Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1481/17.9T8FNC-J.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
ALTERAÇÃO DA REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
ALIMENTOS
CASO JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: SUMÁRIO (da exclusiva responsabilidade da Relatora – art. 663.º, n.º 7, do CPC)
I – O incidente de incumprimento previsto no art. 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08-09, visa o decretamento de providências para cumprimento coercivo de aspetos do regime (previamente) fixado que se encontram a ser incumpridos, tendo por objeto apurar se ocorre e qual o âmbito do (invocado) incumprimento e a determinação das medidas tendentes a assegurar que seja cumprido o que previamente tiver sido acordado ou decidido.
II – Não se confunde com a ação de alteração do regime, regulada no art. 42.º do mesmo diploma legal, cujo propósito é diferente, embora possa igualmente fundar-se num incumprimento do regime (sintomático de que o regime fixado já não é o mais adequado ao superior interesse da criança ou jovem).
III – Muito embora do art. 2006.º do CC resulte que os alimentos fixados por decisão judicial são devidos a partir da data da propositura da ação, e não do trânsito em julgado da decisão (sendo esta última data relevante por ser a partir da mesma que é exigível o pagamento dos alimentos), não se pode considerar que toda e qualquer sentença em matéria de alimentos, mormente, no que ora importa, a sentença que decretou uma alteração do regime a esse respeito, tenha uma eficácia retroativa que remonte à data da instauração da ação, muito menos ao ponto de poder fundamentar uma alteração/ampliação do objeto do litígio no incidente de incumprimento previamente instaurado.
IV – Assim, estando pendente um incidente de incumprimento relativo a alimentos fixados por sentença homologatória de acordo, vindo a ser determinada, num outro apenso, por sentença transitada em julgado, uma alteração do regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais, com um aumento da componente fixa da prestação alimentícia de modo a englobar despesas de saúde e escolares, numa espécie de “reconfiguração” da prestação alimentícia (cuja razão de ser foi a de evitar a conflitualidade entre os Progenitores), essa nova decisão judicial não se irá aplicar com eficácia retroativa àqueles aspetos de regime que já foram (alegadamente) incumpridos para suportar uma pretensão - formulada em requerimento dito de “alteração ou ampliação do pedido” - atinente a um (suposto) incumprimento superveniente do regime.
V – O indeferimento de uma tal pretensão não contende com a autoridade e eficácia do caso julgado da sentença que determinou a alteração do regime (cf. artigos 619.º, 621.º e 988.º do CPC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO
A … interpôs o presente recurso de apelação do despacho que indeferiu a pretensão que a mesma deduziu em requerimento de “alteração superveniente” do pedido, apresentado nos autos de incumprimento do regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais relativo ao menor C …, filho da Requerente e do Requerido, B ….
O referido incidente de incumprimento (que corre os seus termos como apenso I) teve início em 26-09-2022, a requerimento da Progenitora A …, a qual alegou, no que ora importa, o seguinte:
“vem por este meio informar do incumprimento de responsabilidades parentais, por parte de B… em relação á pensão de alimentos e despesas de Saúde e Educação do menor, C ….
Valores em divida: 1.292,57€
Pensão de alimentos de Janeiro de 2022 a Maio de 2022
520.30 €
Despesas de saúde (Out/2019 a Set/2022)
257.05 €
Despesas de Educação (out/2019 a set/2022)
515.22 €
(…) Junto em anexo cópia dos documentos das despesas em dívida assim como cópia dos extratos bancários e base de dados do Banco de Portugal.
Notificado o Requerido para alegar o que tivesse por conveniente, este veio fazê-lo, em 12-05-2023, (i) reconhecendo a falta de pagamento da pensão de alimentos de janeiro de 2022 até maio de 2022, o que justificou com a sua falta de meios económicos, propondo-se pagar tal quantia faseadamente; (ii) negando serem devidas despesas de saúde, salvo quanto aos óculos, ante a falta de prévia comunicação por parte da Requerente; (iii) não reconhecendo quaisquer despesas de educação.
