Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
173/2003-7
Relator: PROENÇA FOUTO
Descritores: RESPONSABILIDADE
ACTIVIDADES PERIGOSAS
PRESUNÇÃO DE CULPA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/18/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Sumário: A movimentação de carga pesada por grua em obra de construção civil é uma actividade perigosa, pelo que há uma presunção de culpa sobre quem exerce essa actividade, relativamente à morte de um trabalhador sobre o qual caiu uma palete de blocos de cimento.
Apesar da grua estar a ser utilizada por um subempreiteiro, competia à empreiteira, como empresa adjudicatária da obra, assegurar a coordenação desta em matéria de segurança, sem prejuízo das obrigações de cada empregador, relativamente aos seus trabalhadores.
Para ilidir a presunção de culpa que recai sobre ela, a empreiteira teria que provar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias, nomeadamente que deu instruções ao subempreiteiro em causa no sentido de que era necessário sinalizar e fiscalizar a zona de risco de queda de cargas perigosas.
Decisão Texto Integral: 1. O Trabalho – Companhia de Seguros, SA, instaurou ao abrigo dos artigos 441º do C. Comercial e 31º nºs 1 e 4 da LAT contra António Maria Aguiar, Lda., acção declarativa com processo sumário, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 9,283.95, acrescida dos juros de mora, à taxa legal desde a citação, responsável pelo acidente de trabalho (violação culposa das regras de segurança do trabalho) ocorrido em 19.02.00 que vitimou mortalmente o servente M. Trindade, trabalhador por conta de J. Sousa, no estaleiro da obra de construção de apartamentos sito na Rua Nova, Levada do Cavalo, em Santo António, Funchal, a dever reembolsar a Autora daquela importância que já despendeu, no cumprimento das obrigações emergentes do contrato de seguro de acidentes de trabalho que se derem com os trabalhadores daquele.
A ré excepcionou a sua ilegitimidade alegando que deu de subempreitada a H. da Silva a execução das obras de revestimentos e alvenarias dos apartamentos acima referidos, tendo-lhe cedido uma grua, que era manobrada por um trabalhador ao serviço deste, que içava uma palete de blocos de cimento que, por deficiente acondicionamento, caíram vindo a atingir o sinistrado; e, por impugnação alega que não desrespeitou quaisquer normas de segurança no trabalho, tendo recomendado a todos os subempreiteiros que avisassem os seus trabalhadores para não circularem mas zonas perigosas do estaleiro, daí faltar nexo de causalidade entre o acidente e a violação das regras de segurança.
Realizado o julgamento foi julgada improcedente a acção e absolvida a Ré do pedido.
Inconformada a Autora apelou desta decisão, assim concluindo a sua alegação:
1 – De matéria provada resulta que a Ré não cumpriu a obrigação de delimitar e sinalizar a zona do estaleiro onde se movimentavam cargas aéreas perigosas.
2 – Não tendo sido possível apurar, ao certo, os motivos que determinaram a queda da palete que veio a vitimar o infortunado M. Trindade, apurou-se, sem sombra de dúvida que este foi atingido numa zona que devia estar sinalizada e interdita nos termos dos artºs 9º e 10º da Portaria 1456-A/95, de 11.12.
3 – Tais obrigações impendiam sobre a Ré, nos termos conjugados dos artigos 5º, nº 4, 8º, nº 4, e 13º, todos do DL 441/91, de 14.11 e do artigo 8º do DL 155/95, de 1.7.
4 – Nos termos do dispostos no artigo 31º, nº 1, da Lei 100/97, 13.9, ao referir-se a expressão de “lei geral”, dever-se-á entendê-la com o sentido do ordenamento jurídico geral e não só a legislação especial atinente e acidentes de trabalho.
5 – Nos termos do disposto no artº 493º nº2 do C.Civil impendia sobre a Ré, para ilidir a responsabilidade, que empregou as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.
6 – Atenta tal inversão do ónus da prova, a matéria provada impunha a condenação da Ré no pedido.
7 – Na douta sentença o Tribunal “a quo” violou o disposto nos artºs 493º, nº2, do C.Civil e 31º da Lei nº 100/97 de 13.9.
