Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6572/09.7TBOER.L1-8
Relator: CARLOS MARINHO
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
REQUISITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. As providências cautelares correspondem a encadeados de actos processuais que não visam esclarecer e solucionar definitivamente conflitos de direitos privados mas, apenas, acautelar os efeitos úteis das demandas a propor na sua sequência. A relação entre as providências e as acções ulteriores é de tal forma umbilical que, se estas não forem instauradas, verifica-se um fenómeno qualificado pelo direito adjectivo constituído como de caducidade (cfr. al. a) do n.º 1 do art. 389.º do Código invocado);
2. A anormalidade circunstancial ou perigo na espera pela decisão definitiva tem que corresponder a um risco de violação ou compressão de um direito subjectivo, emergente do curso do tempo de pendência da acção destinada a afirmar definitivamente o direito e a sustentar a sua eventual protecção coactiva ulterior.
3.O direito cuja existência é mister demonstrar é aquele cuja lesão se teme, i.e., o posto em perigo pela demora.»
(sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO

I, com os sinais constantes dos autos, instaurou contra J, neles também melhor identificado, providência cautelar que viria a ser qualificada como «procedimento cautelar comum».
Peticionou, no seu âmbito, que fosse ordenada a entrega, a si, da fracção autónoma indicada no requerimento inicial.
Alegou, para o efeito, que:
É dona e legitima proprietária de fracção autónoma sendo que, quando a adquiriu, a mesma encontrava-se arrendada ao pai do Requerido, que faleceu em 14/08/2008; sucedeu a este, no arrendamento, o seu cônjuge e mãe do Requerido; esta veio a falecer em 31/12/2008; o Requerido pretendia a transmissão do arrendamento ao abrigo do disposto no artigo 1068° do Código Civil, sendo que não tem direito a tal transmissão por força da lei, o que a Requerente lhe transmitiu por carta; a Requerente deixou, ao abrigo das disposições legais, e após alguns contactos verbais sobre o assunto, a fim de obstar a algum mau-estar, que o Requerido permanecesse até 30/06/2009, data em que este se comprometeu entregaria a fracção; o Requerido permaneceu na fracção os 6 meses, pagando o montante de renda que os seus pais pagavam, ou seja, Euros: 51,00; a Requerente adquiriu a fracção, aquando da venda da totalidade do prédio pelo anterior proprietário, tendo em vista assegurar os seus rendimentos e, consequentemente, garantir meios para aquisição de medicamentos e tratamentos médicos; com a informação que o Requerido entregaria o locado e as chaves desde até 30/06/2009, começou a publicitar o arrendamento da fracção, a ter início em 01/07/2009; o Requerido tem-se recusado a mostrar a fracção a possíveis inquilinos, não entrega a casa e nem sequer tem pago atempadamente a sua utilização, limitando-se a fazer entregas do valor de renda em vigor à data do óbito de M até Maio de 2009; em Junho não depositou qualquer quantia; em 01 de Julho de 2009, recusando-se a entregar a fracção ou a mostrá-Ia aos interessados, efectuou dois depósitos no valor cada de Euros: 51,00; em Agosto e em Setembro, não efectuou qualquer depósito; a situação da Requerente é para ela insustentável do ponto de vista financeiro e de saúde, uma vez que é pessoa de idade avançada, com problemas cardíacos e a quem esta situação provoca um forte desgaste psicológico, sofrendo com a conduta do Requerido que não só não entrega a chave e o locado como não deixa a Requerente mostrar a fracção a interessados no seu arrendamento como ainda não pode receber a renda correspondente, cujo valor de mercado é superior a Euros: 500,00 por mês; a Requerente pelas razões aduzidas necessita urgentemente de ter acesso ao andar em questão a fim de poder usufruir do locado, arrendando-o, e prover à sua subsistência e saúde.
Notificado o Requerido, o mesmo não deduziu oposição.
Foi proferida sentença que julgou improcedente o descrito procedimento.
É desta decisão que vem o presente recurso, no âmbito qual a Requerente peticiona que a providência seja decretada e a fracção restituída à sua posse.
Apresentou, para o efeito, as seguintes conclusões:
A Requerente, na sua qualidade de proprietária, intentou a providência cautelar; o Requerido, devidamente citado, não contestou, pelo que aceitou a totalidade dos factos como sendo verdadeiros; foram julgados provados todos os factos constantes do requerimento inicial, e em consequência, os necessários para ser julgada procedente e decretada a providência; designadamente: a. a propriedade da Requerente e a sua posse; b. o direito que se pretende acautelar; c. fundado receio; d. danos irreparáveis (está em risco a subsistência e saúde da Requerente); e. esbulho violento (coacção moral, ameaça de mal físico, etc); donde, quem está agora a ocupar a fracção é um terceiro, sem qualquer direito ou titulo para ali permanecer; a sentença recorrida considerou que cessado o contrato de arrendamento cessa a posse do senhorio; porém, o que cessou foi a posse do arrendatário que possuía em nome alheio, ou seja, em nome do senhorio; a posse da Requerente (senhoria) mantém-se e, com a cessação do arrendamento, consolida-se; tem, até à presente data, praticado todos os actos materiais de possuidora, ou seja, paga o imposto municipal sobre imóveis, taxas municipais de esgotos e saneamento e o condomínio, notifica o Requerido, ocupante ilegítimo, para proceder à entrega da fracção, procura futuros arrendatários colocando a fracção no mercado do arrendamento; estão reunidos os pressupostos de direito e de facto para ser decretada a providência e a fracção restituída à posse da Requerente; a douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 381.º números 1 e 2 e 387.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil.
Não foi apresentada resposta a estas alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
É a seguinte as questão a avaliar:
Os factos descritos no requerimento inicial e dados como demonstrados apontam para o preenchimento dos requisitos processuais dos procedimentos cautelares comuns e, consequentemente, para a procedência do peticionado?

II. FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
Ao abrigo do disposto no n.º 6 do art. 713.º do Código de Processo Civil, remete-se, aqui, no que respeita à matéria de facto, para os termos da decisão da 1.ª instância que decidiu tal matéria.
Fundamentação de Direito
Este procedimento foi admitido como procedimento cautelar comum.
É, pois, aos requisitos normativos desta providência que temos que ir colher os elementos de aferição da susceptibilidade de deferimento do peticionado. Tais requisitos, regras de aceitação e formas de exercício processual constam dos arts. 381.º a 392.º do Código de Processo Civil. Estes preceitos têm que ser conjugados com o disposto no n.º 2 do art. 2.º do mesmo encadeado normativo, que estatui: «a todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário» correspondem «os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção».
Conforma resulta desta norma citada, estamos perante um encadeado de actos processuais que não visa esclarecer e solucionar definitivamente conflitos de direitos privados mas, apenas, acautelar os efeitos úteis das demandas a propor na sua sequência. Aliás a relação entre as providências e as acções ulteriores é de tal forma umbilical que, se estas não forem instauradas, verifica-se um fenómeno qualificado pelo direito adjectivo constituído como de caducidade (cfr. al. a) do n.º 1 do art. 389.º do Código invocado).
Nenhum sentido técnico tem, pois, a afirmação da Recorrente, nas suas alegações de recurso, de que a acção definitiva serviria para uma coisa (pedir o ressarcimento de prejuízos) e a providência para outra (obter a restituição da posse) – vd. fl. 58).
Este elemento aponta já para a adequação da nota constante da sentença recorrida na parte em que aponta que a providência tem o mesmo objectivo que a acção definitiva, ou seja, que uma vez concretizado o peticionado, nos termos pedidos, nada mais restaria para solicitar em sede ulterior. De tal maneira assim é que a parte até se dispensou perspectivar pedir de novo, em termos definitivos, o que aqui só devia acautelar e desenhou a acção declarativa como orientada para peticionar algo de muito diferente do visado na providência por se considerar já definitivamente satisfeita caso concretize o que aqui busca realizar.
Porque as providências se destinam a acautelar o efeito útil das acções a instaurar, tem que existir perigo na demora, requisito processual bem conhecido sob a capa do brocardo latino «periculum in mora» e que corresponde ao risco de a acção principal não chegar a ter condições materiais de produzir os seus frutos – «pericolo de infruttuositá»; ATTARDI, Aldo, Diritto Processuale Civile, vol. I – Parte generale, 3.ª Ed. Padova, CEDAM, 1999, págs. 152 e 153.
A tutela pretendida nos autos, atentos os contornos do solicitado e descrito no requerimento inicial é uma tutela cautelar (por visar afastar um «estado de perigo e urgência não previsto pelo legislador» marcado por uma «anormalidade circunstancial») e não antecipatória (por a urgência não ser inerente à própria lide e tarifada para uma série específica de demandas) – SILVA, Ovídio A. Baptista da Silva, Do Processo Cautelar, 3.ª Ed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, págs. 15 e 23 e PINTO, Rui, A Questão de Mérito na Tutela Cautelar, Coimbra, Coimbra Editora, pág. 501.
Esta anormalidade circunstancial ou perigo na espera pela decisão definitiva tem que corresponder a um risco de violação ou compressão de um direito subjectivo, emergente do curso do tempo de pendência da acção destinada a afirmar definitivamente o direito e a sustentar a sua eventual protecção coactiva ulterior.
O n.º 1 do artigo 387.º do Código sob referência estatui que «a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão». Daqui se extrai que o direito cuja existência é mister demonstrar é aquele cuja lesão se teme, i.e., o posto em perigo pela demora.
Da análise do Requerimento inicial extrai-se que a Requerente visou demonstrar, num quadro de summaria cognitio ou instrução ligeira, a sua posse sobre a fracção e o direito a recuperá-la, (em termos perfunctórios, como sempre ocorre nas providências – fumus boni iuris). Porém, no que tange ao receio de lesão, não referiu serem estes os direitos em risco, mas o seu direito à saúde ou à subsistência.
Há, neste domínio, uma flagrante incongruência. Não há linha de continuidade entre uma coisa e outra.
Não foi para responder a este tipo de necessidades que se instituíram os procedimentos cautelares, que não têm, manifestamente, fins lateralizados mas de protecção prévia dos direitos patenteados no seu seio.
Acresce que os prejuízos de natureza pessoal são sempre susceptíveis de ser ressarcidos na sede própria que é a acção declarativa, podendo ser peticionadas, nas condições legais, como se sabe, indemnizações por danos patrimoniais e não patrimoniais.
Nenhum sentido tem a invocação do esbulho violento depois de o Tribunal, de forma não impugnada, ter convertido este num procedimento inominado. De qualquer forma, não resultaria nunca do alegado e provado que a Requerente tivesse a posse e dela tivesse sido esbulhada violentamente.

III. DECISÃO
Pelo exposto, julgamos a apelação da Autora totalmente improcedente e, pelas razões supra-descritas, confirmamos a solução a que nela se chegou.
Custas pela Recorrente.
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Lisboa, 15 de Abril de 2010

Carlos Manuel Gonçalves de Melo Marinho (Relator)
José Albino Caetano Duarte (1.º Adjunto)
António Pedro Ferreira de Almeida (2.º Adjunto)