Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4555/20.5T9LSB.L1-3
Relator: HERMENGARDA DO VALLE-FRIAS
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
SEGURANÇA SOCIAL
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
ELEMENTO DO TIPO
INVERSÃO DO TÍTULO DA POSSE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I. O crime de abuso de confiança visando a Segurança Social consuma-se com o não cumprimento de um dever, traduzido na não entrega, dolosa, do montante das contribuições deduzidas do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais, no prazo da entrega fixado para cada prestação.
As condições [objectivas] de punibilidade são elementos situados fora da definição do crime, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção antijurídica tenha consequências penais, ou seja, seja punível efectivamente.
As condições de punibilidade não integram a tipicidade, a ilicitude ou a culpa.
Por via disso, a referida notificação não tem de ter lugar em momento cronologicamente prévio à existência do facto criminoso.
II. O abuso de confiança que visa as prestações perante a Segurança social tem duas características fundamentais:
Por um lado, é um crime, no que desta afirmação se possa extrair quanto à natureza do ilícito, o que se reflecte, não apenas na necessidade da verificação dos elementos típicos e condições de punibilidade, mas também no procedimento que é o penal, e não uma qualquer mistura que fique a meio caminho entre o penal e o administrativo, também aqui com todas as consequências que se devem disto retirar.
Por outro lado, é um crime de abuso de confiança na sua materialidade, ou seja, um comportamento que constitui a inversão do título de posse relativamente, neste caso, a prestações sociais.
E isto significa que a entidade empregadora que não procedeu ao pagamento dos salários [por alguma forma], não tendo retido essa prestação dos mesmos, não cometeu o referido crime.
(sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 3ª Sec. Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.

Relatório
Pelo Juízo Local Criminal de Lisboa – J4 – foi proferida Sentença que decidiu do seguinte modo:
(…)
Pelo exposto, tendo em atenção os factos e o direito, julga-se procedente a acusação nos termos sobreditos e, consequentemente, se decide:
a) Condenar o(a) arguido(a) AA pela prática, em autoria, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. nos art.ºs 107º, n.ºs 1 e 2, e 105º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia global de € 900,00 (novecentos euros) de multa;
b) Condenar o(a)(s) arguido(a)(s)/demandado(a)(s) a pagar(em) ao(à) demandante Instituto de Segurança Social a quantia de € 38.112,93 (trinta e oito mil cento e doze euros e noventa e três cêntimos) a título de danos patrimoniais, acrescido de juros vencidos e vincendos desde a data do vencimento de cada prestação e até integral pagamento, à taxa legal, actualmente de 1% ao mês - mas sem prejuízo de subsequentes alterações a esta taxa;
c) Absolver o(a)(s) arguido(a)(s)/demandado(a)(s) do demais peticionado pelo(a) demandante;
(…)
Inconformados, arguido e demandante vieram interpor recurso.
o arguido interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…)
A – No ponto II Fundamentação, 2.1 Factos provados, 2.1.1. Referentes à acusação, a sentença recorrenda dá como provado na alínea m) o cumprimento do disposto na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT, que foi efectuada por despacho proferido em sede de audiência de julgamento após produção de prova.
B – O Tribunal a quo não encontrou qualquer elemento de prova junto pela acusação para dar como provado o facto de o recorrente ter sido notificado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do REGIT, ao declarar que a documentação junta pela acusação para a respectiva prova não é susceptível de dar como provado tal facto.
C – Para o Tribunal a quo não foi feita prova pelo Ministério Público do facto constante da acusação referente à notificação do recorrente, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT, pelo que, deveria ter dado como não provado o facto e daí retirar a consequência jurídica e não ordenar a notificação do recorrente.
D – Compete à Mta. Juiz julgar de acordo com elementos que constam de processo, de forma imparcial, aplicando a lei em função dos mesmos e não, tomar a posição de parte, colmatando as deficiências de prova dos factos da acusação, para podê-los dar como provados.
E – No caso concreto, estamos perante uma condição objectiva de punibilidade, isto é, é preciso que se verifique a notificação do arguido, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT e que no prazo ali previsto não tenha sido paga a quantia em dívida, para que se considere que o crime de abuso de confiança fiscal é punível, sem a qual não há lugar à acusação pela prática do mesmo.
