 6/6/91, com o dito “M”, que era beneficiário da Segurança Social, o qual apenas deixou bens de reduzido valor;
após a morte daquele não dispõe de qualquer salário ou rendimento para sobreviver;
não dispõe de bens ou rendimentos que lhe permitam fazer face às despesas  de alimentação vestuário e transportes;
suporta mensalmente 30.000$00 em alimentação e 10.000$00 em vestuário, medicamentos e transportes;
a mãe, irmãos e filho não lhe podem prestar alimentos.

A Autora pediu ainda a concessão do benefício de apoio judiciário, o qual lhe foi concedido.

O Réu contestou, alegando desconhecer os factos alegados na petição inicial e dizendo que a acção deve ser julgada de acordo com a prova produzida.

Seleccionou-se a matéria de facto assente e a que constitui a base instrutória.

Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento.

Seguidamente foi proferida a competente sentença, absolvendo-se  a ré do pedido “por falta de prova de requisitos essenciais para se declarar reconhecida a qualidade de titular das prestações por morte no âmbito dos regimes da segurança social”.

Dela apelou a autora, formulando as seguintes conclusões, em síntese:
1. A recorrente pediu o benefício do apoio judiciário, com dispensa total de preparos e pagamento de custas, alegando não ter meios para custear as despesas do pleito;
2. Tal benefício foi-lhe concedido, uma vez que o tribunal concluiu pela insuficiência económica da requerente;
3. Tal concessão é por si só suficiente para caracterizar a situação de necessidade de alimentos para efeitos de obtenção da pensão;
4. O artigo 8º, nº 1 do DL nº 322/90 de 18 de Outubro não determina em si como pressuposto da atribuição da pensão de sobrevivência que a pessoa que vivia em união de facto não possa obter alimentos das pessoas a que se alude nas al.s a ) a d) do artigo 2009º do Código Civil.
5. O termo “situação” aí aplicado tem o significado de estado do requerente da pensão de sobrevivência, e esse, nos termos do nº 1 do artigo 2020º do Código Civil, é o de viver há mais de dois anos em condições análogas à dos conjugues, com pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens.
6. E assim sendo, a remissão que é feita no referido artigo 8º, nº 1 para a disposição do nº 1 do artigo 2020º do Código Civil, é tão só para a 1ª parte deste preceito sendo que a questão de se  poder ou não poder obter alimentos das pessoas referidas nas alíneas a) a d) do artigo 2009º do código Civil, nada tem a ver com a situação ou estado do requerente de pensão.
7. Até porque os conceitos de alimentos e pensão de sobrevivência não são sobreponíveis ou equiparáveis.
8. O legislador visou, ao tornar extensivo às pessoas que se encontrem numa situação de união de facto o direito à pensões de sobrevivência, criar uma situação de igualdade relativamente aos cônjuges, pelo que,
9. A vingar a tese perfilhada na sentença, estaria criada uma situação de desigualdade, já que não se exige como pressuposto para a atribuição da pensão de sobrevivência a ex-cônjuges que estes não possam obter alimentos dos parentes a que se alude nas als. a) a d) do artigo 2009º do CC.
10. Desta forma, sempre o preceituado no nº 1 do artigo 8º do DL 322/90, de 18 de Outubro seria inconstitucional por violação do disposto nos artigos 13º, nºs. 1 e 2, 9º al. d) e 63º, nºs. 1 e 3 da CRP.

O apelado pede a confirmação da sentença.
**
Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.

