Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6592/2007-6
Relator: CARLOS VALVERDE
Descritores: FRANQUIA
CUMPRIMENTO
DOLO
RESPONSABILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: I - A obrigação principal do franquiador é a da comunicação de um saber-fazer ao franquiado, que não se esgota na disponibilização dos conhecimentos técnicos de fabricação ou de promoção e venda de um determinado produto, abarcando todas as incidências próprias da gestão de empresas e, logo, as informações disponíveis sobre a realidade económico-financeira do respectivo mercado e as condições de prossecução e evolução da actividade económica proposta ao franquiado.
II - Se o exagero por um comerciante das qualidades da sua mercadoria pode cair na previsão do nº 2 do art. 253º do CC (dolus bónus), já o mesmo não acontece quando o comerciante enaltece ou atribui à sua mercadoria qualidades que sabe não existirem, que sabe que esta não possui.
III - Se é certo que é possível acrescer ao efeito do dolo da anulabilidade do negócio (art. 254º, 1 do CC) a responsabilidade do autor do dolo (deceptor) por ter dado origem à invalidade, não é menos certo que esta responsabilidade gera uma obrigação de indemnização totalmente autónoma em relação à anulabilidade, radicando no comportamento do deceptor contrário às regras da boa fé, durante os preliminares e a formação do negócio (art. 227º do CC9).
C.V.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

S, Lda., intentou a acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra A., Lda., B e C, pedindo que:
- seja declarada a anulação do contrato de franchising que outorgou com a 1ª Ré e esta condenada a restituir-lhe a importância de € 161.655,41 - a que acrescerão frutos civis ou juros de mora, desde a citação até efectivo pagamento, nos termos legais -, contra a restituição à Ré dos bens em seu poder, maxime, o Laser II, reconhecendo-se-lhe a licitude da utilização, até então, do sistema informático do restituendo equipamento; e, subsidiariamente,
- seja reconhecido o incumprimento contratual culposo da 1ª Ré, declarada a resolução do Contrato de Franchising e seja esta Ré condenada a indemnizá-la pelos danos emergentes e lucros cessantes, em quantia não inferior a € 303.240,00, em parte, porventura, a liquidar em execução de sentença, e no pagamento de juros de mora desde a citação até efectivo pagamento, nos termos legais e,
- sendo reconhecida a conduta dolosa e culposa dos 2º e 3º Réus, sejam estes condenados no pagamento solidário de quaisquer importâncias em que a 1ª Ré venha a ser condenada.
Para tanto e em síntese, alegou que os RR. lhe garantiram que a máquina incluída no franchising fazia depilação definitiva, o que não era verdade, e tal sabiam, bem como lhe garantiram um determinado lucro que sabiam não corresponder à verdade; só adquiriu o franchising dos autos por os RR. a terem, deliberadamente, induzido em erro quanto às características e potencialidades do sistema; durante a vida do contrato, os RR. não investiram em publicidade e marketing em favor da rede, da forma que se tinham inicialmente proposto e fizeram concorrência desleal à A. através de centros próprios.

Citados, contestaram os RR. por excepção e por impugnação e deduziram ainda pedido reconvencional contra a A., peticionando a condenação desta a pagar à 1ª Ré uma indemnização nunca inferior a € 144.500, pelos danos decorrentes do seu incumprimento contratual.

Após réplica da A. e tréplica dos RR., proferiu-se despacho saneador, no qual se desatendeu a matéria exceptiva alegada pelos RR. e seleccionou-se a matéria de facto, repartida pelos factos assentes e pala base instrutória.

Procedeu-se a julgamento, posto o que foi proferida sentença em que:
- julgando-se parcialmente procedente a acção, se condenou solidariamente a 1ª e o 2º R. a pagar à A. a quantia de € 161.655,41 (cento e sessenta e um mil, seiscentos e cinquenta e cinco euros e quarenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento e se absolveu o 3º R. do pedido;
- se julgou a reconvenção totalmente não provada e improcedente, absolvendo a A. do respectivo pedido.

