Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
377/07.7TTFUN.L1-4
Relator: SEARA PAIXÃO
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
LEI APLICÁVEL
PRINCÍPIOS DE ORDEM PÚBLICA PORTUGUESA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/07/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: 1. Tendo o autor sido contratado pela Delegação do ICEP no Canadá, em Toronto é aplicável ao respectivo contrato a lei canadiana, de harmonia com o nº 4 do art. 33º do DL nº 388/86 e nº 2 do art. 32º do Regulamento dos serviços do ICEP no Estrangeiro.
2. No que se refere à cessação do contrato, porém, há que desconsiderar a aplicação da lei canadiana, nomeadamente o Código de Procedimento das Normas de Emprego, 2000, e aplicar a lei portuguesa recorrendo à excepção de ordem pública portuguesa.
(Elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO

A, intentou contra “AICEP - Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal, E.P.E.”, abreviadamente designada por AICEP, E.P.E., com sede à Av. ..., …, Lisboa, a presente acção declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, com fundamento em que desde 02.06.92 a 25.10.2006 foi trabalhador da Ré, exercendo as funções de Promotor de Turismo, tendo como local de trabalho a Delegação da Ré, em Toronto, Canadá, mediante a remuneração mensal de € 4684,00 dólares Canadianos, o equivalente a € 2 624,00, tendo sido obrigado a solicitar a sua desvinculação do quadro de funcionários da Administração Pública da RAM. Em Junho de 2006 recebeu uma carta da Ré a comunicar-lhe o seu despedimento, com efeitos a partir de 25/10/06. Acontece que durante a execução do contrato nunca lhe foi pago qualquer montante a título de subsídio de férias, dado que nunca formalizou com a Ré, por escrito, qualquer contrato de trabalho. Foi obrigado a vender o seu carro e casa, separou-se da mulher, abandonou os amigos e familiares e encontra-se inconsolável.
Pede que seja decretada a ilicitude do despedimento e que a Ré seja condenada a pagar-lhe as retribuições desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão, a pagar ao Autor os subsídios de férias devidos desde a data de admissão até o despedimento no montante de € 39 390,00, numa indemnização equivalente a 45 dias de retribuição por cada ano completo, desde 09.06.92 a 09.10.06 e uma indemnização por danos morais em montante não inferior a € 50000,00.

Procedeu-se à realização da audiência de partes no decurso da qual não foi possível obter a conciliação das mesmas.
Regularmente citada e notificada para contestar a Ré veio a fazê-lo alegando, em síntese, que o Autor exerceu as funções de Técnico da delegação do extinto ICEP Portugal em Toronto entre 01.01.93 e 25.10.06, por força de um contrato de trabalho sem termo que se regia pela lei canadiana, mediante a remuneração anual de 60 918,00 Dólares Canadiano, paga em 13 vezes por ano, integrando o respectivo quadro; o ICEP Portugal viu-se na necessidade de denunciar o contrato, por impossibilidade de manutenção do mesmo por falta de renovação anual da sua autorização de estadia que estava dependente de uma ficção que formalmente o dava como funcionário do Consulado-Geral de Portugal; não assiste ao Autor o pagamento de qualquer compensação ou indemnização por danos morais.
Pugna, deste modo, pela improcedência da acção.

Foi proferido despacho saneador.
Teve lugar a realização da audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo, tendo o Tribunal fixado a matéria de facto, que não sofreu reclamação.
O Autor optou pela indemnização em detrimento da reintegração.

