Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MANUEL MARQUES | ||
Descritores: | INCOMPETÊNCIA RELATIVA INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/10/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. Quando o juiz, por via da decisão sobre a incompetência territorial, remeter os autos a um tribunal que se venha a considerar materialmente incompetente, sem que o autor tenha peticionado tal remessa, deverá o juiz deste último tribunal remeter os autos ao tribunal competente em razão da matéria e não absolver o réu da instância; 2. Trata-se de uma situação omissa na lei, devendo a lacuna ser colmatada através da aplicação de solução idêntica à legalmente prevista para a situação de incompetência relativa do tribunal. (sumário do Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Nos autos de procedimento cautelar comum instaurado no Tribunal Judicial de ..., em que são requerentes A e B e são requeridas C, SA e D SA, vieram estas, na oposição oportunamente deduzida, suscitar a excepção da incompetência territorial, propugando no sentido de ser declarado competente o Tribunal de Comércio de Lisboa. Por despacho proferido dia 13-03-2009, o Sr. Juiz do Tribunal Judicial de ... entendeu que, nos termos do art. 86º, n.º 2, do CPC, a acção deveria ter sido intentada em Lisboa, tendo, decidido: “Pelo exposto, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 85º, n.º 1, 86º, n.º 2, 108º, 111, n.ºs 1 e 3, todos do Código de Processo civil, julga-se o Tribunal Judicial de ... incompetente em razão do território para conhecer do presente procedimento cautelar e determina-se a remessa dos autos aos Juízos Cíveis do Tribunal Judicial de Lisboa, por ser o competente”. Desta decisão não foi interposto recurso, tendo os autos sido remetidos a este último tribunal e distribuído ao ... Juízo Cível. No dia 8-04-2009, o Sr. Juiz deste tribunal proferiu despacho a ordenar a remessa dos autos ao Tribunal de Comércio de Lisboa, por ser o materialmente o competente para a sua tramitação. É o seguinte o teor desse despacho: “Ae B, vieram intentar o presente procedimento cautelar não especificado contra "C ", S. A., e "D", S. A., requerendo que estas sejam proibidas de deliberar determinadas decisões sociais. Por decisão do tribunal judicial de ..., este declarou-se incompetente em razão do território e remeteu os autos a este tribunal. Nos termos do artigo 83.°, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, para os procedimentos cautelares que não sejam, arresto, arrolamento e embargo de obra nova, "( ... ) é competente o tribunal em que deva ser proposta a acção respectiva". Ora, a competência interna é aferida por diversos critérios legais e determina-se, quanto aos tribunais judiciais, em razão da matéria, da hierarquia, do valor e do território - cfr. arts. 66.° Código de Processo Civil e 17.° n.º 1 da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (LOTJ). Relativamente aos critérios materiais (que são os únicos que importa tratar em face da decisão que agora se profere), determinam os mesmos se a acção deve ser julgada num Tribunal comum, que é o civil, ou num Tribunal especial. A competência dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual. Segundo os primeiros, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial. De acordo com o segundo, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum ou a nenhum tribunal especial (art. 66° CPC). Do exposto se conclui que os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual (art. 14.° LOTJ) e, no âmbito dos tribunais judiciais, são os tribunais comuns aqueles que possuem essa competência residual (art.66.0 Código de Processo Civil). A incompetência material do tribunal consiste na insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa porque os critérios determinativos da sua competência - não lhe concedem uma medida de jurisdição suficiente para essa apreciação. Da análise do pedido e da matéria de facto vertida na petição inicial, extrai-se que os AA. é sócio da supra mencionada sociedade comercial e pretende a destituição de um gerente da mesma. Dispõe a al. c) do n.º 1 do art. 89.° da LOTJ que "Compete aos tribunais de comércio preparar e julgar: As acções relativas ao exercício de direitos sociais". Ora, dúvidas não existem que a presente acção integra a previsão de tal preceito, pois a mesma tem por objecto o exercício dos direitos sociais dos AA. (conforme os mesmos configuram a acção, designadamente com a existência de acordos parasociais e reclamando a suas qualidades de accionistas da "E"), Assim sendo, o tribunal competente para conhecer do mérito da causa é o tribunal de comércio, tribunal de competência especializada - cfr. arts. 64.°, 78.° al. d) e 89.° todos da LOTJ. É, pois, este tribunal incompetente em razão da matéria - art. 102.° n.º 2 do Código de Processo Civil, que desde já se pode conhecer (n.º 1 do mesmo artigo). Em conformidade com o disposto no artigo 101.