Foi realizada Conferência de pais, tendo sido ouvidos os Progenitores, cujo acordo não foi possível obter.
Em 04-04-2024, no decurso de uma sessão da audiência de julgamento, pela Mandatária da Requerente foi apresentado o Requerimento com o seguinte teor:
“Em função do decidido e transitado em julgado em termos de alteração da pensão de alimentos ser supervenientemente uma alteração do montante e do que se mostra abrangido na pensão de alimentos vigente a partir de janeiro de 2022, inclusive.
Assim, e sempre considerando o período e apenas o período em causa no presente apenso, verifica-se que, por um lado, o montante da pensão de alimentos em falta de janeiro de 2022 a maio de 2022 é no montante total de 1000,00€ (mil euros) e não conforme inicialmente peticionado de 520,30€ (quinhentos e vinte euros e trinta cêntimos), correspondente a cinco meses de 200,00€ (duzentos euros) devidos por mês de acordo com a nova decisão em termos de pensão alimentícia.
Por outro lado, e em segundo lugar, haverá de reduzir e retirar do peticionado os montantes de despesas que se mostram abrangidas de acordo com a nova decisão proferida quanto à pensão de alimentos e portanto, não podem ser separadamente peticionadas.
Assim, e concretizando, verifica-se que há que retirar a quantia total em termos de despesas de saúde de 179,84€ (cento e setenta e nove euros e oitenta e quatro cêntimos), correspondente às despesas anteriores a janeiro de 2022 que se encontram juntas na documentação do requerimento apresentado em 26 de setembro de 2022 e que correspondem concretamente aos documentos 6 a 18 que se encontram juntos a esse requerimento.
Nesse sentido, e totalizando em função daquilo que é ambas essas alterações, verifica-se que em relação ao período em causa nos presentes autos está em dívida a quantia de capital de 1000,00€ (mil euros) de prestação alimentícia, 77,21€ (setenta e sete euros e vinte e um cêntimos) de despesas de saúde e o mesmo montante inicialmente peticionado de despesas de educação de 515,22€ (quinhentos e quinze euros e vinte e dois cêntimos), o que totaliza o montante de capital de 1592,43€ (mil quinhentos e noventa e dois euros e quarenta e três cêntimos). Nesse sentido, requer-se que seja admitida esta alteração superveniente para todos os efeitos.”
Dada a palavra ao Mandatário do requerido a fim de se pronunciar, disse que:
“O Requerido opõe-se ao ora requerido, sendo que a sentença proferida no apenso de Alteração das Responsabilidades Parentais não tem efeitos retroativos, apenas produz efeitos a partir do momento da data do respetivo trânsito em julgado.
No mais, o Requerido apenas se pronuncia sobre o reclamado no requerimento inicial de Incumprimento das Responsabilidades Parentais.
Assim, nada há a pagar a título de despesas médicas e medicamentosas atenta o facto do Requerido nunca ter sido notificado, como consta do acordo, para o respetivo pagamento, exceto no valor de 137,00€ (cento e trinta e sete euros) que concerne à despesa de saúde de uns óculos e nada mais.
Dá também por confessado o pagamento do incumprimento das pensões de alimentos de janeiro a maio de 2022 e nada mais (520,30€).”
Foi suspensa a audiência de julgamento, tendo em vista a apreciação do referido requerimento, vindo a ser proferido a esse respeito, em 08-04-2024, o Despacho recorrido, com o seguinte teor:
«Por requerimento apresentado em 04.04.2024, pelo Il. Mandatário da requerente foi apresentado o pedido de alteração do montante dos valores peticionados a titulo de pensão de alimentos (pedido este efetuado em 24.01.2022) alegando para o efeito que, por decisão proferida em fevereiro de 2024 (04.02.2024) e já transitada em julgado no apenso de alteração da regulação das Responsabilidades Parentais, foi alterado o valor da pensão de alimentos, tendo na mesma sido incluído os valores das despesas médicas e medicamentosas bem como escolares, pelo que os valores à data peticionados, sofreram por força dessa decisão, alteração.
Conclui pedindo a atualização desses montantes.
