Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5/24.6T8MTA.L1-7
Relator: CARLOS OLIVEIRA
Descritores: DOAÇÃO
BENS COMUNS DO CASAL
RESERVA DE USUFRUTO
VALIDADE
REGISTO
RECUSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. A doação de bens comuns de casal, depois de dissolvido o casamento por divórcio, por acordo de ambos os ex-cônjuges e a favor dos seus filhos, realizada antes da partilha dos bens comuns não é nula por impossibilidade do seu objeto, nos termos do Art.º 280.º do C.C..
2. Permitindo a lei aos cônjuges, de comum acordo e na constância do matrimónio, alienar imóveis ou constituir sobre eles direitos reais de gozo (cfr. Art.º 1682.º-A n.º 1 al. a) do C.C.), não se compreende que o não possam também fazer, igualmente de comum acordo entre ambos, depois de se terem divorciado.
3. Sendo a doação feita com reserva de usufruto apenas em benefício de um dos ex-cônjuges, poderia suspeitar-se que, por força desse negócio jurídico, ter-se-ia operado uma partilha dos bens comuns em exclusivo benefício de um dos cônjuges.
4. Esse efeito concreto da doação poderia convocar a aplicação ao caso do princípio de imutabilidade do regime de bens que, segundo alguma jurisprudência, pode efetivamente conduzir à nulidade do negócio jurídico.
5. Mas, não existindo elementos de facto que permitam concluir que estaríamos perante uma alegada “partilha encapuçada”, em que apenas um dos cônjuges é beneficiário da liquidação do património comum do casal, não pode o Conservador do Registo Predial recusar o registo da doação e da constituição do usufruto, com base no Art.º 69.º n.º 1 al. d) do C.R.OP., por não ser manifesta a nulidade dos factos sujeitos a registo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
AA, na qualidade de apresentante de registo, com procuração emitida a seu favor por DD, veio impugnar judicialmente despacho proferido pela Senhora Conservadora da Conservatória de Registo Predial da Moita que recusou o registo referente à apresentação n.º 5652 de 2023/10/25, relativa a doação feita por BB e CC, divorciados, a favor dos seus filhos, DD e EE, com reserva de usufruto, incidente sobre o prédio urbano situado na ..., freguesia de União de Freguesias de Castelos, Boim e Ordem, concelho de Lousada, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o n.º … e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …, com fundamento na divergência entre a área constante da caderneta predial e a área indicada para apresentação a registo e na inadmissibilidade legal de se constituir uma reserva de usufruto de um bem comum de casal extinto, a favor de ex-cônjuge, sem que tenha ocorrido partilha por divórcio.
Em termos sucintos, alegou que não existem motivos para recusa do registo, porquanto as dúvidas quanto à discrepância na área do imóvel em causa ficaram sanadas com a documentação obtida (levantamento topográfico e pedido de retificação da matriz) e pugna pela admissibilidade legal do negócio que subjaz ao pedido de registo.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido da manutenção da decisão impugnada.
Na sequência, veio ser proferida sentença que negou provimento à impugnação, mantendo a recusa do registo, conforme despacho da Conservatória Registo Predial de 03/01/2024.
É dessa sentença que o apresentante do registo vem agora interpor recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
1 – Conforme resulta da sentença proferida e que agora se recorre, o signatário apresentou impugnação judicial dessa decisão proferida pela Exmª Senhora Conservadora da Conservatória do Registo Predial da Moita essencialmente quanto a dois fundamentos:
a) Da Divergência entre a área da matriz e a área indicada para registo;
b) Da Admissibilidade de ser Outorgada uma doação de bem imóvel, com reserva de usufruto a favor de um dos ex-cônjuges.
2 – Quanto ao Primeiro fundamento, da divergência entre a área da matriz e a área indicada para registo, a sentença proferida veio dar razão ao signatário, dizendo “é forçoso concluir que a Conservatória não tomou em linha de conta os elementos obtidos pelo Recorrente”.
3 – Portanto, o cerne do presente recurso prende-se então em saber se, é admissível ou não ser outorgada uma doação de um bem imóvel, com reserva de usufruto apenas em relação a um dos ex-cônjuges.
4 – O que decorre em primeiro lugar da sentença recorrida é que os ex-cônjuges não podem dispor do seu património comum enquanto não existir partilha.
5 – Diga-se em jeito de desabafo, que o signatário já viu, acompanhou e já fez (enquanto autenticador) escritura e documentos particulares autenticados onde herdeiros e ex-cônjuges dispuseram do património comum ou do património da herança, a favor de terceiros (quer por venda, quer por doação) sem terem tido a necessidade de efetuar previamente a partilha, sem nunca ter sido levantada qualquer objeção por parte dos(as) Senhores(as) Notários8as) ou dos(as) Senhores(as) Conservadores(as).