Inconformados com essa decisão, dela a 1ª Ré e o 2º R. interpuseram recurso, em cujas conclusões, devidamente resumidas - art. 690º, 1 do CPC -, a questionam na sua vertente de direito.

Contra-alegando, a recorrida pugna pela manutenção do julgado.

Por não ter sido impugnada, nem haver lugar à sua alteração, ao abrigo do artº 713º, nº 6 do CPC, na redacção dada pelo DL nº 329-A/95, de 12/12, remete-se para a decisão factual da 1ª instância, aqui se dando como reproduzidos os factos dela constantes.

Quid iuris?
Não se questiona que entre a A. e a 1ª Ré foi outorgado um contrato de franquia, que na doutrina e no comércio é vulgarmente designado como contrato de franchising, de não fácil definição, até por se tratar de um contrato atípico, mas que, tomando como ponto de partida as obrigações e direitos que unanimemente são considerados essenciais à sua configuração, se poderá definir como o contrato em que uma das partes se obriga a suportar o uso dos seus sinais distintivos de empresa por parte da outra, a comunicar-lhe o seu saber-fazer e a fornece-lhe assistência técnica, ficando a outra parte obrigada a pagar uma contrapartida e a suportar um controlo, sem prejuízo da sua independência (cfr. Isabel Maria de Oliveira Alexandre, O Contrato de Franquia (Franchising), in O Direito, Ano 123º, 1991 II-III, págs. 330 e sgs., A. Pinto Monteiro, Contrato de Agência, 4ª ed., págs. 52 e sgs. e Maria de Fátima Ribeiro, O Contrato de Franquia, Almedina, 2001, págs. 157 e sgs.).
Na sentença censuranda, considerou-se, como foi peticionado em primeira linha pela A., que a vontade negocial desta foi formada por uma falsa representação provocada pela outra parte, seja, considerou-se a existência de dolo por parte do declaratário, com a consequente invalidade do negócio e respectiva restituição do que efectivamente foi prestado.
De tal dissentem os recorrentes, adiantando que não existiu da sua parte qualquer dolo ou intenção de enganar a A., quando muito apenas se poderá estar perante a prestação de informações inexactas, sem intenção ou consciência de enganar a A., já que, quando apresentaram todo o “conceito” que constituía o contrato de franchinsing aqui questionado, eles mesmos estavam convencidos das qualidades e capacidades técnicas do equipamento fornecido, de tal modo que este era o equipamento utilizado nos centros por eles directamente explorados.
O dolo supõe um erro que é induzido ou dissimulado pelo declaratário ou por terceiro.
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, “para que haja dolo são necessários os seguintes requisitos: a) que o declarante esteja em erro; b) que o erro tenha sido provocado ou dissimulado pelo declaratário ou por terceiro; c) que o declaratário ou terceiro (deceptor) haja recorrido, para o efeito, a qualquer artifício, sugestão, embuste, etc.” (CC Anotado, vol. I, 3ª ed., pág. 236).
Estes os requisitos do dolus malus (art. 253º, 1 do CC), susceptível de gerar a anulabilidade da declaração negocial, ao invés do que acontece com o dolus bónus - “a simples solércia ou astúcia, reputada legítima pelas concepções imperantes num certo sector negocial” -, que a lei tolera (art. 253º, 2 do CC) (cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pág. 520).
Posto isto e revertendo para o concreto dos autos, acompanhamos a sentença, na configuração in casu de uma situação de dolo juridicamente relevante:
- O que fez a Autora procurar os serviços da 1ª R., na pessoa do 2º R. seu representante, foi a circunstância de, nessa época, esta se arrogar possuidora do único conceito e máquinas de depilação definitiva (resposta ao quesito 2º).
- O projecto apresentado assegurava a depilação definitiva, ou seja, o corte do pêlo para sempre (resposta ao quesito 3º).
