Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1523/24.1T8LSB.L1-1
Relator: NUNO TEIXEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE ACTIVA
ADMINISTRADOR DO CONDOMÍNIO
AUTORIZAÇÃO DA ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I–Se o condómino (devedor) deixou de pagar a sua quota-parte nas despesas de condomínio, pertence ao condomínio (credor) decidir, representado em juízo pelo seu administrador (artigo 1437º, nº 1 e 2 do Código Civil), qual o meio processual mais adequado ao seu dispor para obter a satisfação do seu crédito, se a acção executiva, se a acção de insolvência, sendo certo que, na segunda, como credor, está legitimado para requerer a declaração de insolvência apenas tendo de alegar e provar um dos factos-índices de insolvência enunciados nas várias alíneas do nº 1 do artigo 20º do CIRE.

II–Para tanto, o administrador do condomínio não necessita de prévia autorização da assembleia de condóminos, quando já consta do Regulamento do Condomínio que poderá propor “a competente acção judicial exigindo a totalidade do débito mencionado no artigo anterior acrescido da pena pecuniária de 15% e juros legais”.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,



1.CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO …., pessoa coletiva n.º …, com sede na Praça … Porto, representado pela sua administração, requereu a insolvência de C…, LDA., pessoa coletiva n.º …, com sede na Rua … Lisboa.

Alegou para o efeito que a Requerida é devedora ao Requerente, desde Dezembro de 2023, do montante de 27.479,29 €, proveniente da falta de pagamento da quota-parte das despesas do condomínio e da penalidade por atraso na realização dos pagamentos, crédito esse sobre a Requerida que se encontra accionado judicialmente. Referiu ainda que na execução que, entretanto, propôs contra a Requerida, foram realizadas diligências e buscas possíveis, tendo-se verificado que todos os seus bens se encontram já demasiado onerados e penhorados, concluindo, assim, que o património conhecido, onerado e penhorado, revela-se insuficiente para liquidar a totalidades dos seus credores – que descreve –, incluindo o da Requerente.

Após a entrada da petição, em 17/01/2024 foi proferido despacho (refª 432004305) a convidar o Requerente, “no prazo máximo de 5 dias (…), sob pena de indeferimento liminar, a;
a)-Juntar certidão legível do registo comercial actualizada da Requerida;
b)-Identificar os seus administradores de direito e de facto;
c)-Juntar cópia autenticada da acta da assembleia de condóminos, que autoriza o Requerente, a intentar a presente acção de insolvência;
d)-Aperfeiçoar o seu requerimento inicial no sentido de concretizar a situação económico-financeira da Requerida, nos termos supra explanados”.

Na sequência daquele despacho, veio o Requerente esclarecer que na petição inicial foi indicado o código de acesso à certidão permanente online referente à sociedade  Requerida, a saber …, o qual, de acordo com o disposto no artigo 75º, nº 5 do Código do Registo Comercial, equivale à entrega de certidão, informando ainda resultar daquela certidão serem gerentes de direito e de facto da Requerida, OV. e EV.. Quanto ao demais solicitado pelo tribunal, designadamente à legitimidade activa, referiu não restarem quaisquer dúvidas de que é credor da Requerida, pelo que entendeu que a junção referida na alínea c) do despacho (junção de cópia autenticada da acta da assembleia de condóminos que autorize o Requerente a intentar a presente acção de insolvência) não é devida, porquanto defende que o Regulamento do Condomínio do Edifício …, cuja cópia foi junta aos autos, máxime o seu artigo 53.º, nº 1, habilita a administração do mesmo a proceder à cobrança de dívidas de condomínio, sendo que “não consta do Regulamento quais os concretos meios processuais a lançar mão para obter dos devedores o pagamento dos duodécimos em dívida, ficando, assim, ao critério e escolha da respectiva administração do condomínio.”

