Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
128/19.3PDOER.L1-5
Relator: ANA LÚCIA GORDINHO
Descritores: DESPACHO LIMINAR
ABERTURA DA INSTRUÇÃO
CASO JULGADO FORMAL
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
INTERROGATÓRIO DE ARGUIDO
NULIDADE
LEGITIMIDADE
ASSISTENTE
REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
CRIME DE BURLA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/03/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I. Qualquer despacho liminar, como é o despacho que declara aberta a instrução, não faz caso julgado formal. O caso julgado só ocorre relativamente às concretas questões que sejam expressamente apreciadas.
II. A constituição de arguido e seu interrogatório são atos obrigatórios no inquérito quando haja suspeita fundada da prática de um crime e a não audição do suspeito constitui uma nulidade, dependente de arguição. Tendo presente que o interrogatório visa o conhecimento por parte do arguido dos factos, para que ele possa preparar a sua defesa, o assistente não tem legitimidade para suscitar a verificação desta nulidade.
III. O requerimento de abertura de instrução quando efetuado pelo assistente, após despacho de arquivamento do Ministério Público, tem de conter todos os elementos de facto e de direito necessários à aplicação de uma pena ou medida de segurança ao arguido.
IV. É suscetível de preencher a previsão do crime de burla a conduta do agente que, tendo um envolvimento amoroso com o ofendido, astuciosamente faz crer a este que se encontra doente e a sua vida está em perigo e dessa forma o leva a entregar-lhe quantias monetárias para tratamentos médicos inexistentes.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 5.º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório
No Tribunal de Instrução Criminal de Cascais – Juiz 1, foi proferida decisão Instrutória nos seguintes termos (transcrição):
1) Julgo improcedente a invocada “invalidade” do despacho de arquivamento;
2) Declaro nulo o requerimento para abertura de instrução por violação do disposto no art.º 283º, nº 3, al. d), aplicável ex vi do 287º, nº 2, “in fine”, todos do CPP;
3) Em consequência não pronuncio a arguida e determino o imediato arquivamento dos autos”.
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Inconformado, o assistente, AA, interpôs o presente recurso, concluindo do seguinte modo (transcrição):
“A. O presente recurso é interposto atenta a decisão instrutória que julgou improcedente a invalidade do despacho de arquivamento pelo Ministério Público, por declarar nulo o requerimento de abertura de instrução por violação do disposto na al. d), do nº 3, do artigo 283º do C.P.P, e por não pronunciar a Arguida e optar pela manutenção do arquivamento dos autos.
B. Sucede que em 24 de Abril de 2019 o Recorrente apresentou queixa crime contra a Arguida e os demais denunciados na queixa, designadamente uma suposta irmã de seu nome BB, CC suposta mãe da Arguida e DD.
C. No âmbito de tal queixa-crime o Recorrente indicou que encetou um relacionamento amoroso com a Arguida, que três meses após terem encetado tal relacionamento a Arguida começou a ter vários problemas de saúde, inicialmente um mioma, necessitando de dinheiro para os tratamentos, sendo que pediu ao Assistente a quantia de € 500,00 (quinhentos euros), quantia essa que o Recorrente lhe entregou.
D. Posteriormente e sempre sobre o pretexto de doenças – cancro de mama, implantes no peito decorrentes do cancro que teve, um cancro nos intestinos e a necessidade de um transplante no montante de € 100.000,00 (cem mil euros), um pé partido num acidente de trabalho e uma infeção urinária – o Recorrente entregou à Arguida a quantia global de € 28.450,00 (vinte e oito mil quatrocentos e cinquenta euros).
E. Para efeitos de prova da queixa-crime o Recorrente apresentou várias mensagens escritas trocadas quer com a Arguida, quer com os demais denunciados, comprovativos dos vários depósitos bancários feitos para a conta da Arguida, dos movimentos financeiros da conta do Recorrente, fotografias que a Arguida remetia ao Recorrente para demonstrar os problemas de saúde que lhe indicava ter.
F. O Ministério Público veio a arquivar a queixa-crime por considerar que dos elementos carreados para os autos se verificou que as quantias entregues pelo Recorrente à Arguida e outras pessoas por ela indicadas foram feitas de forma voluntária,
G. Pelo que o Recorrente apresentou requerimento de abertura de instrução no qual explicou todos os argumentos utilizados pela Arguida para o convencer a dar-lhe o dinheiro que pretendia, sob o pretexto de várias doenças ou acidentes de trabalho, ludibriando assim o Recorrente, inclusive enviando fotografias que fizeram crer o Recorrente ser da Arguida, sendo que tais fotografias eram enviadas apenas para criar naquele a convicção dos problemas de saúde que a Arguida alegava ter e que efetivamente nunca existiram, nunca tendo aquela tido qualquer problema de saúde.
H. Sendo que da parte da Arguida esta sabia serem as questões de saúde o “ponto fraco” do Recorrente.
I. É que o Assistente em sede de RAI veio alegar que o Ministério Público não procedeu à inquirição de todos os denunciados, tendo apenas constituído Arguida a denunciada EE, quando o Recorrente denunciou vários envolvidos no “esquema” da Arguida, não tendo estes sido chamados a prestar declarações, nem tendo os mesmos sido identificados e investigado o seu envolvimento na situação em causa nos presentes autos,
J. Considerando por isso que o despacho de arquivamento padece da referida invalidade.
K. Contudo, em sede de decisão instrutória veio o Tribunal a quo considerar, no que à invalidade do despacho de arquivamento diz respeito que tal invocação de invalidade se apresenta como ininteligível, pois “tendo existido inquérito, onde foram realizadas as diligências de investigação bem explicitadas no despacho de arquivamento (…) não se compreende a que falta de promoção alude o assistente ao invocar tal invalidade.”
L. Sendo que como referido anteriormente, tal invalidade se prende com o facto de não terem sido realizadas as diligências necessárias para apurar da responsabilidade dos demais denunciados e a constituição destes como arguidos nos presentes autos.
M. Pelo que perante a prova produzida decorrente da queixa-crime apresentada, sempre deveria ter sido considerado existirem indícios suficientes para que fosse deduzida acusação contra os demais denunciados indicados pelo Recorrente,
N. Não tendo ocorrido, sempre se deverá considerar estar perante uma nulidade insanável, prevista na al. b), do artigo 119º do CPP.
O. Por outro lado, veio o Tribunal a quo alegar a nulidade do requerimento de abertura de instrução por violação do disposto na al. d), do nº 3, do artigo 283º do CPP ex vi do artigo 287º, nº 2, in fine também do CPP.
P. Para o efeito considera o Tribunal a quo que “É manifestamente insuficiente a qualificação jurídica dada pelo assistente e isto porque, por força do princípio da tipicidade, aliás plasmado no art.º 283º, nº 3, al. d) do CPP, impunha-se que indicasse as disposições legais aplicáveis, o que não faz.”
Q. Ora, não pode o Recorrente concordar com a posição do douto Tribunal a quo pois como resulta do RAI o Recorrente explicou todos os factos devidamente e cronologicamente encadeados, e que no seu entendimento levam à prática pela Arguida e demais denunciados do crime de burla, como enuncia no seu articulado, fazendo também referência no seu articulado à base legal do crime em causa, para justificar o seu entendimento, reforçando essa base legal em sede de pedido.
R. Por outro lado, demonstra-se intempestiva a declaração de nulidade do RAI por parte do Tribunal a quo se não repare-se, o douto Tribunal proferiu em momento anterior, mais concretamente em 10 de Julho de 2024 um despacho no qual declara aberta a instrução, por ter sido requerida por quem tem legitimidade, estar em tempo e estar representado por advogado, admitindo, por isso, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Recorrente contra a Arguida.
S. Ora, tal como decorre da jurisprudência, a título de exemplo veja-se o acórdão proferido em sede do processo nº 197/18.3PBVCT.G1, o despacho que admite o requerimento para abertura de instrução nos termos do disposto no artigo 287º do C.P forma caso julgado formal, não podendo por isso a decisão instrutória vir julgar inadmissível o requerimento.
T. É que o Recorrente alega no seu articulado todos os factos praticados pela Arguida e demais denunciados que consubstanciam a prática por aqueles de um ilícito criminal, justificando depois o enquadramento legal de tais factos no artigo 217º e 218º do C.P – nesse sentido veja-se o disposto nos artigos 232º a 234º, 238º a 260º, 267º a 271º do RAI,
U. Pelo que se deverá considerar improcedente a nulidade alegada pelo Tribunal a quo no que diz respeito ao incumprimento por parte do Recorrente da observação ao disposto na al. d), do nº 3, do artigo 283º do C.P., pois não só aquele procedeu ao encadeamento fático dos acontecimentos como indicou de forma expressa os dispositivos legais, motivo pelo qual deverá ser julgada improcedente tal nulidade e ser a Arguida pronunciada pela prática dos crimes indicados supra e em sede de instrução.
Termos em que e atento o supra exposto:
a) Deve ser reconhecida e declarada a invalidade do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público;
b) Ser declarada improcedente a nulidade alegada pelo Tribunal a quo por ter sido observado o disposto na al. d), do nº 3, do artigo 283º do CPP pelo Recorrente no seu requerimento de abertura de instrução;
c) Ser a Arguida pronunciada pelo crime de burla”.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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O Ministério Público respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
“A)
Da invalidade/nulidade do despacho de arquivamento proferido
Como o já havia feito em sede de requerimento de abertura de instrução, veio o recorrente invocar a nulidade do despacho de arquivamento proferido, nos termos do artigo 119.º, alínea d), do Código de Processo Penal, alegando que a mesma se verifica “no caso concreto, quando não procedeu à identificação dos demais intervenientes para que os mesmos fossem inquiridos pelos factos descritos na queixa crime e nos quais tiveram intervenção”.