° do Código de Processo Civil a infracção das regras de competência em razão da matéria determinam a incompetência absoluta do Tribunal. A sorte dos autos em situação normal seria a absolvição da instância das requeridas (artigo 105.°, n.o I do Código de Processo Civil). No entanto, no caso concreto, a acção foi intentada no tribunal competente em razão da matéria uma vez que em ... não existe Tribunal de Comércio. Estes autos só aqui foram distribuídos pelo facto do tribunal de ... não ter atentado que, em Lisboa, a competência desta matéria é do tribunal de competência especializada e que aí não existe. Assim, apenas se trata de errada distribuição que não poderá ser imputável à partes, pelo que: Determina-se a remessa dos autos ao Tribunal de Comércio de Lisboa, uma vez que é este o competente nesta comarca para a tramitação e decisão destes autos. Sem custas uma vez que o facto não é imputável ás partes. Notifique e, após trânsito, remeta os autos ao Tribunal identificado”. Inconformada com essa decisão, vieram as requeridas interpor o presente recurso de apelação, tendo apresentado alegações, nas quais formulou a seguinte conclusão: I. Nos termos do disposto no art.º 105.°, n.º 1, do Código de Processo Civil, a verificação da incompetência absoluta implica a absolvição da instância. II. Os Requerentes foram notificados da decisão do Tribunal de ... que conheceu da incompetência territorial e ordenou a remessa dos autos para os Juízos Cíveis de Lisboa. III. Os Requerentes poderiam, se assim o quisessem, ter recorrido de tal despacho ou requerido a sua reforma ou correcção. IV. Ao não o fazerem, assim se conformando com a decisão de remessa dos autos para os Juízos Cíveis de Lisboa e não para o Tribunal de Comércio de Lisboa, os Requerentes aderiram a tal decisão e fizeram-na sua. V. Tal opção por não por em causa a decisão de envio para os Juízos Cíveis equivale e deve ter os mesmos efeitos que teria a decisão de intentar a acção ab initio, nos mesmos Juízos Cíveis. VI. Como tal, a consequência, em ambas as situações, só pode ser uma: a absolvição da instância. VII. Os Requerentes não carecem de - ou merecem qualquer protecção, nem devem beneficiar de qualquer tolerância, uma vez que, inclusivamente, a arguição da incompetência material que se verificaria uma vez constatada a incompetência territorial, foi expressamente invocada pelas Requeridas. VIII. Afirmar, como o faz a sentença recorrida, que os Requerentes não são responsáveis pelo envio dos autos para os Juízos Cíveis é desvalorizar e esvaziar o princípio do dispositivo e o ónus que sobre cada parte incumbe de impugnar as decisões incorrectas que as prejudiquem. IX. A solução proposta pela sentença recorrida coloca os Requerentes numa posição mais confortável do que a que teriam se tivessem intentado a acção na comarca correcta, que assim deixam a decisão quanto à competência material, ao arbítrio dos Tribunais. X. Deve, pois, ser revogada a decisão recorrida, declarando-se a absolvição da instância das Requeridas. XI. A decisão recorrida viola flagrantemente o disposto no art.o 105.º, do Código de Processo Civil. Foram apresentadas contra-alegações, nas quais se propugna pela manutenção do julgado. Dispensados os vistos, cumpre decidir. * II. Nos termos dos art.ºs 684º, n.º 3, e 685º-A, n.º 1, do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões das recorrentes, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 660º do mesmo Código. A questão a decidir resume-se essencialmente em saber se, tendo o processo sido remetido a um tribunal incompetente em razão da matéria, por força de decisão judicial proferida em sede de conhecimento da excepção de incompetência territorial, este último tribunal deve absolver os requeridos da instância (atenta a incompetência absoluta do tribunal), ou se, ao invés, deve ordenar a remessa dos autos ao tribunal materialmente competente. * III. Da questão de mérito: Por decisão proferida pelo Tribunal Judicial de ..., onde o presente procedimento cautelar foi intentado, conheceu-se da excepção da incompetência territorial, tendo sido determinada a remessa dos autos aos Juízos Cíveis de Lisboa, considerados competentes. Essa decisão transitou em julgado. Ora, como constitui jurisprudência pacífica do STJ, a decisão transitada em julgado, de um tribunal que declara outro competente, em razão do território, resolve, definitivamente, a supra citada questão da competência, perfilando-se, destarte, no àquele tocante, um caso julgado material, com projecção fora do processo (art. 111º, n.º 2, do CPC) – vide, por todos, o Ac. STJ de 27/07/2009, relatado pelo Cons. Pereira da Silva, in www.dgsi.pt. Assim sendo, num caso como o dos autos, a decisão proferida pelo Tribunal Judicial de ... resolveu definitivamente a questão da competência territorial. Acontece, porém, que os Juízos Cíveis de Lisboa não são competentes em razão da matéria para conhecer da causa (cfr. art. 89, n.