Da 1ª instância vêm provados os seguintes factos:
No dia 6 de Junho de 1991 faleceu “M” no estado de solteiro – cfr. certidão do assento de óbito de fls. 42 (A).
O dito “M” era beneficiário do R. com o nº  05/097044187 (B).
A A. é solteira – cfr. certidão do assento de nascimento de fls. 10 (C).
A A. e o “M” tiveram um filho, de nome “L”, nascido a 21 de Julho de 1977 – cfr. certidão do assento de nascimento de fls. 11 (D).
A A. é filha de J...e de MR.. – cfr. a dita certidão de fls. 10 (E).
Em 22 de Dezembro de 1992 faleceu o pai da A. - cfr. averbamento constante da certidão do assento de nascimento da mãe da A. a fls. 43 (F).
São irmãos da A., ...........– cfr.- certidões dos respectivos assentos de nascimento de fls. 45 a 51 (G).
Em Maio de 1977, a A. mudou-se com todos os seus haveres e pertences para a casa habitada pelo “M”, sita no lugar d....., (1º).
Desde essa data passaram a partilhar a mesma cama (2º).
A comer à mesma mesa (3º).
Contribuindo ambos para as despesas domésticas (4º).
Passeando juntos (5º).
Assistindo-se mutuamente na doença (6º).
O que era conhecido de toda a gente (7º).
Tal ligação entre a A. e o “M” durou ininterruptamente desde Maio de 1977 até à data da morte deste (8º).
A A. gasta mensalmente, em alimentação, Esc. 30.000$00 (10º).
E Esc. 10.000$00 em vestuário, medicamentos e transportes (11º).

O DIEITO.
Questões da decidir:
1- Se a autora viveu em “união de facto” com o falecido “M”;
2- Quais os requisitos necessários para a atribuição da pensão de sobrevivência;
3- Se se encontra provada a insuficiência económica da autora para efeitos de obtenção da requerida pensão de sobrevivência (necessidade de alimentos).
4- Se o nº 1 do artigo 8º do DL 322/90, de 18.10, na interpretação que lhe foi dada em 1ª instância (que a requerente tenha que provar que não tem possibilidade de obter os alimentos de que carece, nem do seu cônjuge ou ex-cônjuge, nem dos seus descendentes, ascendentes ou irmãos) é inconstitucional, por violação dos artigos 13º, nºs. 1 e 2, 9º al. d) e 63º, nºs. 1 e 3 da CRP.
I
Como estabelece o artº 8º DL 322/90, de 18.10, "O direito às prestações previstas neste diploma e o respectivo regime jurídico são tornados extensivos às pessoas que se encontrem na situação prevista no nº 1 do artigo 2020º do Código Civil " (1) e, "O processo de prova das situações a que se refere o nº 1, bem como a definição das condições de atribuição das prestações, consta de decreto regulamentar" (nº 2).
Portanto, segundo o nº 1 deste artigo, o direito às prestações previstas neste diploma legal é tornado extensivo às pessoas que se encontrem na situação prevista no nº 1 do artigo 2020º do CC (sendo deste diploma as disposições a citar, sem indicação doutra proveniência).
O Decreto Regulamentar referido é o nº 1/94 de 18 de Janeiro que define o regime de acesso às prestações por morte, no âmbito dos regimes de segurança social, previstas naquele decreto-lei, por parte das pessoas que se encontram na situação de união de facto.
"Tem direito às referidas prestações a pessoa que, no momento da morte do beneficiário não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, vivia com ele há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges " (artº 2º do Dec.  Reg.).
"A atribuição das prestações às pessoas referidas no artº 2º fica dependente de sentença judicial que lhes reconheça o direito a alimentos da herança do falecido nos termos do disposto no artº 2020º do Código Civil " (artº 3º, nº 1 do diploma atrás referido).
"No caso de não ser reconhecido tal direito, com fundamento na inexistência ou insuficiência de bens da herança, o direito às prestações depende do reconhecimento judicial da qualidade de titular daquelas, obtido mediante acção declarativa interposta, com essa finalidade, contra a instituição de segurança social competente para a atribuição das mesmas prestações " (nº 2 do artº 3º do mesmo diploma legal).
Preceitua o artº 2020º, nº 1 que: "Aquele que, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, vivia com ele há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, tem direito a exigir alimentos da herança do falecido, se os não puder obter nos termos das alíneas a) a d) do artº  2009º .

