Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1966/2004-3
Relator: CARLOS DE SOUSA
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
ARMA PROIBIDA
MATÉRIA DE FACTO
VÍCIOS
ESPECIAL CENSURABILIDADE DO AGENTE
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/12/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – No presente processo comum (tribunal colectivo) procedente da 8ª Vara Criminal de Lisboa, 2ª Secção, por acórdão de 17 de Janeiro de 2004, deliberou:

a) Julgar a acusação parcialmente procedente por parcialmente provada;
b) Condenar o arguido, (J), pela autoria material, e em concurso real, de um crime de homicídio qualificado sob a forma tentada, p. e p. pelo artº 132º, nºs 1 e 2, al. g), com referência aos artºs 22º, 23º, 73º e 131º, todos do C.Penal, e de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artº 146º, nºs 1 e 2, com referência aos artºs 132º, nº 2, als. d) e g), e 143º, nº 1, todos do C.Penal, na pena única de 6 (seis) anos de prisão;
c) Absolver o arguido da prática do crime de detenção e porte de arma proibida, p. e p. pelo artº 275º, nº 3, do C.P., com referência ao artº 3º, nº 1, al. f) do Dec.-Lei nº 207º-A/75, de 17 de Abril, pelo qual vinha acusado;
d) Condenar o arguido nas custas do processo, fixando-se no mínimo a taxa de justiça, acrescida de 1%, e 1/3 de procuradoria e honorários a favor do defensor.
e) Declarar perdida a favor do Estado a navalha apreendida nos autos, ordenando, em consequência, a sua destruição.
E, finalmente, mandou o arguido recolher ao E.P., a remessa de boletins ao registo criminal e certidões ao TEP.
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II – A) É deste acórdão que recorre o arguido para esta Relação,
(...)
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III – Colhidos os vistos e efectuada a audiência, cumpre ponderar e decidir.
A) O âmbito do recurso, como se sabe, é delimitado pelas conclusões do recorrente – aliás, como vem sendo jurisprudência corrente dos nossos tribunais superiores (cfr., entre muitos, os Acs. STJ de 16/11/95 e de 31/01/96, BMJ 451/279 e 453/338) e advém do princípio da cindibilidade do recurso (cfr. artºs 403º, nº 1 e 412º, nº 1, do CPP).
Importa realçar que a audiência de julgamento, na 1ª instância, decorreu perante Tribunal Colectivo, sem que tivessem sido documentadas as declarações ali prestadas oralmente. Contudo, nem o recorrente, nem qualquer outro interveniente processual, suscitou tal irregularidade nem esta é de conhecimento oficioso, aliás, como se consigna na Jurisprudência fixada nº 5/2002 do STJ (D.R., I-A Série, de 17/07/2002).
Assim sendo, o recurso é restrito às questões de direito, sem prejuízo de se poderem e deverem apurar se, do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras de experiência, se constatam os vícios do artº 410º, nº 2 do CPP – que, como também se sabe, são de conhecimento oficioso deste tribunal de recurso (cfr. Ac. Pl. Sec. Crim. STJ de 19/10/95, in D.R., I-A Série de 28/12/95), sendo que o recorrente suscita o da al. c), o erro notório na apreciação da prova.
As questões a decidir são as seguintes:
A existência dos vícios do artº 410º, nº 2, nomeadamente o da al. c), do CPP – o erro notório na apreciação da prova; e, no caso positivo, será de reenviar o processo para novo julgamento ou será possível evitá-lo ainda (cfr. artº 426º do CPP) ?
A qualificação jurídico-penal dos factos: estamos, em ambos os casos, perante os imputados crimes qualificados, pela especial censurabilidade ou perversidade do agente – cfr. artºs 132º, nº 2 e 146º, nº 2, ambos do C.Penal ? Ou antes, (apenas) subsistem os elementos do tipo base, relativamente a ambos os crimes ?
E quais as consequências na medida concreta das penas (parcelares e única) – cfr. artºs 40º, 70º, 71º, 73º e 77º do C.Penal ?
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B) Para melhor ponderar e decidir tais questões, convém transcrever o texto do acórdão recorrido (na parte pertinente):
1. « Da discussão da causa deu o Tribunal Colectivo como assente por provada a seguinte matéria factica:
1. Da acusação:
No dia 28 de Dezembro de 2002, pelas 04h30m, no interior do estabelecimento de bar denominado “Churrião”, sito na Av...., na Venteira, Amadora, o arguido desentendeu-se com o proprietário daquele estabelecimento, (AS), id. a fls. 31 dos autos, não querendo efectuar o pagamento das despesas que fizera.