º 1, al. c) da LOTJ), tendo o Sr. Juiz a quem o processo foi distribuído considerado tal e ordenado a remessa dos autos ao Tribunal de Comércio de Lisboa, sustentando tratar-se de uma situação de errada distribuição, não imputável às partes. É contra este entendimento que as apelantes se insurgem, sustentando a sua absolvição da instância. A questão que se coloca é, pois, a de saber se, numa situação com os contornos da dos autos - em que o processo foi remetido ao tribunal incompetente em razão da matéria por força de uma decisão judicial proferida em sede de conhecimento da excepção de incompetência territorial -, este último tribunal deve absolver os requeridos da instância (atenta a incompetência absoluta do tribunal), ou se, ao invés, deve ordenar a remessa dos autos ao tribunal materialmente competente. É patente a dualidade de consequências de uma e outra solução, pois que a remessa do processo ao tribunal competente não extingue a instância, enquanto a declaração da incompetência absoluta, com a inerente absolvição das requeridas, opera tal extinção. Efectivamente, mesmo na situação contemplada no n.º 2 do art. 105º, do C.P.C., inicia-se uma nova instância, apenas se aproveitando os articulados e os actos processuais que eles impliquem (citação, notificações etc). A interpretação das normas legais propugnada pelas apelantes conduziria à extinção da instância em decorrência directa de um acto do juiz (ao ordenar a remessa do processo a um tribunal materialmente incompetente). Ora, manifestamente, essa consequência não foi querido pelo Sr. Juiz do T. J. de ..., o qual se limitou a conhecer de uma questão de competência territorial, sem todavia atentar que em Lisboa existiam tribunais de competência especializada na matéria em causa nos autos (tribunais de comércio). Sustentam os apelantes que os requerentes aderiram à decisão que ordenou a remessa dos autos aos Juízos Cíveis de Lisboa, ao não terem peticionado a rectificação ou a reforma da decisão que ordenou a remessa dos autos aos Juízos Cíveis de Lisboa e (ou) ao não interporem recurso de tal decisão, equivalendo tal à situação que ocorreria se tivessem intentado ab initio a acção num tribunal materialmente incompetente. Dissentimos, porém, desta visão unilateral da questão. Tendo o procedimento cautelar sido intentado num tribunal materialmente competente (T. J. de ...) – carecia, tão só, de competência territorial -, configura-se-nos irrazoável a interpretação das normas legais que conduza à absolvição das requeridas/apelantes da instância, por incompetência material do tribunal, para o qual outro tribunal remeteu os autos, sem que os requerentes/apelados, tenham, directamente determinado tal. Só mediatamente se poderá encontrar numa omissão dos requerentes do procedimento cautelar, ao não impugnarem aquela decisão, alguma “responsabilidade” na situação criada. Porém, como é sabido, e por vezes se esquece, a decisão judicial apresenta-se como um produto da colaboração das partes, do tribunal e demais intervenientes, incluindo os mandatários judiciais, devendo as partes agir de boa fé e observar os deveres de cooperação. Isso mesmo está consagrado nos arts. 266º, n.º 1 e 3, e 266º-A, do CPC. Daí que, também os requeridos poderiam e deveriam ter peticionado a reforma/rectificação da decisão judicial que ordenou a remessa dos autos aos Juízos Cíveis de Lisboa, ou interposto recurso da mesma, tanto mais que foram eles que suscitaram a excepção da incompetência territorial perante o Tribunal Judicial de ... e aí peticionaram a remessa dos autos ao Tribunal do Comércio de Lisboa, apresentando-se agora a recorrer deste último segmento da decisão! Entendemos, assim, atenta a gravidade do vício da incompetência absoluta, que as consequências previstas na lei (absolvição do réu da instância) deverão apenas ser aplicadas quando seja a parte a propor a acção no tribunal materialmente incompetente e não quando seja o juiz, por via da decisão sobre a incompetência territorial, a remeter os autos a um tribunal materialmente incompetente (caso omisso) e sem que os requerentes tenham peticionado tal remessa. As duas situações são distintas, pois que numa foi o autor a escolher o tribunal (infringindo as regras da competência material) e na outra o mesmo foi determinado directamente pelo juiz, justificando-se, por isso, soluções diferenciadas. Não estando esta última situação prevista na lei, essa omissão deve ser tida como uma lacuna, a qual deverá ser colmatada através da aplicação de solução idêntica à prevista na lei para a situação de incompetência territorial (remessa dos autos ao tribunal materialmente competente) – arts. 10º, do C. Civil, e 111º, n.º 3, do CPC. Pelas razões que se deixam aduzidas, improcede a apelação interposta pelo requerente. * V. Decisão: Pelo acima exposto, julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida; Custas pelas apelantes. Notifique. Lisboa, 10 de Dezembro de 2009 Manuel Marques - Relator Pedro Brighton - 1º Adjunto Anabela Calafate – 2ª Adjunta |