Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7563/2008-1
Relator: ROSÁRIO GONÇALVES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
NEGLIGÊNCIA MÉDICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Sumário: 1- A discordância com a compreensão e fundamentação do julgador, não materializa uma errónea valoração da prova.
2- A relação estabelecida entre um médico e o seu paciente configura-se como um contrato de prestação de serviços, sendo-lhe aplicáveis, em caso de inexecução ou cumprimento defeituoso, as regras relativas à responsabilidade contratual.
3- Há que se demonstrar a existência de uma omissão de intervenção ou que os meios utilizados foram deficientes no todo que comporta o dever de vinculação a que o médico se submeteu.
4- Agir com culpa significa actuar em circunstâncias que mereçam a censura do direito, ou seja, quando o agente, pela sua capacidade e perante as circunstâncias concretas, podia e devia ter agido de outro modo.
5- A avaliação da gravidade do dano tem de aferir-se segundo um padrão objectivo e para tanto, é considerável aquele que sai da mediania, que ultrapassa as fronteiras da banalidade, que espelhe um sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torna inexigível em termos de resignação.
R.G.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal a Relação de Lisboa
1- Relatório:
A autora, G intentou acção com processo sumário contra as rés, R e a Clínica, Lda., requerendo uma indemnização por danos resultantes de haver sido tratada com “grande incúria e negligência médica”, tendo sido deixada dentro dela uma compressa, do que resultou uma infecção, da qual foi tratada no Hospital Distrital.

As rés contestaram, arguindo a ilegitimidade da ré Clínica, impugnando os factos alegados pela autora e chamando ainda “à autoria” a Companhia de Seguros S.A.

Por despacho de 14-9-2005 foi ordenada a apensação a estes autos, ao abrigo do disposto no art. 275.º do CPC., da acção especial para cumprimento de obrigação pecuniária n.º 1429/2002, em que é autora a aqui ré Clínica, Lda., e ré a aqui autora.

Por despacho de 16-3-2006 foi admitida a intervenção principal da seguradora.

No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade arguida.

Prosseguiram os autos a sua tramitação normal, tendo sido proferida sentença, a qual julgou improcedente a acção especial para cumprimento de obrigação pecuniária apensa e parcialmente procedente a acção, condenando solidariamente as rés a pagarem à autora, a quantia de € 5.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde 12-12-2002.

Inconformadas recorreram as rés, concluindo nas suas alegações, em síntese:
- A Apelante médica prestou os seus serviços à Apelada, na realização do parto termo eutócito, com sucesso quer para a mãe quer para o bebé, e no estrito cumprimento das legis artis.
- O presente processo foi instaurado porque a Apelada considerou que a Médica Apelante não a visitou ou lhe prestou atenção nos dias que se seguiram ao parto.
- Não existiu qualquer acordo entre Apelantes e Apelada em que a Apelante médica prestaria a esta apoio após parto; A Apelante Clínica, no documento de cobrança, facturou apenas os serviços prestados que foram a realização de um parto a termo eutócito.
- A Apelada contratou os serviços da Apelante médica para lhe seguir a gravidez até ao parto.
- Ainda que a Apelante médica possa ter dito à Apelada e ao seu marido que passaria em casa destes, nesse mesmo dia ou no dia seguinte, facto apenas referido pelo marido, testemunha parcial e não isenta, tal justificou-se pelo facto da Apelante médica ter estado a assistir a outros partos.
- Ainda assim, a Apelante médica pediu a uma funcionária da Apelante Clínica que contactasse a Apelada para que esta se deslocasse à Clínica a fim de ser examinada, o que tal não veio a acontecer.
- A Apelada recusou a deslocar-se à Clínica para ser examinada pela médica Apelante.