- Ora, o sistema oferecido pelos Réus (e que constituiu o pressuposto negocial, contratado, para a celebração do contrato de franquia) era comercialmente agressivo e inovador (com o marketing inerente, como era vendido), face à máquina concorrente, a eléctrica: - Efectuava depilação rápida (isto é, enquanto as máquinas, então em uso, demoravam 10 horas a fazer umas pernas, a da EPIL demoraria duas horas); - A depilação não era dolorosa (enquanto as máquinas eléctricas, que fazem depilação pêlo a pêlo, são dolorosas esta não o é); - E final e decisivamente, o facto de fazer depilação definitiva (resposta ao quesito 6º).
- A sociedade R., através do seu representante 2º R., assegurou à Autora duas coisas: que o sistema EPIL SPECIALIST MASTER – VANITY LINE – Sistemi Estetici Avanzati fazia depilação definitiva; e que o investimento teria retorno, seria amortizado em 1 ano (resposta ao quesito 8º).
- Sendo que os factores de que tal facturação estava dependente eram, na sua vasta maioria, exteriores ao franchisado, ao Centro EPIL e da responsabilidade do MASTER: 1. Notoriedade da marca EPILSPECIALIST; 2. As campanhas publicitárias EPILSPECIALIST; 3. As estratégias promocionais inovadoras em poder do ponto de venda; 4. Ao manuais de organização, gestão e promoção; 5. Os processos de análise e diagnóstico únicos e exclusivos; 6. A preparação técnica comercial; 7. Os aparelhos e os produtos de altíssimo nível; 8. O projecto único e exclusivo (não inflacionado); 9. O potencial mercado masculino não mencionado neste contexto, mas não menos importante (al. I) dos factos assentes).
- Relativamente à questão de a Autora não exercer qualquer actividade no ramo da depilação – embora explorasse já o da Perfumaria -, foi dito à Autora não ser qualquer requisito para o franchising, como resultava, aliás, da documentação (al. J) dos factos assentes).
- Recebida a minuta de contrato, a Autora manifestou aos Réus, em particular, ao 2º, reservas quanto ao negócio (al. M) dos factos assentes).
- A 1ª Ré e o 2º Réu referiram à Autora que, como se lia na documentação entregue: epilspecialistmaster; porquê um projecto de sucesso?; numa zona de 50.000 habitantes encontramos; 25.000 mulheres; com um objectivo em idade de 10.000 mulheres; consideramos 15% de potenciais clientes; Admitindo que 1.500 mulheres estão à procura de uma depilação definitiva, em termos de projecção, isto significa que se nos aproximamos pelo menos um quinto deste número, ou seja, 300 mulheres (0,6 da população); E que por defeito consideramos que cada mulher só possa dedicar à própria beleza apenas Esc: 20.000$00 por mês; O resultado económico anual seria de Esc: 72.000.000$00 SETENTA E DOIS MILHÕES DE ESCUDOS (al. N) dos factos assentes).
- Dando a confiança de empresa e marca com centenas de Centros em funcionamento: Hoje são mais de 200 Centros distribuídos pelo território italiano, 25 em Espanha e 19 em Portugal (resposta ao quesito 9º).
- Faz-se a referência aos resultados adquiridos daquela depilação: Um dos factores essenciais deste sucesso: a qualidade dos seus resultados. O conceito e a metodologia totalmente informatizados, que fazem parte do Franchising EPILSPECIALIST MASTER, são únicos neste sector a nível mundial. Os milhares de casos já tratados, os já quase 240 CENTROS com uma média de facturação por Centro superior equivalente a 50.000.000$00 para 130 criados em 1998, são as nossas bases de partida para o arranque em Portugal e Espanha (al. R) dos factos assentes).
- E, relativamente ao LASER I (equipamento e conceito propostos) sublinharam os factos de ser definitiva, de em cada sessão, serem ELIMINADOS DEFINITIVAMENTE 20 a 40% dos pêlos tratados, I) O LASER Nd Yag: EPILRADICAL LASER O EpilRadical Laser elimina definitivamente, em cada sessão, 20 a 40% dos pêlos tratados (al. S) dos factos assentes).