F – A falta da condição objectiva de punibilidade não é uma mera irregularidade processual ou nulidade que sejam sanáveis, uma vez que se tornou um elemento essencial do tipo de crime, que importa existir ab inicio, para que o Ministério Público possa agir em consonância, sem a qual a conduta do arguido se torna inócua para efeitos de relevância criminal, uma vez que, não é susceptível de ser punida, tal como foi decidido com a fixação de jurisprudência no acórdão do STJ nº 6/2008, publicado no D.R. de 15-05-2008.
G – Uma vez que a acusação delimita o objecto do processo e a extensão da cognição por parte do Tribunal, ela delimita os elementos que são necessários à punibilidade da conduta, pelo que, obrigatoriamente, tem que incluir a condição objectiva de punibilidade sob pena de ser manifestamente infundada, vejam-se nesse sentido os acórdãos da Relação de Évora de 10-12-2013 no proc. nº 67/11.6TASRP.E1, de 24-09-2013 no proc. nº 53/11.6TASRP.E1, de 05-07-2016 no proc. nº 186/13.4TATMR.E1, de 25-10-2016 no proc. nº 650/12.2IDFAR.E1 e de 25-10-2016 no proc. nº 1221/14.4TAFAR.E1 in www.dgsi.pt.
H – Perante a constatação da falta de notificação do recorrente nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 4 do artigo 15º do RGIT, não pode o Juiz do julgamento ordená-la para lhe permitir que o recorrente seja condenado, tornando condutas inócuas por não serem puníveis, em condutas puníveis e condenatórias.
I – O Ministério Público não podia ter deduzido acusação, por não estar verificada a condição de punibilidade ou, tendo-o feito e verificando-se em julgamento que a mesma não é válida, não faz sentido que o Juiz do julgamento a valide, porque o processo não devia ter chegado a julgamento, não lhe competindo empenhar-se na verificação dos elementos do crime que lhe é submetido a julgamento, mas tão só, julgar os factos que lhe são submetidos a julgamento, com imparcialidade e isenção, nele se incluindo a condição objectiva de punibilidade.
J – Ao Juiz do julgamento compete averiguar se a acusação apresentada pelo Ministério Público é procedente ou improcedente, face à prova que lhe é apresentada, não lhe competindo transformar condutas não puníveis em condutas puníveis, para, através dessa transformação, obter a condenação do recorrente.
K – Estamos perante uma questão que obsta à apreciação do mérito da causa, uma vez que, não tendo o Ministério Público provado a verificação da condição objectiva de punibilidade prevista na alínea b) do nº 4 do artigo 105 do RGIT, não compete ao Juiz do julgamento providenciar para que a mesma seja cumprida em fase de julgamento, porque nesta data já não o pode ser.
L – Perante a prova produzida o Tribunal a quo deveria tê-la analisado e retirado as suas consequências, de forma justa, imparcial e isenta, absolvendo o recorrente, por não ter sido provado que o mesmo foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT. Veja-se, neste sentido o acórdão da Relação de Lisboa de 24-04-2018, no processo 4373/12.4ALRS.L1-5, in www.dgsi.pt.
M – O Tribunal a quo não podia ter dado como provado o facto constante da alínea m) inerido no ponto II Fundamentação, 2.1 Factos provados, 2.1.1. Referentes à acusação, por não se enquadrar no disposto no nº 2 do artigo 123º nem no nº 4 do artigo 340º do CPP, pelo que, ao decidir, como decidiu, violou o os referidos preceitos legais.
N – Deve, pois, ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão proferida, retirando-se a alínea m) dos factos provados no que respeita à acusação e aditando-se uma nova alínea c), aos factos não provados da acusação com o seguinte teor: que foi efectuada a notificação do arguido nos termos e para o efeitos do disposto na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT.
O – Em consequência com a alteração dos factos provados e não provados, absolver-se o arguido do crime de que vem acusado, por não se verificar a condição objectiva de punibilidade, com toda as consequências legais.
(…)
O Ministério Público na primeira instância respondeu ao recurso, concluindo pela improcedência do recurso, sem apresentar conclusões.
a demandante ISS interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…)
1º O objecto do recurso prende-se com a seguinte questão: O Tribunal "a quo" ter absolvido o arguido/ demandado AA, do pedido de indemnização civil deduzido pelo ora recorrente, referente aos danos causados pela retenção e não entrega das contribuições legalmente imputáveis aos trabalhadores no período de maio de 2018 e junho de 2018.
