Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4094/2007-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
APREENSÃO DE VEÍCULO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/14/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I. A menção do art.º 18.º, n.º 1, do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, ao “contrato de alienação” pode ser entendida como referindo-se também ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e que esteve na origem da reserva de propriedade.
II. Provando-se a existência do registo da reserva de propriedade a favor do mutuante e o incumprimento das obrigações que originaram a reserva de propriedade, deve ser decretada a imediata apreensão do veículo automóvel, ao abrigo do disposto no art.º 16.º, n.º 1, do referido DL n.º 54/75.
(O.G.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
S, S.A., instaurou, em 31 de Julho de 2006, na 10.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, contra R, Lda., procedimento cautelar de apreensão de veículo, ao abrigo do disposto no art.º 15.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, pedindo a imediata apreensão do veículo de matrícula 32-62-RB.
Para tanto, alegou, em síntese, que, no âmbito da sua actividade comercial, celebrou com a Requerida, em 3 de Maio de 2005, um contrato de mútuo, através do qual lhe emprestou a quantia de € 14 500,00, para a aquisição do referido veículo, da marca Volkswagen, modelo Lupo Diesel, obrigando-se a Requerida a pagar-lhe, durante 72 meses, uma prestação mensal, no valor de € 297,76, e constituindo-se a favor da Requerente a reserva de propriedade sobre o veículo, como garantia do bom cumprimento do contrato, que foi registada, vindo a Requerida a faltar ao pagamento das prestações vencidas a partir de 8 de Outubro de 2005, as quais, apesar de interpelada para o efeito, por carta registada com aviso de recepção de 15 de Fevereiro de 2006, enviada para a morada contratualmente prevista, mas sem que tenha sido efectivamente recebida, continuaram por pagar e sem que também tivesse procedido à entrega do veículo.
Tentada, sem êxito, a citação da Requerida, teve lugar a audiência final, para a produção da prova.
Depois, em 27 de Março de 2007, foi proferida decisão, a indeferir “liminarmente o presente procedimento cautelar”, com o fundamento da acção de que o mesmo é dependência ter necessariamente de ser a acção de resolução do contrato de alienação e não a resolução do contrato de financiamento.

Inconformada com tal decisão, a Requerente agravou e, tendo alegado, formulou, no essencial, as seguintes conclusões:
a) A reserva da propriedade tem vindo a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo, sobretudo quando existe uma interdependência entre aquele e o contrato de compra e venda.
b) Nestas situações, verifica-se uma sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor (art.º s 591.º e 405.º do Código Civil).
c) A lei que regula o crédito ao consumo admite o acordo sobre a reserva de propriedade.
d) O direito de reaver o veículo decorre do direito de propriedade da Requerente.
e) Encontram-se reunidos os pressupostos para decretar a providência cautelar de apreensão de veículo.

Pretende, com o provimento do recurso, a revogação da decisão recorrida, com todas as consequências legais.

Não houve contra-alegações.
A decisão recorrida foi sustentada.

Cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, está em causa essencialmente saber se o mutuante, que empresta dinheiro destinado à aquisição de veículo automóvel e beneficia de uma cláusula de reserva de propriedade, pode ver decretada a providência cautelar da imediata apreensão do veículo automóvel, prevista no art.º 16.º, n.º 1, do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.

II. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Foram dados como provados os seguintes factos:
1. Em 3 de Maio de 2005, a Requerente e a Requerida subscreveram o escrito, denominado “contrato de crédito”, com o n.º 533 665, junto a fls. 10.
2. Esse contrato teve por objecto o financiamento de € 21 645,72, destinado à aquisição pela Requerida do veículo automóvel, marca Volkswagen, modelo Lupo Diesel, matrícula 32-62-RB.
3. Relativamente a esse veículo, mostra-se registada a reserva de propriedade a favor da Requerente.
4. Nos termos do aludido contrato, a Requerida deveria pagar à Requerente a prestação mensal de € 297,76, por um período de 72 meses.
5. A Requerida não pagou parte da 5.ª prestação, no montante de € 108,97, vencida em 8 de Outubro de 2005, nem as 6.ª, 7.ª, 8.ª e 9.ª prestações, cada uma no montante de € 298,89, vencidas, respectivamente, em 8 de Novembro de 2005, 8 de Dezembro de 2005, 8 de Janeiro de 2006 e 8 de Fevereiro de 2006.
6. A Requerente remeteu à Requerida a carta de 15 de Fevereiro de 2006, junta a fls. 13, concedendo-lhe o prazo de oito dias úteis, para proceder à liquidação da importância em atraso, considerando-se o contrato automaticamente resolvido, se, decorrido tal prazo, o pagamento não se encontrasse efectuado.
7. Essa carta foi devolvida, com a indicação de “não reclamada”.