Naquele estabelecimento, encontravam-se, também, (CF) e (VT), ids, respectivamente, a fls. 29 e 26 dos autos.
Na sequência daquele desentendimento, o arguido aproximou-se do citado (AS) e, após alguma troca de palavras, deu-lhe um empurrão, preparando-se para continuar tal atitude quando interveio (CF), o qual colocou a mão no peito do arguido, procurando evitar que este atingisse o (AS).
O arguido, porém, sem responder ao (CF), empunhou a navalha examinada a fls. 138 a 140, exame cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, com a qual previamente se munira e transportava no bolso do casaco que envergava e, com ela, desferiu um golpe sobre o peito do (CF), atingindo-o, na base do hemitórax esquerdo, ao mesmo tempo que dizia: “ vou-te matar”.
Na sequência deste golpe, o (CF) caiu ao chão, sendo, de imediato, seguido pelo arguido, que se colocou sobre o seu corpo, atirando-se para cima dele.
Nestas circunstâncias, estando o (CF) no chão, o arguido, empunhando sempre a referida navalha, procurou, com ela, atingir o (CF), de novo, no peito, sendo que este procurava com os braços evitar tal golpe, vindo, por isso, a ser atingido, pelo arguido, com aquela navalha, no braço esquerdo e unicamente por se estar a defender com o braço, a fim de não ser atingido no peito.
Nesse momento, e, em auxilio do (CF), surge (VT), que procurou retirar a navalha das mãos do arguido, vindo a ferir-se na mão. De seguida, o (VT) puxou o arguido, retirando-o de cima do (CF). O arguido virou-se, então, para aquele, envolvendo-se fisicamente com o mesmo, caindo ambos no chão. Já no chão, o arguido e o (VT) rebolaram agarrados um ao outro, sendo que, a determinada altura, o arguido, que mantivera sempre na mão a referida navalha, com ela desferiu um golpe no ombro do (VT), atingindo-o.
De seguida, o arguido conseguiu libertar-se, após o que abandonou o local, vindo a ser detido pela PSP, momentos depois, e a cerca de 100 metros, tendo na sua posse a navalha mencionada.
Em consequência de tal comportamento, o arguido provocou no corpo do (CF) ferida na base do hemitórax esquerdo com penetração ao abdómen, conforme melhor consta do protocolo clínico junto a fls. 77 a 93, maxime fls. 86, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos efeitos legais.
Mais provocou ferida superficial da face externa do antebraço esquerdo, conforme protocolo clínico mencionado.
Consta do protocolo operatório de fls. 86 que (CF) apresentava hemoperitoneu com abundantes coágulos, bem como ferida penetrante no peritoneu, junto ao bordo do lobo esquerdo do fígado, atingindo grande curvatura gástrica e grande epíplon. Foi efectuada laparotomia exploradora mediana supra e infra umbilical.
Tais lesões, que resultaram de traumatismo de natureza corto-perfurante, foram causa directa e necessária de 15 (quinze) dias de doença, com igual tempo de incapacidade para o trabalho em geral e para o trabalho profissional – cf. auto de perícia de avaliação do dano corporal de fls. 131 a 134.
Tais lesões curaram, tendo resultado como consequência permanente: a) uma cicatriz linear mediana de aspecto operatório, supra e infra-umbilical, com cerca de 30 centímetros de comprimento; b) cicatriz linear arciforme com vestígios de pontos de sutura, medindo cerca de 4,5 centímetros de comprimento na região precordial; c) cicatriz linear transversal, com cerca de 1 centímetro de comprimento, na região periumbilical à direita; d) cicatriz linear irregular com vestígios de pontos de sutura, medindo cerca de 2,5 centímetros de comprimento, no bordo cubital do antebraço à esquerda – cf. auto de perícia de avaliação do dano corporal de fls. 131 a 134.
O arguido, ao agir da forma descrita, tinha o propósito de tirar a vida ao (CF), atingindo-o em zona do corpo onde sabia que se alojavam órgãos vitais, zona que visou atingir.