- A Apelada foi assistida nas Urgências do Hospital tendo sido apenas feito uma desinfecção após remoção da compressa; A Apelada não apresentava dores mas apenas uma situação de estranheza, desconforto; A desinfecção demorou um ou dois minutos e não lhe foram receitados antibióticos. A ficha de urgência apenas regista: "Puérpera. Corpo estranho
vaginal. Desinfecção. Lavagem com Betadine" ; A Apelada não sofreu uma infecção nem a compressa poderia vir a causar tal infecção; Não estava iniciado nem sequer eminente qualquer processo de infecção.
- A Apelante médica não colocou a compressa no interior da vagina da Apelada; Um parto termo eutócito (parto normal) não pode ser equiparado a uma cirurgia de corpo aberto em que o cirurgião deixa uma compressa dentro do corpo do operado.
- A Apelada não sofreu uma infecção nem a compressa poderia vir a causar tal infecção; Não estava iniciado nem sequer eminente qualquer processo de infecção.
- A Apelada não sofreu dores intensas mas apenas uma sensação de desconforto e dores normais do parto.
- A Apelante não colocou a compressa na vagina da Apelada; A Apelante ao executar o parto agiu cumprindo com as legis artis, sem culpa ou negligência, não podendo ser responsabilizada quer pela existência da compressa, na vagina da Apelada, quer pelas eventuais dores que dela possam emanado.
- Também não existiu cumprimento defeituoso do contrato já que a Apelada não logrou demonstrar os factos que integram o imputado cumprimento defeituoso (por facto ilícito).
- Nenhuma dúvida se levanta quanto à execução da obrigação ou seu cumprimento – realização do parto termo eutócito; A Apelante realizou o parto conforme se obrigara perante a Apelada tendo respeitado as legis artis e os conhecimentos científicos actualizados, proporcionando à Apelada os melhores cuidados de saúde.
- A Apelante médica não tendo agido com culpa, o mesmo sucedeu ipso facto com a Apelante Clínica; Não tendo havido um serviço deficientemente prestado, também não é legítima a recusa da Apelada em pagar a factura emitida pela Clínica e junta aos autos.
- Quanto aos danos morais a Apelada não ficou "horrorizada"; De acordo com a sua empregada estava normal, um pouco pálida com dores normais, para quem tinha tido um bebé; Na verdade não ficaram provados os danos morais facto admitido na própria sentença: " A Autora havia referido na petição inicial que tivera uma infecção e que toda a sua vida pensara ter muitos filhos, adorando crianças e sendo mãe por vocação, e que agora não pondera sequer a hipótese de ter um terceiro filho, devido a "esta situação desesperante" em que ficou. Todavia, estes foram factos que não se provaram".
- O tribunal a quo discricionariamente utilizou o conceito de danos morais em sentido estrito sem os especificar ou identificar (já que a sua alusão passou apenas pela definição de serem ofensas que atinjam as pessoas nos sentimentos, vida afectiva, cultural e relações sociais) para com base nestes condenar as Apelantes neste tipo de dano moral em sentido estrito.
- De facto, ainda que assim não se entenda o que por mera hipótese se admite, sempre se dirá que os danos morais em sentido estrito - ofensas que atinjam as pessoas nos sentimentos, vida afectiva, cultural e relações sociais - para além de deverem ser alegados e provados, o que não sucedeu,
têm de ser de tal modo graves que mereçam a tutela do direito: o dano há-de ser de tal maneira grave que justifique a concessão ao lesado duma satisfação de ordem pecuniária.
- Também quanto ao quantum indemnizatório não deverá o mesmo proceder por não provado pois para além de não ter existido culpa ou negligência por parte da Apelante médica e muito menos da Apelante Clínica, também dúvidas não restam que os danos, a existirem, peticionados pela Apelada não sendo sequer graves, não ficaram de nenhum modo provados.
- Ainda que existam tais danos o que por mero exercício de direito se permite, sempre se dirá que nos termos do artigo 496° do Código Civil, na fixação da indemnização dever-se-á atender aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam tutela do direito, em montante a fixar equitativamente pelo tribunal, tendo em conta o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem, facto este que obviamente não foi atendido pelo tribunal a quo: cinco mil euros é um valor excessivo.