            Elaborada a sentença foi proferida a seguinte DECISÃO:
“Nestes termos e com tais fundamentos decide este Tribunal julgar parcialmente procedente e, em consequência:
A) - Declarar a ilicitude do despedimento de que o Autor foi alvo por não ter sido precedido do respectivo procedimento;
B) – Condenar a Ré no pagamento ao Autor das retribuições vencidas desde a data do despedimento a até ao trânsito em julgado da decisão, sem prejuízo dos descontos a que se alude nos nºs 2 e 4 do artº 437º, do C.T e bem assim no pagamento de uma indemnização por antiguidade equivalente a trinta e cinco dias de remuneração base, a apurar em sede de liquidação, por cada ano de antiguidade ou fracção até à data do trânsito em julgado da decisão.
C) – Condenar a Ré no pagamento ao Autor da quantia a apurar em sede de execução de sentença, tendo-se em atenção o disposto no artº 558º do Cód. Civil, a título de subsídio de férias no período compreendido entre 1 de Junho de 1992 até ao trânsito em julgado da presente decisão.
D) – Condenar a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 15 000,00 (quinze mil euros) a título de danos não patrimoniais.”

            A Ré, inconformada, arguiu a nulidade da sentença e interpôs recurso da mesma e termina as suas alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
(…)

O Recorrido contra-alegou sustentando a improcedência do recurso.
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, foram colhidos os vistos legais.
O Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da confirmação da sentença.
Cumpre apreciar e decidir.
As questões que emergem das conclusões são as de saber se existe nulidade de sentença, se existe um contrato de trabalho regido pela lei portuguesa, e se tal contrato cessou por caducidade.

FUNDAMENTAÇÃO
            Estão provados os seguintes factos:
1. – O Autor iniciou, em Novembro de 1991, as funções de Promotor de Turismo, no Centro de Turismo de Portugal no Canadá, por um período cuja duração se previa não ultrapassar os cinco meses.
2. – E em 1 de Junho de 1992 o Autor, por conveniência de serviço, começa a prestar apoio, como Promotor, à actividade promocional no Centro de Turismo de Portugal no Canadá, por um período cuja duração se previa não ultrapassar os cinco meses.
3. – Nessa mesma data, o Instituto de Promoção Turística solicita ao Ministério dos Negócios Estrangeiros o respectivo “visto” oficial, alegando que, por conveniência de serviço o Autor irá prestar apoio à actividade promocional no Consulado de Portugal em Toronto – secção de turismo.
4. – O Ministério dos Negócios Estrangeiros solicita, em 04 de Junho de 1992, à Embaixada Canadiana em Portugal a concessão de um visto de entrada e permanência no passaporte especial nº B-... do qual é titular o Autor, a fim de prestar apoio à actividade promocional no Consulado de Portugal em Toronto – Secção de Turismo – por tempo indeterminado.
5. – O Autor entre Janeiro de 1993 e 25 de Outubro de 2006 desempenhou as funções de Técnico da Delegação do ICEP Portugal em Toronto.
6. – A título de retribuição, o Autor recebia uma remuneração mensal que em Outubro de 2006 o ICEP – Investimentos, Comércio e Turismo de Portugal, incluindo as diuturnidades, pagava no montante de 4.648,00 dólares, vezes treze meses.
7. – Enquanto exerceu funções na Delegação do extinto ICEP Portugal em Toronto, a renovação do cartão de identidade do Autor era feita através da ficção de que este era funcionário do Consulado Geral em Toronto.
8. – O Autor foi funcionário da Secretaria Regional do Turismo e Cultura da Madeira até 1992.
9. – O Autor, em Junho de 1992, solicitou a sua desvinculação do quadro de funcionários da Administração Pública da Região Autónoma da Madeira, na convicção de que integraria o quadro da delegação do ICEP Portugal em Toronto.
10. – A 19/05/99, o Delegado do ICEP no Canadá, B, reconheceu em ofício dirigido ao Director de Recursos Humanos do ICEP que a situação legal do Autor no Canadá, tornou-se ambígua e da maior injustiça, qualificando, ainda, a situação do Autor e indirectamente a representação do ICEP no Canadá, como irregular, tudo nos precisos termos que constam do documento de fls.124 a 126, aqui dado por inteiramente reproduzido.
11. – O Autor nunca formalizou, por escrito, qualquer contrato de trabalho.
12. - O Autor não pagava impostos sobre o rendimento, não descontava para a Segurança Social, nem nunca teve autorização de residência no Canadá.
13. - O Embaixador de Portugal no Canadá remete, em 11 de Maio de 2006, para o delegado do ICEP Portugal em Toronto um e-mail no qual refere: “não julgo conveniente nem correcto manter, junto das Autoridades Canadianas a ficção que o Sr. A é funcionário do Consulado Geral em Toronto, pelo que não voltarei este ano a formular pedido idêntico ao de Outubro de 2005”.
14. – Em Junho de 2006 a ICEP Portugal comunica ao Autor que não é possível continuar a contar com a sua colaboração, dispensando-o com efeitos a partir de 25/10/06.
15. - A acreditação do autor no Canadá iria terminar em 25/10/06.
16. – O Autor desde que foi para o Canadá passou aí a fazer toda a sua vida.
17. – Vivia com uma companheira, em apartamento que adquiriu.
18. – Fez amizades com a comunidade madeirense, portuguesa e canadiana, adaptando-se ao meio canadiano.
19. – O autor vendeu o carro.
20. – A companheira recusou-se a vir para Portugal.
21. – O Autor vendeu a sua casa.
22. - O Autor na sequência do facto relato supra em 3.14. ficou inconsolável e apresenta-se perante os seus amigos como uma pessoa desanimada, angustiada e injustiçada.
23. - O Autor não declarou qualquer rendimento, em Portugal, nos anos 2006 e 2007.