Tal propósito resulta, ainda, da natureza e local das lesões e do instrumento utilizado, o qual sabia idóneo para, nomeadamente causar a morte a qualquer pessoa que por ele fosse atingida.
E só não obteve tal resultado devido à intervenção de terceiros e porque o ofendido foi prontamente transportado para o hospital de Fernando Fonseca, onde foi submetido a uma intervenção cirúrgica e onde permaneceu algum tempo internado. Estas circunstâncias foram completamente alheias à vontade do arguido.
O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei.
Em consequência do comportamento supra descrito, o arguido provocou ferida cervical da face externa direita no corpo de (VT), conforme melhor consta do protocolo clinico de fls. 94 e 95, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
No momento do exame pericial, cujo relatório faz fls. 142 a 144, (VT) apresentava cicatriz linear, oblíqua de fora para dentro, medindo 3 (três) centímetros de comprimento, apresentando vestígios de pontos de sutura, localizada na base da face lateral direita da região cervical.
Tais lesões, que foram produzidas por instrumento de natureza cortante, curaram sem aleijão ou deformidade, sendo certo que não foi possível apurar até ao momento as consequências das mesmas.
Ao actuar da forma descrita, o arguido sabia que ia molestar fisicamente (VT), o que quis e conseguiu.
O arguido utilizou uma navalha que sabia ter aptidões para provocar a qualquer pessoa lesões graves, sendo certo que perante as circunstâncias em que os factos ocorrerem, não teve o (VT) qualquer hipótese de evitar tal agressão. Para além disso, o arguido atingiu (VT) nas costas, quando este, para defender (CF), se envolveu fisicamente com aquele, sabendo o arguido que poderia ferir gravemente (VT), atingindo órgãos vitais, já que manteve sempre na mão e aberta a mencionada navalha. Actuou de tal forma apenas porque o (VT) interveio em auxílio do (CF).
O arguido agiu libre, deliberada e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei.
No dia 28 de Dezembro de 2002, pelas 04h30m, no interior do estabelecimento de bar denominado "Churrião" , sito na Av. ..., Amadora, o arguido tinha em seu poder e utilizou uma navalha, vulgarmente designada por “borboleta”, com 22 centímetros de comprimento, sendo 11,1 centímetros de lâmina, devidamente examinada a fls. 138 a 140, exame que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
A lâmina da navalha supra referida encontra-se escondida no cabo quando fechada.
O arguido tinha aquela navalha em seu poder desde há algum tempo, transportando-a consigo.
O arguido conhecia as características da citada navalha e sabia que perante tais características não podia trazer consigo a deter tal instrumento.
O arguido agiu livre, deliberada a conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei.
2. Do arguido:
O arguido negou a intenção de matar, justificando a posse da navalha por temer ser assaltado. Admitiu encontrar-se alcoolizado no momento da prática dos factos.
O arguido tem largo cadastro criminal desde 1979, tendo sido condenado oito vezes, até 26 de Junho de 2000, por furtos, roubos, evasão e consumo de estupefacientes, em penas de prisão e multa, que cumpriu. Durante o período de reclusão, cerca de três anos, a mulher do arguido faleceu.
Após os factos em que se baseou a ultima condenação, referida supra, por consumo de estupefacientes, e por ser toxicodependente, o arguido iniciou um programa de metadona, em 6 de Outubro de 1999, tendo mantido acompanhamento psicológico, médico e social regular, até Dezembro de 2002, não manifestando, então, comportamentos de agressividade. Posteriormente, passou a apresentar um quadro de sintomatologia depressiva.
Vive com a mãe, sendo pessoas de humilde condição económica e baixo nível cultural (o arguido tem o 6º ano de escolaridade).
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(...)

C) Quanto aos vícios do artº 410º, nº 2 do CPP
Como se viu, o douto acórdão ora recorrido está devidamente fundamentado, percebendo-se inteiramente o raciocínio lógico subjacente a tal decisão, sendo certo que mormente no que respeita à matéria de facto dada por assente, se cumpriu o disposto no nº 2 do artº 374º do CPP, especialmente no que ao exame crítico das provas diz respeito.
Significa isto que, ainda que se possa discordar do enquadramento jurídico-penal dos factos apurados, atento o texto da decisão recorrida, não se verificam aqueles vícios, constantes das alíneas do nº 2 do artº 410º do CPP.