A final pede a revogação da mesma e condenação da Ré no pedido.
Houve contra-alegações.

2.A) Consideram-se assentes os seguintes factos:
1. A A. exerce a indústria seguradora (alínea A)).
2. No exercício dessa actividade, a A. celebrou um contrato de seguro do ramo de Acidentes de Trabalho titulado pela apólice nº 425146, através do qual assumiu a responsabilidade pelos danos emergentes de acidentes de trabalho ocorridos com trabalhadores ao serviço de J. Henriques (alínea B)). -
3. No dia 19 de Fevereiro de 2000, cerca das 14h., no estaleiro da obra de construção de apartamentos sito na Rua Nova, Levada do Cavalo, Santo António, Funchal, ocorreu um acidente que vitimou mortalmente M. Trindade (alínea C)).
4. A ré é uma sociedade comercial cujo objecto é a actividade de construção civil e carpintaria e procedia à construção de apartamentos naquele local de Levada do Cavalo (alínea D)).
5. A ré deu de empreitada a J. Henriques os trabalhos de armação de ferro (alínea E)).
6. Ao tempo do acidente, o M. Trindade trabalhava sob a autoridade e direcção de J. Henriques exercendo as funções inerentes à categoria profissional de “servente”, mediante retribuição mensal de Esc. 78.900$00 (alínea F)).
7. Na data e hora referidos em C), o M. Trindade deslocava-se a pé no interior do estaleiro (alínea G)).
8. J. Fernandes estava a manobrar uma grua a qual içava uma palete de blocos de cimento (alínea H)).
9. Alguns desses blocos de cimento caíram e atingiram o M. Trindade na cabeça, causando-lhe a morte (alínea I)).
10. O acidente foi participado e aceite como acidente de trabalho (alínea J)).
11. A A., no cumprimento das obrigações emergentes do contrato de seguro de acidentes de trabalho referido em B), efectuou todas as prestações a que a viúva e filhos do sinistrado tinham direito, tendo despendido até Setembro de 2000 a quantia global de Esc. 1.86l.265$00 correspondentes a: subsídio por morte – Esc. 765.600$00; subsídio de funeral – Esc. 510.400$00; transportes – Esc. 2.190$00; pensões – Esc. 583.075$00 (alínea L)).
-12. Até Setembro de 2000 a A. pagou pensões no valor de Esc. 583.075$00 (alínea M)).
13. A grua referida em H) pertencia à ré (alínea N)).
14. Martinho Gouveia da Trindade casou com Filomena de Jesus Pereira em 30.04.1981 (alínea O)).
15. R. Trindade e F. Trindade são filhos de M.Trindade e de Filomena de Trindade (alínea P)).
-16. A ré é uma sociedade comercial cujo objecto é a actividade de construção civil e carpintaria (alínea R)).
17. A ré não providenciou a sinalização do local a avisar da movimentação de carga perigosa e dos riscos de queda de carga (ponto 6.).
18. No exercício da sua actividade comercial, a ré, em Março de 1999, celebrou um contrato de empreitada com “Serpalium – Investimentos Imobiliários, Lda., no âmbito do qual se obrigou a construir, no prédio sito à Rua da Levada do Cavalo, nº 21, no Funchal, uma edificação urbana constituída por dois blocos de apartamentos, denominados “Kripton IV” e “Kripton V”, abreviadamente por K4 e K5 (ponto 9.).
19. No mês de Novembro de 1999, e pelo tempo de duração da obra em causa, a ré deu de subempreitada a H. da Silva, a execução das obras de revestimentos exteriores e alvenarias dos prédios em construção (ponto 10.).
20. Tendo cedido, para o efeito e pelo mesmo prazo, a utilização da grua referida em 8. (ponto 11.).
21. A grua, desde o início da subempreitada referida em 19. até final da mesma foi sempre manobrada por um trabalhador ao serviço e sob autoridade e direcção do subempreiteiro H. da Silva (ponto 12.).
22. Os trabalhadores do H. da Silva procediam à recepção, elevação, transporte e colocação dos blocos de cimento nos locais da obra onde os mesmo eram necessários, através da utilização da grua (ponto 13.).