            Fundamentação de direito

O Apelante invocou a nulidade de sentença por se verificar manifesta contradição entre os factos e o sentido da decisão e seus fundamentos.
Nos termos do artº 668º nº1 al. c) do Código de Processo Civil, é nula a sentença quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.
A nulidade a que se refere esta disposição ocorrerá no processo lógico estabelecido entre as premissas de facto e de direito de onde se extrai a decisão, ou seja, quando os fundamentos invocados na decisão conduzam logicamente a resultado oposto ao que nela ficou expresso. Mas não se pode confundir esta nulidade de sentença com a questão de saber se a aplicação do direito está certa ou errada, pois essa é uma questão que terá a ver com eventual erro de julgamento.
Conforme esclarece o Prof. Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, pág. 670, entre “os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa da nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde como o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta...".
No caso concreto, não existe tal contradição lógica, porquanto o julgador de 1ª instância, bem ou mal, entendeu que os factos revelavam a existência de um contrato de trabalho entre o A. e a Ré e que ao mesmo deveria ser aplicável a lei laboral portuguesa e decidiu em conformidade com o estabelecido na lei portuguesa.
Assim, não há contradição entre a fundamentação e a decisão, já que o julgador disse exactamente o que queria dizer, podendo embora existir erro de avaliação ou de aplicação da lei, o que não se pode confundir com a nulidade de sentença por contradição nos termos da al. c) do nº 1 do art. 688º do CPC.
Inexiste, pois, a alegada nulidade de sentença.