Aliás, não se mostra violada qualquer regra de experiência comum, sendo certo que, como é sabido, impera aqui o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artº 127º do CPP. Assim:
1. Não se constata insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito proferida, ou seja, o vício constante da al. a) daquele nº 2 (cfr. neste sentido, entre muitos, Ac. STJ de 13/02/91, in AJ, nºs 15/16, 7).
2. Nem se verifica contradição insanável da fundamentação ou ainda entre esta e a decisão – cfr. al. b) daquele nº 2.
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Porém, abrimos aqui um parênteses para verificar que, na verdade, existe uma irregularidade, que respeita às sequelas das lesões sofridas pelo ofendido (VT), aliás, produzidas por instrumento de natureza cortante (a navalha usada pelo arguido, apreendida e examinada nos autos), na medida em que:
Na matéria de facto apurada consignou-se, além do mais, que:
«Tais lesões curaram sem aleijão ou deformidade, sendo certo que não foi possível apurar até ao momento as consequências das mesmas.» (nosso sublinhado).
Para logo adiante, aquando da qualificação jurídica dos factos, se ponderar que estas lesões do ofendido (VT) lhe ocasionaram um período de doença de «... 3 dias com incapacidade para o trabalho, respectivamente.» (nosso sublinhado).
Ora, estamos perante um manifesto lapso de escrita, já que neste último caso se queria dizer, com certeza, «... 8 (oito) dias para a cura, com igual período de incapacidade para o trabalho» - porquanto é o que resulta evidente do exame de sanidade feito ao ofendido (VT), e consta do relatório clínico de folhas 186-188.
Em suma, estamos perante um mero lapso, uma irregularidade da sentença, que não importa modificação essencial e que pode ser oficiosamente conhecida e corrigida por este tribunal de recurso – cfr. artº 380º, nº 1-b) do CPP.
Assim, há que corrigir o acórdão, no local próprio, ou seja, no âmbito da matéria de facto provada, consignando-se como se acabou de dizer, que tais lesões (do (VT)) demandaram «... 8 (oito) dias para a cura, com igual período de incapacidade para o trabalho» (ao invés dos 3 dias acima referidos).
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3. Finalmente, não se constata o alegado erro notório na apreciação da prova, tanto mais que, como é sabido, este tem de ser de tal modo notório ou patente que não escapa à observação do cidadão comum, «...de um homem de formação média.» - como vem referindo a jurisprudência dos nossos tribunais superiores (por todos, veja-se o Ac. STJ de 29/11/89, Proc. nº 40255/3ª - citado por Maia Gonçalves na nota 5 àquele artº 410º, no seu Código de Processo Penal Anotado, 13ª ed., 2002, pág. 810).
Reafirmamos que se percebe perfeitamente a fundamentação do douto acórdão ora recorrido, mormente no que à matéria de facto apurada diz respeito (tirando o lapso acima consignado), não se verificando a violação de qualquer regra de experiência comum, mormente no que respeita ao propósito homicida do arguido, aliás anunciado, no que ao ofendido (CF) respeita, atento o modo como usou a sua navalha, conhecendo bem as características da mesma (com 22 cm. de comprimento, dos quais 11,1 cm. de lâmina).
Em suma, quis causar a morte do ofendido (CF), mas tal evento letal só não ocorreu devido a causas estranhas à sua vontade, no caso a pronta intervenção de terceiros, que o transportaram para o hospital, onde foi devidamente tratado.
E isto não contradiz, como se viu, que (apenas) tenha querido molestar fisicamente o outro ofendido, (VT), como conseguiu.
Saber se todo o circunstancialismo imputado na acusação e dado como provado integra (ou não) a circunstância qualificativa da especial censurabilidade ou perversidade do arguido, já entra no domínio da subsunção dos factos ao direito.
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D) Quanto ao enquadramento jurídi-co-penal dos factos apurados.
1. O arguido vinha acusado, como autor material e em concurso real, de: um crime de homicídio qualificado, sob a forma tentada, p. e p. pelo artº 132º, nºs 1 e 2, al. g), com referência aos artºs 22º, 23º, 73º e 131º, todos do Código Penal; um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artº 146º, nºs 1 e 2, com referência aos artºs 132º, nº 2, als. d) e g), e 143º, nº 1, todos do C.Penal; e ainda de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artº 275º, nº 3 do C.Penal, com referência ao artº 3º, nº 1, al. f), do D.L.nº 207-A/75, de 17/04 (fls. 157).