Ouvido a parte contrária, a mesma discordou, salientando que a decisão proferida no apenso de alteração da regulação das Responsabilidades Parentais, não tem efeitos retroativos, apenas produzindo os seus efeitos a partir da data do trânsito em julgado.
Apreciando.
Dispõe o artigo 619º do Código de Processo Civil, que
“Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”
Significa isto que a decisão proferida no apenso F (ARRP) apenas se aplica após trânsito, não podendo por isso ser aplicada a processos já instaurados, e em que o requerido já tenha sido citado e deduzido a sua oposição, respeitando-se assim o princípio da estabilidade da instância (art. 260º do Código de Processo Civil).
Em face do exposto indefere-se o ora peticionado.
Sem custas.
Notifique.
Aguardem os autos a diligência agendada.”
Inconformada com esta decisão, veio a Progenitora interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1º O douto Despacho ora recorrido é susceptível de Apelação autónoma, em conformidade com o entendimento sufragado no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16/03/2023, proferido no processo 983/20.4T8STB-D.E1, segundo o qual: “O requerimento onde é pedida a ampliação do pedido constituiu um articulado para efeitos de recorribilidade autónoma nos termos do artigo 644.º,  n.º 2, alínea d), do CPC.”
2º Por outro lado, verifica-se que o douto Despacho ora recorrido indeferiu a alteração do pedido requerida em função da alteração à prestação de alimentos, apresentada em 21/01/2022, que correu os seus termos sob o Apenso F, e aí foi decidida em 04/02/2024, por Sentença subsequentemente transitada em julgado.
3º Assim, o douto Despacho ora recorrido viola o disposto no art. 2006º do Código Civil, sendo que, como doutamente decidido no Ac. do TRL, proferido no processo, datado de 14-09-2017, proferido no processo 817/12.3TMLSB-A.L1-2: “Quer seja de fixação inicial da prestação alimentar, quer de aumento da  prestação, a sentença retroage os seus efeitos ao momento da propositura da  acção (art. 2006 do CC).”
4º Verifica-se, nesta sequência, que o douto Despacho ora recorrido afronta o caso julgado constituído pela douta Sentença proferida no Apenso F, e, como tal, integra nulidade, a qual se argúi expressamente para todos os efeitos.
5º Assim se pugna pela efectiva procedência do presente recurso, devendo ser revogado o douto Despacho recorrido, de modo a se fazer Justiça.
Não foi apresentada alegação de resposta.
Foi proferido despacho de admissão do recurso, com o seguinte teor:
“No âmbito dos presentes autos, pela requerente foi interposto recuso do despacho judicial que não admitiu a ampliação do pedido de condenação do requerido, formulado inicialmente, relativamente às pensões de alimentos vencidas.
Para tanto a requerente alega que tal despacho sofre de nulidade, por afrontar o caso julgado constituído pela sentença proferida no apenso F.
A parte contrária, pronunciou-se, discordando dos fundamentos invocados no recurso por considerar não se verificar qualquer nulidade.
Apreciando.
Nos presentes autos encontramo-nos no âmbito dos processos de jurisdição voluntária os quais não estão sujeitos a critérios de legalidade estrita, o que permite ao Juiz usar de alguma liberdade na condução do processo e na investigação dos factos, não estando limitado pela concreta alegação das partes, e o princípio do dispositivo tem uma aplicação mais limitada, todavia e apesar disso o objeto da decisão não deve extravasar o objeto tipificado do processo. Quer isto dizer que apesar disso, o Tribunal não pode ir ao ponto de, a meio de audiência de discussão e julgamento – como em última instância pretende a ora Recorrente permitir o alargamento do objeto da decisão, de uma apreciação de um incumprimento de prestações vencidas, passando a apreciar um novo aumento da pensão decorrente da sentença de alteração produzida no apenso F (ARRP).
Assim sendo, o Tribunal entende, salvo o devido respeito por entendimento diverso, que a decisão não padece de nulidade.
DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
Por para tanto ter legitimidade, tendo-o feito atempadamente e na forma legal, admito o recurso interposto pela Autora – artigo 644º nº 2 alínea d) do CPC.