6 – Tanto que assim é, e é mesmo, insistimos em chamar a atenção, que Relativamente ao registo da fração autónoma da freguesia e concelho de Paços de Ferreira, melhor identificada supra, não houve qualquer tipo de entrave ou problemas, tendo o registo, quer de aquisição a favor dos filhos, quer o registo do usufruto a favor da sua mãe, sido lavrado de forma definitiva, pela Conservatória Registo Predial de Monte Agraço.
7 – Conforme também se pode ler no recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29/09/2023 (Processo n.º 1971/22.1T8MTS-A.P1, publicado em www.dgsi.pt.), em que foi Relatora a Ilustre Juiz Desembargadora ANA VIEIRA, “A cessação da comunhão patrimonial derivada do casamento pode ocorrer, após o divórcio, por acordo dos ex-cônjuges, quer por via da venda dos bens comuns a terceiros, mediante celebração do respetivo contrato de compra e venda, quer por via da partilha extrajudicial”.
8 – Efetivamente, não somos só nós a dizer que não é necessário proceder à prévia partilha para que os ex-cônjuges possam dispor dos bens comuns a terceiros.
9 – Tendo isto como certo, passemos à análise de segunda questão: mas poderão os ex-cônjuges doar os bens aos seus filhos com reserva de usufruto apenas para um deles?
10 – A sentença recorrida faz menção ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23/04/2013, Processo n.º 3890/08.4TBBRR.L1-7.
11 – Efetivamente, se lermos o sumário de tal Acórdão é referido que “É inválida a doação exclusiva para um dos cônjuges”.
12 – Contudo, é preciso atentarmos no corpo do Acórdão para percebermos a razão de tal afirmação e percebermos que aquele caso e o dos presentes não é exatamente igual, pois, se naquele caso, aquando da doação, os progenitores eram casados, aqui, nos presentes autos, os progenitores, aquando da doação já eram divorciados.
13 – Vejamos, neste Acórdão do Tribuna da Relação de Lisboa de 23/04/2013 o que se entendeu foi que, na medida em que aquando da doação os progenitores ainda eram casados, a doação com reserva de usufruto a favor de apenas um deles violava o princípio da imutabilidade dos regimes de bens.
14 – Como aí é dito “…apreciando os termos em que são permitidas as doações entre casados, considerou-se que a situação sob análise não estava contemplada, no entendimento do princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e dos regimes de bens, concluindo-se em conformidade, pela nulidade da doação em referência”.
Diga-se ainda, que,
15 – Mas mesmo que fosse nulo, ou parcialmente nulo, o que não se admite, nunca nos poderíamos esquecer do artigo 293º do Código Civil que permite a sua conversão quando diz que “O negócio nulo ou anulado pode converter-se num negócio de tipo ou conteúdo diferente, do qual contenha os requisitos essenciais de substância e de forma, quando o fim prosseguido pelas partes permita supor que elas o teriam querido, se tivessem previsto a invalidade”.
16 – Sempre salvo o devido respeito por melhor opinião, parece-nos manifesto que do título resulta o que as partes efetivamente quiseram, o que é simples: que os filhos ficassem a ser proprietários dos prédios e a mãe, ex-cônjuge, ficasse com o usufruto.
17 – Imaginemos o cenário (que aliás nos foi referido pela própria Exmª Senhora Conservadora da Conservatória do Registo Predial da Moita que seria o correto), dos os progenitores terem doado os prédios aos filhos (sem qualquer reserva de usufruto) e posteriormente os filhos doarem o usufruto à mãe.
18 – O(s) acto(s) seria(m) válido(s)? Parece-nos que sim e o efeito prático seria o mesmo, a única diferença é que se teria duplicado o número de atos.
19 – Daí se diga que, mesmo em caso de nulidade, total ou parcial, sempre o negócio pode ser convertido pois permite, com segurança, supor que as partes o teriam querido se tivessem previsto a nulidade.
Sempre sem prescindir,
20 – O artigo 69º n.º 1 alínea d) do Código do Registo Predial só manda recusar o registo se for manifesta a nulidade do facto.
21 – Repare-se, não basta ser nulo… tem de ser manifesto e manifesto pelo menos não é.
22 – Desde logo, veja-se, a Exmª Senhora Conservadora da Conservatória do Registo Predial de Sobral de Monte Agraço não viu nulidade nenhuma no facto (vide, lavrou de forma definitiva a aquisição e o usufruto quanto à fração autónoma de Paços de Ferreira).
23 – A Exmª Senhora Juíza Desembargadora ANA VIEIRA, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/09/2023 supra referido, também refere que a cessação da comunhão patrimonial pode ocorrer ou por via da celebração do respetivo contrato com terceiros ou por via da partilha (não exige partilha prévia).
24 – Salvo o devido respeito, não podemos, pois, aceitar que se diga na sentença ora recorrida que tal argumento não colhe pelas normas não necessitarem de ser taxativas.
25 – É consabido não ser o Direito uma ciência exata. Residirá aí a sua essência subliminal, o seu veio idiossincrático e até (permita-nos) o seu encanto. Segundo a sabedoria popular, “cada cabeça sua sentença”.