Ora, alertamos desde já para o facto de, no acórdão recorrido, o arguido ter sido absolvido deste último delito, exactamente com o fundamento de que:
«O crime de detenção de arma proibida encontra-se consumido pela circunstância qualificativa da al. g) do nº 2 do artº 132º do C.P.»
Compreende-se a posição assumida por se pretender obstar à violação do princípio ne bis in idem.
Na verdade, entendeu-se que relativamente aos crimes de homicídio e de ofensa à integridade física, já estavam ambos qualificados, agravados pelo uso da navalha nos termos e circunstâncias acima descritas e que atentas as suas características, a agravante qualificativa se traduzia na prática de um crime de perigo comum – citada al. g) do nº 2 do artº 132º do C.Penal.
Ou seja, entendeu-se ali que a detenção e uso da navalha, apreendida e examinada nos autos, pelo arguido, sabedor das suas características, integrava o crime de detenção e uso de arma proibida (citado artº 275º, nº 3 do C.Penal, com referência ao artº 3º, nº 1, al. f) do D.L.nº 207-A/75) mas como a prática desse crime de perigo comum consubstanciava a aludida qualificativa (de ambos os crimes, de homicídio e de ofensa à integridade física), aquele encontrava-se consumido por esta.
2. Compreende-se, mas não se aceita.
Desde logo, por que não estamos perante a detenção e uso de arma proibida, no presente caso, já que a navalha apreendida e examinada nos autos, é uma arma branca, aliás, susceptível de ser usada como arma letal de agressão, mas sem disfarce – cfr. auto de fls. 138 a 140.
Na verdade, trata-se de uma navalha vulgar, de uso corrente, com o comprimento total de 22 cm., dos quais 11,1 cm. de lâmina, tendo esta (lâmina) a largura máxima de 1,8 cm.
Note-se que o facto de a lâmina, ao recolher, ficar escondida no cabo, não integra, sem mais, o exigido disfarce para que fosse tida como arma proibida – cfr. artº 3º, nº 1, al. f) do mencionado D.L.nº 207-A/75.
«Disfarce será, pois, quer a dissimulação da arma sob a forma de objecto distinto e com diferente utilização, quer todo o mecanismo ou artifício que oculte as características e dimensões da arma.» - cf. Legislação Anotada sobre Armas de António Rui Casatanheira e Euclides Dâmaso Simões (ed. Centelha, Coimbra, 1986, pág. 21).
«A classificação, neste caso, baseia-se no “disfarce”, no carácter “insidioso”, de “surpresa” para o ofendido, com a consequente redução das suas possibilidades de defesa; é o “maior perigo” da arma que a faz colocar na mencionada categoria». – citando-se ali o Ac. STJ de 22/06/77 (in BMJ 268/103).
Em suma, a navalha em questão, repete-se, é uma navalha vulgar, apesar de ser susceptível de ser usada como arma letal de agressão – mormente, face à lâmina ponteaguda, com 11,1 cm. de comprimento – ou seja, por que, manejada por um agente de mediana destreza, é susceptível de causar a morte do visado (idem, pág. 22).
É assim, sobretudo, por não possuir aquela característica, de disfarce, que não a devemos considerar como arma proibida.
Aliás, sendo um instrumento de porte frequente, estaria integrado na previsão do artº 4º daquele D.L.nº 207-A/75 (entre muitos, cfr. Ac. Rel. Porto, de 13/02/80, BMJ 295/455), só que, entretanto, esta norma (bem como a do artº 5º) foi revogada, pelo artº 6º do D.L.nº 400/82, de 23/09 (que aprovou o C.P./1982).
Neste sentido, mesmo relativamente a navalhas com maiores dimensões de lâmina, vinha a jurisprudência maioritariamente reconhecendo que: «... uma navalha, cuja lâmina mede 15 cm. de comprimento, é uma “arma branca”, mas não contendo qualquer disfarce, não pode enquadrar-se na primeira parte da al. f) do nº 1 do artº 3º do D.L.nº 207-A/75, de 17/04. » – cfr., entre muitos, o Ac. Rel. Évora, de 08/07/86 (BMJ 361/622).