- A ser mantido este quantum indemnizatório o que só por mera hipótese académica se articula, importará encontrar um valor que permita à Apelada a satisfação de interesses que minimizem as "dores físicas e psicológicas que sofreu; Atento ao que ficou provado em audiência, nesta matéria, há que dignamente fixar um valor proporcionado o que não é de todo cinco mil euros.
- A ser mantido esse quantum indemnizatório, os juros de mora são devidos apenas desde a data da decisão nos termos e para os efeitos do n° 3 do artigo 805° do Código Civil atenta a responsabilidade das Apelantes.
- Deverá ser ainda ser declarada procedente a acção especial para cumprimento de obrigação pecuniária no 1429/2002, que está apensa, tendo em conta que o parto termo eutócito foi executado e cumprido na íntegra não sendo legítima a recusa de não pagamento do montante em dívida por parte da Apelada.

Contra-alegou a apelada, em síntese:
- As Apelantes não proporcionaram à Apelada todos os cuidados devidos na realização do parto termo eutócito, que a Apelante médica acompanhou no dia 21 de Abril de 2002, no Hospital.
- Foi acordado entre a Apelada e a Apelante Médica que esta assistiria ao parto daquela, quando chegasse a altura devida, no Hospital em Lisboa.
- Mais ficou acordado que a Apelante médica prestaria à Apelada o apoio pós-parto. - A Ré médica tem por hábito visitar as parturientes em casa, no dia seguinte ao parto e sempre que as parturientes não pernoitem no Hospital, de modo a facilitar-lhes a recuperação.
- A Ré médica disse à Autora e ao seu marido que passaria pela casa deles, nesse mesmo dia (21/04/2002) à noite ou no dia seguinte.
- A Ré médica não visitou a Autora, nem nesse dia (21/04/2002), nem no dia seguinte (22/04/2002).
- Nesse dia 23-04-2002 a Autora começou a sentir dores, que se foram avolumando.
- Nesse dia, ao fim da tarde, a Autora ou o seu marido telefonaram à Ré médica, tendo a chamada, feita para o telemóvel, sido atendida pelo pediatra Dr.V, que estava na sala dos médicos do Hospital, porque a Ré médica estava na sala de partos.
- O Dr. V informou a Apelante ou o seu marido que a Apelante médica telefonaria depois, retornando a chamada.
- A Apelante médica não retornou o telefonema. - A falta de cumprimento do acordado, logo contratado, por parte da Apelante médica, levou a Apelada a procurar cuidados de saúde no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar, onde foi atendida, em 24/04/2002, pelas 01h25, pela médica e testemunha Dra., que verificou que aquela tinha um "um corpo estranho vaginal", que era uma "compressa".
- A Apelada nunca pretendeu esquivar-se ao pagamento dos serviços que lhe foram prestados (deficientemente). O que entendeu é que se houvesse bom senso, nunca lhe teriam solicitado o pagamento e muito menos seria intentada qualquer acção para o efeito.
- É que a Apelada tinha uma "cobertura de serviços de maternidade" com B Ltd., que cobria todas as "despesas médicas relacionadas com uma qravidez normal", desde cuidados pré-natais até honorários de obstetras e enfermeiras e cuidados pós-natais.
- A Apelante médica, ou alguém da sua equipa deixou no corpo da Apelada, um "corpo estranho vaginal" que era uma "compressa" que foi encontrado pela Dra. G, no serviço de urgência do Centro Hospitalar, quando esta médica a atendeu naquele serviço em 24/04/2002.
- O contrato foi cumprido defeituosamente, como sobejamente se encontra demonstrado.
- A compressa não foi colocada pela Apelada, na sua vagina, como querem fazer crer as Apelantes, mas sim deixada pela Apelante médica ou por alguém da sua equipa, pois vários foram os momentos em que utilizaram compressas.