- Actuando em todos os tipos de pele, Diferente dos outros tipos de laser, EpilRadical Laser é único a actuar em todos os tipos de pele, até a mais escura, e eficaz em todos os tipos de pêlos pigmentados. O seu raio de luz tem comprimento de onda, duração dos impulsos e energia capaz de atingir exactamente a raiz do pêlo tornando inactiva a matriz germinadora. A perfeita sinergia destes parâmetros torna-o extremamente preciso e SEGURO, não tendo qualquer acção com a melanina cutânea, nem com outras estruturas da pele, o que frequentemente acontece com a utilização de outros tipos de laser. Concluindo, o EpilRadical Laser não despigmenta a pele (manchas claras), não provoca vermelhões, cicatrizes ou eritemas e é totalmente INDOLOR. EpilRadical Laser é o método mais avançado e RÁPIDO para eliminar para sempre os pêlos supérfluos (al. T) dos factos assentes).
- Mas mais, informaram, ainda, a Autora de que, não podendo garantir a facturação anual de 72.000.000$00, sendo a facturação média dos 210 CENTROS (duzentos e dez) equivalente a 50.000.000$00 (al. X) dos factos assentes).
- Isso mesmo fariam constar do contrato de franchising, ou seja, contratualizariam esse dado, média, corrente, em centenas de centros (al. Y) dos factos assentes).
- E que asseguraram que a própria remuneração variável do franchisador - ROYALTIES - só seria devida após a ultrapassagem dessa facturação de 50.000.000$00 e que esta seria obtida, decerto, num ano, acrescentando que pretendiam ser remunerados pelo negócio e que, nesse sentido, nunca se limitariam à cobrança de royalties somente a partir de 50.000.000$00, se isso não ocorresse num ano, até porque o contrato teria o prazo de 3 anos, renovável (al. Z) dos factos assentes).
- E assim foi feito (3º parágrafo e cláusula 13ª) no CONTRATO DE FRANCHISING CENTRO EPILSPECIALIST que, em Junho de 2000, foi celebrado entre Autora e Ré (al. AA) dos factos assentes).
- A Ré assumiu contratualmente que: EPILSPECIALIST MASTER é uma marca leader no campo da depilação definitiva; com mais de 100 centros em toda a Itália, que usufruem do Know how, do hardware e do software fornecidos pelo franchisador, permitindo uma facturação média por cada centro igual ou cerca de Esc: 50.000.000$00 por ano (Cfr. Contrato) (al. II) dos factos assentes).
- Os RR. sabiam, aquando da celebração do contrato, que nenhum Centro em Portugal facturava 50.000.000$00 por ano (resposta aos quesitos 11º, 13º, 14º e 15º).
- O franchising não consegue a depilação definitiva de todos os pêlos em oito sessões, e os RR. não tinham elementos (documentos, estudos, ou quaisquer outros) que lhes permitissem fazer tal afirmação (resposta aos quesitos 12º e 22º).
Da descrição factual que vem de fazer-se, decorre, sem qualquer dúvida, que a A. laborou em erro nas negociações que concretizou com a 1ª Ré; para tal erro foram determinantes as informações não verdadeiras que a Ré lhe transmitiu; a ré, nuns casos, tinha consciência dessa inveracidade, noutros, que não podia garantir a veracidade das informações transmitidas, fazendo, desse modo, acreditar a A. numa realidade inexistente, em função da qual se veio a determinar.
Mais concretamente, a A. só negociou por a Ré lhe ter assegurado, apesar de saber que o não podia fazer, que a máquina depilatória, objecto decisivo do negócio, depilava definitivamente em dado número de sessões e a ter feito acreditar, mau grado as dúvidas que a A. levantou, que a facturação média dos 210 centros de depilação existentes em Portugal era de pelo menos 50.000.000$00 anuais, sabendo que nem um desses centros chegava a facturar essa importância.