O recurso é de apelação, com subida autónoma, em separado, e com efeito meramente devolutivo – artigos 644.º, n.º 2 d), 645.º, n.º 2, 646º nº 1 e 647º, n.º 1, todos do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06.
Notifique a recorrente para vir indicar quais as peças processuais que devem instruir o presente recurso.
Valor do incidente: € 30.000,01”.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
A única questão a decidir é a de saber se o indeferimento da “ampliação do pedido” requerida afronta o caso julgado da sentença proferida no apenso F de alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais, sendo nula a decisão recorrida.
Factos provados
Além dos factos referidos no relatório supra, relevam para o conhecimento do objeto do recurso, os seguintes factos:
1. C … nasceu a 8 de janeiro de 2005, sendo filho de B … e de A ….
2. No dia 20-04-2017, no processo principal de regulação das responsabilidades parentais, foi homologado por sentença, transitada em julgado, o Acordo de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais, com o seguinte teor:
“3º) ALIMENTOS:
a) O pai contribuirá, a título de alimentos para o menor, com a quantia de 100,00€ (cem euros) mensais, a depositar na conta bancária da mãe, com o IBAN (…), até ao último dia de cada mês com início no próximo mês de maio.
(…) 4º) DESPESAS EXTRAS:
a) As despesas médicas, medicamentosas, na parte não comparticipada, escolares (matrículas, inscrições, mensalidades, material escolar e equipamento desportivo exigidos pelo estabelecimento de ensino), as atinentes a mensalidades devidas pela frequência da Academia de Línguas, música e explicações, e, ainda, quaisquer outras atividades extracurriculares desde que acordadas entre os progenitores, serão pagas por ambos os progenitores na proporção de metade para cada um, mediante a apresentação de recibo e a pagar com a prestação alimentícia do mês seguinte à sua apresentação.”
3. Em 21-02-2022, a Progenitora veio instaurar ação de alteração do regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais que correu termos como apenso F, pedindo que fosse alterado o referido regime no que respeita à pensão de alimentos, passando a ser no montante de 300,00 € com as despesas todas englobadas, alegando designadamente o seguinte:
“4º O regime desse modo estipulado não tem funcionado, e, na verdade, não vem assegurando, como devido, o efectivo sustento do Menor, até quanto às suas necessidades primordiais, designadamente em termos de saúde e de formação educativa.
5º O Requerido, na verdade, praticamente nunca pagou voluntariamente as quantias necessárias ao sustento do Menor, seja no tocante ao montante fixo de prestação alimentícia fixado, seja no tocante à parte de despesas variáveis.
6º A Requerente tem sido obrigada a suscitar e promover contra o Requerido diversos incidentes, seja de incumprimento, seja de execução, alguns já findos, outros ainda a correr.
7º A situação ainda é mais grave no que respeita às despesas variáveis, na medida em que o Requerido ora obstaculiza a respectiva comunicação, ora discute cada uma das mesmas e o seu fundamento, como se não fosse devido.
(…) 15º O Menor, por outro lado, já como é próprio dos demais adolescentes da respectiva idade, tem necessidades acrescidas, seja para efeitos de actividades desportivas e sociais, seja para efeitos educativos.
16º Importando elencar as principais despesas do Menor na actualidade, temos as seguintes em termos de regularidade:
(…) 25º Acrescem as despesas a título de alimentos propriamente ditos e consumos básicos,
26º Tudo totalizando o montante mínimo mensal de € 300,00, no que à metade do Requerido diz respeito,
27º Valor este para no qual deverá a pensão de alimentos a prestar pelo Requerido ao Menor ser doravante fixada, com efeitos imediatos,
28º E o qual lhe deverá ser directamente descontado no respectivo vencimento”
4. Em 04-02-2024, após audiência de julgamento nesse apenso F, foi proferida sentença, cujo segmento decisório tem o seguinte teor: “Atendendo ao acima exposto, julgo parcialmente procedente a presente acção e, em consequência, altero o regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais relativo ao jovem C … nascido a 8 de janeiro de 2005, no que à pensão de alimentos respeita, alterando a pensão de alimentos para o valor de € 200,00, na qual se integra as despesas de educação e de saúde; referindo-se na fundamentação de direito, além do mais, que se verificavam circunstâncias supervenientes que tornavam necessário alterar o que estava estabelecido por acordo, pois no período de tempo decorrido até ao pedido de alteração “poucas foram as situações que decorreram normalmente, dentro do que era expectável que pudesse vir a suceder quando foi estabelecido o regime, quer quanto aos convívios entre o jovem e o seu progenitor, quer quanto ao pagamento da pensão de alimentos, bem como ao pagamento das despesas com a saúde e a educação”.