- A dor é uma situação que depende da sensibilidade individual de cada um, conforme afirmou a Dra. G e que mais disse: "O desconforto pode ser interpretado como dor."

Foram colhidos os vistos.

2- Cumpre apreciar e decidir:
As alegações de recurso delimitam o seu objecto, conforme resulta do teor das disposições conjugadas dos artigos 660º, nº.2, 664º, 684º e 690º, todos do CPC.

As questões a dirimir consistem em aquilatar:
- Se foi efectuada uma adequada subsunção jurídica dos factos.
- Se o valor indemnizatório não era devido, ou sendo-o, se é excessivo.

A matéria de facto delineada na 1ª. instância foi a seguinte:
1. No período compreendido entre 14-02-2002 e 19-02-2002 a Autora foi consultada várias vezes pela Ré médica, nas instalações da Ré Clínica, em virtude de aquela se encontrar grávida.
2. A Ré médica é gerente da Ré Clínica.
3. As facturas das consultas e dos exames complementares foram emitidas pela Ré Clínica.
4. Foi acordado entre a Autora e a Ré médica que esta assistiria ao parto daquela, quando chegasse a altura devida, no Hospital, em Lisboa.
5. Mais ficou acordado que a Ré médica prestaria à Autora o apoio pós-parto.
6. Em 21-04-2002, um Domingo, a Autora teve sinais de parto, telefonou para o telemóvel da Ré médica e seguiu para o Hospital, em Lisboa, onde deu entrada, por volta das 10h26.
7. A Ré médica também se dirigiu para o Hospital e assistiu ao parto da Autora, que ocorreu às 11h57.
8. No Partograma, em “Observações Clínicas” registou-se “Alta a tarde depois visita médico pediatra” e na “Avaliação Clínica”, “Alta após confirmação do médico pediatra e das enfermeiras”.
9. Às 19h00 o médico - pediatra, Dr. V, escreveu que “do ponto de vista pediátrico pode ter alta”.
10. A Ré médica tem por hábito visitar as parturientes em casa, no dia seguinte ao parto e sempre que as parturientes não pernoitem no Hospital, de modo a facilitar-lhes a recuperação.
11. A Ré médica disse à Autora e ao seu marido que passaria pela casa deles, nesse mesmo dia à noite ou no dia seguinte.
12. A localização da Ré Clínica e a residência da Autora situam-se no mesmo bairro.
13. A Ré médica não visitou a Autora, nem nesse dia, nem no dia seguinte.
14. Também não telefonou, mas uma empregada da Ré Clínica telefonou uma vez, no dia 23, pedindo que a Autora passasse pela clínica.
15. Nesse dia 23-04-2002 a Autora começou a sentir dores, que se foram avolumando.
16. Nesse dia, ao fim da tarde, a Autora ou o seu marido telefonaram à Ré médica, tendo a chamada, feita para o telemóvel, sido atendida pelo pediatra Dr. V, que estava na sala dos médicos do Hospital, porque a Ré médica estava na sala de partos.
17. O Dr. V informou que a Ré médica telefonaria depois, retornando a chamada.
18. A Ré médica não retornou o telefonema.
19. Em 24-04-2002, às 01h25, a Autora foi atendida no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Cascais pela médica e testemunha Dra. G, que verificou que aquela tinha um “corpo estranho vaginal”, que era uma “compressa”.
20. A Dra. G retirou o corpo estranho e procedeu a uma “desinfecção”.
21. A Autora não tinha infecção, ainda que a compressa pudesse vir a causá-la.
22. Ainda que já não se lembre da ocorrência e só saiba “o que está na ficha”, a Dra. G “pensa que a Autora não tinha infecção, senão teria dores intensas”.
23. A Autora ficou muito assustada e horrorizada com o facto de a Ré médica ter deixado um objecto estranho dentro do seu corpo.