26 – Ao inserir o referido artigo 69º n.º 1 alínea d) do CRPredial, o legislador, sabendo da importância de um registo quis que este não estivesse à mercê das diferentes interpretações legislativas. Daí a exigência não apenas de uma nulidade, mas que esta seja manifesta.
27 – Ao decidir da forma como decidiu, violou a sentença recorrida, entre outras, as normas contidas nos artigos 9º, 238º n.º 1, 280º, 292º, 293º, 958º, 1688º, 1689º e 1788º do Código Civil e artigos 28º-Aº, 31º n.º 1, 68º, 69º n.º 1 alíneas d) e e) do Código de Registo Predial.
28 – Deve a sentença ser revogada e substituída por uma outra em que ordene e se proceda ao registo peticionado em termos definitivos referente ao prédio urbano Prédio Urbano, situado em ..., na freguesia de União das Freguesias de Cristelos, Boim e Ordem, concelho de Lousada, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o número … e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …º.
29 – Assim se espera, venerandos Desembargadores, por ser de JUSTIÇA!!!
O Ministério Publico respondeu ao recurso assim interposto, sobrelevando das suas contra-alegações as seguintes conclusões:
1. O doador tem a faculdade de reservar para si, ou para terceiro, o usufruto dos bens doados, conforme prevê o art.º 958º do Código Civil.
2. Todavia, não é disso que se trata.
3. Tendo-se dissolvido o casamento, mas não havendo, ainda, partilha, cada um dos ex cônjuges não tem direito sobre qualquer bem concreto e determinado, sendo antes titular de uma quota ideal sobre a universalidade de bens que compõe o património comum do extinto casal.
4. Com a dissolução do casamento, a meação de cada cônjuge incide sobre a totalidade do património coletivo, não existindo um direito à meação de cada um dos bens concretos comuns. Após a dissolução da sociedade conjugal, a forma de concretizar esse direito à meação em bens concretos só pode ser operada através da partilha.
5. Posto isto, bem se percebe que, sem partilha, não pode haver reserva de usufruto de um bem concreto e determinado a favor de ex cônjuge.
6. O que se pretende através do registo que foi recusado, é uma partilha encapuçada, ou uma partilha sem o ser, na medida em que o casal extinto, decide e dispõe sobre bem concreto e determinado, reservando o usufruto sobre aquele bem, a favor da ex cônjuge.
7. Este vício enferma de invalidade todo o negócio, diga-se, a doação realizada e cujo registo se pretendia, pelo que o mesmo só podia ser recusado.
8. Andou bem a senhora Conservadora do Registo Predial ao recusar o registo e,
9. Andou bem o Meritíssimo Juiz a quo ao negar provimento à impugnação judicial apresentada pelo recorrente, mantendo a recusa do registo.
10. Atento tudo o que se deixou exposto é nosso entendimento que o Tribunal a quo fez uma correta apreciação e aplicação da lei, não sendo a decisão recorrida merecedora de reparo, devendo-se manter-se nos exatos termos em que foi proferida.
Pede assim que a sentença seja mantida nos seus termos, negando provimento ao recurso apresentado.
*
II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, em termos sucintos, a questão a decidir é saber se deveria, ou não, ser recusado o registo, por motivo de manifesta nulidade do ato, por impossibilidade legal do seu objeto, relativamente a uma doação de bem imóvel comum do casal, efetuada por ambos os ex-cônjuges, a favor dos seus filhos e com reserva de usufruto a favor de apenas de um dos ex-cônjuges.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença recorrida sustentou a sua decisão na seguinte factualidade:
1. No dia 22/02/2021, BB e CC (ex-cônjuges), outorgaram um documento escrito denominado “Doação”, através do qual “com reserva de usufruto vitalício” para CC declararam “doar” vários bens imóveis, em favor de DD e EE, entre os quais se inclui o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o n.º … da freguesia de Ordem, concelho de Lousada, com o artigo matricial n.º … da referida freguesia.
2. Após a outorga desse documento, o Requerente solicitou na plataforma do Registo Predial Online o registo de aquisição a favor de DD e EE, com “usufruto” a favor de CC.
3. Quanto ao pedido de registo respeitante ao prédio identificado em 1), veio a Conservatória do Registo Predial de Monte Agraço proferir Despacho de Qualificação, datado de 01.03.2021, no seguinte sentido: “Lavra-se o registo de aquisição como provisório por dúvidas por existir divergências entre a descrição do prédio que refere a área total de 1400 m2, artigo … da Ordem e a atual matriz art.º … a união de freguesias que consta a área coberta e total de 232 m2”.
4. O Recorrente apresentou no dia 24/10/2023 junto do Serviço de Finanças de Lousada o Modelo 1 para Harmonização de áreas na matriz, juntando para o efeito as respetivas plantas e levantamentos topográficos, pedindo a alteração para que ficasse a constar que o prédio tem uma área total de 1389 m2 e uma área de implementação do prédio de 232 m2.