Ou seja, entende o recorrente que o facto de o Ministério Público não ter procedido à inquirição dos restantes denunciados, constitui falta de inquérito e, consequentemente, a nulidade prevista no artigo 119.º, alínea d), do Código de Processo Penal.
Entendemos não subsistir qualquer razão ao alegado pelo recorrente, não padecendo o despacho em causa de qualquer nulidade, incluindo a invocada.
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Como resulta dos autos, o recorrente apresentou queixa contra a arguida EE, para o que foi elaborado o competente auto de denúncia, no qual ficou a constar uma descrição dos factos e a identificação da mesma.
Posteriormente, o recorrente veio então apresentar requerimento, junto a fls. 23 e seguintes, no qual constam novamente descritos, de forma mais pormenorizada, os factos e, bem assim, são identificados outros denunciados (os quais o recorrente entende terem também praticado os factos).
Com exceção da arguida, cuja identificação completa constava já dos autos, no que respeita aos restantes denunciados, a identificação dos mesmos é apresentada de forma incompleta.
Na sequência das queixas apresentadas pelo recorrente foram realizadas as diligências consideradas pertinentes (as quais se encontram devidamente enunciadas no despacho de arquivamento proferido) e, perante os elementos probatórios recolhidos, concluiu-se no sentido de não haver utilidade na realização de outras diligências. Sendo que, neste ponto, se deve ter em consideração o que dispõe o artigo 262.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e, bem assim, o que determina o artigo 58.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
A nulidade prevista no artigo 119.º, alínea d), do Código de Processo Penal só se verifica quando deixa de se praticar um ato obrigatório. Sendo certo que a constituição do visado como arguido e a sua sujeição a interrogatório constitui ato obrigatório, nos termos do artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não pode deixar de ser tal norma conjugada com a prevista no artigo 58.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma legal, da qual decorre claramente que só devem assumir a qualidade de arguido a pessoa contra a qual haja suspeita fundada da prática de crime. Ora, não se verificando tal, não deverá essa pessoa ser constituída como arguida.
Ora, é precisamente isso que se verifica nos presentes autos.
Como se lê no despacho de arquivamento, “dos elementos recolhidos verifica-se que as quantias foram entregues voluntariamente pelo Assistente à arguida, ou a pessoas que afirmavam ser próximas da arguida, enquanto mantiveram contactos, quer presenciais, quer através de telefonemas e mensagens escritas (whatsapp) e que a arguida se comprometeu a devolver tais quantias, tendo apenas devolvido a quantia de €1.600,00.
Não obstante tal realidade, em que consistiu o engano astuciosamente provocado pela arguida, no sentido de conduzir o Assistente a actuar do modo descrito?
Onde se verifica a astúcia no engano causado?
É certo que o Assistente entregou as quantias à arguida por ter acreditado que a mesma estava doente e que necessitava de tratamentos, o que não correspondia à verdade.
Mas o engano provocado deve ser astucioso, isto é, encenado de tal modo que leve a vítima a acreditar no agente, assim como seria capaz de iludir o diligente pai de família, com evidente perversidade ou má fé.
No caso dos autos, será suficiente para preencher o elemento do tipo “erro ou engano astuciosamente provocado” o facto de alguém convencer o outro de que padece de uma doença cada vez mais grave, envolvendo-o numa suposta relação amorosa à distância. Não seria exigível ao Assistente, de acordo com a postura de um bonnus pater famílias, que tivesse feito outras diligências para se certificar da bondade das narrativas da arguida, ao longo de 2 anos, e das doenças que a mesma alegava padecer?
Efectivamente, resulta dos autos que o Assistente entregou voluntariamente à arguida quantias monetárias a pedido desta. Mas resulta igualmente dos elementos juntos que o Assistente decidiu entregar à arguida quantias monetárias sem que aquela o tivesse solicitado, quer por iniciativa própria (mesmo quando a arguida lhe dizia que não podia aceitar), quer por solicitações de terceiros que o Assistente não conhecia.
[…]
O Assistente juntou aos autos uma cópia de uma minuta de um contrato de mútuo que acordou celebrar com a arguida, para pagamento da quantia em dívida, resultando do mesmo, nomeadamente, que: “em ... de ... de 2018, o Primeiro Outorgante entregou, consciente e no livre exercício da sua vontade, sem erro ou engano, à Segunda Outorgante, que por sua vez recebeu e fez seu, de forma legítima, o montante total de €28.450,00”.
[…]
Ora, e no que aos presentes autos diz respeito, a entrega de quantias monetárias a título de empréstimo envolve inevitavelmente risco para as partes envolvidas, muito embora e por princípio, estas devam pautar a sua actuação de acordo com o princípio da boa-fé.
Por outro lado, e como se vem defendendo, para haver lugar à tutela penal não basta a existência de uma qualquer intenção prévia de não cumprir um acordo, por não ser essa situação suficiente para que se possa considerar que quem assim age provoca astuciosamente uma situação de erro.
O Assistente teria estabelecido com a arguida uma relação de confiança, por acreditar que mantinham uma relação amorosa, e confiou nas promessas de pagamento. Não ficou demonstrado que a arguida se tenha aproveitado de uma qualquer especial situação de vulnerabilidade do Assistente, a qual não resulta sequer demonstrada nos autos.
Como atrás explanado, consideramos que, perante os elementos recolhidos, não é possível imputar à arguida EE ou aos demais denunciados a prática de crime de burla qualificada, por insuficiência de indícios”.
Não decorrendo dos autos indícios suficientes e resultando dúvidas quanto à verificação do ilícito criminal, certo é que não podiam os restantes denunciados ser inquiridos, sob pena de violação do disposto no artigo 58.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
Consequentemente, não se verifica qualquer nulidade, incluindo a invocada pelo recorrente, a qual deve ser indeferida.
B)
Intempestividade da declaração de nulidade do requerimento de abertura de instrução
Invoca o recorrente que a nulidade invocada pelo Tribunal a quo se mostra intempestiva, uma vez que anteriormente se tinha considerado tempestivo e legalmente admissível o requerimento apresentado e a instrução requerida.
Alega que o ‘Tribunal a quo violou o caso julgado formal, na medida em que depois de ter recebido o requerimento de abertura de instrução, o ter julgado admissível e declarar aberta a instrução, o Tribunal fica impedido de a posteriori, em sede de decisão instrutória reverter a sua anterior decisão’.
Cumpre dizer que, ao que se afere, o recorrente labora em erro, no que a este argumento respeita, uma vez que entende que o tribunal concluiu no sentido da inadmissibilidade legal do requerimento de abertura de instrução, por decorrência do artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, quando o mesmo afirma que o requerimento de abertura de instrução padece de nulidade, por não cumprimento dos pressupostos constantes da alínea d), do n.º 3, do artigo 283.º, do mesmo diploma.
Mas, ainda que tal assim não se entendesse, certo é que acompanhamos o entendimento vertido no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 26 de junho de 2023 (Processo n.º 300/21.6GBVNF.G1, disponível em www.dgsi.pt), no qual se afirma que “como começamos por dizer, não assiste razão às recorrentes, desde logo porque o despacho que admitiu a instrução é meramente tabelar, genérico, quanto aos pressupostos de admissibilidade da instrução, pelo que nenhuma questão nele foi especificamente apreciada. Por este motivo, esta decisão não faz caso julgado formal quanto à questão da falta de alegação de factos que integram o elemento subjetivo dos crimes imputados no requerimento de abertura de instrução apreciada pela primeira e única vez no despacho recorrido.
A propósito do caso julgado formal resultante de decisões tabelares ou genéricas o STJ, relativamente a questões diversas daquela que está aqui em apreciação, uniformizou jurisprudência no sentido de que «A decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento», cfr AUJ 2/95 de 16-05-1995, DR 135/95 Série I-A, de 12-06-1995; bem assim que «O despacho genérico ou tabelar de admissão de impugnação de decisão da autoridade administrativa, proferido ao abrigo do disposto no artigo 63.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, não adquire força de caso julgado formal», cfe. AUJ n.º 5/2019, de 04-07-2019, DR 185/2019, Série I de 2019-09-26.
[…]
Mas, o certo é que depois de declarada aberta a fase de instrução, o processo não podia “fazer marcha atrás”. Isto só sucederia caso tivesse sido declarada alguma nulidade suscetível de produzir esse efeito. Neste sentido pode falar-se de caso julgado formal quanto à questão da abertura de instrução, pois que o juiz depois de a ter declarado aberta não pode dar o dito por não dito. Assim sendo, estava a Senhora Juíza de Instrução obrigada a realizar debate instrutório, mas na decisão instrutória, que obrigatoriamente tinha de proferir, não estava impedida, bem pelo contrário, de analisar qualquer pressuposto indispensável à realização da instrução que anteriormente apenas tenha sido enunciado de forma tabelar, liminar e genérica.