Resumindo:
A navalha apreendida e examinada nestes autos (que é uma navalha vulgar, de porte frequente – de 22 cm. de comprimento total, dos quais 11,1 cm. de lâmina) não é arma proibida; e, apesar de ser susceptível de ser usada (como foi, no caso) como arma letal de agressão, não está abrangida pelo disposto no artº 3º, nº 1, al. f) do D.L.nº 207-A/75, de 17/04, por não possuir disfarce.
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3. Do crime de homicídio, na forma tentada.
Como o próprio recorrente aceita, e já acima vimos, no presente caso, estão preenchidos todos os requisitos, objectivos e subjectivos, da prática pelo arguido do crime de homicídio simples (ou base), na forma tentada, p. e p. pelos artºs 22º, 23º, 73º e 131º, todos do C.Penal.
Dispõe o citado artº 131º, do Código Penal que « Quem matar outrem será punido com pena de prisão de 8 a 16 anos ».
O bem jurídico aqui protegido, como se vê, é a vida humana (a vida de outrem).
Trata-se de homicídio voluntário, pelo que se torna necessário ao preenchimento do tipo subjectivo a verificação do dolo, em qualquer das modalidades consignadas no artº 14º do Código Penal: dolo directo, necessário ou eventual.
No caso, face a todo o circunstancialismo fáctico apurado, conclui-se seguramente que se encontram preenchidos todos os elementos do tipo, objectivo e subjectivo, mas na forma tentada.
Na verdade, o arguido praticou actos idóneos a provocar a morte da vítima (CF), nomeadamente ao munir-se da aludida navalha e, com ela aberta, desferir um golpe no peito deste ofendido, atingindo-o na base do hemitórax esquerdo; aliás, ao mesmo tempo que anunciava, de viva voz: “vou-te matar”. E, depois, ainda o atingiu (superficialmente) na face externa do antebraço esquerdo.
Acresce que, com aquele golpe no hemitórax, provocou ao ofendido as lesões constantes dos boletins clínicos juntos a fls. 77 a 93, mormente a fls. 86, causando necessária e adequadamente, hemoperitoneu com bastantes coágulos, bem como ferida penetrante no peritoneu, junto ao bordo do lobo esquerdo do fígado, atingindo a grande curvatura gástrica e grande epíplon.
E como se consigna no acórdão recorrido:
«O arguido, ao agir da forma descrita, tinha o propósito de tirar a vida ao (CF), atingindo-o em zona do corpo onde sabia que se alojavam órgãos vitais, zona que visou atingir.
Tal propósito resulta, ainda, da natureza e local das lesões e do instrumento utilizado, o qual sabia idóneo para, nomeadamente causar a morte a qualquer pessoa que por ele fosse atingida.
E só não obteve tal resultado devido à intervenção de terceiros e porque o ofendido foi prontamente transportado para o hospital de Fernando Fonseca, onde foi submetido a uma intervenção cirúrgica e onde permaneceu algum tempo internado. Estas circunstâncias foram completamente alheias à vontade do arguido.»
Ora, tais lesões demandaram a este ofendido 15 dias de doença, com incapacidade para o trabalho, e ainda as já aludidas cicatrizes (permanentes), acima descritas.
Em suma, e como acima verificámos (quanto ao uso da navalha), não se verifica a circunstância qualificativa do artº 132º, nºs 1 e 2, al. g) do C.Penal, já que, como explicámos, não se está perante o uso de meio particularmente perigoso, nem perante a prática crime de perigo comum.
Quanto a este já nos referimos, não se está perante o uso de arma proibida (vide supra 2.), pelo que basta esclarecer que a navalha apreendida é vulgar, é perigosa (quando usada como foi como arma letal de agressão), mas não é um meio particularmente perigoso.
Segue-se, aqui, a doutrina mais avisada nesse sentido (cfr. Prof. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, págs. 35 e 36, sobre o uso de meio particularmente perigoso) e a jurisprudência (v.g., Ac. STJ de 13/12/2000, na Col. Jur., Acs. STJ, págs. 241 a 247).
Concluindo:
Tem razão o recorrente quando entende que não se verifica a qualificativa, que revele a especial censurabilidade ou perversidade do agente – a que se reporta o citado artº 132º, nºs 1 e 2, al. g) do C.Penal.