5. O referido levantamento topográfico contém no canto inferior direito a identificação do prédio, como sendo o artigo … da Rua …, Ordem (freguesia), Lousada (concelho), bem como a declaração de compromisso do técnico subscritor.
6. Posteriormente, o Recorrente requereu o registo na plataforma do Registo Predial Online tendo o mesmo sido anotado no Livro Diário da Conservatória do Registo Predial da Moita com a Apresentação n.º 5652 de 25/10/2023.
7. No dia 07/11/2023, o Recorrente foi notificado do despacho de qualificação no sentido da recusa do registo, do qual resulta expressamente que “a reserva de usufruto de um bem comum do extinto casal, a favor da ex-cônjuge, sem que tenha ocorrido partilha por divórcio, não é legalmente admissível” e “mantém-se a divergência na área relativamente à matriz (…) As plantas juntas não identificam a que prédio se referem, e consignam a área de 1621,00, enquanto o prédio no registo tem área de 1400 m2 e na caderneta predial surge com 232 m2.”

Tudo visto, cumpre apreciar.
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
O que está em causa neste processo é um ato de recusa de registo de aquisição de imóvel e constituição de usufruto, por decisão da Conservatória de Registo Predial.
Nos termos do Art.º 1.º do Código de Registo Predial (C.R.P.) o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário.
Os factos jurídicos que determinam a constituição, reconhecimento, aquisição ou modificação dos direitos de propriedade e de direitos de usufruto estão sujeitos a registo (Art.º 2.º n.º 1 al. a) do C.R.P.).
Não sendo efetuado esse registo, os factos são apenas invocáveis entre as próprias partes neles intervenientes ou os seus herdeiros (Art.º 4.º n.º 1 do C.R.P.). Mas, sendo registados, os factos passam a ser oponíveis a terceiros (Art.º 5.º n.º 1 do C.R.P.), sendo mesmo condição de legitimação dos direitos sobre os imóveis (Art.º 9.º n.º 1 do C.R.P.).
Neste quadro, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define (Art.º 7.º do C.R.P.). Consagra assim a lei o princípio da presunção da verdade registral ou da exatidão do registo.
Como realça Joaquim Seabra Lopes (in “Direito dos Registos e do Notariado”, 9.ª Ed., pág. 359), este princípio significa que o que consta do registo é juridicamente existente e consequentemente que o direito que aí é enunciado existe e existe com a precisa extensão nele refletida, o que implica a presunção de quem consta no registo como titular de um direito real sobre um imóvel é de facto o seu titular e pode dispor desse direito.
No entanto, a viabilidade do pedido de registo está dependente da apreciação do Conservador do Registo Predial, que deve obediência ao princípio da legalidade, verificando a identidade do prédio, a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos atos nele contidos, em função dos documentos que lhe são apresentados, dos registos anteriores e das disposições legais aplicáveis (cfr. Art.º 68.º do C.R.P.). Por isso, nos termos do Art.º 69.º n.º 1 al. d) do C.R.P., constitui causa justificativa de recusa fundada do registo «quando for manifesta a nulidade do facto».
Quanto a este ponto, está desde há muito assente que não basta o vício da anulabilidade, que pode ser sanado com o decurso do tempo, sendo que o Conservador, de todo o modo, não tem legitimidade para suscitar oficiosamente essa questão (v.g. Art.º 287.º do C.C.).
Ainda assim o controlo da legalidade não é meramente formal, mas sim substantivo, competindo ao Conservador uma fiscalização da validade do ato contido no título, embora circunscrito a situações de nulidade que sejam de conhecimento oficioso e apreciáveis a todo o tempo (cfr. Art.º 286.º do C.C.). Neste sentido, escrevem, entre muitos outros: Menezes Leitão in “Direitos Reais”, 8.ª Ed., pág. 251; José Alberto Vieira in “Direitos Reais”, 2.ª Ed., pág.s 251 a 252.; Carvalho Fernandes in “Lições de Direitos Reais”, 3.ª Ed., pág. 113; Isabel Pereira Mendes in “Código de Registo Predial”, págs. 128 a 129; Henrique Sousa Antunes in “Direitos Reais”, 2017, pág. 88.
Oliveira Ascensão (in “Direito Civil – Reais”, pág. 339 criticava os inconvenientes deste regime jurídico, que sujeita a circulação dos imóveis a entraves burocráticos, em matérias que deveriam ser deixadas à atuação dos particulares, nomeadamente com recurso aos meios judiciais, quando necessários. Sustentava também o desajustamento do princípio da legalidade substancial perante um registo predial que só muito excecionalmente teria efeito constitutivo. Mas, Carvalho Fernandes (in “Lições de Direitos Reais”, 3.ª Ed., pág. 115), fazia realçar o contributo do funcionamento deste princípio para evitar futuros litígios e maiores delongas, além da incerteza do tráfico jurídico. Ao que nós acrescentamos que estes entraves burocráticos também se justificam na medida em que a invalidade substancial dos factos sujeitos a registo tem de ser manifesta e, portanto, oferecerá, nesse sentido, menos dúvidas o entrave motivado pelo efeito preventivo assim pretendido com a lei.