Neste enquadramento, não pode afastar-se, minime, a consciência da Ré de que estava a criar e a manter a A. numa situação de erro, com o que se basta a previsão do nº 1 do art. 253º do CC (cfr. Mota Pinto, ob. cit., pág. 522), estando-se, por isso, longe do domínio das sugestões ou dos artifícios usuais segundo as concepções dominantes no comércio jurídico ou da dissimulação do erro, quando nenhum dever de elucidar o declarante resulte da lei, de estipulação negocial ou das concepções dominantes no comércio jurídico, até porque, sendo embora a obrigação do franquiador uma obrigação de meios e não de resultados, não se lhe podendo, sem mais, imputar o insucesso do franquiado, não pode olvidar-se que a sua obrigação principal é a da comunicação de um saber-fazer ao franquiado, que não se esgota na disponibilização dos conhecimentos técnicos de fabricação ou de promoção e venda de um determinado produto, abarcando todas as incidências próprias da gestão de empresas e, logo, as informações disponíveis sobre a realidade económico-financeira do respectivo mercado e as condições de prossecução e evolução da actividade económica proposta ao franquiado.
Ora, se o exagero por um comerciante das qualidades da sua mercadoria pode cair na previsão do nº 2 do art. 253º do CC, já o mesmo não acontece quando o comerciante enaltece ou atribui à sua mercadoria qualidades que sabe não existirem, que sabe que esta não possui.
E tal foi o caso.
“Não se trata aqui de uma falta consciente em relação ao outro contraente que, aliás, como pessoa auto-responsável, maior e por isso com capacidade, deve ser dotado de um certo mínimo de espírito crítico. Todavia, este espírito pouco adianta em caso de dolo omissivo que é, à semelhança da reserva mental, um comportamento particularmente desleal (p. ex., quem quiser vender uma casa é obrigado a esclarecer o interessado na compra acerca dos comportamentos manifestamente abusivos e chicaneiros dos vizinhos, mesmo que não haja defeitos na própria casa)” (cfr. Heinrich Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 1992, pãg. 583).
Impõe-se, pois, a conclusão de que a vontade negocial da A. foi determinada pela transmissão pela Ré de inveracidades e imprecisões desta conhecidas, seja, foi determinada por dolo, acompanhando-se ainda neste segmento a sentença quando, a latere, se refere que, mesmo a entender-se pela inverificação ou irrelevância do dolo, sempre haveria que considerar a existência de erro essencial sobre o objecto do negócio, com idênticas consequências: a anulabilidade do contrato outorgado pelas partes, com a consequente restituição pela Ré à A. da quantia (€ 161.655, 41) que esta lhe entregou para pagamento do equipamento fornecido, contra a entrega à Ré desse equipamento (art. 289º, 1 do CC), como, e bem, se diz no corpo da sentença e menos correctamente no segmento decisório desta, quando, porventura por lapso, se condena a Ré a pagar à A. aquela quantia sem qualquer contrapartida.
Esgrimem ainda, nesta parte, os recorrentes com a caducidade do direito da A. de arguir a nulidade do contrato ajuizado, pelo decurso do prazo legal para a sua arguição (art. 287º do CC).
Desta questão, todavia, não pode conhecer-se, por só agora, em sede de recurso ter sido colocada.
Os recursos são meios específicos de impugnação das decisões judiciais, que visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova.
É dizer que estará de todo vedado às partes invocar, nesta sede, questões que, não sendo de conhecimento oficioso, não tenham sido objecto das decisões impugnadas porque as partes as não suscitaram oportunamente perante o tribunal recorrido.
É, na verdade, jurispridência pacífica que os recursos não se destinam a proferir decisões sobre matéria nova; eles visam modificar as decisões impugnadas.
Como se diz no Ac. do S.T.J. de 2-2-88, “os recursos destinam-se a reapreciar questões já decididas e não a decidir questões novas” (in BMJ 374, pág. 449).
