Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4342/2003-6
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: BANCOS
RESPONSABILIDADE CIVIL
CHEQUE SEM PROVISÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/22/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário: A responsabilidade civil da entidade bancária pela violação da obrigação de recusa de fornecimento de cheques a quem consta da listagem de utilizadores que oferecem risco divulgada pelo Banco de Portugal não prescinde da existência de culpa.
Age com culpa a entidade bancária que não ajustou o seu sistema informático ao sistema informático do banco de Portugal por forma a identificar correctamente os utilizadores constantes da listagem referida.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa :

1. Relatório :
J. Azevedo, falecido na pendência da acção, sendo seus herdeiros habilitados M. Azevedo, José Azevedo e Jorge Azevedo, sua viúva e seus filhos, intentou no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra
Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, SA,
pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de 4.443.992$00, acrescida de juros de mora à taxa anual de 15% e outras que entretanto vigorarem sobre o valor de cada cheque e desde a data da primeira apresentação a pagamento até efectivo pagamento, computando os vencidos em 686.090$00.
Para tanto alegou, em resumo, que é legítimo portador de seis cheques sacados por J. Almeida sobre a conta nº 00044650001 da agência da Costa da Caparica do banco réu, os quais foram devolvidos pelo mesmo com a menção, umas vezes de “falta de provisão”, outras de “extravio”, sendo que o réu emitiu e entregou, por duas vezes, posteriormente ao recebimento da comunicação do Banco de Portugal que inibiu o referido J. Almeida do uso de cheques, módulos de cheques onde se incluíam os referidos nestes autos.

Na contestação alegou o réu, em síntese, que apôs nos cheques a menção de “extravio” por ter recebido essa informação do titular da conta e que a recusa do pagamento dos mesmos foi legítima porque do seu ficheiro informático não constava o José Luís Silva Almeida como cliente do banco, em virtude de a listagem recebida do Banco de Portugal que o incluía na comunicação de interdição do uso do cheque conter “00” antes do número do bilhete de identidade do cliente.
Concluiu pela improcedência da acção por não ter agido com culpa.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu o réu do pedido.

Apelaram os autores, sustentando na respectiva alegação as seguintes conclusões :
1ª Deficiente interpretação e aplicação dos critérios de aferição de diligência das instituições de crédito, constantes dos arts. 487º nº 2 do CC e arts. 74°, 75° e 76° do RGIC, aprovado pelo Decreto Lei 298/92 de 31/12.
- As instituições financeiras estão sujeitas no exercício da sua actividade a um dever geral de competência técnica que lhes exige se equipem com meios técnicos e humanos por forma a atingirem elevados níveis de qualidade e eficiência;
- As instituições financeiras estão ainda sujeitas no exercício da sua actividade a um dever geral de diligência que impõe a quantos exerçam cargos de administração, direcção ou chefia que actuem como gestores criteriosos e ordenados, tendo em conta a repartição dos riscos, os interesses dos depositantes, investidores e credores.
- O critério de diligência destas instituições deve ser, assim aferido por elevados padrões.
- Alegando a instituição de crédito que pelo facto de existirem zeros à esquerda na identificação do número de bilhete de identidade numa listagem informática relativa a clientes que oferecem risco remetida pelo Banco de Portugal,
- Tal actuação constitui negligência profissional por falta de estabelecimento de procedimentos e controles que evitassem tal situação.
- Ao considerar tal procedimento plausível, a sentença em recurso violou por deficiente interpretação o disposto nos arts. 487° n° 2 do CC e arts. 74°,75° e 76° do RGIC, aprovado pelo Decreto Lei 298/92 de 31/12.
2ª Da violação das regras de Direito probatório material constantes dos arts. 344º do CC e 9° n° 2 e 7° do RJCP aprovado pelo Decreto Lei 454/91, de 28/12:
- O nº 2 do artigo 9º do RJCP, estabelece uma presunção de culpa do banco pela violação das normas sobre a rescisão da convenção do uso do cheque.
- Nos termos deste dispositivo legal compete ao banco alegar e provar o cumprimento dos requisitos legais e regulamentares sobre a abertura de contas e fornecimento de módulos de cheques.
- Não tendo o banco alegado e provado o cumprimento dos requisitos legais, deve ser condenado a pagar os cheques fornecidos com violação dos deveres legais e regulamentares.