2º Fundamenta a sua posição no facto de concluir que não se logrou provar que o arguido/demandado tenha efetuado o pagamento das quantias que descontou dos ordenados à Segurança Social nos montantes que ficaram assentes.
3º Tendo por base o pedido cível assente em responsabilidade aquiliana por factos relacionados com uma acusação pública pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, conclui-se o que o arguido/demandado AA, exerceu a gerência de facto da sociedade Atlanticlion, nomeadamente, nos meses de maio de 2018 e junho de 2018, sendo responsável pelos pagamentos dos salários aos trabalhadores e membros dos órgãos estatutários e efetuado os respetivos descontos nas remunerações efetivamente pagas àqueles, conhecia a sua qualidade de gerente da Sociedade supra indicada e que atuava em nome e a favor desta na data dos factos, bem como, sabia da não entrega dos descontos à Segurança Social e desde quando.
4º Nos termos dos artigos 5.º n.ºs 2 e 3 e 6.º, ambos do Dec. Lei n.º 103/80, de 09 de maio, artigos 15.º e 18.º, ambos do Dec. Lei n.º 140-D/86, de 14 de junho, artigo 10º n.º 2 do Dec. Lei n.º 199/99, de 08 de junho e artigo 59.º n.º 1 da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, bem como, no CÓDIGO DOS REGIMES CONTRIBUTIVOS DO SISTEMA PREVIDENCIAL DE SEGURANÇA SOCIAL, o dever de pagamento das contribuições legalmente imputáveis aos trabalhadores é da entidade patronal, que, ao reter as mesmas, age como fiel depositária de valores que são pertença da Segurança Social.
5º A devedora das contribuições legalmente imputáveis aos trabalhadores é o demandado, em substituição dos devedores originários (os trabalhadores), pelo que, a não entrega de tais montantes à Segurança Social resulta, logicamente, num benefício para o mesmo, sendo ele e não outra a entidade devedora do tributo.
6º O crime de abuso de confiança contra a segurança social é um crime omissivo puro, consuma-se com a não entrega dolosa, no tempo devido, à segurança social das contribuições deduzidas pela entidade empregadora dos salários dos trabalhadores e dos corpos sociais.
7º Nos termos do artigo 107.º nº 1 do RGIT "as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estas legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidos com as penas previstas nos nºs 1 e 5 do artigo 105.º".
8º São elementos objetivos do tipo de crime; a apropriação; a prestação tributária ter sido deduzida nos termos da lei e o agente estar legalmente obrigado a entregá-la à Segurança Social.
9º A apropriação consiste na não entrega da prestação devida à Segurança Social com quem se estabelece, nos termos legais, uma relação de confiança.
10º As quantias que o arguido/demandado descontou não eram suas; estavam-lhe confiadas para serem entregues à Segurança Social e não lhe cabia (não podia) portanto decidir qual a melhor maneira de as aplicar.
11º É elemento subjetivo deste tipo de crime de abuso de confiança contra a segurança social, conhecer e querer os elementos materiais do tipo, ou seja, o dolo em qualquer uma das suas modalidades.
12º O Tribunal "a quo" entende que, pelo facto dos salários dos trabalhadores nos meses de maio de 2018 e junho de 2018 a que se reporta a acusação, não terem sido pagos, falece um dos elementos do tipo objetivo do crime de abuso de confiança contra a segurança social que é a retenção e a apropriação indevida das quantias deduzidas do valor das remunerações, sendo que, só existe crime se essa retenção e não entrega ocorrer até ao dia 15 do mês seguinte daquele a que respeitam as remunerações em causa.
13º Resulta da prova documental que as declarações de remunerações foram preenchidas e entregues mensalmente à Segurança Social.
14º Da análise crítica da prova documental e dos depoimentos prestados, resulta, pois, que sempre foi descontado nos vencimentos dos trabalhadores o montante respeitante à Segurança Social constante do mapa de remunerações junto aos autos, designadamente, das declarações de remunerações entregues pelo demandado à Segurança Social, onde o mesmo declarou ter efetuado os descontos legais, não tendo tais contribuições sido entregues ao ora recorrente.