24. A Autora e o seu marido comunicaram à Ré médica o sucedido.
25. A Autora ficou indignada quando a Ré Clínica lhe exigiu o pagamento da factura relativa ao parto, através da Advogada da segunda, tendo respondido a esta por carta de 26-06-2002, onde expunha os seus motivos.
26. Em 24-09-2006 a Ré Clínica ingressou em juízo com requerimento de injunção, exigindo da Autora o pagamento de € 850,00, acrescidos de juros.
27. A Autora tinha uma “cobertura de serviços de maternidade” com B Ltd., que cobria todas as “despesas médicas relacionadas com uma gravidez normal”, desde cuidados pré-natais até honorários de obstetras e enfermeiras e ainda cuidados pós-natais.
28. A Ré médica tinha um contrato de seguro de Responsabilidade Civil Profissional – Médicos, celebrado com a chamada seguradora, titulado pela apólice nº, com as seguintes coberturas: Danos Corporais, € 250.000,00; Danos Materiais, € 75.000,00; Defesa e Recurso, € 5.000,00.

Vejamos:
Insurgem-se as apelantes relativamente ao desfecho da acção, uma vez que, no seu entendimento, deveriam as mesmas ter sido absolvidas.
Para demonstrar o seu desagrado começam por invocar que a sentença partiu de pressupostos incorrectos e que o depoimento prestado pelo marido da apelada não foi isento e imparcial, o que levou a uma errónea valoração da prova.
Ora, perante o disposto no artigo 712º do CPC., a divergência quanto ao decidido pelo Tribunal a quo, na fixação da matéria de facto só assumirá relevância no Tribunal da Relação se for demonstrada, pelos meios de prova indicados pelo recorrente, a verificação de um erro da apreciação do seu valor probatório, sendo necessário, que tais elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo apelante (cfr. Ac. RL. de 26-6-03, in http://www.dgsi.pt.).
Sempre que se impugne a matéria de facto, incumbe ao recorrente observar o ónus da discriminação fáctica e probatória, ou seja, especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou do registo ou gravação realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados de modo diferente.
Porém, as recorrentes não procederam em conformidade com o disposto no art. 690º-A do CPC., não tendo procedido a uma impugnação da matéria de facto apurada, apenas tendo posto em causa a convicção do julgador no concernente à credibilidade que lhe mereceu o depoimento de uma determinada testemunha, in casu, o marido da apelada.
Nos termos constantes do art. 655º. do CPC., vigora no nosso ordenamento jurídico, o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido.
Ora, compulsado o despacho proferido relativamente à matéria de facto assente, constante de fls. 257 a 259 dos autos e que não foi alvo de qualquer reclamação, constatamos que ali foi expressamente aludido que «todas as testemunhas depuseram com isenção, mesmo M, marido da autora, que se mostrou pessoa muito recta».
A divergência aqui é meramente subjectiva, dado que as apelantes pretendiam que se tivesse optado pela sua versão dos acontecimentos, mas, a discordância com a compreensão e fundamentação do julgador, não materializa uma errónea valoração da prova.
Assim, não só não há que fazer qualquer reapreciação da prova, que não foi legalmente formulada e concretizada, como nenhum vício inquina a matéria de facto que se manterá inalterada.
Com efeito, a apreciação jurídica só poderá incidir sobre os factos assentes e supra descritos, como se fez na sentença recorrida.
Ora, resulta daqueles, nomeadamente que:
- Foi acordado entre a Autora e a Ré médica que esta assistiria ao parto daquela, quando chegasse a altura devida, no Hospital, em Lisboa.
- Mais ficou acordado que a Ré médica prestaria à Autora o apoio pós-parto.
- A Ré médica tem por hábito visitar as parturientes em casa, no dia seguinte ao parto e sempre que as parturientes não pernoitem no Hospital, de modo a facilitar-lhes a recuperação.
- A Ré médica disse à Autora e ao seu marido que passaria pela casa deles, nesse mesmo dia à noite ou no dia seguinte.
- A localização da Ré Clínica e a residência da Autora situam-se no mesmo bairro.