Quanto à existência do contrato de trabalho e sua cessação e lei aplicável ao mesmo.
Face aos factos provados verifica-se que o Autor, aqui Apelado, exerceu inicialmente funções de Promotor de Turismo, no Centro de Turismo de Portugal no Canadá, em Toronto e, desde Janeiro de 1993 até 25 de Outubro de 2006 desempenhou as funções de Técnico da Delegação do ICEP Portugal em Toronto.
Acontece que o ICEP Portugal IP foi extinto, pelo DL 244/2007 de 25 de Junho, com efeitos à data da entrada em vigor deste diploma, tendo a totalidade das suas atribuições e competências sido transferidas para a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal EPE, abreviadamente AICEP, EPE, ou seja, para a Ré destes autos. 
Conforme a R. aceita no art. 10 da sua contestação, “o A. tinha um contrato de trabalho sem termo com a delegação do ICEP Portugal em Toronto”.
Importa desde já esclarecer qual a lei aplicável a esse contrato.
À data do início da prestação de trabalho, estava em vigor o DL nº 388/86 de 18.11 (diploma que aprovou a orgânica do ICEP Portugal) ([1]) e que no seu art. 33º nº 1, relativamente ao pessoal das delegações no estrangeiro, dispõe que “a nomeação do pessoal das delegações no estrangeiro não recrutado localmente é feita em comissão de serviço, preferencialmente entre o pessoal do quadro do ICEP”.
E no nº 4 do mesmo artigo refere: “o pessoal recrutado localmente ficará sujeito ao regime de trabalho local, não conferindo o recrutamento qualquer vínculo à função pública e a sua remuneração será estabelecida em harmonia com a lei e costumes locais”.
O DL nº 388/86 foi revogado pelo DL nº 264/2000 de 18.10, que se manteve em vigor até à data da extinção do ICEP ([2]), o qual, porém, manteve idênticas disposições no art. 31 nº 1 e nº 5 ([3]).
Por sua vez o Regulamento dos Serviços do ICEP no Estrangeiro, aprovado e homologado pelo Despacho nº 469/89 de 19.04, dispõe no seu art. 32º:
1. Designa-se como contratado local, para efeitos deste regulamento, todo o pessoal que desempenha funções no estrangeiro sem ser em regime de comissão de serviço, quer o respectivo contrato haja sido celebrado no país onde se situa o serviço, quer em Portugal, com a sede do Instituto.
2. A prestação de serviço do pessoal contratado local é objecto de contratos celebrados por cada serviço, em regime de direito privado, com referência ao nº 4 do art. 33º do DL nº 388/86 e obedecendo aos princípios do direito privado desse país.
Destes preceitos resulta com clareza que o Autor era um contratado local, uma vez que foi contratado pela Delegação do ICEP no Canadá, em Toronto, sem ser em comissão de serviço, sendo-lhe, consequentemente, aplicável a lei canadiana, de harmonia com o nº 4 do art. 33º do DL nº 388/86 e nº 2 do art. 32º do Regulamento dos serviços do ICEP no Estrangeiro.
E não é pelo facto de o contrato entre o A. e o R. não ter sido reduzido a escrito, como exige o art. 33º do Regulamento do ICEP, que se altera o regime jurídico aplicável. Neste ponto discordamos da decisão que considerou “não ter sido o Autor contratado localmente e que não se lhe aplicava o direito laboral do Canadá.
Entendemos que o Apelado não pode deixar de ser um contratado local, ao qual era aplicável a lei laboral canadiana.
À mesma solução se chega pela aplicação da norma de direito de conflitos prevista no art. 6º do Código do Trabalho de 2003, em vigor à data da cessação do contrato de trabalho do Autor.
Com efeito, o artº 6º nº 1 do C.T.([4]) dispõe que o contrato de trabalho rege-se pela lei escolhida pelas partes, e o seu nº 2, estatui, como regra supletiva, que na falta de escolha de lei aplicável, o contrato de trabalho é regulado pela lei do Estado com o qual apresente conexão mais estrita.
Na determinação da conexão mais estreita, além de outras circunstâncias, atende-se, de acordo com o nº 3 do mesmo normativo, à lei do Estado em que o trabalhador, no cumprimento do contrato, presta habitualmente o seu trabalho, ou à lei do Estado em que esteja situado o estabelecimento onde o trabalhador foi contratado.
E o nº 4 do mesmo preceito estabelece que estes critérios podem não ser atendidos quando, do conjunto de circunstâncias aplicáveis à situação, resulte que o contrato de trabalho apresenta uma conexão mais estreita com outro Estado.
Por sua vez, os nºs 5, 6 7 do citado normativo reservam ou ressalvam as excepções de ordem pública.
Ora, no caso presente, a factualidade provada aponta inequivocamente para a aplicação da lei canadiana, por força dos critérios estabelecidos no nº 3 do art. 6º do CT, uma vez que foi no território desse Estado que o Autor prestou sempre o seu trabalho ao ICEP e foi aí que o seu contrato de trabalho foi celebrado.
Contudo, já no que se refere à cessação do contrato, estamos de acordo com a decisão recorrida, que desconsiderou a aplicação da lei canadiana, nomeadamente o Código de Procedimento das Normas de Emprego, 2000, para aplicar a lei portuguesa recorrendo à excepção de ordem pública portuguesa.
Com efeito, o artigo 22º n. 1, do Código Civil Português estabelece que "não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português".
E dos º 5 e 6 do art. 6º do CT resulta que sendo aplicável a lei de determinado Estado, por força dos critérios enunciados nos números anteriores, pode ser dada prevalência às disposições imperativas da lei de outro Estado com o qual a situação apresente uma conexão estreita se, e na medida em que, de acordo com o direito deste último Estado essas disposições forem aplicáveis, independentemente da lei reguladora do contrato, devendo ter-se em conta a natureza e o objecto das disposições imperativas bem como as consequências resultantes tanto da aplicação como da não aplicação de tais preceitos.
Ora, o regime jurídico relativo à cessação do contrato de trabalho tem natureza imperativa, conforme resulta do disposto no art. 383º do CT/2003.
            Por outro lado não podemos olvidar que a segurança no emprego e a proibição dos despedimentos sem justa causa têm consagração no art. 53º da Constituição da República Portuguesa, que constitui a trave mestra do direito laboral português e que é um direito fundamental que goza do privilégio dos direitos, liberdades e garantias, pelo que, não pode deixar de fazer parte do conteúdo da “ordem pública internacional”do Estado Português - (cfr. artº 17º da CRP).