Em resposta a este requerimento foi proferido despacho de indeferimento liminar da petição (refª 432279228), datado de 25/01/2024, o qual termina do seguinte modo:
“Destarte, ante o exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 27.º, n.º 1, alínea a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e 12.º, alínea e), 15.º, 29.º, n.º 2, e 577.º, alínea c) do Código de Processo Civil, por falta de capacidade judiciária ativa do Requerente, indefiro liminarmente o pedido de declaração de insolvência de C…, LDA., pessoa coletiva n.º …, com sede na Rua … Lisboa, peticionado por CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO …, pessoa coletiva n.º …, com sede na Praça … Porto.
Custas pelo Requerente – artigo 304.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Notifique e publique – n.º 2 do artigo 27.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.”

Não se conformando com este despacho veio o Requerente interpor o presente recurso, que conclui da seguinte forma:
I.A decisão em recurso, salvo o devido e merecido respeito, violou, designadamente, o disposto nos arts.º 1.º e 20.º do CIRE, art.º 12.º e 15.º do CPC, art.º 1424.º, 1436.º e 1437.º do Código Civil;
II.O Recorrente é credor da Recorrida do montante global de € 27.479,29 (Vinte e sete mil, quatrocentos e setenta e nove euros e vinte e nove cêntimos), proveniente da falta de pagamento da quota-parte das despesas do condomínio e da penalidade por atraso na realização dos pagamentos;
III.–Aquele crédito foi accionado judicialmente (Doc. 4 a 6 da PI;
IV.–Compete ao Recorrente, na qualidade de condomínio, peticionar e cobrar as despesas que devem ser pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas fracções – art.º 1424.º n.º 1 do CC, relativas à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento dos serviços de interesse comum;
V.–A administração do condomínio é o órgão executivo e tem a seu cargo as funções elencadas no art.º 1436.º do CC, destacando-se a possibilidade legal de cobrar as receitas e efetuar as despesas comuns e exigir dos condóminos a sua quota-parte nas despesas aprovadas - als. d) e e) do art.º 1436.º CC;
VI.–Trata-se de funções que o administrador do condomínio desempenha por competência própria, não estando dependente de qualquer autorização da assembleia de condóminos, nem esta pode retirar-lhe ou condicionar-lhe essa sua competência;
VII.–Assim, as ações que respeitam às funções que o administrador do condomínio desempenha por competência própria, podem ser instauradas pelo administrador do condomínio ou contra este, em representação do condomínio, sem necessidade de prévia autorização da assembleia de condóminos, nestas se incluindo as acções de insolvência,
VIII.–Como é o caso dos presentes autos, atendendo a que os créditos vencidos invocados pelo Recorrente respeitam a encargos correntes relativos ao condomínio e a penalizações, pelo que,
IX.–O administrador de condomínio dispõe de capacidade judiciária para, em representação do condomínio, por sua exclusiva iniciativa, isto é, independentemente de autorização da assembleia, instaurar ações para cobrança desses encargos contra os condóminos nos termos do disposto no art.º 1436.º, al. d) do CC;
X.–Sendo o Requerente credor da Requerida e a acção de insolvência enquadrável nas funções do administrador do condómino, aquele tem, capacidade judiciária e legitimidade para requerer a insolvência; De resto,
XI.–Nos termos do disposto no art.º 1.º, n.º 1 do CIRE o processo de insolvência é um processo expressamente qualificado por lei como “processo de execução universal”;
XII.–E, tal como o processo executivo (não obstante as especificidades do processo de insolvência) tem por finalidade obter a satisfação do seu crédito, incumprido pelo devedor; Neste contexto,
XIII.–Incumprido pelo devedor o crédito, cabe ao condomínio decidir, dentro dos meios processuais ao seu dispor para obter a satisfação do seu crédito, se deve recorrer à ação executiva ou antes à ação de insolvência, tendo, neste caso, apenas que alegar e provar os factos-índices de insolvência do devedor enunciados no art.º 20.º, n.º 1 do CIRE; Por outro lado,
XIV.–Quer no processo de insolvência, quer no executivo, o credor pode ser pago pelo seu crédito,
XV.–Ou, pelo contrário, ver o seu crédito insatisfeito, no processo de insolvência, por inexistência de bens na massa insolvente e no processo executivo em benefício de terceiros credores do executado;
XVI.–No caso vertente, o Recorrente optou, também, pela acção de insolvência;
XVII.–Considerando que a legitimidade ativa para instaurar a acção de insolvência apenas se encontra dependente da prova dos factos-índices enunciados no art.º 20.º, n.º 1 do CIRE, o Recorrente não necessita de autorização da assembleia de condóminos para instaurar a presente acção;
Acresce,
XVIII.–O Recorrente juntou à PI (doc. 6) o Regulamento do Condomínio do Edifício … aprovado nas respectivas Assembleias Gerais de Condóminos aí expressamente indicadas;
XIX.–Nos termos do disposto no art.º 52.º e 53.º do Regulamento, a falta de pagamento de qualquer duodécimo ou parte dele nos prazos aí previstos determina o vencimento de todos os duodécimos do ano em curso e dá lugar ao recurso à via judicial para a sua cobrança;
XX.–Não consta do Regulamento quais os concretos meios processuais a lançar mão para obter dos devedores o pagamento dos duodécimos em dívida, ficando, assim, ao critério e escolha do respectiva administração do condomínio;
XXI.–Entre os meios processuais aptos à cobrança das quotizações em dívida pelos devedores, inclui-se não só a execução, mas também a propositura de acção visando a declaração de insolvência – cfr. Ac. RG de 19/10/2017, proc. 1365/17.0 T8VCT-C.G1, relator José Alberto Moreira Dias, disponível in www.dgsi.pt;
XXII.–Também por este fundamento, o Recorrente, enquanto administrador do condomínio estava, como está, “autorizado” a intentar a acção de insolvência;
Por outro lado,
XXIII.–Para além do próprio devedor, estão legitimadas a requerer a declaração de insolvência as entidades indicadas no art.º 20.º, n.º 1, nomeadamente, “qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito”;
XXIV.–Ou seja, só aquele que se arroga a titularidade de um crédito sobre o devedor tem legitimidade (processual) para requerer a declaração de insolvência – sobre esta matéria vide douto AC. STJ de 17/11/2015 - proc. 910/13.5 TBVVD-G.G1.S1, relator Fonseca Ramos, disponível em www.dgsi.pt, e Catarina Serra in “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, 2019, reimpressão, págs. 115/118;
XXV.–O Recorrente, como supra referido e consta dos autos, é credor da Requerida, tendo, por isso, legitimidade activa para intentar a presente acção de insolvência sem qualquer autorização expressa da assembleia de condóminos para esse efeito;

