Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | ANTÓNIO SIMÕES | ||
| Descritores: | PRISÃO PREVENTIVA FUNDAMENTAÇÃO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 01/28/2004 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL. | ||
| Decisão: | PROVIDO. | ||
| Sumário: | I – É de anular por falta de fundamentação (artº 97º, nº 4 do C.P.P.) o despacho que manteve a medida de coacção de prisão preventiva em sede de reapreciação trimestral omitindo os reais e concretos fundamentos da medida de coacção vigente. II – “Um tal despacho, para além da fundamentação de direito, deve incluir: a) a indicação, ainda que sintética, dos factos fortemente indiciados; b) a indicação dos meios de prova que fundamentam a qualidade ou grau de indiciação, bem como a justificação deste”. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa: 1. (A), cidadão romeno, identificado a fls. 2, foi submetido a interrogatório levado a efeito pela Mmª. Juiz de Instrução do TIC de Lisboa no dia 28.08.2003, na sequência de ter sido detido e apresentado nesta situação ao magistrado judicial. Findo o interrogatório, foi lavrado despacho que determinou a prisão preventiva do apresentado com o fundamento de que os autos indiciavam a prática, em comparticipação de crimes de associação de auxílio à imigração ilegal, de auxílio à imigração ilegal e de angariação de mão-de-obra ilegal p. e p. pelos artºs 135º, 134º-A e 136º, todos do Dec.-Lei nº.344/98, de 8.8, alterado e republicado pelo Dec.-Lei nº.34/03, de 25.2 e ainda de um crime de falsificação p. e p. pelo artº.256º do Cód.Penal, acrescido de que a particular gravidade dos crimes era indutora de perigo de fuga, "perturbação dos ulteriores termos do processo" (sic), concluindo-se que "a prisão preventiva é necessária para evitar tais crimes" (sic). Foi invocado em tal despacho o normativo dos artºs 202º, 1, a), 204º, a), b) e c) do CPP. 2.Em 10.11.2003, o arguido apresentou requerimento no TIC de Lisboa dirigido ao respectivo juiz (fls.21) no qual solicitava a sua audição, em sede de reexame trimestral dos pressupostos da prisão preventiva, de modo a poder exercer na sua plenitude o princípio do contraditório e igualdade de armas, tendo em conta os depoimentos prestados por duas testemunhas no âmbito da inquirição para memória futura, tudo ao abrigo do disposto no artº.213º do CPP. Tal requerimento mereceu do magistrado a que era dirigido sucinto despacho. Dali consta: "Por ora não se vê fundamento para deferir o requerido". E acrescenta-se: "No entanto, e porque haverá que proceder à reapreciação dos pressupostos da prisão preventiva muito em breve, notifique o Ilustre Mandatário do arguido para, nos termos do artº.213º, 3 do CPP, se pronunciar, querendo, em três dias". 2.1. Em 27.11.2003 apresentou o arguido o requerimento certificado a fls.23 a 25 renovando o pedido de audição pelo juiz. Invocou o requerente o direito de ser ouvido que confere o artº. 61º, 1, b) do CPP, conjugado com o artº.213º do CPP, enquanto determina seja proferida decisão sobre a subsistência da prisão preventiva e manifestou entendimento de aquele primeiro inciso é emanação do comando constitucional contido no art.º. 32º, 2 da CRP. Anota-se que neste requerimento e no que já foi referido e o precedeu o arguido pede para ser ouvido sozinho e sem tradutor, sem que fundamente as razões dessa vertente do que solicita. 3. Este novo requerimento foi indeferido por não se considerar oportuna a realização do interrogatório, "tendo em conta o decorrer da investigação" (despacho certificado a fls. 26). Ainda neste despacho foi reapreciada a situação de prisão preventiva. Diz-se nesse despacho que a prisão preventiva do arguido foi determinada por se indiciar a prática dos crimes de auxílio à imigração ilegal e de angariação de mão-de-obra ilegal e por se considerarem ainda verificadas as situações de perigo de continuação de actividade criminosa e perigo de fuga. E de seguida afirma-se: "Por se manterem inalterados os pressupostos da facto e de direito que justificaram a sujeição do arguido a tal medida de coacção, determino que continue a aguardar os ulteriores termos processuais na situação em que se encontra e já definida nos autos" (fls.27). Em 4.12.2003 o arguido apresentou requerimento no qual arguiu a irregularidade deste despacho por falta de fundamentação, invocando para o efeito o preceituado no artº.97º, 4 do CPP. O Mmº. Juiz do TIC de Lisboa no despacho certificado a fls. 33 considerou improcedente o requerido pronunciando-se no sentido de que inexistia a alegada irregularidade. Fundamentou a improcedência afirmando que "com a avaliação trimestral da situação processual de prisão preventiva apenas se pretende aferir sumariamente da subsistência dos pressupostos de facto e de direito que justificaram a decisão de sujeitar o arguido a tal medida de coacção". E é de despacho que determinou a manutenção da medida de coacção mais grave, reapreciada em cumprimento do disposto no artº.213º do CPP que o arguido recorre. 4. O recurso, oportunamente admitido foi motivado e do alegado extrai o recorrente as seguintes conclusões: "A) Por despacho de fls. 2601, o Tribunal "a quo" decidiu manter a aplicação da medida de coacção prisão preventiva, com os seguintes "fundamentos": "Por se manterem inalterados os pressupostos de facto e de direito que justificaram a sujeição do arguido a tal medida de coacção, determino...". B) A fls. 2618 veio o aqui Recorrente, ao abrigo do disposto no art. 123.°, n.° 1 e 97.°, nº. 4, do CPP, arguir a irregularidade do despacho, por falta de fundamentação. C) Existe uma manifesta desproporção entre a importância e gravidade do decidido - manutenção da prisão preventiva - e a insuficiente ou mesmo nula fundamentação que sustentou tal decisão. D) A fundamentação do despacho permite o controlo da actividade jurisdicional, por parte, e serve para convencer da sua correcção e justiça, por outra parte. E) Não basta a enunciação dos motivos de facto da decisão, importa também indicar os elementos de prova em que o M.° Juiz fundamentou a sua convicção sobre a ocorrência dos pressupostos materiais da medida de coacção aplicável, sem o que, o recurso dessa decisão é um recurso limitado à matéria de direito. F) O Tribunal "a quo" entendeu que a fundamentação era suficiente, pois com a "revisão trimestral da situação processual de prisão preventiva apenas se pretende aferir sumariamente da subsistência dos pressupostos de facto e de direito que justificaram a decisão de sujeitar o arguido a tal medida de coacção". G) Como pode o Tribunal "a quo" afirmar que se mantiveram inalterados os pressupostos de facto e de direito que justificaram a aplicação da medida de coacção prisão preventiva, se nem ouviu o Arguido e aqui Recorrente? H) Nos termos dos art.s 428.°, n.° 1 e 412.°, n.° 1 e 3, ambos do CPP, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, devendo, in casu, o Recorrente especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados. I) A decisão recorrida esgota a possibilidade de recorrer de facto, restando ao Recorrente o recurso em matéria de direito. J) A decisão ora recorrida coarcta o direito de recurso do Arguido (art. 61.°, n.° 1, al. h)), o princípio do contraditório, o princípio da igualdade de armas, o princípio da presunção de inocência e a exigência de um processo equitativo e de garantia de todos os meios de defesa. K) O despacho recorrido não assegura ao Arguido e aqui Recorrente todas as garantias de defesa, incluindo o recurso, assim entendido na sua plenitude - recurso sobre matéria de direito e sobre matéria de facto -, violando-se por isso o disposto no art. 32.°, n.° 1, da CRP." E pede que o despacho recorrido seja revogado. 4. 1 O Dº. Magistrado do Mº.Pº. junto do tribunal de 1ª instância respondeu à argumentação do arguido. Nessa resposta, para além do mais, o ilustre magistrado sustenta que não assiste qualquer razão ao arguido, porquanto não tem o juiz a obrigação de ouvir o arguido ou o Mº.Pº. em acto prévio à reapreciação trimestral da prisão preventiva, como entende resultar claramente do artº.213º, 3 do CPP. E salienta que neste caso, embora a tal não obrigado, ouviu o arguido, notificando-o para se pronunciar sobre aquele matéria, o que o mesmo fez. Pondera ainda que, no despacho recorrido não foi decidida definitivamente a pretensão do arguido, a qual pode ser reapreciada em momento oportuno. Aqui se acrescenta que, certamente se refere o Dº. Magistrado à requerida prestação de declaração sucessivamente solicitada ao JIC. 4.2. Neste TRL o Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual conclui que deve ser dado provimento ao recurso, porquanto o despacho que denegou a requerida prestação de declarações viola o disposto no artº.61º, 1, b) e f) do CPP, acrescentando que "o depoimento do arguido pode ajudar a fazer uma melhor apreciação da medida da prisão" e invoca recente jurisprudência do Tribunal Constitucional, a qual, face ao disposto no artº.13º do CRP deve servir a todos os arguidos. 5. Impõe a CRP que as decisões dos tribunais sejam fundamentadas na forma prevista na lei ordinária (artº.205º, 1), cometendo a esta a concretização do grau de exigência que em cada caso o órgão jurisdicional deve satisfazer. No campo específico do Direito Criminal, à semelhança do que sucede na jurisdição civil, o acto decisório final do processo (singular ou colegial) merece da lei, por razões evidentes, um grau de pormenorização dos requisitos de fundamentação elevado, cujo incumprimento determina a nulidade do acto (cf. artºs 374º, 3 e 379º a) do CPP). A materialização do imperativo constitucional é contemplada no compêndio adjectivo fundamental da área criminal com uma disposição genérica dirigida a qualquer acto decisório da competência do juiz, obrigando-o a fundamentar de facto e de direito (artº.97º do CPP). No contexto processual penal, as consequências da omissão de fundamentação, em termos gerais, configuram-se como irregularidade, uma vez que a lei os não contempla com regime mais severo (cf. artºs 118º e ss. e com relevo para o disposto no artº.118º, 2 do CPP). No caso vertente, conforme atrás se relatou, a ocorrência de irregularidade foi arguida, presume-se que tempestivamente, sendo desatendida a pretensão do recorrente. O despacho em causa, como é manifesto, por si só, não cumpre o imperativo legal de fundamentação de um acto que é, também manifestamente, decisório. Trata-se de despacho cujo teor se reporta, de forma apenas suficientemente explícita, aos fundamentos e decisão de submeter inicialmente o recorrente à medida de coacção de prisão preventiva. Esta decisão inicial, em parte atrás transcrita no item 1. no tocante aos seus fundamentos, foi assim objecto de renovação implícita por via remissiva. A operação de remissão, no contexto de um mesmo processo e em sede de reapreciação da continuidade da mesma medida de coacção, não se considera, como tal, merecedora de qualquer reparo, mormente se não tiver sido alegada ou oficiosamente verificada a ocorrência de factos novos com interesse para a reapreciação da situação de prisão preventiva. O que se exige é que a decisão para a qual se remete tenha em si consubstanciado o cumprimento da obrigação de fundamentar imposta pelos diversos patamares legais e que o simples bom senso e, no caso, o respeito pela pessoa humana, exigem. Não é isso que sucede. Ao dizer-se que "A particular gravidade dos crimes faz temer pelo perigo de fuga, perturbação dos ulteriores termos do processo e continuação de actividade criminosa, impondo-se a conclusão de que a prisão preventiva é necessária para evitar tais crimes", enunciam-se, com notória imprecisão aliás, alguns dos requisitos de que o CPP (artº.204º) faz depender na generalidade a aplicação de medidas coactivas. Para não dizer que existe uma total omissão de fundamentação, considera-se que quase nada de concreto aí se afirma como motivação da prisão preventiva do aqui recorrente. Remete-se esse despacho, salvo na parte decisória, a uma exposição conceptual que não pode considerar-se como satisfatória da obrigação de fundamentação. Como é evidente, a ausência de arguição de irregularidade ou a sua impugnação por via de recurso, tornou inatacável a decisão tomada. Porém, quando no despacho a que se refere o art.º. 213º do CPP o Mmº. JIC de Lisboa para ele remeteu, colocou o seu impugnado despacho sob a mira da crítica que o primeiro despacho já mereceu. Isto é, foi proferido despacho irregular por falta de fundamentação, conclusão que determina a invalidade do decidido. Deveria, consequentemente, o Mmº.JIC de Lisboa, quando foi confrontado com a alegação de irregularidade dessa decisão tê-la reconhecido e decidido pela reparação invalidante do acto que era objecto dessa arguição. Não o fez. E justificou a sua posição, ponderando que, com a revisão trimestral da prisão preventiva apenas se pretende aferir sumariamente de subsistência dos pressupostos de facto e de direito que justificaram a decisão de sujeitar o arguido a tal medida de coacção. É impossível passar sem reparo a utilização dos gélidos advérbios "apenas" e "sumariamente", quando está em causa decisão sobre a liberdade de um ser humano, porque outro tema não é o daquela "avaliação trimestral". Outra conclusão não se impõe, que não seja a de que foi menor o cuidado utilizado na realização dessa avaliação, reflectido na omissão dos reais e concretos fundamentos da medida de coacção vigente. É assim que, embora por razões algo diversas das contidas na motivação, se dá provimento ao recurso, anulando por falta de fundamentação o despacho recorrido, porquanto violou o inciso contido no artº. 97º, 4 do CPP. Deverá esse despacho ser substituído por outro que, apreciando os ocorrentes fundamentos de facto e de direito que os autos forneçam, decida em conformidade com o ordenamento legal pertinente, ficando ao critério do Mmº. JIC de Lisboa a prévia audição pessoal que o arguido vem requerendo continuadamente. Um tal despacho, para além da fundamentação de direito, deve incluir: a) a indicação, ainda que sintética, dos factos fortemente indiciados; b) a indicação dos meios de prova que fundamentam a qualidade ou grau de indiciação, bem como a justificação deste. * Sem tributação.Lisboa, 28/01/2004 (António Simões) (Moraes Rocha) (Carlos Almeida) |