15º No que respeita à retenção, um dos elementos do tipo objetivo do crime de abuso de confiança contra a segurança social, ela de facto existe, uma vez que, o demandado efetuou as operações materiais, de ordem contabilística, tendentes ao pagamento das contribuições devidas à Segurança Social sem todavia acompanharem as respetivas declarações dos meios de pagamento, razão pela qual, o crime de abuso de confiança contra a segurança social se verifica.
16º O arguido/demandado na qualidade de gerente da sociedade Atlanticlion Employment Supply - Trabalho Temporário, Lda., nomeadamente, no período compreendido entre maio de 2018 e junho de 2018, na sequência de desígnio por si formulado, não entregou as contribuições descontadas aos salários dos trabalhadores que mantinha ao seu serviço e que deveriam ser entregues à Segurança Social, apesar de tais quantias, terem sido deduzidas dos vencimentos pagos pela sociedade aos trabalhadores e aos corpos gerentes da mesma, passando a dispor desses montantes, que fez seus, não obstante saber que tais quantias pertenciam à Segurança Social.
17º Não parece razoável face às regras da experiência comum que o arguido/demandado AA, não soubesse que essas importâncias, esses fluxos financeiros não estavam a ser debitados da sociedade Atlanticlion Employment Supply - Trabalho Temporário, Lda.
18º E, ainda que se apurasse que os salários não tivessem sido efetivamente pagos, tal consubstanciaria de igual modo a prática pelo arguido/demandado do crime de abuso de confiança contra a segurança social, porquanto, o artigo 105.º n.º 1 do RGIT ao estabelecer que "quem não entregar à administração..." deixa claro que, o que conta, é a não entrega dos meios de pagamento que o agente declara ter retido no envio das declarações à Segurança Social, não importando apurar, se houve ou não pagamento efetivo das remunerações, pois, não deixa de haver apropriação, não porque o agente faz sua quantia que recebeu, mas porque faz sua, ou continua a fazer sua quantia que deveria sair do seu património e não sai.
19º O Tribunal "a quo" devia ter dado como provado que as quantias descontadas dos salários dos trabalhadores referentes ao período de maio de 2018 e junho de 2018, pertencentes à Segurança Social, ficaram no património do arguido/demandado AA e foram utilizadas em seu proveito, em detrimento daquele organismo e que, em consequência necessária e direta da conduta do demandado, o ora recorrente sofreu um prejuízo patrimonial no montante de € 57.348,66.
20º De acordo com as regras da experiência comum, in casu, verificam-se os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, conforme estabelecido pelo artigo 483.º do Código Civil, preceito que consagra os respetivos princípios gerais e que dispõe o seguinte: "Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado por danos resultantes da violação".
21º São pressupostos da responsabilidade civil extracontratual a existência de um facto humano voluntário, a qualificação desse facto como ilícito, a imputação desse facto ao agente, a título de dolo ou negligência, a existência de um dano e um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
22º No caso dos autos, não se suscitam dúvidas que existe obrigação de indemnizar, uma vez que, estão verificados os respetivos pressupostos.
23º Resultou provado que no período compreendido entre maio de 2018 e junho de 2018, a sociedade, atuando através do arguido/demandado AA, entregou as declarações de remunerações dos trabalhadores ao seu serviço e dos membros dos respetivos órgãos estatutários, tendo procedido ao desconto das contribuições devidas à Segurança Social pelos referidos trabalhadores e membros dos órgãos estatutários, nas remunerações efetivamente pagas aos mesmos em tais períodos, bem como, procedeu aos respetivos descontos das contribuições devidas à Segurança Social nos salários processados, não tendo, nesse período, procedido à entrega ao demandante dos montantes relativos aos descontos efetuados, o que deveria ter sido feito, nos termos legais, entre o dia 10 e o dia 20 do mês seguinte àquele a que as contribuições respeitam, nem tendo regularizado a sua situação nos 90 dias posteriores ao mencionado prazo legal.
24º A responsabilidade civil pressupõe a existência de um dano reparável, que no caso vertente se concretizou na não entrada dos fundos contributivos devidos pelos arguidos, nos cofres da Segurança Social. A indemnização pelo dano sofrido com o não pagamento consiste, precisamente, na reposição das contribuições não entregues, acrescida de juros de mora respetivos.
25º A indemnização pelo dano sofrido com o não pagamento consiste, precisamente, na reposição das contribuições não entregues, acrescida dos respetivos juros de mora.