Infere-se da conjunção das disposições legais citadas que são pressuposto da obtenção da pensão:

a) a vivência de duas pessoas de sexo diferente em condições análogas às dos cônjuges (união de facto) durante mais de dois anos, contados desde a data da morte do beneficiário das pensões sociais;
b) ser essa pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens;
c) que o requerente careça de alimentos;
d) que este não possa obter esses alimentos das pessoas referidas nas alíneas a) a d) do artº 2009º.

O direito à pensão depende, pois, da prova (a fazer pelo requerente nos termos do artigo 342º, nº 1) de que se verificam os requisitos exigidos pelo artigo 2020º citado.
Terá, pois, o autor que alegar e provar a existência da união de facto por mais de dois anos, a carência efectiva de alimentos e a impossibilidade de os obter das pessoas referidas no artigo 2009º do CC.

Portanto, um dos requisitos necessários para que o membro sobrevivo de uma união de facto seja equiparado ao cônjuge, para efeitos de atribuição das prestações sociais (pensões de sobrevivência), é que este necessite efectivamente de alimentos. Doutro modo não se compreenderia a remissão para o artº 2009º, o que pressupõe, necessariamente, que o requerente não possua meios de fortuna próprios ou que, através do trabalho, não consiga prover à sua subsistência, nos termos em que a define o artº 2003º.
Outro dos requisitos é que este não possa obter esses alimentos das pessoas referidas nas alíneas a) a d) do artº 2009º.

Tendo em consideração a matéria de facto assente, não há qualquer dúvida de que se encontram verificados os pressupostos acima referidos na alíneas a) e b), pelo que as questões a decidir (nesta parte) são apenas as de saber se a A. carece efectivamente de alimentos (ou seja, se os factos alegados como fundamento da acção configuram uma situação de necessidade de alimentos, face ao preceituado no nº 1 do artº 2020º) e se esta não pode obter esses mesmos alimentos das pessoas referidas nas alíneas a) a d) do artº 2009º.

II
"Por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário" (artº 2003º)
O direito a alimentos depende, desde logo, da necessidade de quem houver de recebê-los (artº 2004 nº 1). E “na fixação dos alimentos atender-se-á, outrossim, à possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência”(nº 2 do mesmo artigo).
Sobre a necessidade de alimentos alegou a autora, em síntese:
que após a morte do "M" não dispõe de qualquer salário ou rendimento para sobreviver;
que não dispões de bens ou rendimentos que lhe permitam fazer face ás despesas  de alimentação vestuário e transportes;
que suporta mensalmente 30.000$00 em alimentação e 10.000$00 em vestuário, medicamentos e transportes;

A verdade é que apenas ficou provado que suporta mensalmente 30.000$00 em alimentação e 10.000$00 em vestuário, medicamentos e transportes. Trata-se, naturalmente, de despesas normais, aliás, bem módicas.
Não se provou, designadamente, a matéria do quesito 10, ou seja que após a morte do “M” a requerente não dispõe de qualquer salário ou rendimento para sobreviver.
Quer isto dizer que não ficou provada a falta, por parte da autora, de rendimentos, bens ou emprego.
Tratando-se de um facto constitutivo do seu alegado direito, competia à autora fazer a respectiva prova (artº 342º, nº 1 do CC).
Conclui-se, pois, que compete à requerente alegar e provar a necessidade efectiva de alimentos, ou seja, é condição necessária à concessão da pensão de sobrevivência a alegação e prova a fazer pelo requerente da efectiva necessidade alimentos.