Citada a Requerida para os termos do recurso e da causa, veio apresentar contra-alegações, cujas conclusões ora se reproduzem:
1)-Além de agir de má-fé que o Recorrente apresenta, porque pretende com o presente processo, bem sabendo que existe outro em curso (execução) que o mesmo interpôs, evitar sentença e passar por cima da decisão a proferir em sede de embargos de executado aprestados pelo recorrida onde este questiona a existência da divida em que o Recorrente fundamenta o seu pedido de insolvência,
2)-De facto nada há ao indeferimento liminar dado que efectivamente o administrador do condomínio não tem legitimidade para peticionar insolvência de quem quer que seja sem previa deliberação da assembleia para o efeito.
3)-Como é sabido a declaração de insolvência pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se alguns dos factos referidos no art. 20.º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
4)-O disposto no art.º 12.º, alínea e) do Código de Processo Civil diz que em personalidade judiciária "o condomínio resultante da propriedade horizontal relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador".
5)-Da análise do artigo 1437.º do C. Civil, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 8/2022, de 10 de janeiro, verifica-se que o condomínio é sempre representado em juízo pelo seu administrador, devendo demandar e ser demandado em nome daquele, sendo que o administrador age em juízo no exercício das funções que lhe competem, como representante da universalidade dos condóminos ou quando expressamente mandatado pela assembleia de condóminos.
6)-Este preceito refere-se à chamada legitimidade formal, isto é a capacidade judiciária ou processual – suscetibilidade de estar a parte, pessoal e livremente em juízo e não à legitimidade ad causam que só em concreto e caso a caso pode ser averiguada.
7)-Ora refere o artigo 1436.º do Código Civil que: “(…)”.
8)-Ora resulta claro que o artigo supra referido no elenco acima transcrito não atribui competência ao administrador de condomínio para instaurar ações de insolvência. E como muito bem referiu o Douto despacho sob recurso “(…)”.
9)-Assim, concordando em absoluto com o douto despacho recorrido obviamente e contrariamente ao defendido pelo Recorrente, o processo de insolvência não se trata de todo de um processo de cobrança de dívidas, nem é esse o seu propósito, pelo que a propositura de uma ação de insolvência não está necessariamente coberta nem pelo enunciado legal das competências do administrador de condomínio, nem pelo invocado regulamento de condomínio.
10)-Pelo que não há previsão legal expressa que habilite a Administração de um condomínio de per si a intentar ação de insolvência, em representação de um condomínio.
11)-Assim, como muito bem referiu o Douto despacho recorrido “(…)”.
12)-Razão pela qual outra solução na podia ser proferida senão aquela que foi, isto é ao abrigo do disposto nos artigos 27.º, n.º 1, alínea a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e 12.º, alínea e), 15.º, 29.º, n.º 2, e 577.º, alínea c) do Código de Processo Civil, por falta de capacidade judiciária ativa da recorrente ser indefiro liminarmente o pedido de declaração de insolvência recorrida.
13)-Pelo que nenhuma razão assiste ao Apelante, pelo que, quanto a esta matéria, deverá improceder as conclusões apresentadas pelo Apelante mantendo-se o despacho recorrido.[1]