26º Acresce que, o nexo de causalidade entre a atuação do arguido/demandado e os danos se encontra preenchido, já que, os danos patrimoniais advieram da omissão deste ao não entregar os montantes deduzidos dos vencimentos dos trabalhadores.
27º Da mesma forma, a circunstância do Tribunal ter absolvido o arguido do pagamento correspondente ao pagamento dos salários referente ao período compreendido entre maio de 2018 e junho de 2018, nem por isso se encontrava arredada a possibilidade de ressarcimento dos danos na acção penal, atento o disposto no artigo 377.º n.º 1 do CPP, o qual prevê que:
"A sentença ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil, sempre que o pedido respectivo vier a reveiar-se fundado".
28º Face ao artigo 377º n.º 1 do CPP, verifica-se a autonomia entre a responsabilidade civil e a responsabilidade criminal, mas isso não impede que, mesmo no caso de absolvição da responsabilidade criminal, o Tribunal não conheça da responsabilidade civil, que tem necessariamente a mesma causa de pedir, ou seja, os mesmos factos que são também pressupostos da responsabilidade criminal.
29º Esta responsabilidade civil, que poderá exclusivamente ser apreciada em processo penal, se o pedido for aí deduzido, refere-se à que emerge da violação do direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, com dolo ou mera culpa e da qual resultem danos, ficando assim, excluída a responsabilidade contratual (artigo 483.º do C.C.).
30º A sentença ora recorrida viola ainda o assento n.º 7/99 do STJ, que fixou a seguinte jurisprudência:
" Se em processo penal for deduzido pedido eivei, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, nº 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual " - D,R. I Série, nº 179, de 03-08-99.
31º Depois do assento nº 7/99, ficou claro que sendo o arguido absolvido do crime só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade contratual, uma vez que só pode ser condenado se resultar que os factos, fundamento da acusação crime, como causa de pedir, fundamentam o direito à indemnização por perdas e danos, nos termos do Artigo 483.º, do Código Civil.
32º Saliente-se que no processo penal deve ser arbitrada indemnização não só quando os factos preenchem os requisitos da responsabilidade criminal, mas ainda quando, não existindo responsabilidade criminal, os factos preenchem os requisitos da responsabilidade civil conexa, de âmbito menor.
33º A indemnização nos presentes autos, não assenta na responsabilidade contratual, mas, como acima se evidenciou, nos mesmos pressupostos da responsabilidade penal (acto ilícito) ainda que de âmbito menor, por prescindir apenas do pressuposto (dolo) bastando para a verificação da responsabilidade civil a mera culpa.
34º Como decorre do exposto, a douta sentença recorrida deve ser revogada na parte em que o tribunal "a quo" decidiu absolver o arguido AA, do pedido de indemnização civil deduzido pelo ora recorrente, referente aos danos causados pela retenção e não entrega das contribuições legalmente imputáveis aos trabalhadores no período de maio de 2018 e iunho de 2018, devendo ser substituída por outra, na qual o mencionado arguido/demandado, seja condenado ao pagamento das contribuições não entregues à Segurança Social, referentes ao período compreendido entre setembro de 2017 a junho de 2018, no montante de € 57.348,66, acrescida dos respetivos juros de mora.
35º Assim, salvo o devido respeito e melhor opinião, na perspetiva do ora recorrente, encontram-se inobservados na douta sentença recorrida proferida pelo Tribunal "a quo" por errada interpretação e aplicação da lei os seguintes preceitos legais: artigos 105.º e 107.º ambos do R.GI.T. (aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05.06); artigo 483.º do Código Civil; artigo 377.º nº 1 do Código de Processo Penal e Assento nº 7/99 do STJ.
Nestes termos, em face da motivação e das conclusões atrás enunciadas, deve ser dado provimento ao presente recurso, e em consequência, ser o arguido/demandado AA, condenado no pagamento das contribuições devidas à Segurança Social, referentes ao período compreendido entre setembro de 2017 a junho de 2018, no montante de € 57.348,66, acrescida dos respetivos juros de mora, assim se fazendo por VOSSAS EXCELÊNCIAS, serena, sã e objectiva
(…)
Não houve resposta a este recurso.
***
Os recursos foram admitidos, com forma e efeito devidos.