Repete-se, neste âmbito, apenas estão preenchidos os requisitos, objectivos e subjectivos, da prática do crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos citados artºs 22º, 23º, 73º e 131º, todos do C.Penal (no que respeita ao ofendido (CF)).
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4. Do crime de ofensa à integridade física.
Não restam dúvidas que o arguido é ainda autor material e em concurso real de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artº 143º, nº 1 do C.Penal.
Na verdade, também se afasta a qualificativa do artº 132º, nº 2 do C.Penal, para o qual remete o imputado artº 146º, nº 2 do C.Penal.
Já vimos que não procede a al. g) do citado nº 2 do artº 132º, por não se verificar o uso de arma proibida, nem se considerar, no caso, o uso da navalha apreendida nestes autos pelo arguido, nas circunstâncias acima descritas, como o uso de meio particularmente perigoso.
Resta, assim, dizer que também não se verifica nenhuma outra circunstância que revele a dita especial censurabilidade nem perversidade por parte do arguido – a sua conduta é censurável, mas não se verifica essa agravante qualificativa, mormente não se está perante qualquer das elencadas na aludida al. d), que também constava da acusação e que foi aceite no acórdão recorrido, mas sem fundamento.
O MºPº, na resposta ao recurso, atira a hipótese de se tratar de motivo fútil, mas este não é consentâneo com a situação gerada na altura dos factos, em que ocorreu exaltação de ânimos, com discussão e empurrões entre os intervenientes. Ou seja, inexiste, também aqui, a especial censurabilidade a que se reporta tal qualificativa.
Concluindo:
Neste caso, apenas estão preenchidos os requisitos, objectivos e subjectivos, da prática pelo arguido do crime de ofensa à integridade física simples (na forma consumada), p. e p. pelo artº 143º, nº 1 do C.Penal, no que respeita ao ofendido (VT); neste caso, o arguido agiu (somente) com a intenção de molestar fisicamente este ofendido, como conseguiu, causando-lhe, como vimos, necessária e adequadamente, as lesões descritas no relatório clínico de fls. 142 a 144, e que demandaram (apenas) 8 (oito) dias de doença, com igual período de incapacidade para o trabalho – cfr. exame de sanidade constante de fls. 186-188.
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D) Quanto à medida concreta da pena.
Como vimos, o arguido é autor material e em concurso real dos crimes de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos artºs 22º, 23º, 73º, nº 1, als. a) e b), e 131º, do C.Penal (ofendido (CF)) e de ofensa à integridade física simples (este consumado), p. e p. pelo artº 143º, nº 1 do mesmo diploma legal.
O crime de homicídio tentado é punível com a pena de 8 a 16 anos de prisão, especialmente atenuada. Ou seja, o limite máximo da pena de prisão é reduzido de um terço citado artº 73º, nº 1, al. a) do C.Penal – enquanto o limite mínimo da pena de prisão é reduzido a um quinto (se for igual ou superior a 3 anos, como é o caso) – alª b) desse mesmo nº 1.
Assim, a pena aplicável varia, no caso, entre o mínimo de 1 ano, 7 meses e 6 dias de prisão, e o máximo de 10 anos e 8 meses de prisão.
E no que respeita ao crime de ofensa à integridade física (artº 143º, nº 1 do C.P.) a pena aplicável é a de prisão até 3 anos ou pena de multa.
Convém, desde já, dizer que na aplicação de penas visa a lei a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – cfr. nº 1 – mas que: «2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.» - cfr. nº 2, do artº 40º do C.Penal.
Há, pois, que ter em conta a protecção dos bens jurídicos acima referidos, mormente no caso do artº 131º do C.Penal, o homicídio voluntário (tentado, no caso) é a vida humana, o bem mais valioso, enquanto no crime do artº 143º, se previne a ofensa à integridade física do ofendido.
O arguido agiu, como vimos, com dolo directo, em ambos os casos, sendo certo que usou um meio perigoso, a navalha apreendida e examinada nos autos (já acima retratada), com a qual ocasionou as lesões já acima descritas, mas repetimos:
Ao ofendido (CF), causou as lesões constantes dos boletins clínicos juntos a fls. 77 a 93, mormente a fls. 86: hemoperitoneu com bastantes coágulos, bem como ferida penetrante no peritoneu, junto ao bordo do lobo esquerdo do fígado, atingindo a grande curvatura gástrica e grande epíplon, lesões que demandaram, directa e necessária, de 15 (quinze) dias de doença, com igual tempo de incapacidade para o trabalho em geral e para o trabalho profissional (cfr. auto de fls. 131 a 134).