            Conforme se refere no Ac. do STJ de 23.05.2001, in www.dsgi.pt/jstj,  “a reserva ou excepção de ordem pública visa impedir que a aplicação de uma norma de direito estrangeiro conduza, num determinado caso concreto, a um resultado intolerável por ofender princípios essenciais do sistema jurídico nacional”.
E acrescenta:             “por um lado, é necessário que a aplicação em concreto da lei estrangeira colida grosseiramente com concepções básicas do direito nacional, por entrar em conflito com os princípios fundamentais da ordem jurídica considerados como inamovíveis e imutáveis, como património intangível de que compartilha uma comunidade cultural – cfr. Batista Machado, “Lições de Direito internacional privado”, 3ª, p.264; e, por outro lado, para a intervenção da ordem pública do foro que entre a factualidade sub judice e o ordenamento do foro interceda um nexo suficientemente forte para justificar, a não aplicação da norma estrangeira aplicável – cfr. Ferrer Correia, “Lições de Direito internacional privado”, 1973, página 264 e Batista Machado, ob. citada, pág. 263).”
            No caso vertente, verifica-se que o contrato de trabalho existente entre o Autor e a delegação do ICEP em Toronto, Canadá, cessou, após cerca de 13 anos de serviço consecutivo, através da comunicação do ICEP ao Autor, emitida em Junho de 2006, de que “não é possível continuar a contar com a sua colaboração, dispensando-o com efeitos a partir de 25/10/06”.
Trata-se de uma cessação do contrato de trabalho operada através de simples aviso prévio e fundamentada no facto do Sr. Embaixador de Portugal no Canadá ter remetido, em 11 de Maio de 2006, para o delegado do ICEP Portugal em Toronto, um e-mail no qual refere: “não julgo conveniente nem correcto manter, junto das Autoridades Canadianas a ficção que o Sr. A é funcionário do Consulado Geral em Toronto, pelo que não voltarei este ano a formular pedido idêntico ao de Outubro de 2005”.
            Concordamos com a decisão recorrida que considerou que esta comunicação da Ré da cessação do contrato de trabalho invocando a falta de visto de permanência no Canadá a partir de 15.10.06, dado o circunstancialismo em que ocorreu, constitui um verdadeiro despedimento unilateral e ilícito por não invocar justa causa nem ter sido precedido de processo disciplinar, tal como impõe a legislação portuguesa.
            É que a lei canadiana, no que se refere à cessação do contrato de trabalho, apenas exige um aviso prévio de maior ou menor duração consoante a antiguidade do trabalhador, conforme se depreende do Código das Normas de Emprego, 2000, cuja cópia está junta aos autos (fls. 175 a 231), cuja aplicação ofende os princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português em matéria de despedimentos, o que leva, na falta de outras disposições apropriadas da lei canadiana, à aplicação da lei portuguesa sobre despedimentos.
O Apelante, contudo, invoca que não se tratou de um despedimento mas antes de cessação do contrato de trabalho fundada em caducidade por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o trabalhador prestar a sua actividade uma vez que não tinha visto de permanência no Canadá.
Nos termos do art. 387º al. b) do CT/2003, o contrato de trabalho caduca nos termos gerais de direito, nomeadamente em caso de impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o trabalhador prestar o seu trabalho ou de o empregador o receber.
Para que a impossibilidade seja superveniente é necessário que surja um impedimento à continuação do vínculo laboral, que não existia nem era previsível no momento da celebração do contrato. No dizer de PEDRO ROMANO MARTINEZ (Direito do Trabalho, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, p. 900), «para a impossibilidade ser superveniente pressupõe-se que o contrato de trabalho, aquando da sua celebração, podia ser cumprido, tendo surgido, posteriormente, um impedimento que obsta à realização da prestação laboral ou ao seu recebimento.
A impossibilidade é absoluta quando se verifique que o trabalhador ou a entidade empregadora não estão em condições de prestar ou receber, sequer parte do trabalho, não bastando, por isso, a simples dificuldade ou onerosidade excessiva para qualquer das partes.
E será definitiva a impossibilidade quando não for temporária ou transitória, ou seja, como escreveu o Dr. Vaz Serra, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 47, p.19, citando Ennecerus - Lehmann, " não só quando de antemão, se exclui com segurança toda a previsão de que desapareça o obstáculo que se opôs à prestação mas também quando o seu desaparecimento só pode ter lugar em virtude de um facto cuja probabilidade é tão remota que, racionalmente, não é de esperar que se realize” (cfr. Ac. do STJ de 14.04.2010 no proc. 36/07.0TTCSC.L1 e Ac. de 27.10.99, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
No caso vertente, verifica-se que a contratação do A. pelo ICEP foi feita desde o início através da ficção de que este era funcionário do Consulado Geral de Toronto e durante cerca de 13 anos a renovação do seu cartão de identidade foi feita com base nessa ficção.
Esta situação foi criada pelo ICEP que não reduziu a escrito o contrato de trabalho do Autor, como lhe impunha o art. 33º do Regulamento dos Serviços do ICEP no Estrangeiro, e que nunca integrou o Autor nos seus quadros. Como poderia o A. regularizar a sua situação no Canadá se não possuía contrato de trabalho escrito?
Assim, a falta do visto de permanência no Canadá era um facto que já existia, em potência, desde o início da contratação do Autor, e era conhecido de ambas as partes, sendo certo que a alegada impossibilidade legal de trabalhar no Canadá sem o “visto” oficial já se verificava à data da celebração do contrato, não podendo, por isso, considerar-se de superveniente. Por outro lado, também não está demonstrado, e era ao R. que competia a prova do facto, de que a situação do A. ao serviço do ICEP no Canadá não pudesse ser regularizada sem ser através de ficção de ser funcionário do Consulado de Portugal em Toronto, não sendo por isso uma impossibilidade definitiva.
Não se verificam, no caso, os pressupostos da caducidade, pelo que, de acordo com a sentença recorrida, consideramos que a comunicação do R. ao A. de Junho de 2006, dispensando-o com efeitos a partir de 25.10.2006, constitui uma denuncia unilateral por parte da entidade empregadora, sem invocação de justa causa, sendo esse despedimento ilícito nos termos do art. 429º al. a) do CT/2003, com as consequências assinaladas na decisão recorrida, que nesse aspecto se confirma.