No caso dos autos, resolvida que está pela 1.ª instância a questão da falta de fundamento da recusa fundada na desconformidade das áreas do prédio, estamos agora circunscritos à questão da alegada nulidade substantiva do ato que se traduziu numa doação feita pelos ex-cônjuges de um bem comum do casal, a favor dos seus filhos e com reserva de propriedade a favor de apenas um dos ex-cônjuges, antes de o casal ter acordado na partilha dos bens comuns.
Entendeu a Senhora Conservadora que, antes da partilha dos bens comuns do casal, o património integrado na comunhão não pode ser objeto de alienação autónoma, por não ser disponível parte especificada da comunhão. Nessa medida, o negócio jurídico da doação seria nulo, por impossibilidade do seu objeto (cfr. Art.º 280.º do C.C.).
A sentença recorrida corroborou este entendimento.
Apreciando, cumpre dizer que a doação em causa ocorreu depois do divórcio do casal e, portanto, não se lhe aplicam as restrições legais estabelecidas nos Art.s 1761º e ss. do C.C..
O divórcio efetivamente dissolve o casamento (cfr. Art.º 1788.º do C.C.), cessando as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, em consequência dessa dissolução (cfr. Art.º 1688.º do C.C.).
Cessando as relações patrimoniais com o divórcio, cada cônjuge recebe os seus bens próprios e a sua meação no património comum (cfr. Art.º 1689.º n.º 1 do C.C.).  Se houver passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes (cfr. Art.º 1689.º n.º 2 do C.C.). Por outro lado, os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum, sendo que se não existirem bens comuns, ou no caso destes serem insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor (cfr. n.º 3 do mesmo preceito).
Desde modo a dissolução do casamento por divórcio não extingue a comunhão de bens do casal, que subsiste até à partilha.
Importa aqui ter a noção de que existe uma diversa natureza jurídica entre as situações de contitularidade de direitos sobre bens sustentadas no “direito de compropriedade” ou na “comunhão de bens”. A primeira destas figuras está historicamente mais ligada à visão individualista que os Romanos teriam sobre a contitularidade de direitos (communis iuris). Enquanto a segunda, também designada por “comunhão de mão comum”, estará mais ligada a visão mais comunitária e solidária que os povos germânicos teriam do direito de propriedade (Gemeinschaft zur Gesamthand).
Sem prejuízo de se reconhecer não existirem sistemas puros, em que essas duas figuras se apresentem com traços firmes e livres de imprecisões, como é realçado por Elsa Vaz Sequeira (in “Da contitularidade de direitos no Direito Civil - Contributo para a sua análise Morfológica”, 2015, pág.s 134 e ss. e 344 e ss.), a verdade é que essas duas “perspetivas base” sobre a contitularidade de direitos influíram decisivamente na construção doutrinária e jurisprudencial que sobre elas foi feita, com evidentes consequências nas opções legislativas tomadas.
Deste modo, como referido, o direito de compropriedade, regulado nos Art.s 1403.º e ss. do C.C., está mais ligado à visão romana da contitularidade de direitos. Já a “comunhão de mão comum”, parte da conceção germânica da titularidade comum do património e corresponde fundamentalmente aos regimes de bens regulados no seio do Direito da Família e do Direito Sucessório, nomeadamente relativos aos bens comuns no casamento e á herança indivisa aberta após o óbito do de cujus.
As construções doutrinárias relativas à natureza do direito de compropriedade estão muito longe de serem unânimes. Sem prejuízo, é comum identificarem-se na doutrina portuguesa essencialmente duas correntes principais. Por um lado, há aqueles que sustentam que na compropriedade cada um dos comproprietários tem um direito a uma quota ideal ou intelectual do bem objeto da compropriedade, gozando cada titular de um direito autónomo, não havendo assim um direito único para todos, mas um direito próprio sobre uma quota ideal (Neste sentido: Manuel Rodrigues in “A Compropriedade do Direito Civil Português” - R.L.J. ano 58, pág. 20; e Carlos Mota Pinto in “Direitos Reais” – lições recolhidas por Álvaro Moreira e Carlos Fraga – 1975, pág. 256). Por outro, temos aqueles que defendem que na compropriedade há um conjunto de direitos homogéneos que coexistem sobre toda a coisa e não sobre qualquer realidade ideal, imaterial ou intelectual, como seria a “quota”, até porque as relações jurídicas reais pressupõem que as mesmas tenham por objeto coisas individualizadas e não coisas abstratas (Neste sentido: Luís Pinto Coelho in “Da Compropriedade no Direito Civil Português”, 1939, pág.s 120 e ss.; Oliveira Ascensão in “Direitos Reais”, pág. 618; Menezes Cordeiro in “Direitos Reais”, pág. 246; Luís Carvalho Fernandes in “Lições de Direitos Reais”, 3.ª Ed., pág. 333; e Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2.ª Ed., pág.s 344 e ss.).