2.2. Descritos os factos sumariamente provados, importa conhecer do objecto do recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, de modo a decidir se existe fundamento, para decretar a providência cautelar da imediata apreensão do veículo automóvel.
O DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, regula o registo de automóveis, que foi delineado, conforme consta do respectivo preâmbulo, para se ajustar à “natureza muito especial das coisas que constituem o seu objecto, particularmente caracterizadas pela limitadíssima duração e extrema mobilidade negocial inerentes aos veículos automóveis”.
Trata-se, pois, de uma lei de registo, destinada essencialmente a individualizar os respectivos proprietários e a dar publicidade aos direitos inerentes aos veículos automóveis.
O mesmo diploma legal regula também a apreensão dos veículos automóveis hipotecados ou com reserva de propriedade, tendo esse procedimento natureza cautelar (art.º s 15.º, 16.º e 18.º).
A cláusula da reserva de propriedade, admissível nos termos do art.º 409.º do Código Civil (CC), tem como efeito suspender a transmissão da coisa decorrente do respectivo contrato, num desvio expressamente consentido à regra plasmada no art.º 408.º do CC, que prevê o efeito imediato da transmissão da coisa outorgado o respectivo contrato. Assim, a propriedade da coisa apenas se transmite ao adquirente quando este tiver cumprido as obrigações a que se vinculara e que originaram a reserva de propriedade.
De harmonia com o consignado no n.º 1 do art.º 15.º do DL n.º 54/75, “vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e dos documentos”.
Por outro lado, e de acordo com o estipulado no n.º 1 do art.º 16.º do mesmo diploma, “provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo”.
A delimitação da extensão do conteúdo destas normas tem vindo a gerar alguma controvérsia, especialmente a partir da utilização de novas modalidades de contratação.
O legislador visou, do modo referido, não só acautelar o pagamento das prestações pecuniárias decorrentes do preço da aquisição de veículo automóvel, como também outras obrigações, designadamente as emergentes de contrato de crédito ao consumo, sob a forma de mútuo, para a aquisição daquele, em que o próprio vendedor também intervém ou de cujo conteúdo ressalta, para si, um interesse relevante.
Na verdade, é visível uma acentuada evolução do financiamento na aquisição de veículos automóveis, nomeadamente através de empresas especialmente vocacionadas para o efeito, possibilitando o alargamento da oferta e melhor satisfação da procura, num mercado que tem por objecto bens de considerável valor e de acentuada e rápida desvalorização.
Nestas condições, o interesse do credor, que assim facilita a aquisição do veículo automóvel, não pode ficar desprovido da garantia justificada pela inclusão da cláusula da reserva de propriedade, sendo certo que o DL n.º 54/75, com o procedimento cautelar especificado nele previsto, pretendeu salvaguardar os direitos do credor que contribuiu para a aquisição do veículo automóvel.
Será, por isso, que se admite expressamente a fixação da cláusula da reserva de propriedade, no contrato de crédito ao consumo, sob a forma de mútuo, como decorre do estipulado na al. f) do n.º 3 do art.º 6.º do DL n.º 359/91, de 21 de Setembro.
É, pois, admissível a constituição da reserva de propriedade, com vista a garantir um direito de crédito, especialmente quando o mesmo emerge de um contrato com estreita conexão ao de compra e venda de veículo automóvel, como sucede com o mútuo cujo respectivo produto é destinado ao pagamento do preço da compra e venda (a conexão dos contratos é expressamente afirmada no n.º 1 do art.º 12.º do referido DL n.º 359/91).
Aliás, a norma prevista no art.º 591.º do CC possibilita que o devedor, cumprindo a obrigação, designadamente, com dinheiro emprestado por terceiro, possa sub-rogar este nos direitos do credor. Esta sub-rogação não necessita do consentimento do credor, mas está sujeita a declaração expressa, no documento que formaliza o empréstimo, de que o dinheiro se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor.
Deste modo, a menção do art.º 18.º, n.º 1, do DL n.º 54/75, ao “contrato de alienação” pode ser entendida como referindo-se também ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e que esteve na origem da reserva de propriedade.
De outra forma, e isso não pode ser desprezado no alcance do sentido normativo, a cláusula da reserva de propriedade sobre veículos automóveis perderia a sua utilidade prática, dada a predominância, quase absoluta, da sua aquisição através do financiamento suportado por terceiros.
Interessa referir ainda que, na acção principal, da qual o procedimento cautelar é preliminar, a existência de uma cláusula da reserva de propriedade sobre o veículo automóvel faculta ao respectivo titular o direito à sua restituição.
Nestas condições, no caso vertente, provando-se a existência do registo da reserva de propriedade a favor do mutuante e o incumprimento das obrigações que originaram a reserva de propriedade, deve ser decretada a imediata apreensão do veículo automóvel, ao abrigo do disposto no art.º 16.º, n.º 1, do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.
Decidiram, neste sentido, entre outros, os acórdãos desta Relação de 27 de Junho de 2002 (Rec. n.º 5328/02-6), 20 de Outubro de 2005 (Rec. n.º 8454/05-6), 28 de Março de 2006 (Rec. n.º 447/06-7), e de 6 de Março de 2007 (Rec. n.º 1187/07-7) acessíveis em www.dgsi.pt.
Neste contexto, não era de indeferir o procedimento cautelar da apreensão do veículo automóvel requerido.
Mostrando-se reunidos os pressupostos da providência cautelar requerida, devia ter sido decretada a imediata apreensão do veículo automóvel.

2.3. Concluindo, pode extrair-se de mais relevante:
1) A menção do art.º 18.º, n.º 1, do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, ao “contrato de alienação” pode ser entendida como referindo-se também ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e que esteve na origem da reserva de propriedade.
2) Provando-se a existência do registo da reserva de propriedade a favor do mutuante e o incumprimento das obrigações que originaram a reserva de propriedade, deve ser decretada a imediata apreensão do veículo automóvel, ao abrigo do disposto no art.º 16.º, n.º 1, do referido DL n.º 54/75.

Nestas condições, não pode subsistir a decisão recorrida, pelo que, obtendo o recurso provimento, deve aquela ser revogada e, em consequência, substituída por outra, que decrete a imediata apreensão do veículo automóvel, de matrícula 32-62-RB, com os respectivos documentos, tal como foi requerido pela agravante.

2.4. O recurso está isento do pagamento de custas, por efeito do disposto na alínea g) do n.º 1 do art.º 2.º do Código das Custas Judiciais.

III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
Conceder provimento ao agravo, revogando a decisão recorrida e, em consequência, decretar a imediata apreensão do veículo automóvel, matrícula 32-62-RB.
Lisboa, 14 de Junho de 2007
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Ana Luísa de Passos G.)
(Fátima Galante)