Entretanto alega a apelante que:
pediu o benefício do apoio judiciário, com dispensa total de preparos e pagamento de custas, por não ter meios para custear as despesas do pleito;
tal benefício foi-lhe concedido, uma vez que o tribunal concluiu pela sua insuficiência económica;
Essa concessão é por si só suficiente para caracterizar a situação de necessidade de alimentos para efeitos da obtenção da pensão.
Salvo melhor opinião, os factos alegados em sede do pedido do apoio judiciário não podem, por si sós, servir de fundamento para caracterizar a situação da necessidade de alimentos para efeitos de obtenção da requerida pensão de sobrevivência.
A própria apelante alegou na petição inicial que a insuficiência económica (para efeitos do apoio judiciário) se presume nos termos do artigo 20º, nº 1 al. e) do DL  387-A/87, de 20.12. E na verdade, para os efeitos do apoio judiciário goza da presunção de insuficiência económica o requerente de alimentos.
Todavia, tal presunção não se verifica para os efeitos agora em causa. Como vimos, trata-se de um facto constitutivo do alegado direito da requerente, e, por isso, deve ser provado pela autora, pois a carência de alimentos não se presume.
Por outro lado, a prova de insuficiência económica para efeitos do apoio judiciário foi feita apenas com base num simples ofício da GNR, não sujeito ao princípio do contraditório.
Portanto, não se encontra demonstrada a alegada insuficiência económica, ou seja, que a requerente carece de alimentos.

III
Quanto ao outro requisito (impossibilidade de obtenção dos alimentos dos familiares) a autora nada provou tendente a demonstrar que não pode obter alimentos das pessoas vinculadas à obrigação de lhos prestar nos termos do artº 2009º, sendo certo que, face ao preceituado no n.º 1 do artº 2020º, o direito a exigir alimentos da herança só existe se o beneficiário deles carecer e não os puder obter nos termos das alíneas a) a d) do artº 2009º, ou seja, se não existirem parentes, de entre os ali enumerados, com capacidade de lhos prestar. E a autora tem, pelo menos, um filho, a mãe e 7 irmãos.
Ora, a mãe, o filho e os irmãos são pessoas potencialmente vinculadas à prestação de alimentos e relativamente a elas nada ficou apurado no que respeita à impossibilidade de cumprirem tal obrigação (artº 2009º).
Aliás, relativamente à pessoas que lhe poderiam prestar alimentos, a autora apenas alegara o seguinte:
que é solteira;
que tem mãe e irmãos vivos, mas que nenhum deles possui rendimentos suficientes que lhes permitam  prestar alimentos à autora;
que tem um filho de 17 anos sem bens ou rendimentos.
E apenas se encontra provado que ela é solteira e o aludido parentesco.
E em relação às condições económicas do “de cuius” nada ficou provado.

"A necessidade do alimentado refere-se aos meios de subsistência estritamente necessários para viver e não para manter o padrão de vida que o requerente e o falecido mantiveram durante a "união de facto" (A. Varela, in CC em anotação ao artº 2020º). No mesmo sentido pode ver-se o ac. do STJ de 23.09.98 (BMJ 479-621).
Como resulta do artigo 2015º, na vigência da sociedade conjugal, os cônjuges são reciprocamente obrigados à prestação de alimentos, nos termos do artigo 1675º. Trata-se, contudo, de situações diferentes (sendo nos casos a que se refere o artigo 2020º aplicável o disposto nos artºs. 2003º e 2004º).
As relações matrimoniais têm um conteúdo muito diferente. Às uniões de facto foram atribuídos alguns efeitos jurídicos, mas não foram equiparadas à sociedade conjugal. Uma união de facto não é uma relação familiar, tal como o direito a entende.
Não deve, portanto, confundir-se a obrigação alimentar que impende sobre ambos os cônjuges com o dever de alimentos a que se referem os artigos 2003º e seguintes. Em relação àqueles, tal dever (recíproco) resulta directamente do casamento - "contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida..." (artº 1577º)- enquanto que a obrigação de alimentos a que se referem aquelas disposições legais resulta de convenção das partes ou é imposta por decisão judicial.
Assim, não pode concluir-se que a autora não tem possibilidades de, por si só, prover ao seu sustento, ou seja, que careça de alimentos, nem que a mesma não os possa obter dos seus ascendentes, descendentes ou irmãos.

Mas ainda que se entenda que não tem a requerente o ónus de provar este segundo requisito (que não pode obter os alimentos das pessoas referidas nas alíneas a) a d) do artº 2009º) a acção sempre teria que improceder, face à referida falta de prova da necessidade dos alimentos.
IV
Todavia, diz a apelante, em síntese, o que consta das conclusões 4 a 10 que se dão por reproduzidas.
Não seria, assim, necessária a prova de que a requerente não pode obter alimentos das pessoas a que aludem as alíneas a) a d) do artigo 2009º do CC. Além disso, o legislador, ao tornar extensivo às pessoas que se encontrem numa situação de união de facto o direito às pensões de sobrevivência, teria pretendido criar uma situação de igualdade relativamente aos cônjuges. Finalmente, a não ser assim entendido, sempre o preceituado no nº 1 do artigo 8º do DL 322/90, de 18 de Outubro, seria inconstitucional por violação do disposto nos artigos 13º, nºs. 1 e 2, 9º al. d) e 63º, nºs. 1 e 3 da CRP.

Já acima se disse quais os requisitos necessários para a concessão da pensão de sobrevivência requerida, pelo que fácil é de concluir que não assiste razão à apelante, salvo sempre o devido respeito por opinião contrária.

É certo que, sobretudo, o artigo 3º do Dec. Reg. citado coloca questões de difícil interpretação. Todavia, o seu número 1 parece indicar neste sentido: o requerente tem direito às pensões se lhe for reconhecido o direito a alimentos da herança; e é assim porque existem bens (da herança). E caso não lhe seja reconhecido esse direito, com fundamento na inexistência ou na insuficiência de bens, mesmo assim poderá obter a pensão (nº2)
Efectivamente, de acordo com o nº 3 do regulamento, (que determina as condições em que as pensões devem ser concedidas) a atribuição das prestações fica dependente  de sentença judicial que reconheça o direito a alimentos da herança do falecido, nos termos do disposto no artº 2020º do Código Civil " ( nº 1).
Não sendo reconhecido tal direito, com fundamento na inexistência ou insuficiência de bens da herança, o direito às prestações depende do reconhecimento judicial da qualidade de titular daquelas, obtido mediante acção declarativa a interpor, com essa finalidade, contra a instituição de segurança social (nº 2).
E daí parece resultar também que se o direito a alimentos for recusado com outros fundamentos é que não terá o requerente direito às prestações por morte do “de cuius”.
Por sua vez estabelece o artigo 5º que o requerimento das prestações deve ser acompanhado de certidão da sentença judicial que fixe o direito a alimentos ou declare a qualidade de titular das prestações por morte.
Portanto, o requerente das prestações deve obter uma destas duas certidões, que é como quem diz, tem de obter uma de duas sentenças:
a) a que fixe o direito alimentos nos termos do artigo 2020º;
b) a que lhe declare a qualidade de titular das prestações por morte ( sendo este direito obtido mediante acção declarativa a interpor, com essa finalidade, contra a instituição de segurança).