5. Dessa sentença, cuja notificação às partes foi elaborada em 08-02-2024, não foi interposto recurso.
Enquadramento jurídico
O Tribunal recorrido convocando o disposto no art. 619.º do CPC, considerou que a sentença proferida no apenso F apenas se aplica após o respetivo trânsito em julgado, não podendo por isso ser aplicada a processos já instaurados, e em que o Requerido já tenha sido citado e deduzido a sua oposição, respeitando-se assim o princípio da estabilidade da instância (art. 260.º do CPC).
A Apelante discorda, argumentando que a decisão recorrida afronta o caso julgado da referida sentença, tendo em atenção o disposto no art. 2006.º do CC.
Vejamos.
O requerimento apreciado na decisão recorrida é, formalmente, um requerimento de ampliação do pedido, mas também de ampliação da causa de pedir, já que se baseia no facto (superveniente) de ter sido alterado o regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais (cf. art. 265.º do CPC).
Portanto, se bem se percebe, estamos perante uma decisão que, implicitamente admitiu a ampliação do pedido deduzida em requerimento “superveniente”, mas a desatendeu, no fundo por considerar que os factos jurídicos supervenientes em que se baseava a nova pretensão não tinham a relevância substantiva que a Requerente lhes pretendia atribuir, uma vez que a sentença proferida no apenso F não produzia efeitos desde a data em que o mesmo se iniciara, mas apenas a partir do respetivo trânsito em julgado.
Preceitua o art. 611.º do CPC, nos seus n.ºs 1 e 2, sob a epígrafe “Atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes”, que:
“1 - Sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.
2 - Só são, porém, atendíveis os factos que, segundo o direito substantivo aplicável, tenham influência sobre a existência ou conteúdo da relação controvertida.”
Importa, pois, analisar se, no plano do direito substantivo, a pretensão da Progenitora tem cabimento.
 Preceitua o art. 41.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08-09, que: “Se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos.”
Portanto, o incidente de incumprimento visa o decretamento de providências para cumprimento coercivo de aspetos do regime (previamente) fixado que se encontram a ser incumpridos, tendo por objeto apurar se ocorre e qual o âmbito do (invocado) incumprimento e a determinação das medidas tendentes a assegurar que seja cumprido o que previamente tiver sido acordado ou decidido (com possibilidade de condenação do requerido em multa e indemnização).
Não se confunde com a ação de alteração do regime, regulada no art. 42.º do mesmo diploma legal, cujo propósito é diferente, embora possa igualmente fundar-se num incumprimento do regime (sintomático de que o regime fixado já não é o mais adequado ao superior interesse da criança ou jovem). A este respeito, veja-se a explicação constante do acórdão da Relação de Coimbra de 08-07-2021, proferido no proc. n.º 1545/18.1T8FIG-J.C1, disponível em www.dgsi.pt:
“(…) também a alteração de regime (nova regulação) corre por apenso, nos termos da al.ª b) do n.º 2 do citado art.º 42.º, se, como in casu, o regime tiver sido fixado pelo tribunal, com o requerimento a ser autuado por apenso ao processo onde se realizou o acordo ou foi proferida decisão final.
Isto é, embora correndo ambos por apenso ao processo principal, trata-se sempre de processos autónomos (o de incumprimento e o de alteração da regulação), com objeto e finalidade diversas, pelo que bem se compreende que não possa regular-se num as matérias que respeitam ao outro, sob pena de confusão dos objetos processuais.