A Apelante impugna também a decisão recorrida quanto à sua condenação no pagamento ao Autor dos subsídios de férias ao longo do contrato de trabalho.
E neste aspecto cremos que o Apelante tem razão, com efeito, está provado que o A. recebia a título de retribuição o montante de 4.648,00 dólares durante treze meses no ano.
A sentença recorrida considerou aplicável ao contrato de trabalho a lei portuguesa e condenou a Apelante no pagamento do subsídio de férias ao A.
Acontece que o Regulamento dos Serviços do ICEP no Estrangeiro, estabelece no seu art. 34º, o seguinte:
1.  que os contratados locais percebem uma remuneração anual repartida por treze fracções salvo se o direito local aplicável determinar um número superior.
2. A décima terceira fracção será atribuída conjuntamente com a relativa ao mês de Dezembro.
Não se mostra nos autos que a lei canadiana obrigue ao pagamento da remuneração num número de vezes predeterminado e como à execução do contrato de trabalho do A. (ressalvada a sua cessação) não é aplicável a lei portuguesa, como já acima dissemos, nem opera a ressalva de ordem pública, nada obstava a que o pagamento da retribuição anual fosse feita em treze vezes, conforme dispõe o art. 34º do Regulamento dos Serviços do ICEP no Estrangeiro.
Revoga-se, pois, o segmento C) da decisão recorrida, que condenou “a Ré no pagamento ao A da quantia a apurar em sede de execução de sentença, a título de subsídio de férias no período compreendido entre 1 de Junho de 1992 até ao trânsito em julgado da presente decisão”.