Uma vez remetidos a este Tribunal, e apenas relativamente ao recurso do arguido o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a Conferência.
***
Objecto dos recursos
Resulta do disposto conjugadamente nos arts. 402º, 403º e 412º nº 1 do Cód. Proc. Penal que o poder de cognição do Tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o Tribunal está ainda obrigado a decidir todas as questões que sejam de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem a decisão, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 daquele diploma, e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do mesmo Cód. Proc. Penal, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito, tal como se assentou no Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995 [DR, Iª Série - A de 28.12.1995] e no Acórdão para Uniformização de Jurisprudência nº 10/2005, de 20.10.2005 [DR, Iª Série - A de 07.12.2005].
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º, por remissão do art.º 424º, nº 2, ambos do mesmo Cód. Proc. Penal, resulta ainda que o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso preferencialmente pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão (art.º 379º do citado diploma legal);
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela chamada impugnação alargada, se deduzida [art.º 412º], a que se segue o conhecimento dos vícios enumerados no art.º 410º nº 2 sempre do mesmo diploma legal.
Finalmente, as questões relativas à matéria de direito.
Vejamos, então.
recurso do arguido
O arguido, nas conclusões do recurso, fixa o objecto de apreciação requerida nas seguintes questões:
- o Tribunal a quo, não tendo encontrado demonstração no processo da notificação do arguido nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT, ordenou essa notificação após a produção de prova em julgamento, violando o princípio da imparcialidade, ao invés de ter-se limitado a proferir decisão que desse por verificada a falta de condição de punibilidade e consequente absolvição do arguido, pelo que, ao dar esse facto como provado, condenando o arguido, incorreu em nulidade da decisão que importa revogar e absolver o arguido.
recurso do ISS
A Segurança Social restringe o recurso à seguinte questão:
Ao ter absolvido o arguido/demandado do pedido de indemnização civil deduzido referente aos danos causados pela retenção e não entrega das contribuições legalmente imputáveis aos trabalhadores no período de maio de 2018 e junho de 2018, o Tribunal a quo decidiu mal, uma vez que a prova testemunhal e documental permitem provar que o arguido, na qualidade que exercia na empresa, procedeu às retenções nos salários e não entregou à SS essas quantias, para além de que sempre devia entregá-las de qualquer modo por ser o responsável dessa obrigação.
***
Fundamentação
O Tribunal recorrido fixou a matéria de facto do seguinte modo:
(…)
2.1. Factos provados:
2.1.1. Referentes à acusação:
Discutida a causa e produzida a prova, resultam assentes os seguintes factos:
a) A sociedade Atlanticlion Employment Supply - Trabalho Temporário, Lda. era uma sociedade que se dedicava à cedência temporária de trabalhadores para ocupação por utilizadores e actividades de selecção, orientação e formação profissional, consultoria e gestão de recursos humanos;
b) O arguido foi gerente dessa sociedade desde a sua constituição em 10.10.2014, sendo-o sozinho a partir de 12.08.2016, e até a mesma ser declarada insolvente em 29.04.2019;
c) No exercício dessa actividade, teve a sociedade sob a sua dependência laboral trabalhadores, recebendo estes o seu ordenado nos períodos e termos indicados na alínea i), estando sujeita à retenção na fonte das contribuições por si devidas à Segurança Social, calculadas por incidência de percentagem fixadas na lei sobre as remunerações auferidas;
d) Das remunerações por si pagas a esses trabalhadores e gerente a sociedade efectuou os descontos referentes às contribuições pelos mesmos devidas à Segurança Social nos termos estipulados;
e) Contribuições essas que deveriam ser entregues até ao dia 15 do mês seguinte àqueles a que dissessem respeito;
f) A sociedade entregou à Segurança Social as declarações de remunerações dos trabalhadores e gerente ao seu serviço;
g) Porém, deixou de cumprir a obrigação de entregar à Segurança Social tais contribuições, retidas mensalmente das remunerações pagas aos trabalhadores e gerente;