- Ao ter decidido pela absolvição do R. a sentença em recurso violou por deficiente interpretação e aplicação as regras de Direito probatório material, constantes dos arts. 344º do CC e 9° n° 2 e 7° do RJCP, aprovado pelo Decreto Lei 454/91 de 28/12.
3ª Da violação por deficiente qualificação e aplicação dos dispositivos legais constantes do artigo 9° do RJCP aprovado pelo Decreto Lei 454/91, de 28/12, e 483º do CC.:
- O artigo 9° do Decreto Lei 454/91, de 28/12, estabelece um tipo específico de responsabilidade não sujeita aos pressupostos do artigo 483° do CC.
- A instituição de crédito está obrigada a pagar ao legítimo portador o cheque indevidamente fornecido, sem necessidade de prova de qualquer outro requisito.
- Ao decidir pela subsunção dos factos aos pressuposto gerais da responsabilidade civil a sentença em recurso violou por deficiente qualificação o disposto no art. 9º do Decreto Lei 454/91, de 28/12.
4ª Nestes termos, deve ser revogada a decisão em recurso, sendo substituída por acórdão que condene o réu no pagamento dos cheques e respectivos juros.

Houve contra-alegação, na qual o réu formulou a seguinte síntese conclusiva :
1ª Não se compreende onde possa existir negligência no facto de havendo dois impedimentos para o pagamento dos cheques (falta de provisão e comunicação de extravio) apenas se ter invocado um;
2ª A negligência só podia existir se o Banco sacado (ora apelado) tivesse conhecimento que não podia fornecer módulo de cheques ao sacador e o tivesse fornecido, o que não se verificou;
3ª E não pode proceder a imputação de negligência nesse desconhecimento quando ficou provado que:
- Foi o Banco de Portugal que introduziu deficientemente os dados de identificação do inibido no sistema informático que impedia o conhecimento do apelado;
- Ocorreram situações idênticas (com o apelado e com outros Bancos);
- Detectadas tais situações encetaram-se diligências tendo sido corrigida a situação;
- Essa correcção implicou a alteração pelo Banco de Portugal da introdução dos números do B. I. sem zeros à esquerda, tal como era praticado pelo apelado.
4ª Não houve pois deficiente organização de serviços do apelado, uma vez que a sua organização era a correcta (apesar da implementação dos sistemas informáticos estar ainda no início ), os sistemas de controle funcionaram e levaram à correcção da situação originária dos erros.
5ª Sendo a responsabilidade estatuída pelo art. 9º do D. L. 454/91, de 28/12, uma responsabilidade por actos ilícitos baseada na culpa, dos factos provados resulta que o apelado fez suficiente prova justificativa de recusa de pagamento dos cheques em causa ao beneficiário, em conformidade com o nº 2 do citado art. 9º do Decreto Lei 454/91, pelo que não merece qualquer censura a sentença recorrida.
Termos em que deve ser confirmada a sentença sob recurso.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

2. Fundamentos :
2.1. De facto :
Na 1ª instância julgaram-se provados os seguintes factos :
a) o autor é portador de seis cheques sacados por J. Almeida sobre a sua conta nº 00044650001 da agência da Costa da Caparica do Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, SA, (A);
b) com data de 5/4/94, o J. Almeida preencheu, assinou e entregou, em nome do autor, o cheque nº 60273900098, no valor de 665.073$00, que veio devolvido pelo banco sacado por falta de provisão, na mesma data, confirmada pelos serviços de compensação do Banco de Portugal em 7/4/94 (B);
c) depositado de novo no Banco réu, veio de novo devolvido em 21/4/94, agora com a indicação de “extraviado” (C);
d) o que voltou a suceder em 11/10/94, em ambos os casos com confirmação da Câmara de Compensação do Banco de Portugal (D);
e) com data de 20/4/94, o mesmo J. Almeida preencheu, assinou e entregou, sem nome, ao autor o cheque nº 3527390187, no valor de 268.320$00, que veio devolvido pelo banco sacado em 21/4/94, 24/5/94 e 12/10/94, com confirmação da Câmara de Compensação do Banco de Portugal com o seguinte motivo : “extraviado” (E);