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2.–Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).

De acordo com as conclusões formuladas, o Recorrente insurge-se contra a decisão recorrida por, em suma, o tribunal lhe negar a possibilidade de requerer a insolvência de uma sua devedora, indeferindo-lhe liminarmente a petição inicial, em virtude de carecer de “capacidade judiciária ativa”.

3.–Com relevância para a decisão, encontram-se provados os factos vertidos no relatório que antecede e cujo teor aqui se dá por reproduzido.

4.–Perante a factualidade dada como provada, cumpre agora analisar, in casu, se a falta de junção aos autos da acta da assembleia de condóminos a autorizar a propositura da presente acção de insolvência – junção essa determinada no despacho de aperfeiçoamento –, justifica ou não o decretado indeferimento liminar da petição formulada pelo Requerente, nos termos do disposto no artigo 27º, nº 1, alínea a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), 12º, alínea e), 15º, 29º, nº 2 e 577º, alínea c) do Código de Processo Civil (CPC).
4.1.-Resulta do despacho recorrido que o tribunal a quo considerou estar em falta a autorização da assembleia de condóminos para a propositura da presente acção, em resultado do que indeferiu liminarmente a petição formulada pelo Recorrente, após ter proferido despacho de aperfeiçoamento em que o convidou a juntar, no prazo de cinco dias, acta daquela assembleia que contivesse tal autorização.
Com efeito, determina o artigo 27º, nº 1, alínea a) do CIRE que no próprio dia da distribuição, ou, não sendo tal viável, até ao 3º dia útil subsequente, o juiz “indefere liminarmente o pedido de declaração de insolvência quando seja manifestamente improcedente, ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis de que deva conhecer oficiosamente”.
Sendo de natureza dilatória, a excepção de falta de capacidade judiciária[2], envolve “a incapacidade judiciária stricto sensu,a irregularidade de representação ou a falta de deliberação ou de autorização”. Trata-se, no entanto, de uma “falha processual sem efeitos imediatos, já que, independentemente da sua arguição pela parte, o juiz deve ordenar oficiosamente as diligências necessárias a assegurar o referido pressuposto processual, nos termos dos arts. 6º, nº 2, 27º a 29º e 590º, nº 2, alínea a), de tal modo que os efeitos da exceção dilatória apenas poderão ser extraídos depois de realizadas tais diligências com vista a assegurar o preenchimento do pressuposto processual, ainda assim, sem prejuízo do que dispõe o art. 278º, nº 3”. E, na verdade, foi o que aconteceu nos presentes autos, dado que, logo após a distribuição do pedido de declaração de insolvência, o juiz proferiu o despacho de aperfeiçoamento já mencionado e reproduzido no relatório.
4.2.-Como decorre da factualidade dada por assente, o ora Recorrente respondeu ao despacho de aperfeiçoamento, esclarecendo que o Regulamento do Condomínio do Edifício …, no artigo 53º, habilita a respectiva administração a proceder à cobrança de dívidas de condomínio, do qual “não consta (…) quais os concretos meios processuais a lançar mão para obter dos devedores o pagamento dos duodécimos em dívida, ficando, assim, ao critério e escolha da respectiva administração do condomínio”. Daí que não tenha juntado a acta da assembleia de condóminos solicitada naquele despacho.