Estas lesões curaram, tendo no entanto para este ofendido, como consequência permanente: a) uma cicatriz linear mediana de aspecto operatório, supra e infra-umbilical, com cerca de 30 centímetros de comprimento; b) cicatriz linear arciforme com vestígios de pontos de sutura, medindo cerca de 4,5 centímetros de comprimento na região precordial; c) cicatriz linear transversal, com cerca de 1 centímetro de comprimento, na região periumbilical à direita; d) cicatriz linear irregular com vestígios de pontos de sutura, medindo cerca de 2,5 centímetros de comprimento, no bordo cubital do antebraço à esquerda (citado auto de fls. 131 a 134).
Enquanto o ofendido (VT) sofreu as lesões constantes do relatório clínico de fls. 142 a 144: ferida cervical da face externa direita do corpo, que demandaram, adequadamente, os ditos 8 (oito) dias de doença, com igual período de incapacidade para o trabalho (relatório de fls. 186-188).
Há, assim, que atender a todas as circunstâncias que «..., não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele ...» - cfr. artº 71º, nºs 1 e 2 do C.Penal, tudo isto tendo em conta a culpa do agente e as exigências de prevenção, geral e especial.
Daí que haja que sopesar não só o intenso dolo (directo) bem como as consequências dos ilícitos (já descritas), mas também que o arguido tem muito mau comportamento anterior – cfr. os seus antecedentes criminais, com condenações por crimes contra as pessoas (roubos), tendo cumprido várias penas de prisão efectiva; mas também sem se descurar que fora toxicodependente e que, apesar de tudo, tentou tratar-se iniciando um programa de metadona, com acompanhamento médico e social regular (de Outubro de 1999 a Dezembro de 2002). Parece, pois, tratar-se de situação não totalmente resolvida pelo arguido, o que faz acentuar a probabilidade de voltar a delinquir.
Como se viu, o arguido não beneficia de qualquer atenuante, pelo que atentas as exigências de prevenção e a finalidade de reinserção social, não podemos deixar de optar pela pena privativa da liberdade em ambos os casos (cfr. artº 70º do C.Penal, no que respeita ao do crime do artº 143º, nº 1 do C.Penal).
Assim, e reponderando, consideram-se adequadas e justas, no caso concreto, as seguintes penas parcelares de:
a) 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, pelo crime de homicídio tentado;
b) 1 ano de prisão, pelo crime de ofensa à integridade física;
E a pena única (artº 77º do C.Penal) de: 4 (quatro) anos de prisão.
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IV – DECISÃO:
Nos precisos termos acima expostos, acordam em dar provimento ao recurso, alterando-se a decisão recorrida:
a) corrigindo-a, quanto ao lapso acima referido (em III-C supra), no âmbito da matéria de facto provada, passando a consignar-se que (ao invés da expressão de que «...não foi possível apurar até ao momento as consequências das mesmas.») as lesões (do ofendido (VT) «...demandaram 8 (oito) dias para a cura, com igual período de incapacidade para o trabalho.»;
b) alterar a qualificação jurídico-penal dos factos, não se considerando preenchidas as qualificativas agravantes (do artº 132º, nº 2 do C.P.), passando a considerar-se o arguido como autor material e em concurso real de um crime de homicídio voluntário (simples) na forma tentada, p. e p. pelos artºs 22º, 23º, 73º, nº 1, als. a) e b), e 131º do C.Penal, e de um crime de ofensa à integridade física (simples), p. e p. pelo artº 143º, nº 1 do mesmo diploma legal;
c) e alterar as penas parcelares e única, que passam respectivamente a ser as seguintes:
1. 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, pelo crime de homicídio tentado;
2. 1 (um) ano de prisão, pelo crime de ofensa à integridade física;
E a pena única passa a ser a de: 4 (quatro) anos de prisão.
d) No mais mantém-se a decisão recorrida.
Sem custas.

Lisboa, 12 de Maio de 2004.

(Carlos Augusto Santos de Sousa – relator)
(Mário Armando Miranda Jones)
(Mário Manuel Varges Gomes)
(João Manuel Cotrim Mendes)