Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2802/2006-7
Relator: MARIA AMÉLIA RIBEIRO
Descritores: APREENSÃO DE VEÍCULO
RESERVA DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/23/2006
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: O mutuante com reserva de propriedade constituída a seu favor pode requerer a apreensão do veículo por via do procedimento cautelar constante dos artigos 15.º e 18.,nº1 do Decreto-Lei n.º 54/75, de 24 de Fevereiro.
(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam na Relação de Lisboa

Procº nº 2802/06
7ª Secção

 Agravante: A. Banco. […]S.A.
 Agravado: R. M.[…]Lda.


Pedido: apreensão do veículo[…]

Alega, em síntese, que celebrou com a requerida um contrato de mútuo, reembolsável pelo valor total (incluindo juros) de 5.852.64€, para aquisição de um veículo, com reserva de propriedade; porém, aquela não cumpriu plenamente nem procedeu à restituição do veículo; mais alega fundado receio de que, pela perda de garantia patrimonial, venha a sofrer prejuízos graves e irreparáveis.

Foi proferida decisão de indeferimento da pretensão formulada.

É contra esta decisão que se insurge a recorrente, formulando as seguintes conclusões:

1ª A recorrente tem registada a seu favor a reserva de propriedade sobre o veículo automóvel de marca Hyundai, matricula […]
2ª A recorrente tem legitimidade para deduzir a providência cautelar de apreensão de veículo supra indicado;

3ª A requerida não cumpriu as obrigações que deram origem à reserva de propriedade;

4ª Face ao incumprimento do contrato de mútuo pela requerida, assiste à agravante o direito à resolução do contrato;

5ª O Tribunal a quo indeferiu liminarmente o requerimento inicial da providência cautelar, desrespeitando as normas seguintes:
a) Art.º 62º nº1 da CRP: a sentença veda à recorrente o ressarcimento em tempo útil, do seu direito, o qual tem natureza patrimonial;
b) Artº 205º da CRP: a sentença recorrida veda, na prática, à recorrente a administração da justiça, na medida em que esta deve ser exercida em tempo útil;
c) As disposições dos artigos 381º e ss. do C.P.C. e 589º do C.C.


II. 1. A questão a resolver consiste em saber se no presente caso é legalmente possível o decretamento da apreensão do veículo em questão.

II. 2. Em primeira instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. No exercício da sua actividade creditícia celebrou com o requerido um contrato de mútuo, pelo qual lhe emprestou a quantia de € 5.000.000 com vista à aquisição da viatura identificada, a ser pago, faseadamente em 24 prestações mensais de € 243.86 cada, num total de € 5.282.64;
2. A operação de financiamento foi efectuada com reserva de propriedade a favor da requerente para garantir o seu integral cumprimento;
3. O requerido deixou de pagar as prestações, tendo a requerente, por carta datada de 21/12/2005 remetida à requerida, interpelado para o pagamento das prestações em dívida, sob pena de considerar o contrato resolvido;
4. A requerida não efectuou qualquer pagamento, nem procedeu à restituição do veículo.




II. 2. 2. Apreciando:

O presente procedimento cautelar foi indeferido com base na ineptidão do requerimento inicial, por se ter considerado que a requerente não alegou quaisquer factos atinentes ao contrato de alienação entre as partes celebrado, sendo certo que sobre ela recaía tal incumbência, face ao estatuído nos artºs 15º e 18/1 do DL 54/75, de 24 .02.

Ou seja, reequacionando a questão que cumpre resolver, numa outra perspectiva, importa analisar se no caso em apreço, atendendo ao estatuído no art.º 15º e seguintes do DL 54/75 de 12.02, é o vendedor que tem legitimidade para requerer a apreensão do veículo.

Como contraponto essencial das alegações, sustenta a agravante que houve uma sub-rogação da entidade financiadora pelo vendedor, transmitindo-lhe a propriedade, tendo o comprador pleno conhecimento de tal facto.

Vejamos:

Não obstante a controvérsia jurisprudencial sobre a matéria, afigura-se-nos assistir razão à recorrente.