Assim não entendeu o tribunal a quo para quem o processo de insolvência não se trata de todo de um processo de cobrança de dívidas, nem é esse o seu propósito, pelo que a propositura de uma ação de insolvência não está necessariamente coberta nem pelo enunciado legal das competências do administrador de condomínio [previstas no artigo 1436º do Código Civil], nem pelo invocado regulamento de condomínio”. Por essa razão, não tendo o Requerente sanado a falta daquele pressuposto processual com a junção da solicitada autorização da assembleia de condóminos, o tribunal indeferiu liminarmente a petição.[3]

Cremos, porém, que não se justificava tal indeferimento.

Em primeiro lugar, discordamos, desde logo, da afirmação de que a propositura de uma acção de insolvência não esteja abrangida nem pelo elenco de funções do administrador de condomínio constante do artigo 1436º do Código Civil, nem pelo referido regulamento de condomínio. Na verdade, sendo o administrador “o órgão executivo no quadro orgânico da administração do condomínio”[4], está autorizado pelo nº 1 do artigo 1437º do Código Civil[5], “a actuar, em representação do condomínio, em acção a intentar contra qualquer dos condóminos, assim como contra terceiro, na execução das funções que lhe são reconhecidas – desde logo, as elencadas no artigo 1436º”[6], entre as quais se incluem a de cobrar as receitas resultantes do condomínio e as suas despesas comuns (alínea d) do nº 1) e a de exigir dos condóminos a sua quota-parte nas despesas aprovadas, incluindo os juros legais devidos e as sanções pecuniárias fixadas pelo regulamento do condomínio ou por deliberação da assembleia (alínea f) do nº 1). Contudo, como diz SANDRA PASSINHAS, as receitas comuns do condomínio não se confundem com a cobrança aos condóminos da sua quota-parte nas despesas aprovadas pela assembleia, a que se refere a actual alínea f).[7] Estas são as despesas aprovadas em assembleia geral ordinária, que é o órgão do condomínio com competência para fixar os montantes necessários à conservação e fruição das partes comuns do edifício e para o pagamento dos serviços de interesse comum, despesas essas que, salvo disposição em contrário, são pagas pelos condóminos “em proporção do valor das suas frações” (artigo 1424º, nº 1 do Código Civil). Nos termos do artigo 6º, nºs 1, 2 e 3 do DL nº 268/94, de 25 de Outubro, a acta da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições a pagar ao condomínio ou quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte, mesmo que não tenha sido assinada por todos os condóminos presentes e o condómino executado não tenha estado presente.[8] Assim, munido de um título executivo, poderá e deverá o administrador do condomínio “instaurar acção judicial destinada a cobrar as quantias referidas nos nºs 1 e 3” (artigo 6º, nº 4 do DL nº 268/94, de 25 de Outubro)[9]. Ou seja, integra as competências do administrador do condomínio o dever de exigir dos condóminos a sua quota-parte nas despesas aprovadas em assembleia de condóminos, devendo, para o efeito, instaurar acção judicial destinada a cobrar as quantias referidas, acção que, normalmente, será executiva, mas que também poderá ser de insolvência. E porque actua “no exercício das funções que lhe competem” (artigo 1437º, nº 2 do Código Civil) não necessita de prévia autorização por parte da assembleia de condóminos, a qual “não pode limitar a esfera de legitimação activa do administrador, delimitada pelo núcleo das suas funções”.[10]