Mesmo não havendo unanimidade quanto à natureza da compropriedade, todos concordam no que fundamentalmente a distingue da figura da “comunhão de mão comum”. Assim, citando Pires de Lima e Antunes Varela (in Ob. Loc. Cit., pág.s 347 a 348): «o que caracteriza a comunhão de mão comum e a distingue da compropriedade é, além do mais, o facto de “o direito dos contitulares não incidir diretamente sobre cada um dos elementos (coisa ou crédito) que constituem o património, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário” (Pires de Lima “Enciclopédia Verbo”, Comunhão). Significa isto que aos membros da comunhão, individualmente considerados, não pertencem direitos específicos (designadamente uma quota) sobre cada um dos bens que integram o património global, não lhes sendo lícito, por conseguinte, dispor desses bens, ou onerá-los, no todo ou em parte (…)». (sublinhado nosso)
O património sujeito à “comunhão de mão comum” é sempre tido como um todo unitário subordinado a uma determinada finalidade comum, o que condiciona a disponibilidade individual dos bens e convoca à ação conjunta e concertada dos contitulares.
Essa realidade patrimonial global comum é designada por “indivisa”, ou “sem distinção de parte”, e não pode ser objeto de alienação ou oneração autónoma por parte de cada contitular, por contraposição à compropriedade que admite a participação dos comproprietários nas vantagens e encargos da coisa na proporção da “quota-parte” de cada um (Art.º 1405.º n.º 1 do C.C.), bem como a possibilidade de disposição e oneração dessa quota, ou de parte dela, sem o consentimento dos restantes, ainda que não seja permitido dispor ou onerar de parte específica da coisa comum (Art.º 1408.º n.º 1 do C.C.).
Por outro lado, os bens em regime de compropriedade estão sujeitos à regra da divisão, não sendo nenhum comproprietário obrigado a permanecer na indivisão por tempo indeterminado (Art.º 1412.º do C.C.). A mesma regra não existe, em termos gerais, para os regimes legais de “comunhão de mão comum”, embora também se prevejam mecanismos legais para a partilha de “bens comuns”, verificados certos condicionalismos, nomeadamente quando se extingue a realidade sociofamiliar cujo fim servem.
Há também especificidades nos meios judiciais para alcançar esse desiderato. Assim, na falta de acordo, o meio processual adequado para obter a divisão de bens objeto de compropriedade é o “processo especial de divisão de coisa comum” (Art.º 1413.º n.º 1 do C.C. e Art.ºs 925.º e ss. do C.P.C.). Já para obter a partilha litigiosa de bens comuns do casal ou de herança indivisa, o processo adequado será o “processo de inventário” (Art.ºs 1770.º n.º 1 e 2101.º n.º 1 do C.C., Lei n.º 23/2013 de 5/3, com as alterações da Lei n.º 117/2019 de 13/9, e Art.ºs 1082.º e ss. do C.P.C.).
Havendo acordo, a partilha de bens comuns do casal, ou integrados em herança indivisa, pode ser feita na Conservatória ou no Notário (Art.ºs 1770.º e 2101.º do C.C.), enquanto que a divisão de coisa em compropriedade fica subordinada à regra de forma aplicável à alienação onerosa dessa coisa (Art.º 1413.º n.º 2 do C.C.).
Não se nega assim que, após a dissolução do casamento por divórcio, deverá haver lugar à partilha dos bens que compõem o património comum dos ex-cônjuges (cfr. Ac. do TRC de 08/11/2001, Proc. n.º 4931/10.1TBLRA.C1, Relator: Henrique Antunes; e Ac. TRC de 14/10/2008, Proc. n.º 649/08.3TBPMS.C1, Relator: Virgílio Mateus, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Também não se nega que enquanto não se proceder à partilha, os bens nela integrados não pertencem individualmente a cada um dos ex-cônjuges, que apenas têm direito à sua meação da globalidade do património comum.
O que já não temos por certa é a conclusão de que só após a partilha é que podem ser alienados bens em específico integrados na comunhão indivisa, ou de “mão comum”.
Podemos aceitar a conclusão de que nenhum dos cônjuges pode alienar, só por si, bens (imóveis) comuns do casal, ou constituir sobre eles outros direitos reais de gozo. Mas se a lei permite aos cônjuges, de comum acordo e na constância do matrimónio, alienar imóveis ou constituir sobre eles direitos reais de gozo (cfr. Art.º 1682.º-A n.º 1 al. a) do C.C.), não se compreende que o não pudessem fazer, igualmente de comum acordo, depois de se terem divorciado.
A condição de divorciado não se traduz em nenhuma capitis diminutio, nem constitui qualquer limitação legal à disponibilidade dos bens, por comum acordo dos cônjuges.
Os ex-cônjuges podem dispor individualmente da sua meação e podem dispor, por comum acordo, de bens concretos integrados na comunhão indivisa ou de “mão comum”.
Aliás, se bem virmos o regime jurídico da herança, que é o mais próximo da comunhão matrimonial, também nada aí consta sobre a proibição de os herdeiros, de comum acordo, mesmo antes da partilha, decidirem alienar bens concretos integrados na herança. Esse acordo também pode ser feito já em conferência de interessados (cfr. Art.º 1111.º n.º 2 al. c) do C.P.C.) e pode ser um acordo meramente preliminar à partilha efetiva e integral da herança, que depois incidirá já apenas sobre o produto da venda desses bens.
Evidentemente que a alienação de um bem comum do casal, por comum acordo, quando realizada antes da partilha, terá as suas repercussões na futura partilha dos bens comuns do casal, no jogo de compensações internas que nela é pressuposto com vista à igualação dos direitos dos cônjuges. Mas tal é questão que agora ainda se não coloca.
No que se refere à tutela dos direitos de terceiros, nomeadamente dos credores dos cônjuges, estes em nada são beliscados com a alienação do património através da doação em causa, mesmo que anterior à partilha. Tenha-se, a propósito, em atenção o disposto nos Art.ºs 605.º, 606.º ou 610.º a 618.º do C.C..
Dito isto, também concordamos com o sentido do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/9/2013 (Proc. n.º 1260/12.0TBGRD-A.C1 – Relatora: Inês Moura) no sentido que o direito à meação de um cônjuge no património comum do casal não incide sobre bens concretos e determinados do património comum. Tal como concordamos com a afirmação proferida no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/6/2023 (Proc. n.º 2415/20.9T8OER-C.L1-2 – Relator: Nelson Borges Carneiro) de que, estando dissolvido o casamento, é possível aos ex-cônjuges dispor da sua meação, mas não a sua meação num concreto bem. Sucede que, nenhuma dessas afirmações, em bom rigor, depõe contra a legitimidade dos ex-cônjuges disporem, por comum acordo, de bens comuns do casal, mesmo antes da partilha. Semelhante imposição constituiria uma limitação intolerável à autonomia da vontade, ao legítimo exercício do direito de propriedade e à livre disposição dos bens, em desrespeito dos interesses legítimos dos titulares do direito em causa, em homenagem a princípios, ou inexistentes, ou inaplicáveis ao caso concreto, como sejam o da imutabilidade do regime de bens.
Sufragamos, portanto, inteiramente, o citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29/9/2023 (Proc. n.º 1971/22.1.T8MTS-A.P1 – Relatora: Ana Vieira, disponível como os demais citados, em www.dgsi.pt), segundo o qual: «A cessação da comunhão patrimonial derivada do casamento pode ocorrer, após o divórcio, por acordo dos ex-cônjuges, quer por via da venda dos bens comuns a terceiros, mediante a celebração de contrato de compra e venda, quer por via de partilha judicial».
Na mesma medida, a doação de bens comuns de casal, já dissolvido por divórcio, antes da partilha dos bens, não é nula por impossibilidade do seu objeto, nos termos do Art.º 280.º do C.C..
Coloca-se ainda a questão de a doação ter sido feita com reserva de usufruto apenas em benefício de um dos ex-cônjuges e, portanto, poderia sustentar-se que por força desse negócio jurídico ter-se-ia operado uma doação em exclusivo benefício de um dos cônjuges, no caso o cônjuge mulher.
Esse efeito concreto da doação pode efetivamente convocar a aplicação ao caso do princípio de imutabilidade do regime de bens que, segundo alguma jurisprudência, pode efetivamente conduzir à nulidade do negócio jurídico (vide, a propósito, entre outros: Ac. do STJ de 1/10/1992 – Proc. n.º 083628 – Relator: José Magalhães, disponível em www.dgsi.pt), fundamentalmente quando cotejado com os princípios da igualação das compensações na partilha e da proibição do enriquecimento ilegítimo (cfr. Ac. STJ de 20/9/2023 – Proc. n.º 947/17.5T8CVL-C.C1.S1 – Relator: Jorge Arcanjo, disponível no mesmo sítio), ponderado a natureza imperativa do Art.º 1730.º n.º 1 do C.C. (idem Ac. STJ de 2/2/2022 – Proc. n.º 322/13.0TVLSB.E1.S1 – Relator: Pedro Lima Gonçalves, consultável em https://jurisprudencia.pt/acordao/205799/com).
Simplesmente, da mera leitura do contrato de doação junto aos autos, ou do pedido de registo correspondente, não resulta evidenciado que a doação esgota na íntegra o património comum do casal.