f) com data de 30/4/94, preencheu, assinou e entregou ao autor, em seu nome pessoal o cheque nº 3327390101, no valor de 665.073$00, que foi devolvido pelo banco sacado em 3/5/94 e 12/10/94, com menção “Devolvido por Extravio”, com confirmação da Câmara de Compensação do Banco de Portugal (F);
g) este último cheque foi devolvido pela agência do Banco réu da Fonte Nova, Lisboa, em 9/5/94 “Por falta /insuficiência de Provisão” depois de já ter sido devolvido por “Extravio” (G);
h) com data de 30/4/94, o mesmo J. Almeida preencheu, assinou e entregou ao autor, sem nome, o cheque nº 6027390195, no valor de 269.919$00, que foi devolvido pelo banco sacado em 4/5/94, 20/5/94 e 12/10/94, sempre com a menção “Extraviado” e com confirmação da Câmara de Compensação do Banco de Portugal (H);
i) com data de 30/4/94, preencheu, assinou e entregou ao autor e com o seu nome pessoal o cheque nº 0327916200, no valor de 2.302.127$00, que foi apresentado a pagamento ao réu em 3/5/94, 20/5/94 e 12/10/94, sendo nos três casos devolvido com a menção “Extraviado”, com confirmação da Câmara de Compensação do Banco de Portugal (I);
j) este cheque foi também devolvido em 9/5/94 por “Falta/Insuficiência de Provisão” pela agência do Banco réu da Fonte Nova, Lisboa (J);
k) com data de 20/5/94, preencheu, assinou e entregou ao autor, sem nome, o cheque nº 3127390209, no valor de 273.480$00, que foi devolvido pelo banco sacado em 6/5/94 “Por falta de Provisão” e em 20/5/94, por “Extravio”, verificados pelos serviços de compensação (K);
l) o réu enviou ao autor os documentos juntos a fls. 30 a 39 relativos à devolução dos cheques sem pagamento (L);
m) o autor escreveu a carta que constitui o doc. nº 17 (fls. 40), que o réu recebeu, na qual, além do mais, fez constar o seguinte : “ Nos termos do artº 9º do DL 454/91 de 28 de Setembro estão V. Exªs obrigados ao pagamento de tais cheques não obstante a falta ou insuficiência de provisão.” (M);
n) e depositou todos os cheques referidos, em 11/10/94, na conta do autor, na agência do réu na Fonte Nova, Lisboa (N);
o) cheques esses devolvidos pelo Banco réu com a menção “Extraviado” (O);
p) em resposta à carta referida em M), o réu escreveu a carta que constitui o doc. nº 19, em 11/10/94, na qual referiu que o assunto exposto estava a ser objecto de análise nos respectivos serviços (P);
q) em Novembro de 1993 e Fevereiro de 1994 o Banco réu entregou novos módulos de cheques a J. Almeida(Q);
r) J. Almeida comunicou ao réu em 19/4/94 o extravio dos cheques referidos em b), e), f), h), i) e k) (2º);
s) e por tal motivo não foram os cheques pagos (3º);
t) os cheques referidos em b), f), i) e k) também não foram pagos por falta de provisão (4º);
u) o facto de uma das devoluções referirem o motivo “falta de provisão” e outras “extravio” resulta de, no caso de indicação de falta de provisão, ter sido consultada a conta e não já a informação existente sobre o extravio (5º);
v) o Banco de Portugal incluiu a comunicação de interdição do uso de cheque relativamente a J. Almeida numa listagem no sistema informático a que todos os bancos estão ligados (7º);
x) o número do bilhete de identidade do sacador J. Almeida foi introduzido pelo Banco de Portugal no sistema como sendo o “004650311” quando o número correcto é o “4650311” (8ª);
y) o que impediu que quando se inquiria o sistema do banco réu sobre J. Almeida o mesmo não aparecesse como cliente do Banco Espírito Santo (9º);
w) esta desconformidade levou a várias situações idênticas até que, recentemente, foi uniformizada para todos os bancos a introdução dos números do bilhete de identidade a começar pelo primeiro número, sem menção de zeros à esquerda quando eles não existam (10º);
z) o referido em x) e y) levou a que a comunicação do Banco de Portugal não tivesse sido difundida no seu sistema informático, sendo desconhecida dos seus empregados (11º e 12º).

2. De direito :
Está em causa nestes autos saber se o réu, na qualidade de banco sacado, está obrigado, não obstante a falta ou insuficiência de provisão, a pagar ao tomador os cheques emitidos através de módulo por si fornecido a entidade incluída numa listagem de utilizadores de cheque que oferecem risco a comunicar pelo Banco de Portugal a todas as instituições de crédito.