Assim, salvo o devido respeito, não deve aproveitar-se o processo de incumprimento, onde apenas se deve cuidar, como dito, de determinar quanto ao âmbito do concreto incumprimento de deveres (estes previamente fixados, como é claro) ocorrido e às medidas tendentes ao respetivo cumprimento, designadamente em termos coercivos/executórios, para regular matérias que se prendam já com a alteração do regime de regulação estabelecido, de molde a obter ali uma nova regulação.
Esta nova regulação, a ser necessária, designadamente por via de alteração das circunstâncias que presidiram à fixação da regulação inicial, deve ser suscitada e desenvolvida no quadro do processo (apenso) que lhe corresponde legalmente, o de alteração da regulação (previsto, como dito, no art.º 42.º citado), e não no apenso de incumprimento, regulado pelo art.º 41.º.”
É bem certo que, no tocante ao momento desde quando são devidos os alimentos, dispõe o art. 2006.º do CC que “(O)s alimentos são devidos desde a proposição da acção ou, estando já fixados pelo tribunal ou por acordo, desde o momento em que o devedor se constituiu em mora, sem prejuízo do disposto no artigo 2273.º”.
Deste preceito legal resulta, pois, que os alimentos fixados por decisão judicial são devidos a partir da data da propositura da ação, e não do trânsito em julgado da decisão, sendo esta última data relevante por ser a partir da mesma que é exigível o pagamento dos alimentos. Neste sentido, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa de 05-03-2020, proferido no proc. n.º 840/14.3T8FNC-C.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, em que se explica designadamente o seguinte (incluímos entre parentese retos as notas de rodapé):
“Na primeira parte deste preceito, prevê-se a data da produção de efeito das decisões que respeitam à fixação judicial de alimentos ao abrigo de uma obrigação constituída ex novo, consagrando-se a eficácia retroativa das citadas decisões à data da propositura da ação (nos termos do art. 259º do CPC, a ação considera-se proposta no momento em que a petição inicial seja recebida na secretaria) [ANA PRATA, Código Civil Anotado, volume II, 2ª edição, p. 925.].
Por aplicação da presente norma, tem sido entendido pela jurisprudência portuguesa que também a decisão que aumente o montante dos alimentos já fixados, nos termos do art. 2012º, produzirá efeitos a partir da data da propositura da ação em que o pedido de alteração é formulado [ANA PRATA, Código Civil Anotado, volume II, 2ª edição, p. 925.].
Em face do princípio contido no art. 2006º, deve-se entender que o novo montante dos alimentos, no caso de alteração dos anteriormente fixados, é devido desde a data da formulação do pedido de alteração, e não apenas desde a data do trânsito em julgado da decisão que determinou tal alteração [Ac. Tribunal Relação do Porto de 01-11-1978, BMJ 283/359.].
Não é líquida a resposta à questão da aplicabilidade de tal regra à hipótese de a ação de alimentos se destinar à redução dos mesmos.
A propósito do nº 2 do art. 2007º, surge a questão de saber se a regra da insusceptibilidade de restituição se aplica aos alimentos provisórios já recebidos pelo credor ou se também se aplica aos alimentos definitivos já pagos, dado que a citada norma apenas respeita aos primeiros e que inexiste norma que, no ordenamento jurídico português, cure da mesma questão quanto aos alimentos definitivos [ANA PRATA, Código Civil Anotado, volume II, 2ª edição, p. 927.].
Há quem entenda que a norma do art. 2007º, nº 2, é de natureza excecional, aplicando-se apenas aos alimentos provisórios, e noutra perspetiva, que é o corolário de um princípio geral que se aplica a todas as prestações de alimentos já cumpridas no passado, ainda que por uma qualquer razão, o cumprimento se venha a revelar indevido [ANA PRATA, Código Civil Anotado, volume II, 2ª edição, p. 927.].