Em segundo lugar, discordamos ainda do despacho recorrido na parte em que se afirma que a acção de insolvência não se trata “de todo” de um processo de cobrança de dívidas, quando é o próprio legislador a declarar, no artigo 1º, nº 1 do CIRE, que o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.”

Assim, ainda que estruturalmente, compreenda uma fase declarativa que termina com a prolação da sentença de declaração de insolvência, o processo de insolvência não deixa de ser também um processo de natureza executiva, “destinado a permitir a satisfação, célere e eficiente, dos direitos de crédito de todos os credores do devedor, através do património deste, sem prejuízo da possibilidade de essa satisfação ser assegurada através de um plano de insolvência”.[11]  Por isso, apesar de não ser, em absoluto, um processo de cobrança de dívidas, “o objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores” (cfr. ponto 3 do preâmbulo do CIRE). Ora, os direitos dos credores só ficam satisfeitos quando, mediante a liquidação do património do devedor, obtenham o pagamento do seu crédito, a não ser que os próprios credores venham a aprovar, através de um plano de insolvência, a recuperação do devedor (artigo 192º, nº 3 do CIRE).

Assim, se o condómino (devedor) deixou de pagar a sua quota-parte nas despesas de condomínio, pertence ao condomínio (credor) decidir, representado em juízo pelo seu administrador (artigo 1437º, nº 1 e 2 do Código Civil), qual o meio processual mais adequado ao seu dispor para obter a satisfação do seu crédito, se a acção executiva, ou antes a acção de insolvência, sendo certo que, na segunda, como credor, está legitimado para requerer a declaração de insolvência apenas tendo de alegar e provar um dos factos-índices de insolvência enunciados nas várias alíneas do nº 1 do artigo 20º do CIRE, não sendo necessária a prévia autorização da assembleia de condóminos para tal.[12] Aliás, como credor, pode requerer a declaração de insolvência do seu devedor, ainda que não seja detentor de qualquer título executivo contra ele, o que não ocorrerá no caso em apreço, como vimos. Tanto no processo executivo, como na insolvência, poderá ser pago pelo seu crédito.

Resulta ainda dos artigos 52º e 53º do Regulamento do Condomínio do Edifício Brasília que a falta de pagamento de qualquer duodécimo ou parte dele nos prazos aí previstos determina o vencimento de todos os duodécimos do ano em curso e dá lugar à via judicial para a sua cobrança, não se especificando, no entanto, quais os concretos meios processuais a utilizar pelo administrador para atingir tal objectivo.

Ora, já foi reconhecida ao administrador de condomínio a capacidade judiciária para intentar acção de insolvência contra “o devedor de contribuições de condomínio em dívida e respectivas penalidades decorrente do não pagamento atempado dessas contribuições”, no caso de ter sido “autorizado pela assembleia para… em caso de necessidade, proceder à cobrança judicial de todas as contribuições em dívida ao condomínio, incluindo as penalizações…”[13]
No caso em apreço, como vimos, essa autorização já constava do Regulamento do Condomínio, não se justificando, pois, a junção de cópia autenticada da acta da assembleia de condóminos a autorizar o Requerente a intentar a presente acção de insolvência.
Procede, pois, o presente recurso.