O cheque incorpora uma ordem de pagamento dada a um banqueiro, funcionando como um instrumento de pagamento que, como tal, circula.
Com o objectivo de impedir o acesso àquele meio de pagamento a utilizadores que pusessem em causa o espírito de confiança indispensável à sua normal circulação foram publicados o DL nº 530/75, de 25 de Setembro, e o DL nº 14/84, de 11 de Janeiro, os quais contemplavam, além do mais, medidas administrativas destinadas a assegurar a concretização de tal objectivo.
Considerou-se, porém, que uma colaboração mais activa por parte das instituições de crédito seria o instrumento mais adequado para se conseguir o aumento desejável da confiança no meio de pagamento que é o cheque, o que foi posto em prática com a publicação do DL nº 454/91, de 28 de Dezembro (ao qual foram introduzidas posteriores alterações pelo DL nº 316/97, de 19 de Novembro), em cujo preâmbulo se consagrou, além do mais, o seguinte : “Tendo em vista alcançar tais objectivos, determina-se a obrigatoriedade de as instituições de crédito rescindirem as convenções de cheque com entidades que revelem utilizá-lo indevidamente. O Banco de Portugal, além do dever de verificar o cumprimento das obrigações impostas às instituições de crédito, fica incumbido de centralizar e difundir pelo sistema bancário a relação de utilizadores do cheque que oferecem risco.”
Assim, estabelece o artigo 3º do DL nº 454/91 :
“1- As entidades que tenham sido objecto de duas ou mais rescisões de convenção de cheque, ou que hajam violado o disposto no nº 5 do artigo 1º, são incluídas numa listagem de utilizadores de cheque que oferecem risco, a comunicar pelo Banco de Portugal a todas as instituições de crédito.
2- Nenhuma instituição de crédito poderá confiar impressos de cheques a entidades que integrem a listagem referida no número anterior.
3- As instituições de crédito que, à data da comunicação referida no nº 1, mantenham convenção de cheque com as entidades que integrem a listagem referida no mesmo número deverão proceder à sua imediata rescisão, sendo aplicáveis, com as necessárias adaptações, os nºs. 3, 4 e 5 do artigo 1º.”
E o artigo 9º estatui :
“1- As instituições de crédito são ainda obrigadas a pagar, não obstante a falta ou insuficiência de provisão :
a) Qualquer cheque emitido através de módulo por elas fornecido com violação do dever de rescisão a que se referem os nºs 1 a 5 do artigo 1º;
b) Qualquer cheque emitido através de módulo por elas fornecido, após rescisão da convenção de cheque, com violação do dever a que se refere o nº 6 do artigo 1º;
c) Qualquer cheque fornecido a entidades que integrem a listagem a que se refere o artigo 3º;
d) Qualquer cheque fornecido com violação do disposto no nº 9 do artigo 12º.”
Atendendo ao elemento literal ou gramatical da norma contida na alínea c) do artigo 9º seria possível afirmar que se está perante um caso de responsabilidade objectiva que tem como pressuposição o risco do negócio, estando a obrigação de pagamento associada à emissão de cheques e ao risco inerente à sua utilização em circunstâncias indevidas, designadamente havendo falta ou insuficiência de provisão na conta sacada.
Não seria, pois, em tal caso exigida a culpa da instituição de crédito sacada, porquanto o legislador teria partido da pressuposição de que quem se dedica ao comércio bancário e no âmbito dessa actividade procede à emissão de cheques deve suportar o risco decorrente da sua incorrecta utilização. Entre o particular, que é terceiro relativamente à convenção de cheque e se limita a recebê-lo como meio de pagamento do sacador, e a instituição de crédito, que fornece o módulo de que provém o cheque entregue ao tomador, sobre esta recairia o ónus de suportar o risco.
Afigura-se, contudo, que a interpretação literal é no caso insuficiente para surpreender o alcance da norma em questão, tornando-se necessário recorrer ao elemento sistemático para desvendar o seu sentido, ou seja, tomar em consideração as outras disposições que formam o complexo normativo em que a mesma se integra (contexto da lei).
Assim, cotejando a norma contida na alínea c) do nº 1 do artigo 9º com as insertas nas restantes alíneas do mesmo número, verifica-se que em todas estas a obrigatoriedade de pagamento pela instituição de crédito sacada exige a culpa (violação de um dever) em situações em que o banco se encontra numa relação mais próxima com a conduta do sacador do cheque que deu origem à violação do princípio da confiança que deve presidir à sua circulação, pelo que se apresentaria como incompreensível que na norma em causa ( a da alínea c) do nº 1 do artigo 9º), que se aceita consagrar um tipo específico de responsabilidade que não está condicionada pela verificação dos pressupostos gerais da responsabilidade civil por facto ilícito prevista no artigo 483º do Código Civil Cfr. neste sentido Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 2ª ed., Almedina, pág. 403, e o Ac. RL de 25.02.1999, CJ 1999, tomo 1, pág. 126. No sentido da exigibilidade dos requisitos da responsabilidade civil por facto ilícito cfr. Ac. RP de 07.10.1996, CJ 1996, tomo 4, pág. 216., o legislador tenha querido consagrar uma pura responsabilidade objectiva, logo sem a exigência de culpa, em situações de maior distanciamento entre o banco e o sacador que pôs em causa o espírito de confiança que deve presidir à circulação do cheque.
Mas não é só a interpretação sistemática do contexto do artigo 9º, que em todos os outros casos exige culpa, que aponta no sentido referido. Também do contexto do artigo 3º, para o qual remete a alínea c) do nº 1 do artigo 9º em causa, se extrai que o pressuposto da responsabilidade estabelecida neste normativo é a violação (culposa) dos nºs 2 e 3 desse artigo 3º, ou seja, a violação do dever de rescisão da convenção de cheque ou da proibição de celebrar nova convenção de cheque.
O legislador generaliza a todas as instituições bancárias o dever de rescisão da convenção de cheque e a proibição de celebrar nova convenção de cheque e é a violação desse dever ou dessa proibição, que tem de ser culposa, que determina a obrigatoriedade de pagamento ao tomador do cheque que o apresenta a pagamento, ainda que haja falta ou insuficiência de provisão.
O legislador quis por esta via generalizar os efeitos da rescisão da convenção de cheque, tornando-a extensiva a todas as instituições de crédito, procurando salvaguardar o espírito de confiança no cheque através da criação de uma situação temporária de “morte bancária”.
Logo, tem de concluir-se, pela via da interpretação sistemática, que o legislador disse menos do que queria, não bastando a listagem, em si mesma, dos utilizadores que tenham sido objecto de rescisão da convenção de cheque, elaborada pelo Banco de Portugal, e a sua comunicação a todas as instituições de crédito para desencadear a referida obrigação de pagamento, mas a existência de cheques em poder de um desses utilizadores após o incumprimento do dever ou da proibição a que se referem os nºs. 2 e 3 do artigo 3º.
Assentes os pressupostos da obrigação de pagamento contida na alínea c) do nº 1 do artigo 9º, importa analisar se, in casu, estão presentes.
É inquestionável que o banco réu emitiu e entregou módulos de cheques a José Luís Silva Almeida numa altura em que este figurava na listagem do Banco de Portugal de utilizadores que oferecem risco, seis dos quais, no valor global de esc : 4.443.992$00 ( € 22.166,54), foram por si sacados sobre a conta nº 00044650001 de que era titular naquele banco e entregues ao autor José Azevedo, não tendo os mesmos obtido pagamento, uns por falta de provisão outros por extravio.
Sustenta, porém, o banco réu que não está vinculado ao pagamento dos montantes dos cheques em questão por não ter recebido a comunicação da listagem que incluía aquele seu cliente por razões que lhe não são imputáveis.
Resultou provado que o Banco de Portugal incluiu a referida listagem no sistema informático a que todos os bancos estão ligados, tendo introduzido no sistema o número do bilhete de identidade do sacador J. Almeida antecedido de dois “00”, ou seja, “004650311” em vez de “4650311”, o que impediu que, quando se inquiria o sistema do banco réu, este aparecesse como um seu cliente, levando a que a comunicação do Banco de Portugal não tivesse sido recebida como referente àquele seu cliente e não tivesse sido difundida no seu sistema informático, sendo, por isso, desconhecida dos seus empregados.
Mais se provou que a referida desconformidade levou a várias situações idênticas até que, recentemente, foi uniformizada para todos os bancos a introdução dos números de bilhete de identidade a começar pelo primeiro dígito, sem menção de zeros à esquerda quando eles não existam.
Cabe, pois, averiguar se perante esta factualidade é possível descortinar uma actuação culposa por parte do banco réu.
Tratando-se de uma instituição bancária, que se movimenta numa área de maiores exigências formais, necessariamente dotada de organização empresarial e dos meios necessários para responder em condições apropriadas de qualidade e eficiência, entende-se que a culpa deve ser analisada num padrão de grande exigência, bastando a culpa leve para alicerçar um juízo de censurabilidade ou reprovabilidade sobre a sua conduta.
No caso vertente, o banco réu não podia ignorar que o Banco de Portugal lhe comunicaria listagens de utilizadores de cheque que oferecem risco em obediência ao comando inserto no artigo 3º nº 1. Competia-lhe, pois, compatibilizar o seu sistema informático com o do Banco de Portugal por forma a receber as comunicações por este enviadas, sob pena de não receber qualquer listagem e ficar à margem do cumprimento do disposto nos nºs. 2 e 3 do citado artigo 3º (rescisão de convenção de cheque e proibição de celebrar nova convenção de cheque com qualquer entidade incluída nessa listagem).
Não procedeu, porém, o banco réu dessa forma, apesar de ter o dever de se colocar em condições de receber as comunicações do Banco de Portugal, o que deu origem a situações como a dos autos, em que o seu sistema informático não identificou na listagem de utilizadores de cheque que oferecem risco comunicada pelo Banco de Portugal o sacador dos cheques em causa nos autos – J. Almeida – como seu cliente, inviabilizando, por facto que lhe é imputável, o cumprimento do disposto no referido nº 2 do artigo 3º.
A circunstância de, recentemente, ter sido uniformizada para todos os bancos a introdução dos números de bilhete de identidade a começar pelo primeiro número, sem menção de zeros à esquerda quando eles não existam, tal como estava preparado o sistema informático do réu, não dispensava o mesmo da obrigação de preparar e adaptar o seu sistema informático à recepção adequada e em condições de operacionalidade das comunicações do Banco de Portugal decorrentes de imposição legal, como era o caso. Tal constituía até uma exigência, pois que, bem ou mal, são as instituições bancárias que têm de preparar informaticamente para receber as comunicações emanadas do Banco de Portugal e cumprir as obrigações legais para elas daí advenientes.
Actuou, pois, o réu com culpa, pelo que está obrigado a pagar os cheques emitidos por José Luís Silva Almeida através dos módulos que lhe forneceu, por força do estatuído no artigo 9º nº 1 alínea c), por tais módulos terem sido fornecidos a pessoa incluída em listagem de utilizadores de cheque que oferecem risco com violação do estabelecido nos mencionados nºs. 2 e 3 do artigo 3º.
Tendo o primitivo autor, tomador dos cheques, falecido na pendência da acção, o pagamento deverá ser feito aos seus herdeiros habilitados, ascendendo o mesmo à quantia de 22.166,54 € (equivalente a 4.443.992$00), a que acrescem juros de mora à taxa legal desde a data da primeira apresentação a pagamento dos cheques, computando-se os vencidos até à data da propositura da acção - 11 de Maio de 1995 - em € 3.422,20 (correspondentes a 686.090$00) e sendo os vincendos a partir dessa data à taxa legal resultante das Portarias nº 1171/95, de 25 de Setembro, nº 263/99, de 12 de Abril, e nº 291/2003, de 8 de Abril.

Procede, assim, o núcleo essencial das conclusões da alegação dos apelantes.

3. Decisão :
Termos em que acordam os Juizes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida e, em consequência, julgam a acção procedente, condenando o réu Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, SA, a pagar aos autores M. Azevedo, José Azevedo e Jorge Azevedo, herdeiros habilitados do primitivo autor J. Azevedo, a quantia de 22.166,54 €, acrescida de juros vencidos até 11.05.1995 no montante de € 3.422,20 e dos que se vencerem sobre aquela quantia desde 12.05.1995 até 30.09.1995 à taxa de 15% ao ano, desde 01.10.1995 até 16.04.1999 à taxa de 10% ao ano, desde 17.04.1999 até 30.04.2003 à taxa de 7% ao ano e desde 01.05.2003 até pagamento à taxa de 4% ao ano.
Custas pelo apelado nas duas instâncias.

Lisboa, 22-4-04

(Fernanda Isabel Pereira)
(Maria Manuela Gomes)
(Olindo Geraldes)