- A Ré médica não visitou a Autora, nem nesse dia, nem no dia seguinte.
- Também não telefonou, mas uma empregada da Ré Clínica telefonou uma vez, no dia 23, pedindo que a Autora passasse pela clínica.
- Em 24-4-2002, a autora foi atendida no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar pela médica Dra. G, que verificou que aquela tinha um corpo estranho vaginal que era uma compressa.
- Foi retirado o corpo estranho e feita uma desinfecção.
Perante tais factos foi considerado na sentença ora em apreço, a responsabilidade de ambas as recorrentes, no âmbito do disposto no art. 500º. do C. Civil, ou seja, configurou-se uma responsabilidade resultante de um deficiente cumprimento de um contrato, na modalidade de negligência profissional, como forma de imperícia, responsabilizando-se o comitente pelos actos do comissário.
Ora, a relação estabelecida entre um médico e o seu paciente configura-se como um contrato de prestação de serviços, sendo-lhe aplicáveis, em caso de inexecução ou cumprimento defeituoso, as regras relativas à responsabilidade contratual.
Sobre o médico impende a obrigação de desenvolver de forma prudente e diligente a sua leges artis.
Assim, necessário se torna a demonstração de uma omissão de intervenção ou que os meios utilizados foram deficientes no todo que comporta o dever de vinculação a que o médico se submeteu.
Na situação dos autos, foi acordado entre a médica e a apelada que assistiria ao parto quando chegasse a altura devida, bem como o apoio pós-parto.
Contudo, este último apoio foi descurado.
A médica não veio a acompanhar a sua parturiente após o nascimento do bebé, tendo vindo a surgir problemas que tiveram por efeito, a ida da apelada ao Centro Hospitalar para a reposição do seu bem-estar físico.
Houve assim, uma desconformidade objectiva entre os actos praticados e expectáveis do médico, para com a situação clínica do doente e que estariam contratualmente definidos.
Os factos apurados não inverteram a realidade ocorrida, pois, as apelantes não lograram provar que a desconformidade alegada não proveio de culpa sua, ou seja, que a conduta profissional foi a adequada e que não foi qualquer incumprimento seu que causou as lesões ocorridas na apelada.
O que é inequívoco é que as complicações surgiram depois do parto e que neste período temporal não ocorreu qualquer intervenção profissional da apelante médica.
Ainda que tenha sido executada uma prestação, não o foi nos exactos termos em que o devedor se encontrava adstrito, nomeadamente no concernente a deveres de conduta exigíveis pela necessidade de manutenção da vigilância ao doente.
Assim sendo, não merece reparo a sentença proferida quando concluiu que seria totalmente procedente a oposição que a autora deduziu ao requerimento injuntivo, bem como, quando verificou existir um cumprimento defeituoso, conducente a um verdadeiro inadimplemento.
Deste modo, há lugar à obrigação de indemnizar resultante dos danos sofridos, os quais apenas versam na acção aos de natureza não patrimonial.
Importa, pois, analisar da sua verificação e da plausibilidade ou não do seu
quantum.
Como refere o Prof. Antunes Varela, in, Das Obrigações em Geral, 5ª. ed., vol. I, pág. 492 e segs. «Para que o lesado tenha direito a indemnização, em situações de violação da lei que protege interesses alheios, necessário se torna que a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada e que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar».
O nexo de imputação do facto ao lesante, traduz a necessidade de actuação com culpa deste.
E agir com culpa significa actuar em circunstâncias que mereçam a censura do direito, ou seja, quando o agente, pela sua capacidade e perante as circunstâncias concretas, podia e devia ter agido de outro modo.
Como se diz na sentença recorrida, a ré médica actuou com manifesta culpa, na modalidade de negligência profissional, na medida em que foi encontrada uma compressa dentro do corpo da apelada e na sequência do parto ocorrido.