Na verdade,

Tem-se entendido que a apreensão judicial de veículo automóvel constitui uma providência que, no que concerne ao contrato de compra e venda com reserva de propriedade, visa antecipar o efeito da resolução do contrato, (1) com o argumento nuclear de que falta o nexo de instrumentalidade em relação à acção principal. (2) 

E aqui está em evidência o disposto no art.º 18º/1 in fine, em conjugação com o disposto nos artºs 15/1 e 16/1 do mesmo diploma que – segundo o que se tem entendido – restringe o acesso a tal providência aos casos em que, havendo falta de pagamento de parte ou da totalidade do preço, se pretenda a condenação do devedor na sequência da resolução do contrato de compra e venda. E neste sentido, o citado artº18º … fixa o nexo de instrumentalidade da providência não em relação à relação do contrato de mútuo mas sim do contrato de alienação.

Neste caso tem-se imputado ao mutuante a assunção dos riscos de insolvência do comprador ou o risco do processo assinalado, apesar vir realçada a décalage entre a agilidade e informalidade dos mecanismos económico-financeiros e a maior inércia inerente aos instrumentos jurídicos. (3)

No presente caso, a financiadora é também a titular activa do registo da reserva de propriedade. Isso configura, de diferente modo a situação, apontando para uma já total satisfação dos direitos da vendedora que, inequivocamente, o DL 54/75 quis acautelar, ao prevenir e regular a possibilidade de destruição ou desvalorização perante um incumprimento do devedor e as demoras decorrentes do accionamento judicial normal. Por isso, no mínimo, atenua-se a questão da omissão de factos concernentes ao contrato de alienação, face ao citado diploma, que permite, assim, extensão das razões que levam ao mecanismo protector da vendedora também à mutuante.

A requerente formula a sua pretensão em sede a alegações, com base na existência do periculum in mora, bastando para isso ter em atenção que a não devolução do veículo, no contexto de uma situação de incumprimento, indicia suficientemente o perigo de desaparecimento ou de significativa depreciação do mesmo… (4)

Como se entendeu, estamos perante uma providência do tipo restituitório ou até mesmo antecipatório, em que, como se viu, se presume o periculum in mora, seguindo-se… o regime do procedimento cautelar comum previsto nos artºs 381º e seguintes do C.P.C.

Daqui resulta também que a lesão grave e de difícil reparação relevante reconduz-se, em última análise, ao risco de perda do direito de propriedade sobre o próprio bem.(5)

De qualquer modo, revestindo, a decisão do presente procedimento, natureza meramente cautelar, só na acção que vier a ser intentada se procederá ao acerto de contas pertinente nos termos do contrato.


III. Pelo exposto e decidindo, de harmonia com as disposições legais citadas, concede-se provimento ao agravo e, revogando-se a decisão recorrida, ordena-se a apreensão do veículo em causa, até que, em acção própria seja proferida decisão final.

Custas pela requerente, a atender na acção principal.

Lisboa, 23 de Maio de 2006

(Maria Amélia Ribeiro)

(Graça Amaral)

(Arnaldo Silva)


Vencido pelas seguintes razões.

Há uma interconexão funcional entre o contrato de mútuo e o contrato de compra e venda (união de contratos) em que ambos os contratos funcionam como condição recíproca simultânea um do outro, já que o financiador não é um simples financiador, mas alguém que facilita a compra e a vendedora não é uma simples vendedora, mas uma vendedora que colabora com a financiadora por forma a ambas ampliarem as suas ofertas e a satisfação da procura, tendo em vista a ampliação dos seus lucros.

Assim sendo, era perfeitamente admissível que a vendedora reservasse para si o direito de propriedade do veículo automóvel até que a compradora pagasse integralmente as prestações ao mutuante. O que não pode é a mutuante reservar para si própria o direito de propriedade do dito veículo automóvel. O que pode é beneficiar da reserva do direito de propriedade que a vendedora fizer para si,  se a vendedora a condicionar ao pagamento das prestações do mútuo.

Não tendo a requerente alegado quaisquer  factos nus e crus quanto à reserva do direito de propriedade feito em seu benefício pela vendedora, o requerimento inicial é inepto e, por conseguinte, devia ser liminarmente indeferido.

Por estas razões, negaria provimento ao agravo


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(1).-Ac.RL de 16.12.03, www.dgsi.pt/jtrl , Rel Des. António Geraldes.

(2).-AC. STJ, www.dgsi.pt/jtrl , Rel Cons. Araújo Barros.

(3).-Vd. Nota (1).

(4).-Vd, voto de vencido do Dês. Tomé Gomes, no Ac. RL de 30.03.04, www,dgsi.pt/jtrl , a propósito de uma situação de ALD.

(5).-Idem.