23. O J. Fernandes era trabalhador e estava sob a autoridade e direcção do subempreiteiro H. da Silva (ponto 14.).
24. Na obra em causa trabalhavam vários subempreiteiros (ponto 15.).
25. Os blocos de cimento utilizados na obra referida em 18. foram vendidos por J. Catanho, que fabrica e comercializa tais produtos (ponto 16.).
26. A ré deu instruções no sentido de todos os trabalhadores não circularem em determinadas zonas do estaleiro, designadamente na área de movimentação da grua (ponto 18.).
27. A ré recomendou a todos os subempreiteiros que fizessem cumprir junto dos seus trabalhadores essas instruções (ponto 19.).
28. Existia plano de segurança na obra (ponto 20.).
29. Os blocos de cimento são vendidos sobre paletes em madeira, vindo já devidamente acondicionados e presos com tiras sintéticas apropriadas, resistentes e seguras, e prontos a serem içados e deslocados no local de destino (ponto 21.).

B) O Direito
Da factualidade apurada resulta que o sinistrado trabalhava na obra em causa como servente por conta do subempreiteiro J. Henriques a quem a Ré havia dado de subempreitada os trabalhos de armação de ferro.
Doutra parte, J. Fernandes estava ao serviço de outro subempreiteiro H. da Silva, a quem a Ré dera de subempreitada a execução das obras de revestimentos exteriores e alvenarias dos prédios em construção, e ao manobrar uma grua que içava uma palete de blocos de cimento, alguns caíram atingindo a vítima M. Trindade, que se deslocava a pé no interior do estaleiro.
Por sua vez a Autora havia celebrado um contrato de seguro, titulado pela apólice 425146, através do qual assumiu a responsabilidade pelos danos emergentes de acidente de trabalho ocorridos com os trabalhos ao serviço de J. Henriques, sendo a Ré uma empresa de construção que procedia à construção de apartamentos no local de Levada do Cavalo, em Santo António do Funchal, como empreiteira da obra. Havia mais subempreiteiros.
Estamos, pois, perante um outro trabalhador e outro empregador (não há uma relação laboral entre a vítima e a entidade patronal). O que quer dizer que não há responsabilidade contratual, ou seja, que respeita à relação laboral entre a entidade patronal e o servidor).
Estamos no domínio da responsabilidade extracontratual (por facto ilícito) por pretenso exercício de actividade perigosa a que se refere o artigo 493º, nº2, do Código Civil.
Este normativo não diz o que se deve entender por uma actividade perigosa. Apenas se admite genericamente, que a perigosidade derive da própria natureza da actividade ou da natureza dos meios utilizados. É matéria a apreciar, em cada caso, segundo as circunstâncias (A. Varela, C.C.Anot., vol. I, 3ª ed., pag. 469). É o carácter perigoso da actividade exercida que produz só por si a responsabilidade de quem a exerce.
Há uma presunção legal de culpa na hipótese do artigo 493º nº2 do C.Civil que os danos causados no exercício de actividades perigosas o lesante só poderá exonerar-se de responsabilidade, provando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para os evitar (apud, A. Varela, Das Obrigações em Geral, 9ª ed., vol. I, pag. 616) à luz da normal diligência do bonus pater familias (cfr. Vaz Serra, RLJ ano 102, 319), pressuposto que actua sobre a culpa e não sobre qualquer outro pressuposto da indemnização.
Há assim uma presunção de culpa de quem exerce essa actividade estabelecendo este normativo uma verdadeira inversão do ónus de prova razão porque estando alegado e provado que a vítima estava ao serviço do segurado e o trabalhador que movimentava a grua servidor doutra entidade patronal, que ao içar uma palete de blocos de cimento, alguns deles caíram e atingiram o M. Trindade na cabeça, causando-lhe a morte (e o dano), decorre que tem de qualificar-se de perigosa pela natureza dos meios utilizados – a actividade de movimentação de carga perigosa e riscos de queda de carga - o acidente deveu-se à queda, por motivos não apurados, de materiais perigosos de uma grua que estava a ser utilizada em benefício do subempreiteiro Horácio. Caberia à Ré a prova da exclusão da causalidade entre o facto danoso e a queda de blocos.