Como se refere neste acórdão, reveste-se de controvérsia a questão da eficácia retroativa da sentença na ação em que é peticionada a redução de alimentos, sendo duvidoso que se possa considerar que toda e qualquer sentença em matéria de alimentos tem uma eficácia retroativa que remonte à data da instauração da ação. A este respeito, veja-se o acórdão do STJ de 17-06-2021, proferido no proc. n.º 1601/13.2TBTVD-A.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt,
“II. Considerando que a acção de alteração ou de cessação dos alimentos judicialmente fixados assume a natureza de uma acção constitutiva, conforme o caso, modificativa ou extintiva (art. 10.º, n.º 3, al. c), CPC), na falta de disposição em contrário, a respectiva sentença só produzirá efeitos ex nunc.
III. No caminho percorrido pela jurisprudência na delimitação do âmbito de aplicação do art. 2006.º do CC, constata-se que: (i) a atribuição de eficácia retroactiva às decisões que reconhecem ex novo o direito a alimentos constituiu uma opção legislativa no sentido mais favorável à tutela do credor de alimentos; (ii) a interpretação do art. 2006.º no sentido de a atribuição de eficácia retroactiva abranger as decisões judiciais que alteram o valor da prestação de alimentos, aumentando-o, teve o mesmo intuito de protecção do credor de alimentos, sem considerar, porém, a relevante diferença resultante do facto de, nestes casos e diversamente das situações contempladas em (i), existir uma decisão judicial anterior; (iii) a interpretação do art. 2006.º no sentido de a atribuição de eficácia retroactiva abranger também as decisões judiciais que alteram o valor da prestação de alimentos, reduzindo-o, apresenta-se tão somente como um corolário lógico da orientação enunciada em (ii); corolário lógico, porém, que veio criar o problema novo de saber qual o tratamento jurídico a dar aos alimentos recebidos após a propositura da acção, cuja resolução poderá comprometer o objectivo de protecção do credor de alimentos.
IV. A aplicação do regime do art. 2006.º do CC às decisões, como a proferida pelo tribunal a quo, que reduzem o valor dos alimentos, apenas será admissível se for compatível com a natureza e finalidade próprias da obrigação de alimentos.
V. Dada a natureza assistencial da obrigação de alimentos, com a inerente finalidade de “proporcionar ao alimentando a possibilidade de viver com autonomia e dignidade”, é indubitável que os alimentos se destinam a ser consumidos por quem deles carece. Atribuir eficácia retroactiva à decisão judicial que reduza o valor da prestação de alimentos e, concomitantemente, obrigar a restituir parte dos alimentos recebidos e, em regra, já consumidos, conduziria afinal a pôr em risco o sustento do alimentando e, por isso, subverteria a finalidade última da obrigação de alimentos.
VI. Reconhece-se, assim, que a natureza e a finalidade da obrigação de alimentos implicam a aceitação de um princípio geral de não restituição dos alimentos recebidos, do qual o regime do n.º 2 do art. 2007.º do CC constitui manifestação, e em função do qual deve ser interpretada a norma do art. 2006.º do mesmo Código.
VII. Atendendo ao princípio da estabilidade relativa do caso julgado, associado à continuidade da realização da prestação alimentar fixada, assim como ao objectivo de protecção do alimentando visado pelo art. 2006.º do CC, entende-se não poder ser este interpretado no sentido de abranger – atribuindo-lhes eficácia retroactiva à data da propositura da acção – as decisões judiciais que reduzam o valor da prestação de alimentos.
(…) IX. No caso dos autos, uma vez que o pedido formulado pelo requerente foi no sentido de uma redução do valor dos alimentos em maior medida do que aquela que veio a ser decidida pela Relação, a tomada de providências adequadas à pretendida redução teria afinal uma elevada probabilidade de colocar em risco a satisfação das necessidades de sustento dos credores de alimentos, e, em particular, as necessidades de sustento e educação do filho menor.
X. Tal consequência negativa contrariaria frontalmente a razão de ser da obrigação de alimentos, sendo, por isso, também por esta razão, e para além do fundamento enunciado nos pontos V a VII, de rejeitar que se atribua eficácia retroactiva à decisão dos autos que reduziu o valor dos alimentos definitivos.”