Aliás, o entendimento que aqui defendemos, segundo o qual por a decisão ser tabelar ou genérica não ocorre caso julgado formal, é o que melhor se compatibiliza com a regra do dever de fundamentação dos atos decisórios contida no artigo 97.º, n.º 5, do CPP, enquanto consagração do disposto no artigo 205.º, n.º 1, da CRP, e no artigo 6.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
[…]
Por último, e ao contrário do defendido pelas recorrentes, a posição aqui defendida em nada colide com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2, 13.º, 18.º, 20.º, 202.º e 266.º, todos da CRP, sendo que as recorrentes não concretizam em que medida estes preceitos foram violados, quedando-se por uma alegação genérica. Com efeito, a posição que defende não ocorrer caso julgado formal tem apenas como efeito o reconhecimento de uma situação factual existente (omissão de factos do requerimento de abertura de instrução, que aliás, nunca foi escamoteada pelas próprias recorrentes) que não foi apreciada no momento processual próprio, mas que, apesar disso, o próprio processo permite conhecer e de facto foi conhecida ulteriormente’ (sublinhado e negrito nossos).
De tudo o que se expôs pode concluir-se no sentido de que ao M.mo Juiz a quo não estava vedada a apreciação do requerimento de abertura de instrução no que respeita ao facto de o mesmo conter ou não a narração completa da factualidade imputada à arguida ou a imputação jurídica. O que lhe estava vedado, como resulta claro, era proferir decisão sem proceder a debate instrutório – ato legalmente obrigatório após a admissão do requerimento de abertura de instrução -, situação que não é a dos presentes autos, uma vez que, como resulta dos autos, esse ato foi realizado.
Assim, nada obstava a que o tribunal, analisando o requerimento de abertura de instrução e concluindo, como o fez, de que do mesmo não resultava qual a imputação específica pela qual a arguida devia ser submetida a julgamento, declarar o mesmo nulo, por incumprimento do disposto no artigo 283.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal.
Entende-se, assim, não merecer qualquer censura a decisão proferida, devendo improceder o argumento invocado pelo recorrente.
C)
Existência de indícios suficientes para pronunciar a arguida pelo crime de burla
Alega, por último, o recorrente, de que dos elementos probatórios recolhidos nos autos resultam indícios suficientes que sustentam a imputação à arguida do crime de burla, previsto e punido pelo artigo 218.º, do Código de Processo Penal.
Tendo por consideração os elementos probatórios vertidos nos autos, certo é que tal alegação não deixará de improceder, como decorre da fundamentação vertida no despacho de arquivamento e, bem assim, do que consta da decisão instrutória.
No despacho de não pronúncia pode ler-se que “ora, da leitura do requerimento para abertura de instrução não é possível identificar um duplo nexo de causalidade entre um engano e a disposição patrimonial.
O que motiva o assistente a efectuar disposições patrimoniais em benefício da arguida não é o engano ou um ardil mas sim a circunstância de com ela pretender estabelecer uma relação amorosa e, por isso, pretender “cair nas boas graças” daquela”.
E, acrescente-se que tal conclusão resulta com particular clareza de várias das mensagens trocadas entre recorrente e arguida, juntas aos autos, das quais decorre a voluntariedade do assistente na compra de bens e entrega de valores, sem que exista uma efetiva exigência por parte da arguida para esse efeito. No mais, não deixará de se ter em consideração o facto de o recorrente ter vindo juntar aos autos uma minuta de contrato de mútuo que acordou celebrar com a arguida e de esta lhe ter devolvido uma quantia monetária, estando ainda em dívida um valor avultado.
Não resultam, pois, como bem se explana no despacho de arquivamento, indícios suficientes para permitir suportar a imputação à arguida da factualidade descrita.
Consequentemente, o único despacho que se aferia condicente com a prova é o de não pronúncia.
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Em face dos argumentos expostos, outra não podia ser a decisão do tribunal que não a de concluir no sentido de que o requerimento para abertura de instrução não continha todos os elementos legalmente estabelecidos e, consequentemente, declará-lo nulo, com a não pronúncia da arguida pelos factos que lhe são imputados.
A decisão proferida não merece qualquer censura, porquanto procedeu à análise do requerimento de abertura de instrução, mostrando-se a mesma acertada, devendo, por isso, ser integralmente confirmada.
IV.
Face ao exposto, consideramos que o Tribunal decidiu em estrita obediência à lei penal, e, consequentemente, deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se a decisão proferida, na íntegra, a qual não oferece qualquer censura, nem se afere violadora de qualquer norma legal, só assim se fazendo a esperada e costumada JUSTIÇA!”.
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A Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu o seguinte parecer:
“Analisados os fundamentos do recurso, acompanhamos a fundamentada resposta do Ministério Público junto da 1.ª Instância, ao recurso interposto pelo recorrente quando pugna pela improcedência do mesmo, conforme melhor se alcança do teor da fundamentação inserta na mesma peça processual, referência Citius 27183277, para a qual, e por uma questão de economia processual, se remete.
Com efeito, consideramos que a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância identificou corretamente o objeto do recurso, respondeu fundamentadamente a todas as questões suscitadas no mesmo, argumentou com clareza, assertividade e correção jurídica, e indicou jurisprudência relevantes, o que merece o nosso acolhimento, motivo pelo qual remetemos na íntegra para o que na referida resposta se escreve.
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Pelo exposto, e salvo o devido e muito respeito por diferente opinião, somos do parecer que o recurso interposto pelo assistente AA deve ser julgado improcedente, mantendo-se na íntegra o despacho recorrido”.
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Foi cumprido disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II – Questões a decidir
Como é pacificamente entendido tanto na doutrina como na jusrisprudência, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1.
No caso concreto, importa decidir por ordem de procedência lógica:
• Se o recorrente tem legitimidade para invocar a existência de nulidade do inquérito por não terem sido constituídas arguidas todas as pessoas contra quem apresentou queixa;
• Se o requerimento para abertura da instrução é nulo por não indicação das disposições legais aplicáveis;
• Se os factos descritos no requerimento para abertura da instrução integram um crime de burla qualificada.
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III – Apreciação do recurso
IIIa) Conteúdo da decisão instrutória(transcrição):
“I – Relatório
AA, constitui-se como assistente nos presentes autos e requereu a abertura da presente fase facultativa de instrução, pretendo a pronúncia da arguida
EE
Pela prática de:
“a)… um crime de burla p. e p. “pelo art.º 218º, do Código Penal bem como pelo crime de associação criminosa, crime pelo qual deverão responder os demais denunciados;
b) seja declarada nesta sede a invalidade do despacho de arquivamento, nos termos do
disposto no art.º 119º, nº 1, al. b), 49º e 52º do CPP e 190º e 192º do C.P., com a consequente devolução ao Ministério Público para a devida promoção;…”.
O Ministério Público havia proferido decisão de arquivamento.
Realizou-se debate instrutório.
Importa decidir.
Para tanto, destaca-se:
II – Fundamentação
Conforme ficou sintetizado no despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público:
“I)
Arquivamento
Iniciaram-se os presentes autos com o Auto de Denúncia de fls. 4 e ss., apresentada em 22/04/2019 por AA (nascido em .../.../1971) contra EE (nascida em .../.../1976), referindo que, em ... de 2017, conheceu a denunciada a começou a conversar com a mesma através da aplicação Whatsapp. Cerca de três meses depois, a denunciada informou o denunciante que padecia de uma doença (mioma no útero) e que não tinha dinheiro para o tratamento, o qual que ascendia a € 3.000,00, pedindo a este a quantia de € 500,00, que o mesmo lhe emprestou. Dias depois, a suspeita voltou a pedir-lhe € 500,00, alegando dificuldades económicas, prometendo devolver-lhe tais quantias quando recebesse o salário, ao que o denunciante acedeu. Em .../.../2017, a suspeita e o denunciante iniciaram um relacionamento amoroso mas, em ...de 2017, após alguns encontros, a suspeita disse a este que não tinha condições para manter tal relacionamento, em virtude de lhe ter sido diagnosticado uma doença oncológica (cancro da mama). Mantiveram contacto telefónico, no decurso do qual a suspeita foi sempre solicitando ao denunciante a entrega de quantias entre € 150,00 e € 200,00 para a realização de tratamentos e cirurgia. Após a cirurgia, a suspeita informou o denunciante que necessitava de colocar implantes no peito, solicitando a este a quantia de € 1.200,00.
Mais refere o denunciante que foi sempre entregando quantias monetárias à suspeita, quer a pedido desta, quer a pedido da irmã desta (de nome BB), convencido de que a mesma padecia de uma doença grave. Em ...de 2018, o denunciante entregou o valor de €
2.000,00 à suspeita, à porta do ..., para que a mesma se deslocasse à ... para realizar tratamentos.
Em ... de 2018, o denunciante entregou a quantia de € 17.000,00 a BB, a pedido desta, para ajudar no custo de um transplante de intestino da suspeita, o qual teria um custo total de € 100.000,00.
Em ... de 2018, a suspeita volta a contactar o denunciante, dizendo-lhe que não conseguia manter um relacionamento amoroso e que pretendia pagar a dívida que tinha para com o mesmo. Em ... de 2019, o denunciante contactou presencialmente a suspeita, a qual referiu que não padecia de doenças nem necessitava de tratamentos, referindo que pretendia devolver-lhe as quantias entregues pelo mesmo, as quais totalizaram o montante de € 28.000,00.