E para saber quais as providências a adoptar pelo sujeito, idóneas para evitar os danos, observa Vaz Serra (in BMJ nº85, pag. 376) que “di-lo-ão as particulares normas técnicas ou legislativas, inerentes às especiais actividade, ou as regras de experiência comum”.
Já vimos que na execução da obra ajuizada intervinham mais de uma empresa, a Ré, como empreiteira e outros subempreiteiros além do José Nélio e do Horácio, todos eles empregadores e tendo ao serviço os respectivos trabalhadores.
Há regras de procedimento da actividade perigosa expressa em normas disciplinadoras a garantir a observância das obrigações gerais previstas no artigo 8º, nº2, do Dec. Lei nº 441/91, de 14.11, e, em especial, as enumeradas no nº1, do artigo 8º do Dec. Lei 155/95, de 1.7, e, ainda, as prescrições mínimas para a sinalização de segurança e de saúde no trabalho, regulamentadas na Portaria nº1456 – A/95, de 11.12.
“In casu” cabia à Ré, como empresa adjudicatária da obra, assegurar a coordenação dos demais empregadores (entre outros, os subempreiteiros Horácio e José Nélio) no sentido da protecção da segurança e saúde, sem prejuízo das obrigações de cada empregador relativamente aos respectivos trabalhadores (cfr. artigo 13º, do mesmo diploma legal).
As obrigações atribuídas ao coordenador em matéria de segurança durante a realização da obra estão reguladas no artigo 9º do Dec. Lei nº155/95, de 1.7 (divulgação de informações sobre riscos profissionais, promoção e coordenação dos princípios gerais de prevenção, zelar pelo cumprimento das obrigações de segurança cometidas aos empregadores).
Incumbe aos empregadores para além das obrigações decorrentes do artigo 8º, nº1, do Dec. Lei nº155/95, de 1.7 de que se destacam as das als. a) e c) – manter o estaleiro em boa ordem e garantir a correcta movimentação dos materiais – a sinalização de local perigoso por riscos de queda de objectos (cfr. artº 9º da Portaria nº1456 – A/95, de 11.12).
A questão é a de saber se a Ré, como coordenadora da obra em matéria de segurança, deu todas as indicações a que estava obrigada aos empregadores, nomeadamente, ao subempreiteiro Horácio, e que este tenha tomado todas as medidas adequadas a prevenir o sinistro e observado as instruções emanadas daquela.
Seguro é que a Ré ao ceder a grua ao subempreiteiro Horácio se impunha informá-lo que era preciso sinalizar e fiscalizar a zona de risco de queda de cargas perigosas.
Acontece que se provou que a Ré não deu instruções de sinalização do local, omissão causal do acidente de trabalho que vitimou o trabalhador Martinho Andrade que prestava serviço ao subempreiteiro Nélio. Sem prejuízo de impender também responsabilidade do empregador Horácio no acidente, na medida em que devia ter sinalizado e marcado o local, como decorre dos artigos 8º dos Dec. Lei nº441/91 e 155/95, e, 9º e 10º, da Portaria nº1456 – A/95.
É que as obrigações atribuídas aos coordenadores em matéria de segurança não exoneram o empregador das responsabilidades que lhe estão cometidas pelo Dec. Lei nº 441/91 (cfr. nº2, do artigo 8º, do Dec. Lei nº 155/95).
Mas só a ré foi posta a terreiro. Competia-lhe informar e zelar pela sinalização e o subempreiteiro Horácio tinha que a pôr lá – assinalar a zona de risco e delimitá-la – por haver risco de queda de cargas perigosas.
A verdade é que a Ré não ilidiu a presunção de culpa que sobre ela impendia nos termos do artigo 493º, nº2, do C.Civil, ou seja, não provou que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos para se eximir da obrigação de repara os danos causados ao segurado da Autora.
A acção não pode deixar de proceder.

3. Termos em que se dá provimento à apelação, revogando-se a decisão recorrida, e, em consequência, se condena a Ré a pagar à A. a quantia de 1.861.265$00, acrescida dos juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Custas pela Ré em ambas as instâncias.

Lisboa, 18 de Março de 2003

Proença Fouto
Vasconcelos Rodrigues
Roque Nogueira