Ora, contrariamente ao expendido pelas apelantes, estão efectivamente reunidos todos os elementos geradores de responsabilidade civil, os quais se encontram todos espelhados na materialidade fáctica apurada e devidamente consolidada.
Assim, será à luz de tais elementos que se aferirá da justeza ou não do valor encontrado na decisão recorrida.
Os artigos 483º e 562º, ambos do Código Civil elegem o dano como pressuposto e requisito da obrigação de indemnizar fundada em responsabilidade civil, contratual ou extracontratual.
Como se alude no Ac. do STJ. de 24-5-2007, in, http://www.dgsi.pt., o dano não patrimonial não reside em factos, situações ou estados mais ou menos abstractos aptos para desencadear consequências de ordem moral ou espiritual sofridas pelo lesado, mas na efectiva verificação dessas consequências.
A avaliação da gravidade do dano tem de aferir-se segundo um padrão objectivo e para tanto, é considerável aquele que sai da mediania, que ultrapassa as fronteiras da banalidade, que espelhe um sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torna inexigível em termos de resignação.
A indemnização por danos não patrimoniais, visa compensar realmente o lesado pelo mal causado, donde resulta que o valor da indemnização deve ter um alcance significativo e não ser meramente simbólico, para assim se intentar compensar a lesão sofrida, proporcionando ao ofendido os meios económicos capazes de fazer esquecer, ou pelo menos mitigar, o abalo moral suportado (cfr. Ac. do STJ. de 29-1-2008, in, http://www.dgsi.).
Ora, no caso, sub júdice, temos que:
- No dia 23-4-2002 a autora começou a sentir dores, que se foram avolumando.
- Nesse dia, ao fim da tarde, a autora ou o seu marido telefonaram à ré médica, tendo a chamada sido atendida pelo pediatra, porque a médica estava na sala de partos.
- O pediatra informou que a ré médica telefonaria depois.
- A ré médica não retornou o telefonema.
- Em 24-4-2002, às 01h25, a autora foi atendida no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar pela médica Dra. G, que verificou que aquela tinha um corpo estranho vaginal, que era uma compressa.
- Esta médica retirou-a e procedeu a uma desinfecção.
- A autora não tinha infecção, ainda que a compressa pudesse vir a causá-la.
- A autora ficou muito assustada e horrorizada com o facto de a ré médica ter deixado um objecto estranho dentro do seu corpo.
Com efeito, os factos são eloquentes só por si, pois, não só se trata de uma situação deveras insólita, como, a mesma representa o perigo a que qualquer paciente está sujeito quando se encontra em situação de fragilidade e a precisar de cuidados médicos.
Ora, as dores que a autora sofreu já ninguém lhas retira, os incómodos de ter que se deslocar a uma Instituição Hospitalar já de noite e pouco tempo após o parto, o ser confrontada com a presença de um corpo estranho dentro de si, são aspectos suficientemente fortes para merecerem a tutela do direito.
Porém, temos que ponderar que a autora ainda não tinha infecção e que o seu sofrimento foi prontamente diagnosticado pela Dra. G, não estando em causa qualquer perigo para a vida e não tendo sido apuradas quaisquer sequelas dali advenientes.
Assim, ponderando tal contexto entendemos que a reparação no montante de € 2.500,00 será apta a minorar o sucedido, já que na reparação de tais danos não estão em causa conceitos economicistas, mas compensações imateriais ou espirituais.
Destarte, manter-se-á a sentença recorrida, apenas se alterando o valor da indemnização que se reduz, procedendo apenas, nesta parte, as conclusões do recurso apresentado.
3- Decisão:
Nos termos expostos, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação, condenando-se solidariamente as rés a pagar à autora a quantia de € 2.500,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde 12-12-2002, no mais se mantendo a sentença proferida.
Custas da apelação a cargo das recorrentes e da recorrida, na proporção do respectivo decaimento.
Lisboa, 28 de Outubro de 2008
Maria do Rosário Gonçalves
José Augusto Ramos
João Aveiro Pereira