Os factos descritos, abstractamente considerados, são susceptíveis de integrar a prática de crime de burla qualificada, p. e p. pelo art.º 217º, n.º 1 e 218º, n.º 1 e 2 a), por referência ao art.º 202º, al. b) do Código Penal.
Procederam-se às diligências de investigação consideradas úteis e pertinentes ao apuramento dos factos denunciados.
O denunciante juntou aos autos:
- cópia dos depósitos bancários efectuados para a conta da suspeita, entre .../.../2017 e .../.../2018, no montante total de € 7.500,00 (Docs. de fls. 78 a 91, 93, 100, 102, 107, 108, 118, 119);
- cópia das mensagens trocadas com a suspeita (fls. 92, 94, 98, 103, 106, 109-113, 116-117,
120-123, 125-132);
- fotografias enviadas pela suspeita (fls. 99, 101, 104-105);
- comprovativo de levantamento em numerário no valor de € 900,00 (fls. 114);
- comprovativo de resgate de Certificados de Tesouro no valor de € 2.000,00 e de € 17.000,
(fls. 115, 124);
- cópia do contrato de mútuo oneroso com fiança (fls. 133-136);
Foi junto aos autos o extracto bancário da conta titulada por EE, n.º ... do ..., entre .../.../2017 e .../.../2018 (fls. 167-180), onde constam as quantias entregues pelo Assistente.
Foram juntos elementos de identificação da arguida, de nacionalidade brasileira, e cópia da acta de conferencia de divórcio por mútuo consentimento, ocorrido em .../.../2020 entre a arguida e DD (fls. 249-263).
Foram ainda trazidos aos autos elementos de identificação de FF, de nacionalidade ..., nascida em .../.../2000 e filha da arguida (fls. 265-269).
AA foi admitido a intervir nos autos na qualidade de Assistente.
Inquirido, o Assistente manteve o procedimento criminal e confirmou o teor da denúncia,
referindo, em suma, que conheceu a arguida em... de 2017 e que se encontraram presencialmente poucas vezes, tendo iniciado uma relação amorosa online, julgando que nessa altura a arguida estaria casada. Em ... de 2017, a arguida informou-o que padecia de um mioma no útero, solicitando-lhe a quantia de € 500,00, que o Assistente emprestou com a garantia de que essa quantia seria paga quando a arguida recebesse o subsídio de férias. Em Agosto, voltou a emprestar àquela € 500,00 e a arguida foi-lhe pedindo mais dinheiro. Mais tarde, a arguida informou-o que tinha nódulos nos seios e que não estava em condições de ter um relacionamento amoroso, pois iria submeter-se a sessões de quimioterapia, mas continuou a pedir dinheiro a este. Em Dezembro, é informado que a cirurgia de remoção da mama tinha sido marcada e que necessitada de € 400,00 para os exames pré-operatórios, que o Assistente entregou, continuando aquela a pedir mais quantias monetárias por conta de exames. Disse ainda que as promessas de um relacionamento futuro continuaram, assim como os pedidos de dinheiro, que o Assistente satisfazia. Referiu que nunca chegou a visitar a arguida em nenhum hospital ou outro local, pois aquela recusava sempre. Acrescentou que chegou a depositar € 200,00 para a arguida comprar um aspirador. Depositou € 1.350,00 porque a arguida lhe transmitiu que necessitava de fazer uma reconstrução mamária. Em ... de 2018, BB, alegada irmã da arguida, através do Whatsapp desta, disse que necessitava de mais dinheiro para a reconstrução mamária, tendo o declarante acedido a mais este pedido. Após, a arguida, através da irmã BB, disse que tinha um problema num intestino, causado por uma bactéria, e que necessitava de € 1.500,00 para realizar um tratamento. Assim, no mês de ..., o Assistente encontrou-se com BB e entregou-lhe a quantia de € 500,00. Disse que a voz desta era semelhante à voz da arguida e que depositou ainda a quantia de € 1.000,00. Após, em ... de 2018, a irmã da arguida informou-o que esta padecia de um cancro no intestino e que tinha de ir à ... realizar tratamentos a fim de salvar a vida. Pediu-lhe € 900,00 para acompanhar a irmã à ..., o que o depoente fez. Após, entregou em mão à arguida, à porta do ..., a quantia de € 2.000,00, que tinha resgatado em Junho. Ainda em Junho, a irmã da arguida informou o depoente, através de Whatsapp, que esta iria realizar um transplante de intestino nos ..., com um custo de € 100.000,00. Entretanto, passou a contactar com alguém que se identificou como mãe da arguida, confiando na mesma. Chegou a solicitar um empréstimo no valor de € 100.000,00 junto de instituições bancárias, mas tais pedidos foram rejeitados. Entregou em mão à arguida a quantia de € 17.000,00, devido à urgência que esta tinha, e, após esta apagou a maior parte das mensagens de Whatsapp. Em ... de 2018, a arguida informou-o que não tinha disponibilidade para um relacionamento amoroso. Passou a receber transferências periódicas de € 200,00 da conta da arguida, que alterou o apelido para .... Mais disse que esta pediu-lhe que se encontrassem junto ao seu local de trabalho, altura em que admitiu que mentiu, que havia casado com DD, que não padecia de qualquer doença e que tinha utilizado o dinheiro para viagens e compras. Disse ainda que esta lhe prometeu o pagamento de todas as quantias emprestadas. Referiu que se encontrou com CC, mãe da arguida, a fim de celebrarem um acordo para pagamento da dívida. Esclareceu que a última vez que esteve presencialmente com a arguida foi em 2019 e que houve negociações para o pagamento da dívida, inclusive com um advogado. Disse por fim que, em 2 anos de relacionamento, esteve apenas 8 vezes com a arguida e que nunca foi a casa desta.
Confrontado com a fotografia de FF, o Assistente disse que não se tratava da pessoa que se identificou como BB, irmã da arguida.
O Assistente indicou como testemunha GG. Contactada, esta referiu desconhecer os factos dos autos, referindo que tomou conhecimento dos mesmos através do relato que lhe foi feito pelo Assistente e que apenas transmitiu a este que EE estaria casada com um cidadão português e que nunca esteve doente.
Inquirida, HH disse ter conhecido o Assistente em 2002 na empresa onde trabalhavam. Referiu que num dia cuja data não sabe precisar, o Assistente telefonou-lhe a contar que tinha conhecido uma pessoa de nome EE, por quem se tinha apaixonado, e que a mesma estava muito doente. Referiu que nunca conheceu a suspeita e que o Assistente lhe transmitiu que se tinha disponibilizado a emprestar dinheiro àquela para a realização dos tratamentos médicos, pese embora não houvesse intimidade entre ambos. Referiu ainda ter desconfiado que o assistente pudesse estar a ser enganado, uma vez que se tratava de uma relação amorosa virtual. Disse por fim que tem conhecimento dos factos através do relato que lhe foi feito pelo Assistente.
Inquirido, DD disse que conheceu EE, de nacionalidade …, em 2013, com quem casou nesse ano, tendo-se separado em 2019. Disse que a arguida trabalhava num Lar de Idosos na .... Referiu que as duas filhas da arguida viviam esporadicamente com o casal. Referiu que nunca se faz passar por quem quer que fosse, nomeadamente médico, e que nunca aceitou ser fiador de algum contrato envolvendo a arguida e o Assistente, desconhecendo os factos dos presentes autos. Referiu que tinha uma conta conjunta com a arguida, com vários números de telefone associados à operadora .... Disse ainda que a arguida nunca esteve gravemente doente. Referiu que a arguida chegou a pedir-lhe dinheiro, demonstrando receio por ter dívidas para pagar. Disse por fim que nunca usufruiu do dinheiro da arguida, desconhecendo o destino que lhe foi dado.
Constituída arguida e interrogada nessa qualidade, EE referiu que, antes da pandemia provocada pelo vírus Sars Cov 2, trabalhava como cuidadora de uma senhora, em ... e que ia de metro, altura em que o ora Assistente convidou a arguida para tomar um café. Referiu que trocaram números de telefone e que passaram a comunicar através de Whatsapp. Disse que, à data, ainda era casada com DD e não desejou prestar mais declarações sobre os factos.
Foram oficiadas as operadoras telefónicas, mas não se logrou apurar a identidade do titular do número de telefone ..., alegadamente utilizado pela arguida nos contactos mantidos com o Assistente (fls. 148-149).
Por sua vez, o número de telefone ..., alegadamente utilizado por um médico nos contactos com a Assistente, está associado a FF (fls. 151-159).
Pese embora as diligências efectuadas, não se logrou inquirir FF (filha da arguida), por ser desconhecido o seu paradeiro, tendo a arguida informado que a mesma reside nos ....
Após o Assistente veio aos autos juntar transcrições de mensagens trocadas com a arguida entre .../.../2018 e .../.../2019, nas quais o assistente confere um prazo de três anos à arguida para pagar a dívida (mensagem de .../.../2019 a fls. 318). Juntou ainda mensagens de .../.../2019 em que questiona a arguida sobre o pagamento de € 200,00 mensais e esta refere que necessita de mais algum tempo para pagar (fls. 325-326).