E, por isso, certa jurisprudência defendeu a necessidade da propositura de duas acções: uma contra a herança do falecido, a fim de ser reconhecido o direito a alimentos; outra contra o CNP para reconhecimento da qualidade de titular das prestações.
De qualquer forma parece que apenas se justificaria esta segunda acção quando, naquela, não fosse reconhecido o direito a alimentos, com fundamento na inexistência ou insuficiência de bens da herança. Sendo aquela julgada procedente, estava o requerente munido da sentença a que se refere a 1ª parte do citado artigo 5º.
Mas no caso de não ser reconhecido o direito a alimentos, com aqueles fundamentos, o requerente é que teria o ónus de intentar nova acção para reconhecimento da qualidade de titular das prestações ( sendo este direito obtido mediante acção declarativa a interpor, com a finalidade de ser reconhecida a qualidade de titular das prestações por morte).
É, porém, hoje jurisprudência dominante a que defende que em caso de inexistência ou insuficiência de bens da herança, o interessado em ver reconhecido judicialmente o seu direito a pensão de sobrevivência apenas tem que intentar a competente acção contra a instituição de S.S., não sendo, por isso, necessário propor previamente acção de alimentos contra a herança.
Portanto, não é necessário que a herança não tenha bens para que seja reconhecido à apelante o invocado direito.
Quer isto dizer que, independentemente de a herança ter ou não bens, as pessoas que estejam nas condições referidas no artigo 2020º têm direito às prestações por morte do beneficiário.
Não sendo reconhecido tal direito, com fundamento na inexistência ou insuficiência de bens da herança, o direito às prestações depende do reconhecimento judicial da qualidade de titular daquelas, obtido mediante acção declarativa a interpor, com essa finalidade, contra a instituição de segurança social.
De qualquer forma, repete-se, torna-se necessário que nesta acção se verifiquem os aludidos requisitos, nomeadamente que o requerente careça de alimentos. É que aquele artigo 8º, ao remeter para a situação prevista no artigo 2020º, nº 1, pretende atribuir o direito às prestações a quem for titular do direito a alimentos da herança, o que quer dizer que se exige também a verificação cumulativa dos aludidos requisitos.
Equipara-se, assim, a situação de quem tem direito às prestações por morte à situação de quem tem direito a alimentos da herança, o que significa que, provado por sentença judicial o direito a alimentos da herança, provado está o direito àquelas prestações.
E para tanto não tem qualquer interesse que a requerente tenha ou não pedido que lhe fosse fixado o direito a alimentos. A concessão da pensão de sobrevivência requerida é que depende de sentença que reconheça esse direito. E o que a apelante pretende é justamente que lhe seja reconhecido o direito à pensão de sobrevivência em virtude do falecimento do referido "M".

V
Vejamos melhor a invocada inconstitucionalidade.
Diz a apelante:
O legislador visou, ao tornar extensivo às pessoas que se encontrem numa situação de união de facto o direito à pensões de sobrevivência, criar uma situação de igualdade relativamente aos cônjuges, pelo que, a vingar a tese perfilhada na sentença, estaria criada uma situação de desigualdade, já que não se exige como pressuposto para a atribuição da pensão de sobrevivência a ex-cônjuges que estes não possam obter alimentos dos parentes a que se alude nas als. a) a d) do artigo 2009º do CC.
Desta forma, sempre o preceituado no nº 1 do artigo 8º do DL 322/90, de 18 de Outubro seria inconstitucional por violação do disposto nos artigos 13º, nºs. 1 e 2, 9º al. d) e 63º, nºs. 1 e 3 da CRP.
Parece-nos, não haver grandes dúvidas de que uma “união de facto” não pode ser considerada como uma relação familiar, pelo menos para a generalidade dos efeitos. E o artigo 1576º não as inclui entre as “fontes das relações jurídicas familiares”.
Todavia, como já se disse, não existe qualquer equiparação legal entre as uniões de facto e as pessoas unidas pelo casamento.
Entre casados existe a obrigação recíproca de prestar alimentos, o que não sucede nas simples uniões de facto. Em relação a estas é que o legislador tornou extensivos determinados direitos que antes não tinham. Mas se bem repararmos não se impôs qualquer dever ou obrigação. Já em relação aos cônjuges existe a obrigação de prestar alimentos mesmo em caso de separação de facto não imputável a qualquer deles (artº 1675º, nº 2). Além disso, não existem para os “unidos de facto” os deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência que o artigo 1672º impões aos cônjuges.
O artigo 2020º foi introduzido pelo DL 496/77, de 25.11, o qual operou uma profunda alteração ao CC, sobretudo na parte relativa ao Direito da Família. E como consta do seu preâmbulo, o próprio legislador reconheceu que se foi intencionalmente “pouco arrojado” nesta matéria porque não se quis “estimular as uniões de facto”, não indo “além de um esboço de protecção julgado ética e socialmente justificado ao companheiro que resta de uma união de facto que tenha revelado um mínimo de durabilidade, estabilidade e aparência conjugal”, o que confirma ideia de que não é legítimo igualizar, sob a perspectiva da lei, e para os efeitos em causa, a situação dos cônjuges ao dos simples “unidos de facto”, como se refere no citado acórdão do STJ de 23.09.98.
Sobre estas questões se debruçou, de resto, a douta sentença recorrida, citando vária doutrina e jurisprudência, mas concluindo em relação às uniões de facto pela forma seguinte: tem-se, pois, por certo, não estarmos diante de uma relação jurídica familiar, à face do preceituado no art. 1576º, do CC, sendo que, todavia, verificando a disposição constitucional portuguesa que se refere a esta matéria (art. 36º, nº 1, CRP), se constata que aí se distinguem duas noções, dois conceitos : constituir família e contrair casamento..