No caso dos autos, tendo sido determinada por sentença transitada em julgado (proferida em 04-02-2024), uma alteração do regime que consistiu num aumento da componente fixa da prestação alimentícia de modo a englobar despesas de saúde e escolares, nem sequer se mostra possível, à partida, saber se foi determinado um aumento ou uma redução do montante global da obrigação, sendo pois muito duvidoso, desde já o adiantamos, que os alimentos assim alterados sejam devidos desde a data da propositura da ação em que foi proferida tal sentença, ou seja, que o caso julgado tenha aqui uma eficácia retroativa.
À partida, considerando a razão de ser do presente incidente de incumprimento (instaurado em 26-09-2022), em que estão a ser reclamados alimentos que estavam fixados por acordo homologado por sentença, apenas serão devidos e exigíveis aqueles relativamente aos quais o Requerido se encontrava então em mora, sendo juridicamente irrelevante a circunstância de a obrigação alimentícia ter vindo a ganhar uma nova “configuração” por via da decisão judicial que veio a ser proferida no processo de alteração do regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais.
Na verdade, até por definição, um incidente de incumprimento - onde apenas se deve cuidar, como dito, de determinar quanto ao âmbito do concreto incumprimento de deveres (estes previamente fixados, como é claro)” - não pode servir para albergar ulteriores pretensões, atinentes a (alegados) incumprimentos supervenientes do regime em face de subsequentes alterações do mesmo.
Sucede ainda que um dos propósitos da referida alteração do regime foi o de evitar a conflitualidade entre os Progenitores, bem evidenciada pelos vários incidentes de incumprimento, conforme a própria Progenitora dá conta na Petição inicial que deu origem ao apenso F, parecendo-nos que seria contrário à própria finalidade da alteração requerida que a sentença viesse retroagir a aspetos do regime cujo incumprimento já estava a ser discutido na sede própria. Efetivamente, uma tal retroatividade seria potenciadora de inaceitáveis incumprimentos do regime vigente: basta pensar, por exemplo, no absurdo que seria se o Progenitor, durante o período de tempo que antecedeu a prolação de sentença no apenso F, se escusasse a pagar despesas de saúde com o argumento de que esse aspeto do regime poderia vir a ser alterado com eficácia retroativa, passando a ser incluído na componente fixa da prestação; ao proceder dessa forma, afrontaria a própria razão de ser da obrigação de alimentos, com prejuízo para a saúde do menor, que poderia ficar privado, pelo menos temporariamente, dos cuidados de que carecia, se a Progenitora não lograsse, ao longo do tempo, suportá-los.
Seria, pois, incompatível com a própria razão de ser e finalidade do presente incidente de incumprimento que o caso julgado da referida sentença (proferida no apenso F) tivesse um alcance como o indicado pela Apelante, ao ponto de poder servir de fundamento à requerida ampliação do objeto do litígio deste mesmo incidente, definido pelo pedido e causa de pedir indicados no Requerimento inicial.
Portanto, numa situação como a dos autos, em que existiu uma espécie de “reconfiguração” da prestação alimentícia mediante decisão judicial proferida no apenso de alteração, por o regime vigente não estar a ser cumprido, tal decisão não se pode aplicar com eficácia retroativa quanto a aspetos do regime que já foram (alegadamente) incumpridos e cujo incumprimento está a ser discutido na sede incidental própria.
Sendo assim, é evidente que o indeferimento da pretensão da Apelante, fundada na alteração do regime determinada por aquela sentença, não contende com a autoridade e eficácia do caso julgado da mesma (cf. artigos 619.º, 621.º e 988.º do CPC), pelo que improcedem as conclusões da alegação de recurso, ao qual será negado provimento.
Vencida a Apelante, é responsável pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).
***
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se, em consequência a decisão recorrida, embora por fundamentação não inteiramente coincidente.
Mais se decide condenar a Apelante no pagamento das custas do recurso.
D.N.

Lisboa, 12-09-2024
Laurinda Gemas
Vaz Gomes
Higina Castelo