Juntou ainda extracto bancário da sua conta do ..., entre .../.../2017 e .../.../2023 (fls. 333-383), onde constam as seguintes transferências efectuadas pela arguida: em .../.../2018 (€ 200), em .../.../2018 (€ 200), em .../.../2018 (€ 200), em .../.../2019 (€ 200), em .../.../2019 (€ 200), em .../.../2019 (€ 200), em .../.../2019 (€ 200), em .../.../2019 (€ 200), em .../.../2019 (€ 180 e € 20), em .../.../2019 (€ 200), em .../.../2019 (€ 100) e em .../.../2019 (€ 100), num total de € 1.600,00.
Não são conhecidas outras testemunhas dos factos e não se vislumbra utilidade na realização de outras diligências além das já efectuadas.
Cumpre então apreciar.
Estabelece o artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal que comete o crime de burla quem “com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou de engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a terceira pessoa, prejuízo patrimonial”.
A verificação deste crime pressupõe a existência dos seguintes elementos típicos:
- a indução em erro ou engano de uma pessoa sobre factos;
- o erro ou o engano provocado com astúcia;
- tendente a determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo
patrimonial,
- com intenção de o agente obter, para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo.
No caso dos autos, de acordo com a versão trazida pelo Assistente, este teria sido vítima de um estratagema vulgarmente conhecido como romance scam, através do qual a arguida, com a ajuda de terceiros, simulou possuir sentimentos afectivos pelo Assistente, fazendo com que este se envolvesse emocionalmente com a arguida, mantendo contactos ao longo do tempo, maioritariamente através de telefonemas e mensagens telefónicas. Durante esses contactos, a arguida foi criando diversas histórias relacionadas com o seu estado de saúde, com os tratamentos que alegadamente necessitava e com o facto de não ter dinheiro para suportar os mesmos. O Assistente foi sempre acreditando nas diversas narrativas que a arguida lhe contava, por estar emocionalmente envolvido com esta, e entregou-lhe várias quantias em dinheiro, na maioria das vezes através de depósitos de numerário na conta titulada por esta (n.º ... do ...).
Como o Assistente admitiu, foi o próprio que encetou conversa com a arguida, passando a acreditar na mesma, e confiou sempre que a esta lhe devolveria as quantias entregues. Fê-lo na expectativa de iniciar uma relação amorosa com a arguida e de reaver as quantias entregues, não utilizando outros meios de percepção para confirmar a veracidade das narrativas apresentadas pela arguida. Ainda assim, a relação que o Assistente manteve com a arguida, e que durou cerca de 2 anos, não foi só estabelecida telefonicamente, pois mantiveram alguns encontros presenciais.
Além disso, o arguido contactou com terceiras pessoas, cujas identidades não se logrou apurar, as quais lhe solicitaram igualmente a entrega de quantias monetárias, a título de empréstimo, o que o arguido fez, desconhecendo-se o destino que foi dado a tais quantias.
Dos elementos recolhidos verifica-se que as quantias foram entregues voluntariamente pelo Assistente à arguida, ou a pessoas que afirmavam ser próximas da arguida, enquanto mantiveram contactos, quer presenciais, quer através de telefonemas e mensagens escritas (whatsapp) e que a arguida se comprometeu a devolver tais quantias, tendo apenas devolvido a quantia de € 1.600,00.
Não obstante tal realidade, em que consistiu o engano astuciosamente provocado pela arguida, no sentido de conduzir o Assistente a actuar do modo descrito? Onde se verifica a astúcia no engano causado?
É certo que o Assistente entregou as quantias à arguida por ter acreditado que a mesma estava doente e que necessitava de tratamentos, o que não correspondia à verdade.
Mas o engano provocado deve ser astucioso, isto é, encenado de tal modo que leve a vítima a acreditar no agente, assim como seria capaz de iludir o diligente pai de família, com evidente perversidade ou má fé.
No caso dos autos, será suficiente para preencher o elemento do tipo “erro ou engano astuciosamente provocado” o facto de alguém convencer o outro de que padece de uma doença, cada vez mais grave, envolvendo-o numa suposta relação amorosa à distância. Não seria exigível ao Assistente, de acordo com a postura de um bonnus pater familias, que tivesse feito outras diligências para se certificar da bondade das narrativas da arguida, ao longo de 2 anos, e das doenças que a mesma alegava padecer?
Efectivamente, resulta dos autos que o Assistente entregou voluntariamente à arguida quantias monetárias a pedido desta. Mas resulta igualmente dos elementos juntos que o Assistente decidiu entregar à arguida quantias monetárias sem que aquela o tivesse solicitado, quer por iniciativa própria (mesmo quando a arguida lhe dizia que não podia aceitar), quer por solicitações de terceiros que o Assistente não conhecia.
As testemunhas inquiridas nada trouxeram aos autos no sentido de demonstrar o alegado engodo astucioso sofrido pelo Assistente, antes se afigurando que o conhecimento dos factos foi aquele relatado pelo Assistente, confirmando que a arguida não estaria doente.
A arguida não prestou declarações, desconhecendo-se as suas motivações bem como o destino que deu às quantias que lhe foram entregues pelo Assistente. Desconhece-se igualmente a quem se destinavam as quantias entregues pelo Assistente aos terceiros que lhe solicitaram dinheiro, bem como a identidade destes/ destas.
O Assistente juntou aos autos uma cópia de uma minuta de um contrato de mútuo que
acordou celebrar com a arguida, para pagamento da quantia em dívida, resultando do mesmo, nomeadamente, que: “em ... de ... de 2018, o Primeiro Outorgante entregou, consciente e no livre exercício da sua vontade, sem erro ou engano, à Segunda Outorgante, que por sua vez recebeu e fez seu, de forma legítima, o montante total de €28.450,00”.
À data dos factos, o Assistente tinha 47 / 48 anos de idade e não se apurou que padecesse de qualquer doença ou incapacidade. Ou seja, não se tratava de pessoa vulnerável em razão da idade ou do estado de saúde. Simplesmente, terá criado a expectativa de uma relação amorosa com alguém com quem manteve contactos presenciais esporádicos e a quem
entregou de livre vontade quantias monetárias, sem se certificar do destino que lhes era dado, por confiar que teria retorno quer financeiro, quer amoroso.
Ora, e no que aos presentes autos diz respeito, a entrega de quantias monetárias a título de empréstimo envolve inevitavelmente risco para as partes envolvidas, muito embora e por princípio, estas devam pautar a sua actuação de acordo com o princípio da boa-fé.
Por outro lado, e como se vem defendendo, para haver lugar à tutela penal não basta a existência de uma qualquer intenção prévia de não cumprir um acordo, por não ser essa situação suficiente para que se possa considerar que quem assim age provoca astuciosamente uma situação de erro.
O Assistente teria estabelecido com a arguida uma relação de confiança, por acreditar que mantinham uma relação amorosa, e confiou nas promessas de pagamento. Não ficou demonstrado que a arguida se tenha aproveitado de uma qualquer especial situação de vulnerabilidade do Assistente, a qual não resulta sequer demostrada nos autos.
Como atrás explanado, consideramos que, perante os elementos recolhidos, não é possível imputar à arguida EE ou aos demais denunciados a prática do crime de burla qualificada, por insuficiência de indícios.
As suspeitas trazidas não se mostram suficientemente indiciadas de modo a sustentar um despacho de acusação contra a arguida e não se afigura que as dúvidas suscitadas nesta fase venham a ser dissipadas em audiência de discussão e julgamento, atento o princípio do “in dubio pro reu”, afigurando-se-nos mais provável uma absolvição.
Relativamente ao eventual incumprimento contratual, por falta de pagamento das prestações acordadas, a comprovar-se tal situação, é certo que o Assistente terá o direito a ser ressarcido dos eventuais prejuízos que tenha sofrido na sequência do incumprimento contratual, mas tal facto, só por si, não faz a arguida incorrer em responsabilidade criminal.
O princípio da subsidiariedade ou da intervenção mínima do direito penal implica que a cominação de sanções penais há-de constituir sempre a última ratio da política social, ou seja, o direito penal só deve intervir, como instrumento de tutela de bens jurídicos, quando os outros meios de intervenção menos gravosos se mostrem insuficientes.
Assim, sempre poderia o Assistente lançar mão de um conjunto de institutos jurídicos previstos no Código Civil.
Da análise dos factos tal como descritos pelo Assistente, conclui-se pela insuficiência de indícios relativamente à verificação da prática de crime, subsistindo eventualmente uma situação de incumprimento contratual.
Nesta conformidade e nos termos expostos, determino o arquivamento dos autos, nos termos do artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. “
*
No que respeita às conclusões plasmadas no requerimento para abertura da instrução importa desde logo apreciar o seguinte de forma a delimitar o objecto da presente instrução.
Tendo o assistente invocado uma “invalidade”, muito embora na alínea b) das conclusões do RAI, esta é uma questão que deverá ser apreciada em primeiro lugar.
Esta invocação de “invalidade” apresenta-se ininteligível pois reporta-se expressamente ao disposto no art.º 119º, nº 1, al. b), do CPP, isto é, uma nulidade insanável, conforme epígrafe do art.º 119º, motivada pela falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência.
Tendo existido inquérito, onde foram realizadas as diligências de investigação bem explicitadas no despacho de arquivamento acima já transcrito, não se compreende a que falta de promoção alude o assistente ao invocar tal “invalidade”.
O que ocorreu é que o assistente não concordou com o encerramento do inquérito e com o enquadramento jurídico dado pelo Ministério Público aos factos investigados.
Esta circunstância, de desacordo com a decisão de arquivamento, não constitui qualquer “invalidade”, pelo que não poderá proceder o invocado, nesta parte, pelo assistente.