Mas sempre se dirá que não se encontra violada qualquer das disposições  da CRP citadas.
Nos termos do nº 1 do artigo 13º da CRP todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. (E o seu nº 2 determina que ninguém pode ser ... prejudicado pelas razões nele referidas, mas que não dizem respeito ao caso em apreço).
Mas tal não significa que todos os cidadãos devam ser tratados da mesma forma; porém todos devem ser tratados em conformidade com a lei, sendo esta aplicável a todos igualmente, assim se proibindo o arbítrio e a criação de desigualdades sem  justificação aceitável.
No entanto, o legislador pode (e deve) estabelecer distinções de tratamento, desde que para tanto exista fundamento material bastante.
O princípio da igualdade pressupõe mesmo que seja tratado de forma igual o que é igual e de forma diferente o que é diferente.
A este respeito escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira na citada obra em anotação ao artigo 13º: “O princípio da igualdade tem que ver fundamentalmente com igual posição em matéria de direitos e deveres”. “Essencialmente ele consiste em duas coisas: proibição de privilégios ou benefícios no gozo  de qualquer direito ou na isenção de qualquer dever; proibição de prejuízo ou detrimento na privação de qualquer direito ou na imposição de qualquer dever”.
Mais referem que o princípio da igualdade se traduz na proibição do arbítrio. “Nesta perspectiva, o princípio da igualdade exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes”. “Só quando os limites externos da «discricionariedade legislativa» são violados, isto é, quando a medida legislativa não tem adequado suporte material, é que existe uma «infracção» do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio”.

Por isso importa averiguar se se justifica que as simples uniões de facto sejam tratadas em igualdade com as pessoas unidas pelo casamento.
Nos termos do nº 1 do artº 36º da CRP “todos têm direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade”.
Sobre esta enigmática[1] norma se debruçou o Prof. Pereira Coelho na RLJ 119-372 e s.s. (embora já em 1986)
Nela se refere nomeadamente:
que o Prof. Castro Mendes defendeu que, embora aparentemente aí estejam previstos dois direitos (“constituir família” e “contrair casamento”) a verdade é que «os dois direitos reduzem-se a um só e a ordem da enunciação dos aspectos do seu objecto é infeliz, pois parte do seu efeito – “constituir família”- para a causa – “contrair casamento”».
que interpretação completamente diferente fazem Gomes Canotilho e Vital Moreira, os quais parecem defender que aquela distinção entre “constituir família” e “contrair casamento” visaria fundamentalmente a união de facto[2].
E O prof. Pereira Coelho, não aceitando qualquer destas interpretações, conclui que não é possível retirar-se desse texto constitucional argumentos favoráveis à qualificação de uma união de facto como uma relação familiar (pag. 375)
E como referem Pires de Lima e A. Varela, em anotação ao artº 2020º (vol. V, 622), «seria puramente absurdo admitir que a uniões precárias, inconsistentes, sem nenhuma força vinculativa, assentes na areia movediça do pleno arbítrio das partes ou das meras situações de facto, a Constituição viesse, alguns passos mais adiante, no artigo 67º, chamar “elemento fundamental da sociedade”, com direito à protecção da sociedade e do Estado».
Mas seja qual for a interpretação a dar àquela disposição constitucional, a verdade é que não se equipara a simples união de facto à família resultante do casamento, muito concretamente para os efeitos que aqui estão em causa e só estes agora nos interessam.