Não temos como ter por demonstrado que estamos perante uma alegada “partilha encapuçada”, tal como o Ministério Público sustenta nas suas contra-alegações, em que apenas um dos cônjuges é beneficiário da “liquidação” do património comum do casal. Por isso temos pelo menos de reconhecer que não é manifesta a nulidade do facto sujeito a registo, o que prejudica a possibilidade de ser aplicável ao caso o disposto no Art.º 69.º n.º 1 al. d) do C.R.P., em face do espírito e letra da lei. Para mais, numa situação em que o interessado na invocação dessa nulidade, o “cônjuge prejudicado” pela alegada “partilha”, subscreveu o contrato de doação presumivelmente de livre e espontânea vontade.
Ora, num caso como o sub judice não se afigura legítimo antecipar um litígio, ou uma solução jurídica para uma determinada situação concreta, quando a mesma se deve suportar em pressupostos de facto que não são inteiramente conhecidos.
Não foi certamente para estes casos que o Art.º 69.º n.º 1 al. d) do C.R.P. estabeleceu a possibilidade de recusa do registo por decisão do Conservador do Registo Predial. Só em casos de manifesta nulidade é que a recusa do registo pode ser julgada por devidamente justificada. Nos demais, nomeadamente em casos de dúvida sobre a validade substantiva do ato de transmissão ou constituição de direito real, deve deixar-se às partes com interesse direto no reconhecimento do eventual vício a legitimidade e iniciativa de intentarem a ação judicial correspondente.
Em face do exposto, entendemos que a decisão recorrida deve efetivamente ser revogada, na parte em que decidiu negar provimento à impugnação, mantendo a recusa de registo constante do despacho da Conservatória de Registo Predial da Moita datado de 3 de março de 2024 por força do Art.º 69.º n.º 1 al. d) do C.R.P..
Quanto à responsabilidade por custas deste recurso de apelação, temos de dizer que o Recorrente obteve ganho de causa, sendo que a Conservatória de Registo Predial não contra-alegou e o Ministério Público, tendo contra-alegado, está isento de custas, nos termos do Art.º 4.º n.º 1 al. a) do R.C.P., considerando que intervém nestes processos por imposição legal e como mero interveniente acessório (cfr. Art.º 146.º e 147.º do C.R.P.). Consequentemente, as custas do recurso seriam a cargo do Ministério Público que, no caso concreto, delas está isento, por força do Art.º 4.º n. 1 al. a) do R.C.P..
V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente por provada, revogando a decisão recorrida que negou provimento à impugnação judicial apresentada pelo aqui Recorrente, mantendo a recusa de registo apenas com fundamento no Art.º 69.º n.º 1 al. d) do C.R.P., a qual é substituída pela decisão de julgar a impugnação procedente e, em consequência, deverá ser convertido em definito o registo provisório relativo à apresentação n.º 5652 de 2023/10/25 referente ao prédio descrito na Conservatória de Registo Predial de Lousada sob o n.º … e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …º, devendo cumprir-se, oportunamente, o disposto no Art.º 147.º n.º 6 do C.R.P..
- As custas da apelação seriam pelo Ministério Público (Art.º 527.º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C.), que delas está isento nos termos do Art.º 4.º n.º 1 al. a) do R.C.P..
- Notifique.

Lisboa, 21 de maio de 2024
Carlos Oliveira
Rute Sabino Lopes
Ana Rodrigues da Silva – com voto vencido anexo

Voto Vencido
Julgaria improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida, com base na seguinte fundamentação:
Como é consabido, quando vigore entre os cônjuges o regime de comunhão de bens, dissolvendo-se o casamento por divórcio, deverá haver lugar à partilha dos bens que compõem o património comum dos ex-cônjuges. Por outro lado, enquanto não se proceder à partilha, os bens integrados na comunhão não pertencem individualmente a cada um dos ex-cônjuges, que apenas têm direito à sua meação na globalidade do património comum.
Não obstante, os ex-cônjuges podem dispor individualmente da sua meação e podem dispor, por comum acordo, de bens concretos integrados no património conjugal. Ou seja, estando dissolvido o casamento, é possível aos ex-cônjuges dispor da sua meação, mas não a sua meação num concreto bem.
De salientar ainda que o direito à meação de um cônjuge no património comum do casal não incide sobre bens concretos e determinados do património comum, mas sim sobre uma quota ideal do património comum.
No caso dos autos, não tendo havido lugar à partilha entre os ex-cônjuges, os mesmos continuam a ser titulares de uma quota ideal na comunhão, mas não de bens concretamente determinados.
Consequentemente, ao disporem da nua propriedade de um bem inserido na comunhão conjugal, o direito de usufruto correspetivo mantém-se nessa comunhão, indiviso e não concretamente determinado, não podendo ser constituído sobre um determinado bem.
Por esse motivo, a partilha assume-se como ato prévio necessário para a constituição de uma reserva de usufruto feita por ambos os ex-cônjuges de um bem comum do casal, a favor de um deles.
Assim, não existindo essa partilha, não é legalmente possível a reserva de usufruto, o que justifica a recusa de registo efetuada.
Ana Rodrigues da Silva