Por outro lado, na conclusão apresentada na alínea a) do RAI, isto é, onde se afirma:
“a) que seja aberta instrução e, após debate instrutório seja a arguida pronunciada pela prática do crime de burla qualificada, p.p. pelo art.º 218º do Código Penal bem como pelo crime de associação criminosa, crime pelo qual deverão responder os demais denunciados;”
É manifestamente insuficiente a qualificação jurídica dada pelo assistente e isto porque, por força do princípio da tipicidade, aliás plasmado no art.º 283º, nº 3, al. d), do CPP, impunha-se que indicasse as disposições legais aplicáveis, o que não faz.
O crime de “burla qualificada” não está simplesmente tipificado no “art.º 218º” do Código Penal.
O art.º 218º do Código Penal tem a seguinte redacção:
Artigo 218.º
Burla qualificada
1 - Quem praticar o facto previsto no n.º 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.
2 - A pena é a de prisão de dois a oito anos se:
a) O prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado;
b) O agente fizer da burla modo de vida;
c) O agente se aproveitar de situação de especial vulnerabilidade da vítima, em razão de idade, deficiência ou doença; ou
d) A pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica.
3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 206.º
4 - O n.º 1 do artigo 206.º aplica-se nos casos do n.º 1 e das alíneas a) e c) do n.º 2.
Isto é, ali estão previstas diversas circunstâncias agravantes, não cabendo a esta fase de instrução eleger aquela que o assistente pretende imputar à arguida.
Do mesmo modo que não caberá eleger as circunstâncias previstas no “art.º 299º do CP”, este preceito indiciado no RAI no seu art.º 271º e não na conclusão.
De facto art.º 283º, do CPP, como corolário dos princípios contraditório e da tipicidade, comina com a nulidade, a acusação que não contenha tais elementos essenciais para garantir uma correcta fixação do objecto do processo.
Estes princípios são directamente transponíveis para o requerimento para abertura da instrução, por expressa remissão do art.º 287º, nº 2, “in fine” do CPP:
Artigo 283.º
Acusação pelo Ministério Público
1 - Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele.
2 - Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
3 - A acusação contém, sob pena de nulidade:
(…)
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
(…)
d) A indicação das disposições legais aplicáveis;
(…)
Isto é, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente é nulo por desrespeito do estabelecido na alínea d), do art.º 283º, do CPP.
O requerimento não é passível de aperfeiçoamento.
Assim:
III - Enquadramento jurídico
Assim, recorde-se que de acordo com o disposto no art.º 286º, do CPP, a instrução tem como finalidade específica a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
A decisão de deduzir acusação deve ocorrer, conforme disposto no art.º 283º, nº 1, do CPP, se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente.
De acordo com o disposto no art.º 217º, do Código Penal:
Artigo 217º
Burla
1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
(...)
Isto é, como já se escreveu no Ac. do STJ de 04/10/2007, publicado em www.dgsi.pt/, O crime de burla é uma forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar, e é integrado pelos seguintes elementos:
- intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo;
- por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou;
- determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial.
É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros, e actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro.
Esses actos além de astuciosos devem ser aptos a enganar, podendo limitar-se ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima concreta, ou tratar-se de processos rebuscados ou engenhosos, envolvendo contratos verdadeiros ou falsos e acções judiciais.
Mas não se deve esquecer que neste crime, a matéria punível não é a fraude mesma, o engano ou o induzir em erro, mas a locupletação ilícita ou a injusta lesão patrimonial, sendo o engano somente um momento precursor do crime, concepção que se traduz, aliás, na inserção sistemática do respectivo tipo entre os crimes contra o património.
Pode verificar-se uma identificação, de modo e de finalidade, entre a fraude que integra a burla e o dolo que vicia os contratos de carácter económico, e fraudes civis distintas da fraude penal, bastando considerar o dano culposo, o esbulho possessório sem violência ou ameaça grave, o incumprimento de contrato (em geral), a acção de condenação de dívida não vencida, a lide temerária, o abuso de direito, o recebimento culposo do não devido, como actos ilícitos que, no entanto, a lei não define como crimes.
Numa opção, em que muitas vezes não é imediatamente reconhecível um rigoroso científico ou distinção ontológica entre tais fatos, por razões de política criminal, o legislador efectua uma selecção, elegendo as condutas penalmente censuráveis entre as quais não inclui o facto contra direito que não provoque alarme colectivo, caso em que se contenta com os meios próprios do direito civil, como sancionamento. Parte assim, da maior gravidade do delito penal, da mais extensa e intensa perturbação social que causa.
A linha divisória entre a fraude, constitutiva da burla, e o simples ilícito civil, uma vez que dolo in contrahendo cível determinante da nulidade do contrato se configura em termos muito idênticos ao engano constitutivo da burla, inclusive quanto à eficácia causal para produzir e provocar o acto dispositivo, deve ser encontrada em diversos índices indicados pela Doutrina pela Jurisprudência, tendo-se presente que o dolo in contrahendo é facilmente criminalizável desde que concorram os demais elementos estruturais do crime de burla.
Há, assim, fraude penal:
– quando há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico:
– quando se verifica dano social e não puramente individual, com violação do mínimo
ético e um perigo social, mediato ou indirecto;
– quando se verifica uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena;
– quando há fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir;
– quando há uma impossibilidade de se reparar o dano;
– quando há intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio.
Ora, da leitura do requerimento para abertura da instrução não é possível identificar um duplo nexo de causalidade entre um engano e a disposição patrimonial.
O que motiva o assistente a efectuar disposições patrimoniais em benefícioa da arguida não é o engano ou um ardil mas sim a circunstância de com ela pretender estabelecer uma relação amorosa e, por isso, pretender “cair nas boas graças” daquela.
No entanto, antes desta apreciação de mérito, importa notar como acima já exposto, que o requerimento para abertura de instrução é nulo pelas razões já aludidas.
IV – Decisão instrutória
Pelo exposto:
1) Julgo improcedente a invocada “invalidade” do despacho de arquivamento;
2) Declaro nulo o requerimento para abertura de instrução por violação do disposto no art.º 283º, nº 3, al. d), aplicável ex vi do 287º, nº 2, “in fine”, todos do CPP;
3) Em consequência não pronuncio a arguida e determino o imediato arquivamento dos autos.
4) Custas a cargo do assistente com taxa de justiça que fixo em cinco unidades de conta.
Notifique”.
*
IIIb) Da alegada nulidade do inquérito

O assistente veio arguir a nulidade do inquérito por não terem sido constituídos arguidos todos os denunciados. No seu entender, a invocada nulidade está prevista no artigo 119.º, alínea b) do Código de Processo Penal.
Todavia, a nulidade insanável prevista nesta alínea apenas ocorre quando o Ministério Público não promove a ação penal, bem como a sua ausência em ato que a lei exige a sua presença.
“A alínea b) pressupõe como essencial à regularidade e à própria legitimidade do processo penal a intervenção constitutiva do MP (a «promoção» do MP); sendo o MP o órgão do Estado que detém o monopólio do exercício da acção penal, o processo penal tem de ser promovido pelo MP nos termos em que a Constituição (artigo 219º CRP) e a lei (artigo 48° CPP) determinam. A falta de promoção do MP significa que não poderá haver processo penal, justificando consequentemente a nulidade insanável.
A ausência do MP determina também a nulidade dos actos «relativamente aos quais lei exigir a comparência»: o pressuposto da nulidade não se refere, no entanto, à falta de um concreto agente do MP, que pode ser superada pelas regras da substituição, nas à própria realização do acto sem a presença de representante do MP; a nulidade também terá de ser referida a ato que não seja presidido pelo MP; sem presidência nem pode sequer ter lugar a prática do ato” – Henrique Gaspar – Código de Processo Penal Comentado, 2014, pág. 388.
No caso em apreciação o Ministério Público promoveu a ação penal e não está em causa a sua não comparência em ato em que seja obrigatória a sua presença.
Assim, não ocorre a nulidade prevista no artigo 119.º, alínea b) do Código de Processo Penal.
Cremos que o recorrente pretende invocar a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do Código de Processo Penal.
Nos termos desta norma: “constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais: (…) d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados os atos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade”.
Nos termos do artigo 272.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, “correndo inquérito contra determinada pessoa em relação à qual haja suspeita fundada da prática de um crime é obrigatório interrogá-la como arguido, salvo se não for possível notificá-la”.
Por seu turno, o artigo 58.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal determina que “(…) é obrigatória a constituição de arguido logo que: a) correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal”.
Resulta, assim, destes normativos que a constituição de arguido e seu interrogatório são atos obrigatórios no inquérito quando haja suspeita fundada da prática de um crime e a não audição do suspeito constitui uma nulidade, dependente de arguição.
No entanto, o interrogatório “visa fundamentalmente a comunicação ao arguido da existência do inquérito, a fim de que este possa assegurar eficazmente a sua defesa, e contribuir para a descoberta da verdade, refutando a imputação e apresentando ou requerendo a produção de meios de prova pertinentes para o efeito, já que o inquérito é o lugar de investigação não só da prova da acusação, mas também da prova da defesa”2.
Tendo presente este entendimento – que o interrogatório visa o conhecimento por banda do arguido dos factos, para que ele possa preparar a sua defesa - a jurisprudência tem entendido que o assistente não tem legitimidade para suscitar a nulidade por inobservância dos citados preceitos legais.