Já acima vimos quais os direitos e deveres dos cônjuges. Mas outras obrigações se poderiam apontar, nomeadamente no que diz respeito às dívidas da responsabilidade de ambos (artº 1691º). E isso não se verifica nas uniões de facto, pois, ainda que se trate de uma relação more uxorio de muitos anos (e a lei só exige dois para a atribuição de determinados direitos) pode a mesma terminar a qualquer momento, sem necessidade de qualquer formalismo ou invocação de qualquer justificação (e se a lei atribui às uniões de facto alguns direitos, nenhum deveres lhes impõe, como resulta, nomeadamente, da Lei 7/2001, de 11.05)
Já atrás fizemos referência ao artigo 67º da CRP. E o seu nº 1 estabelece o seguinte: “a família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros”.
Apesar de não se considerar a “união de facto” uma relação familiar, nos termos referidos, tal não significa que o legislador não possa conceder-lhe certa protecção (como, aliás, tem concedido nos últimos anos, designadamente no que concerne aos direitos relativos à Segurança Social - basta ver a publicação das leis 135/99, de 28.08 , 6/2001, de 11.05 e 7/2001, de 11.05 em datas posteriores às citadas obras doutrinárias). Todavia também não lhe impõe que o faça... e muito menos em situação de paridade com o casamento.
Por isso não se pode afirmar, como o faz a apelante, que o legislador visou com o artigo 2002º.... criar uma situação de igualdade entre os cônjuges unidos pelo casamento e os “unidos de facto”.  Com efeito, se assim fosse, parece-nos que o teria dito expressamente e, então, bastaria a prova da “união” por dois anos, o que, manifestamente, não se verifica. Tenha-se em consideração que esta questão foi muito debatida aquando da aprovação daquelas duas leis relativas à “protecção da uniões de facto”.
De resto, o artigo 6º, nº 1 da Lei 7/2001 determina que beneficia dos direitos estipulados nas alíneas e), f) e g) do artigo 3º (onde se inclui precisamente o direito à protecção pela aplicação do regime geral da Segurança Social) quem reunir as condições constantes no artigo 2020º.

E parece evidente que não há qualquer violação dos artigos 9º e 63º da CRP, os quais nem sequer têm que ver directamente com a questão sub judicio.
VI
E a lei relativa às uniões de facto não estabeleceu qualquer princípio da concessão automática da pensão de sobrevivência.
Como resulta do preceituado no artigo 6º da Lei 135/99, de 28.08.99, e da Lei 7/2001, de 11.05.01, que a revogou, foram esclarecidas algumas dúvidas que existiam, e consagradas as soluções que se vem defendendo.
Aí se remete também para a aplicação do artigo 2020º e se consagra a exigência de uma acção judicial a correr termos perante os tribunais cíveis.
Com efeito, estabelece o seu nº 2 que em caso de inexistência ou insuficiência de bens da herança, ou nos casos referidos no número 1, o direito às prestações efectiva-se mediante acção proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição.
Como quer que seja, há que reconhecer que este tipo de relacionamento  tem vindo a sofrer uma significativa alteração ao nível da maneira como é encarado, quer socialmente, quer pelo legislador (veja-se o Preâmbulo do Dec. Reg. 1/94, onde se afirma a relevância das uniões de facto “de alguma forma equiparáveis, para efeitos sociais, à sociedade conjugal”).
A verdade é que aquelas têm apenas os direitos que a lei lhes concede.

**
Por todo o exposto acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custa pela apelante (sem prejuízo do apoio judiciário).

Lisboa, 10.02.2004.

Pimentel Marcos
Roque Nogueira
Santos Martins

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[1] Assim tem sido designada em várias circunstâncias.
[2] CRP Anotada, (2ª edição).