Não sendo de conhecimento oficioso, deveriam, por isso, os apelantes ter suscitado tal questão na 1ª instância e tê-la submetido à apreciação desse tribunal, pois só assim ela poderia agora ser considerada.
Condenou-se ainda o 2º R. a pagar à A., em solidariedade com a 1ª Ré, a sobredita quantia de € 161.655, 41, ao abrigo do art. 483º do CC, pelos danos decorrentes da sua actuação (“induziu dolosamente a A. em erro sobre o objecto e potencialidades do negócio”).
De tal discordam os recorrentes e aqui, em nossa opinião, com razão.
Se é certo que é possível acrescer ao efeito do dolo da anulabilidade do negócio (art. 254º, 1 do CC) a responsabilidade do autor do dolo (deceptor) por ter dado origem à invalidade, não é menos certo que esta responsabilidade gera uma obrigação de indemnização totalmente autónoma em relação à anulabilidade, radicando no comportamento do deceptor contrário às regras da boa fé, durante os preliminares e a formação do negócio (art. 227º do CC9).
Trata-se de uma responsabilidade pelo dano da confiança ou interesse contratual negativo, dando ao declarante (deceptus) o direito à cobertura dos danos por ter confiado no negócio e não teria sofrido sem essa confiança (cfr. Mota Pinto, ob. cit., pág. 521).
Ora, ainda que se tivesse provado algo mais do que a simples actuação representativa da 1ª Ré por parte do 2º R., emitindo as declarações de vontade só ao alcance das pessoas singulares, cujos efeitos se vieram a produzir na esfera jurídica da primeira, isto é, ainda que se tivesse apurado um comportamento censurável desse R., este, em caso algum, sofreria as consequências da invalidade do negócio, apenas podendo se responsabilizado pelos danos directamente derivados da sua ilícita actuação, no caso, os danos resultantes da violação da confiança e da celebração de um contrato inválido ou ineficaz.
Estes danos, que não se provaram, não se confundem, obviamente, com a obrigação de restituição que impende sobre as partes contratantes, por força da anulação do negócio.
Sendo assim, não há suporte legal para a condenação solidária do 2º R. com a 1ª Ré na restituição à A. da quantia que esta pagou à última no âmbito do contrato por ambas outorgado e que veio a provar-se estar inquinado por vício relevante da vontade, nem mesmo pelo recurso à descaracterização da personalidade da sociedade Ré.
A "desconsideração da pessoa colectiva", significando uma derrogação do princípio, legalmente consagrado, da separação da personalidade da sociedade da dos seus sócios, só excepcional e casuísticamente é de admitir, "salvaguardando-se, assim, a sobrevivência do ente colectivo" (cfr. Pedro Cordeiro, Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais, págs. 297 e 298).
Há-de, pois, com nitidez revelar-se da realidade factual concreta, o que não resulta do facto de se ter provado que a 1ª Ré é controlada pelos restantes RR., que directamente ou por interposta pessoa a dominam por inteiro, decidindo dos seus destinos (resposta ao quesito 77º), o que não passa de uma situação em tudo semelhante ao que acontece com qualquer sociedade familiar, não se evidenciando, sem mais, como era necessário à configuração da situação em referência, que a sociedade Ré mais não era do que uma instituição ficticiamente interposta entre o 2º R. e os agentes económicos com que este se relaciona, confundindo-se a personalidade jurídica de uma e de outro.

Pelo exposto, na procedência parcial da apelação, altera-se a decisão recorrida e, declarando-se anulado o contrato ajuizado, condena-se a 1ª Ré a restituir à A. a quantia de € 161.615,41, que desta recebeu em cumprimento do contrato, acrescida de juros legais, desde a citação até à efectiva restituição, contra a entrega de todo o equipamento recebido da Ré e absolve-se o 2º R. do pedido, mantendo-a no mais decidido.
Custas a meias por apelantes e apelada.
Lisboa, 27-09-2007

Carlos Valverde
Granja da Fonseca
Pereira Rodrigues