“E na verdade, além de não assistir ao assistente legitimidade para arguir a falta de interrogatório da arguida, cuja efetivação se mostra a fls. 163, “a falta de realização desse interrogatório (inobservância do contraditório) só pode ser arguida pelo arguido e não pelo assistente”, Ac. RP, Relator Dr. Melo Lima, Proc. nº 1634/11.3TASTS.P1, também “a obrigatoriedade da constituição como arguido, no âmbito de um inquérito, restringe aquela obrigatoriedade aos casos em que haja suspeita” de uma pessoa ter praticado um crime. A conclusão do Acórdão de fixação de jurisprudência 1/2006 deve ser atualizada, face à nova redação do preceito legal (art.º 272º, n.º 1 do CPP), no sentido em que se reporta a obrigatoriedade de constituição e interrogatório de arguido apenas aos casos de fundada suspeita da prática de um crime. Ac. RP, Relator Dr. Coelho Vieira, Proc. Nº 1022/09.1tavnf. Veja-se, por último, nº 1 do art.º 57º do Código de Processo Penal.” – Ac. RP de 09.12.2015, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/-/E05D8D5433D682F380257F24003F593F
No mesmo sentido, “A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no art.º 120.º, n.º 2, al. d), do CPP, qual seja a de insuficiência de inquérito, nulidade esta dependente de arguição, a qual deverá ser deduzida até ao encerramento do debate instrutório – al. c) do n.º 3 daquele artigo. O mesmo sucede relativamente à falta de constituição de arguido, nos casos em que é obrigatória.
(…) Em todo o caso, o arguido carece de legitimidade para a arguição da nulidade em causa, consabido que invoca, para tanto, a falta de interrogatório e de constituição como arguidos de outros intervenientes processuais, legitimidade que só a estes caberia.” – Ac do STJ de 11.07.2007, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/38dc0d32e5d6f71b80257364004b3b22?OpenDocument
Aqui chegados, diremos, então, que neste particular o recurso está votado ao insucesso, por o assistente não ter legitimidade para arguir a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2 alínea d) do Código de Processo Penal.
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IIIc) Da alegada nulidade do RAI
Entendeu o Tribunal a quo que a qualificação jurídica dada pelo assistente no RAI é insuficiente, não tendo sido dado cumprimento cabal ao disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea d) do Código de Processo Penal, declarando nulo o requerimento da abertura da instrução.
Por sua vez, o assistente defende que o despacho que determinou a abertura da instrução transitou em julgado e, por isso, sempre estaria o tribunal impedido de julgar tal requerimento nulo. Em todo caso, entende também que deu estrito cumprimento ao disposto no artigo 283.º do Código de Processo Penal.
Cremos que não assiste razão ao recorrente quando defende que, após a prolação do despacho que declarou aberta a instrução, o Tribunal estaria impedido de, na decisão instrutória, vir dizer que não se observou o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea d) do Código de Processo Penal, aplicável ao RAI por força da remissão prevista no artigo 287.º, n.º 2 do mesmo diploma.
É o seguinte o teor do despacho em causa:
“Declaro aberta a instrução.
***
Em virtude de ter sido requerida por quem para tanto dispõe de legitimidade, estar em tempo e representado por advogado admito o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente contra a arguida EE (artigos 287º, nº1 alínea b) do Código de Processo Penal).
*
Vão indeferidas as diligências referentes a uma pessoa de nome FF, uma vez que o inquérito não correu contra ela, nem tão pouco a instrução foi requerida quanto a ela.
No tocante à testemunha indicada, deverá o assistente esclarecer qual o seu conhecimento directo e a respectiva razão de ciência, a fim de o tribunal aferir da necessidade e pertinência da respectiva inquirição – artigo 291º, n.º 1 do CPP.
Deferidas as diligências requerida em B) e C) reportadas apenas à arguida.
Admite-se a tomada de declarações ao assistente e à arguida – artigo 292º, n.º 1 do CPP.
D. N, designadamente cumprindo-se o disposto nos artigos 287º, n.º 5 e 297º, n.º 3 do Código de Processo Penal”.
Tem sido entendimento da jurisprudência que qualquer despacho liminar, como é este, não faz caso julgado formal. O caso julgado só ocorre relativamente às concretas questões que sejam expressamente apreciadas, pois este é o único entendimento que se compatibiliza coma regra de fundamentar os atos decisórios.
Basta atentar ao teor do despacho transcrito para se perceber que esta questão - não indicação precisa do crime imputado à arguida – não foi analisada e decidida, sendo por isso incapaz de formar caso julgado, embora se admita que, quando se profere tal despacho, se pressupõe que foi observado o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea d) ex vi do artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Entendemos, assim, que o despacho que admitiu a instrução é meramente tabelar, genérico, quanto aos pressupostos da amissibilidade da instrução e que nenhuma questão nele foi especificamente apreciada. Por este motivo, esta decisão não faz caso julgado formal quanto à observância das exigências previstas nos indicados artigos.
Neste sentido podemos ler no Ac. da RG de 26.06.2023:“A propósito do caso julgado formal resultante de decisões tabelares ou genéricas o STJ, relativamente a questões diversas daquela que está aqui em apreciação, uniformizou jurisprudência no sentido de que «A decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento», cfr. AUJ 2/95 de 16-05-1995, DR 135/95 Série I-A, de 12-06-1995; bem assim que «O despacho genérico ou tabelar de admissão de impugnação de decisão da autoridade administrativa, proferido ao abrigo do disposto no artigo 63.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, não adquire força de caso julgado formal», cfr. AUJ n.º 5/2019, de 04-07-2019, DR 185/2019, Série I de 2019-09-26,
Neste último aresto, refere-se, nomeadamente, que:
«O caso julgado formal constitui noção separada do caso julgado que, como categoria geral (caso julgado material) está construída para a decisão definitiva do direito do caso, nas condições da sua existência, conteúdo e modalidades de exercício; no processo penal respeita à declaração sobre a culpabilidade e determinação da sanção, bem como da não culpabilidade (seja por não pronúncia ou por absolvição).
«O caso julgado formal respeita ao efeito da decisão no próprio processo em que é proferida».
«O caso julgado material consubstancia a eficácia da decisão proferida relativamente a qualquer processo ulterior com o mesmo objecto» e «tem um valor impeditivo da renovação da apreciação judicial sobre a mesma matéria» - cf. Cavaleiro de Ferreira, loc. cit., p. 25.
(…)
Acresce dizer que, no caso em apreço, relativamente à decisão instrutória, seja despacho de pronúncia ou de não pronúncia, o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer, cfr. nº 3 do artigo 308º do CPP.
Porém, é evidente que a Exma. Senhora Juíza de Instrução podia e devia ter conhecido, desde logo, no despacho de abertura da instrução a questão posteriormente apreciada no despacho recorrido, como aliás aí foi por ela reconhecido, o que apenas por lapso não sucedeu, não admitindo a instrução, por inamissibilidade legal, em conformidade com o disposto no artigo 287º, nº 2 in fine do CPP.
Mas, o certo é que depois de declarada a aberta a fase de instrução, o processo não podia “fazer marcha atrás”. Isto só sucederia caso tivesse sido declarada alguma nulidade suscetível de produzir este efeito. Neste sentido pode falar-se de caso julgado formal quanto à questão da abertura da instrução, pois que o juiz depois de a ter declarado aberta não pode dar o dito por não dito. Assim sendo, estava a Senhora Juíza de Instrução obrigada a realizar debate instrutório, mas na decisão instrutória, que obrigatoriamente tinha de proferir, não estava impedida, bem pelo contrário, de analisar qualquer pressuposto indispensável à realização da instrução que anteriormente apenas tenha sido enunciado de forma tabelar, liminar e genérica.
Aliás, o entendimento que aqui defendemos, segundo o qual por a decisão ser tabelar ou genérica não ocorre caso julgado formal, é o que melhor se compatibiliza com a regra do dever de fundamentação dos atos decisórios contida no artigo 97.º n.º 5, do CPP, enquanto consagração do disposto no artigo 205.º n.º 1, da CRP, e no artigo 6.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem” - https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/2ef1ad28d0c53ae5802589f1002f6d2a?OpenDocument.
Em suma, não estava o tribunal a quo impedido de apreciar a questão da nulidade do RAI na decisão instrutória.
Questão diferente é a de saber se o RAI é nulo, como foi decidido na 1.ª instância.
É claro para nós que o requerimento de abertura de instrução quando efetuado pelo assistente, após despacho de arquivamento do Ministério Público, tem de conter todos os elementos de facto e de direito necessários à aplicação de uma pena (ou medida de segurança) ao arguido (cf. artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal), pois vai fixar o thema decidendum. A remissão do artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal para o artigo 283.º, n.º 3, alínea b) do mesmo diploma também não deixa margem para dúvidas que o requerimento do assistente tem de indicar o crime imputado ao arguido com indicação das respetivas disposições legais. Pretende-se que ao arguido seja dado conhecimento do exato conteúdo da incriminação e das consequentes respostas punitivas. Só assim o arguido poderá preparar e organizar a sua defesa de forma adequada. Por isso, qualquer alteração da qualificação jurídica dos factos feita na acusação ou no RAI, principalmente qualquer alteração que importe um agravamento, terá necessariamente de ser dada a conhecer ao arguido para que este dela se possa defender.