Alega a Apelante que não há fundamento para a condenação por danos morais porquanto a situação do A. no Canadá era precária pois estava dependente de um “visto” anual da Embaixada de Portugal que poderia ou não ser concedido.
Mas pelas razões já atrás referidas consideramos ilícita a cessação do contrato de trabalho do A., pelo que, nessa situação, nos termos do art. 436º nº 1 al. a) do CT, o empregador é obrigado a indemnizar o trabalhador por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais causados.
E no caso dos autos o A. sofreu relevantes danos de natureza não patrimonial que justificam o montante indemnizatório arbitrado pela sentença recorrida que, por isso se confirma, quanto a este aspecto.


Decisão:
Nos termos expostos, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência, revoga-se o segmento C) da decisão recorrida, confirmando-se a parte restante da mesma decisão.
Custas do recurso a cargo do Apelante e do R., na proporção de ¾ e de ¼, respectivamente.

Lisboa, 7 de Dezembro de 2012

Seara Paixão
Maria João Romba
Paula Sá Fernandes
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[1] Alterado pelos DL nº 428/91 de 31.10, nº 180/92 de 17.08 e 285/98 de 17.09.
[2] Alterado posteriormente pelo Dec-Lei nº 35-A/2003 de 27.02 e nº 77/2004 de 31.03)
[3] Este número 5 refere: “o pessoal contratado localmente no estrangeiro fica sujeito à legislação local e a sua remuneração deve ser estabelecida, na medida do possível, de acordo com os usos aí vigentes”.
[4] Esta norma indica critérios idênticos aos constantes do art. 6º da Convenção de Roma, aplicável no âmbito comunitário, ou seja, aos Estados membros de CE, o que não é o caso do Canadá.
Decisão Texto Integral: