Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
378/2003-2
Relator: SILVEIRA RAMOS
Descritores: ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/29/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Sumário: I - Não configura qualquer abuso de direito, o exercício do direito da fornecedora de energia à respectiva cobrança pela consumidora, após ter constatado erro na determinação dos montantes a considerar., sendo irrelevante a impossibilidade para a consumidora de fazer já repercutir sobre os seus clientes os aumentos dos custos dos produtos entretanto comercializados.
Decisão Texto Integral:          Acordam na Relação de Lisboa:
         E, E.P., veio intentar contra T, S.A. e P, Lda, acção declarativa com processo ordinário, pedindo a condenação desta firma, solidariamente, no pagamento de Esc. 11.356.750$00 e juros vincendos à taxa legal de 10%, com base no contrato de fornecimento de energia eléctrica que celebrou com a primeira, em média tensão, para as suas instalações industriais de transformação de peixe em S. Roque do Pico, na cessão da exploração das suas instalações à segunda, desde de Setembro de 1995 e ainda em erro de facturação e expressa assunção pela última da sua responsabilidade perante a A.
A primeira R. contestou (fls. 29 e segs.), invocando as excepções dilatória de preterição do Tribunal arbitral necessário e peremptória de caducidade e impugnando os factos alegados pela A., com a sua absolvição do pedido.
Por sua vez, a segunda R. apresentou a contestação de fls. 46 e segs., com invocação da excepção de caducidade e impugnação dos factos alegados pela A., com a sua absolvição do pedido.
Na sua resposta a A. pugna pela improcedência das referidas excepções (fls. 66 e seg.).
No despacho saneador (fls. 105 e segs.) foi julgado improcedente quer a excepção de incompetência, quer a de caducidade.
Após julgamento, foi proferida a sentença de fls. 241 e segs., que condenou as RR., solidariamente, no pagamento à A. se Esc. 9.220.299$00 com juros a 10% de 21-11-1996 a 12-4-1999 e de 7% posteriormente, sendo a responsabilidade da R. P, Lda à quantia que se vier a apurar em liquidação de sentença, relativa à energia consumida desde Setembro de 1995.
Inconformada com a sentença dada veio interpor recurso a R. P, SA., formulando nas suas alegações as seguintes conclusões (expurgadas agora da matéria de excepção de caducidade, resolvida, com trânsito em julgado, nos despacho saneador):
1- O exercício do direito da ora apelada, consubstancia abuso do direito, nos termos do art. 334º C:C.;
2- Pois a ora apelante desconhecia o erro daquela, e não tinha qualquer relação contratual com a mesma,  já que tomara a exploração do estabelecimento mediante o contrato de cessão com a sua co-ré;
3- Tendo a avaliado a viabilidade do negócio de cessão, inteirando-se junto da cedente e proprietária do estabelecimento dos valores históricos da facturação da electricidade, que não permitiam prever a posterior rectificação pela entidade fornecedora;
4- O pagamento dos valores agora pedidos pela apelada constituiria grave prejuízo para a apelante, face ao tempo decorrido sobre a produção e a impossibilidade de repercutir esse custo, no preço dos produtos já comercializados ao tempo em que tomou conhecimento da diferença na quantidade de energia consumida;
5- Achando-se a ora apelada, como fornecedora de energia eléctrica, numa posição quase monopolista, colocando o consumidor numa situação de desigualdade negocial, por actuar através de contratos-tipo, na interpretação do clausulado do contrato, há que buscar a que conduza a um maior equilíbrio das prestações de ambas as contratantes e não optar pela que enfraqueça a parte já mais fraca;
6- Devendo sobrepor-se à realização concreta do direito, os valores da boa fé e os limites impostos pelo fim económico e social desse direito - art. 334º C.C;
7- Aliás, a apelante não podia ser condenada em juros de mora pois, por motivo que lhe não é imputável, a sua dívida não é liquida, tendo sido relegada a sua fixação para execução de sentença - art. 805º nº 3 C.C.
A apelada contra-alegou (fls. 282 e segs.) pugnando pela manutenção    do julgado.
II

As questões a apreciar são:
I - O exercício do direito da apelada é ilegítimo, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim social e económico desse direito?
II - A quantia a apurar em liquidação de sentença, a que se limita a responsabilidade da ora apelante são aplicáveis a esta juros de mora?
(...).
 ......resulta que, por erro de facturação a ora apelante não pagou toda a energia eléctrica que consumiu, fornecida pela apelada, a expensas desta, que assim viu minguar o seu património em beneficiação da apelante que, obtendo custos mais favoráveis, quer aos que normalmente sobre ela incidiriam para alcançar a mesma produção, quer aos que pesavam sobre a concorrência, vir anexar o seu património em valor equivalente ao da  diminuição da fornecedora de energia.
Nem objectiva, nem subjectivamente, se alcança qualquer abuso do direito por parte da fornecedora da energia for, constatado erro na determinação dos montantes a considerar, exercer o seu direito à respectiva cobrança.
Já por não terem sido excedidos os limites da boa fé, ou seja das "concepções ético-jurídicas" (Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", vol. 7 4ª ed., pág. 298 e segs., e referências doutrinais e jurisprudênciais aí contidas). nada tem a ver com a boa fé do devedor, beneficiando tranquilamente dum erro daquele, porventura sem se aperceber desse erro.
Também o fim social ou económico do direito do aqui credor se acha legitimamente ancorado no "do ut des" do sinalagma decorrente do contrato de fornecimento de energia, tal como a lei o configura.
Muito menos se pode invocar o manifesto excesso de limites, que não o foram (manifestamente) ultrapassados - art. 334º C.C.
São para isso despeciendas as previsões da apelante, com base no  erro da apelada, e bem assim os efeitos resultantes de não poder já repercutir nos custos de produtos já comercializados a rectificação das despesas com a energia eléctrica, que aliás se desconhece nos autos, se terão sido antes fonte dum lucro acrescido (quer ao normalmente a considerar, quer aos da concorrência).
Também não há ilacções a tirar aqui da desigualdade de condições económicas da apelante e da apelada, afectando os contratos  celebrados por ambos.

A condenação da ora apelante é limitada à quantia que se vier a apurar em liquidação de sentença, relativa à energia consumida desde Setembro de 1995".
Essa quantia faz parte da quantia de Esc. 9.220.299$00 em que foram condenadas, solidariamente, ambas as R.R.
Mas, conforme a sentença recorrida, para a ora apelante não incidem juros vencidos antes da sua liquidação.
O que se conforma com o preceito do art. 805º nº3 C.C.
Termos em que, julgando improcedentes as conclusões das alegações da apelante, se julga improcedente a apelação, com a confirmação da sentença recorrida.
Custas pela apelante.  
Lx. 29-05-2003
                                                    F. Silveira Ramos
                                                    Graça Amaral
                                                     João Carlos E. Martins