5.Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação procedente, e, consequentemente, determinar a revogação do despacho recorrido, que deverá ser substituído por decisão que ordene o prosseguimento dos autos.
Sem custas, por a elas não ter dado causa o Recorrente.


Lisboa, 11/07/2024


Nuno Teixeira - (Relator)
Paula Cardoso - (1ª Adjunta)
Renata Linhares de Castro - (2ª Adjunta)


[1]Por ser desnecessário, não se transcreveram as citações de legislação e do despacho recorrido.
[2]Segundo o artigo 15º, do CPC, a capacidade judiciária “consiste na suscetibilidade de estar, por si, em juízo” (nº 1) a qual “tem por base e por medida a capacidade do exercício de direitos” (nº 2).
[3]De acordo com o disposto no artigo 29º, nº 2, 1ª parte, do CPC, se a falta não for sanada dentro do prazo, é réu é absolvido da instância, quando a autorização ou deliberação devesse ser obtida pelo representante do autor.
[4]Cfr. ANA MORAIS ANTUNES e RODRIGO MOREIRA, “Comentário ao artigo 1435º”, in [coord. de Henrique Antunes, Comentário ao Código Civil. Direito das Coisas, Lisboa, 2021, pág. 513.
[5]Na redacção dada pela Lei nº 8/2022, de 10 de Janeiro, diploma que reviu o regime da propriedade horizontal, alterando o Código Civil, o DL nº 268/94, de 25 de Outubro e o Código de Notariado.
[6]Cfr. ANA MORAIS ANTUNES e RODRIGO MOREIRA, “Comentário ao artigo 1437º”, in Comentário ao Código Civil …, pp. 531-532.
[7]Cfr. A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, Coimbra, 2000, pág. 207. Segundo a referida autora, “as receitas comuns são, por assim dizer, receitas vindas do exterior, ou do condómino enquanto terceiro estranho ao condomínio (por exemplo, se for ele o arrendatário de uma parte comum do edifício).
[8]Cfr. neste sentido, STJ, Ac. de 14/10/2014 (proc. 4852/08.8YYLSB-A.L1.S1) e TRL, Ac. de 07/04/2016 (proc. 2816/12.6TBCSC-A.L1-2), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[9]A norma abrange qualquer ação judicial – declarativa ou executiva – destinada a exigir o cumprimento de um direito de crédito resultante da falta de pagamento da quota-parte nas despesas do condomínio.
[10]Cfr. TRL, Ac. de 05/06/2008 (proc. 10841/2007-7), disponível em www.dgsi.pt/trl.
[11]Cfr. MARCO CARVALHO GONÇALVES, Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Coimbra, 2023, pág. 69.  Para a doutrina insolvencial mais conhecida, o processo de insolvência é de “natureza mista” (MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Manual do Direito de Insolvência, 7ª Edição, Coimbra, 2020, pág. 18; SOVERAL MARTINS, Um Curso de Direito da Insolvência, volume I, 3ª Edição, Coimbra, 2021, pág. 52; e CATARINA SERRA, Lições de Direito da Insolvência, Coimbra, 2019, pp. 41 e 42)
[12]Como já se decidiu “o processo de insolvência, tal como o de execução, tem em vista a satisfação do interesse do credor, pelo que insatisfeito o seu crédito, cabe ao credor verificar qual o meio processual adequado para obter a satisfação do seu crédito, designadamente, se lhe é conveniente recorrer à execução ou à ação declarativa da insolvência, encontrando-se, neste último caso, a sua legitimidade ativa condicionada pela necessidade de alegação e prova dos factos-índices de insolvência enunciados no art. 20º, n.º1 do CIRE;” (cfr. TRG, Ac. de 19/10/2017, proc. 1365/17.0T8VCT-C.G1, disponível em www.dgsi.pt/jtrg).
[13]Cfr. o citado Ac. do TRG  de 19/10/2017.