Pois bem, no caso em apreciação o assistente imputa à arguida um crime de burla, pp. no artigo 218.º do Código Penal.
Acontece que este artigo tem quatro números e quatro alíneas e, por isso, a decisão da primeira instância considerou o requerimento de abertura da instrução era nulo, por não identificar qual o número ou alínea do crime de burla qualificada era imputado ao arguido.
Convenhamos que não há muitas dúvidas relativamente ao crime imputado ao arguido (pesa embora a abrangente qualificação jurídica feita), pois só são descritos factos que nos remetam à qualificação do crime em relação ao valor da burla, com a consequente agravação prevista no artigo 218.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal. Em todo caso, em abstrato, podemos dizer que o assistente ao remeter para o artigo 218.º do Código Penal está a incluir as formas mais graves do cometimento do crime.
Ora, o artigo 283.º, n.º 3 do Código de Processo Penal apenas comina com nulidade a falta das disposições legais aplicáveis, a sua omissão total, mas não a sua deficiente indicação. E também é verdade que o Tribunal não esta vinculado à qualificação jurídica indicada no RAI, podendo corrigi-a, conforme estabelece o artigo 303.º, n.º 4 do Código de Processo Penal.
A ser assim, tendo o assistente indicado o crime imputado à arguida, burla qualificada, ainda que de forma genérica, remetendo para o artigo 218.º do Código de Processo Penal, incumbia ao Juiz de instrução criminal proceder à correção da qualificação jurídica dos factos descritos no requerimento de abertura.
Assim, não está ferido de nulidade o RAI apresentado pelo assistente.
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IIId) Do crime de burla qualificada
Aqui chegados, verificamos que não foram analisados os factos constantes do RAI para se concluir se estavam (ou não) indiciados.
No fundo o que se referiu é que os factos constantes do requerimento para abertura da instrução não integram a prática do crime denunciado (no RAI também se tinha feito referência a um eventual crime de associação criminosa, mas o certo é que tal questão não foi suscitada em sede de recurso, pelo não nada cumpre apreciar a este propósito), por se ter entendido que “o que motiva o assistente a efectuar disposições patrimoniais em benefício da arguida não é o engano ou um ardil mas sim a circunstância de com ela pretender estabelecer uma relação amorosa e, por isso, pretender “cair nas boas graças” daquela”.
Dispõe o artigo 217.º, n.º 1 do Código Penal que “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de factos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”
Inserido no capítulo do Código Penal dedicado à proteção do património, é exatamente este o bem jurídico protegido pela incriminação sob escrutínio.
A consumação do presente crime se não alcança apenas com a saída dos bens ou valores da esfera de disponibilidade do legítimo titular, sendo necessário que se verifique um efetivo prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro. A incriminação é, tal como o crime de furto, classificada pela doutrina como um crime de dano, já que a consumação do crime exige a verificação de um prejuízo patrimonial, bem como um crime de execução vinculada, na medida em que se descreve na norma incriminadora todo o processo executivo da infração.
Como elementos do tipo objetivo do crime de burla temos: (a) a conduta astuciosa; (b) o erro ou engano; (c) a prática de atos de disposição ou de administração patrimonial e (d) o prejuízo patrimonial.
Como refere José António Barreiros “há, pois, na burla uma manipulação psíquica da vítima, através de astúcia enganadora ou indutora em erro e a determinação consequente daquela a actos lesivos que não praticaria se a sua liberdade de entender e a de querer estivessem intactas.”3
Como é consabido, o erro ou engano consubstanciam uma falsa ou inexata representação da realidade. Tal erro, para o efeito que nos ocupa, deverá ser produzido, pelo agente, de forma astuciosa: “é usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou são referidos pelo burlão factos falsos ou este altere ou dissimule factos verdadeiros, e atuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado, de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro.”4
E se a astúcia pode ser equiparada “(…) à habilidade para o mal, à manha, à sagacidade, à habilidade para enganar, à subtileza para defraudar, ao ardil, à intrujice e ao estratagema, ao embuste e à maquinação”5, enquanto elemento integrador da factualidade típica, a astúcia será “(…) uma noção de recorte objectivo e não meramente subjectivo, isto é, haverá de ser reconstituída a partir de actos materiais que a revelem e evidenciem e não por referência a estados de espírito ao nível da mera motivação do agente.”6
O erro ou engano relevante não é aquele que logra o convencimento da vítima, podendo até coexistir com situações em que a vítima ainda apresenta dúvidas. Relevante é, ao invés, apurar-se se a vítima, sujeita ao processo enganatório, agiu de acordo com os desígnios do agente.
Tratando-se a burla, como se deixou já antever, de um crime material ou de resultado, é usual na doutrina falar-se que a consumação da burla passa por um duplo nexo de imputação objetiva: “entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio), e depois, entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial”,7 sendo certo que a qualquer destes momentos há que fazer corresponder os pressupostos da teoria da adequação prevista no artigo 10.º, n.º 1 do Código Penal.
Nos termos do artigo 218.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal, a pena será de prisão de 2 a 8 anos quando o prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado, sendo elevado, nos termos do artigo 202.º, alínea a) do Código Penal, aquele que exceder 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto. À data dos factos, a unidade de conta era de € 102,00, pelo que se deve considerar valor elevado o que exceder os € 20.400,00.
Como referimos, a 1.ª instância entendeu que o que motivou a disposição patrimonial não foi o erro ou engano, mas o facto de o assistente querer cair nas “cair nas boas graças” da arguida e, por isso, concluiu que não existia o crime de burla.
Todavia, é descrito no RAI que arguida através de uma conduta astuciosa - envio de mensagens amorosas, encontros (poucos, é certo), envio de fotografias das invocadas hospitalizações e de registos clínicos e até contactos de terceiros com o assistente que confirmavam o seu grave estado de saúde - convenceu este último de que tinham um relacionamento amoroso (que não pretendia ter) e de que padecia de doenças graves e que apenas com a realização de tratamentos médicos e cirurgias dispendiosas poderia voltar a ter uma vida dita normal. Por estar convicto que tinha um envolvimento sentimental e amoroso com a arguida e por acreditar que a vida desta estaria em perigo, o assistente transferiu-lhe as quantias monetárias que ela lhe pedia, invocando serem necessárias ao seu tratamento. Afigura-se-nos, assim, que tais condutas são suscetíveis de ser consideradas astuciosas, provocando erro no burlado.
Estes factos podem não ser vistos como um simples mútuo, pois arguida provavelmente não tem meios para devolver as quantias entregues pelo assistente e o contrato posteriormente assinado por ambos não é mais do que uma tentativa por parte do assistente em tentar reaver o seu dinheiro.
Parece-nos, assim, que possa não ser correto que se diga que “O que motiva o assistente a efectuar disposições patrimoniais em benefício a da arguida não é o engano ou um ardil mas sim a circunstância de com ela pretender estabelecer uma relação amorosa e, por isso, pretender “cair nas boas graças” daquela”, pois, estando indiciado o que consta do RAI, o que leva o assistente a dispor do seu património é acreditar que a assistente esta efetivamente doente e que com ela mantém um relacionamento afetivo. O assistente não lhe compra bens para a cativar, o assistente paga-lhe “tratamentos médicos” a “doenças graves”.
Se lhe comprou outros bens não sabemos por a 1.ª instância não ter consignado os factos que estavam indiciados, apenas os analisandos em abstrato, tal como nós o fazemos agora.
Em suma, os factos denunciados são suscetíveis de integrar a prática do crime burla qualificada, pp. nos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal.
Porém, está este tribunal impossibilitado de proferir despacho final porquanto a 1.ª instância não analisou se os factos constantes do requerimento para a abertura da instrução estavam ou não suficientemente indiciados e só após esta análise se poderá concluir se o crime se verifica ou não.
Com efeito, entendemos que da decisão instrutória têm de constar os factos considerados suficientemente indiciados e aqueles em relação aos quais se considera não existirem indícios suficientes. É que tal seleção factual – em decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia – tem de ser fundamentada, em obediência ao dever genérico da fundamentação dos atos decisórios previsto no n.º 5 do artigo 97.º do Código de Processo Penal. Entendimento diverso impediria, em sede de recurso, avaliar a bondade das razões de decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia.
Assim, será o recurso julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que analise se os factos constantes do RAI estão ou não suficientemente indiciados com as demais consequências que daí irão decorrer.
*
IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso, julgando-se válido o requerimento para a abertura da instrução, revogando-se o despacho de não pronúncia, determinando-se que os autos retomem ao tribunal recorrido para concreta seleção dos factos constantes do RAI que considera estar indiciados (ou não) retirando daí as demais consequências jurídicas.
Sem custas.

Lisboa, 3 de junho de 2025
Ana Lúcia Gordinho
João António Filipe Ferreira
Pedro José Esteves de Brito
_______________________________________________________
1. De acordo com o estatuído no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995. Cf. também Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, e Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., pág. 89.
2. Cfr. Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, pág. 966.
3. José António Barreiros, Crimes Contra o Património, Universidade Lusíada, Lisboa, 1996, p. 148.
4. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/03/2003, processo n.º 03P241, disponível em www.dgsi.pt.
5. José António Barreiros, ob. cit., p. 157.
6. José António Barreiros, ob. cit., p. 157.
7. Assim, A. M. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, tomo II, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 293.