h) Passando a sociedade a usar essas disponibilidades monetárias na prossecução de outros interesses da mesma;
i) Durante os períodos seguidamente referidos as quantias que foram descontadas dos ordenados dos trabalhadores por conta de outrem, bem como os respectivos montantes não entregues, foram as seguintes:
ANO/MÊS Trabalhador(es)
Novembro de 2017 ---------- € 9.443,16
Dezembro de 2017 ---------- € 8.543,75
Janeiro de 2018 -------------- € 6.329,89
Fevereiro de 2018 ----------- € 4.687,53
Março de 2018 --------------- € 4.197,67
Abril de 2018 ----------------- € 4.910,93
j) No total, nesse período, reteve o quantitativo total de € 38.112,93;
k) Sabia o arguido que a sociedade estava obrigada a entregar à Segurança Social as quantias monetárias resultantes dos descontos efectuados nos ordenados dos seus empregados, até ao dia 15 do mês seguinte àqueles a que se referiam;
l) Todavia, não entregou dentro dos respectivos prazos legais as quantias acima indicadas, nem nos 90 dias subsequentes;
m) Após ter sido notificado para tanto o arguido não efectuou no prazo de 30 dias o respectivo pagamento integral dessas quantias em falta, acrescidas dos juros respectivos;
n) Agiu o arguido livre, deliberada e conscientemente, actuando nesse período em nome e interesse da sociedade, com vista a fazer ingressar na mesma as quantias monetárias que sabia não lhes pertencerem e que deveriam ser entregues à Segurança Social no prazo legal;
o) Bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei;
p) A sociedade sofreu dificuldades económicas no período em causa;
q) O arguido não tem antecedentes criminais conhecidos.
2.1.2. Referentes ao pedido cível:
Além dos que ficaram assentes referentes à acusação, nenhum. 2.1.3. Referentes à contestação:
Além dos que ficaram assentes referentes à acusação e pedido cível, provou-se que:
a) A sociedade Atlanticlion fornecia trabalhadores para a sociedade Atlanticeagle;
b) A sociedade Atlanticlion foi detentor de garantia no valor de € 71.417,50, que foi accionada e entregue ao ISS;
c) A sociedade Atlanticeagle estava a construir um navio para o governo de Timor Lorosae;
d) O governo de Timor Lorosae procedeu a pagamento de ordenados de trabalhadores da sociedade Atlanticlion.
2.2. Factos não provados:
2.2.1. Referentes à acusação: Com relevância para a decisão da causa, não se provou que:
a) Durante os períodos seguidamente referidos as quantias que foram descontadas dos ordenados dos trabalhadores por conta de outrem, bem como os respectivos montantes não entregues, foram as seguintes:
ANO/MÊS Trabalhador(es)
Setembro de 2017 -------- € 10.983,75
Outubro de 2017 ---------- € 10.447,22
Novembro de 2017 ------- € 10.490,69
Maio de 2018 ------------- € 4.957,42
Junho de 2018 ----------- € 3.179,48
b) No total, no período em causa, foi retido o quantitativo total de € 68.728,33.
2.2.2. Referentes ao pedido cível:
Com relevância para a decisão da causa, além dos que ficaram não assentes referentes à acusação, nenhum. 2.2.3.
Referentes à contestação:
Com relevância para a decisão da causa, não se provou que:
a) A sociedade Atlanticlion não pagou ordenados aos seus empregados entre Setembro de 2017 e Junho de 2018;
b) Foi de Setembro de 2017 a Junho de 2018 que o governo de Timor Lorosae efectuou os pagamentos.
(…)
O Tribunal recorrido fundamentou a decisão de facto do seguinte modo1:
(…)
A convicção do tribunal quanto à factualidade provada assentou, desde logo, (tendo o arguido declarado não ser gerente de facto da sociedade, mas o “CEO BB”), nos depoimentos das testemunhas CC, DD e BB, que depuseram de forma clara e coerente, merecendo credibilidade.
Assim, a testemunha CC (actualmente com 67 anos) confirmou ser a viúva do outro gerente falecido em 2016, GG, e que quando o mesmo faleceu o arguido tratou de criar um cargo para si na sociedade, onde a mesma nunca “exerceu”, mas onde recebeu sempre os ordenados de 2016 até 2018, sendo os recibos que tinha conformes ao que recebeu efectivamente; a testemunha DD, que trabalhava para a sociedade sendo gestora de clientes e processando ordenados, confirmou que respondia directamente a BB, que era quem estava diariamente nas instalações, mas este não era o gerente, era-o o arguido, sendo que celebrou o contrato de trabalho na presença dos dois; e a testemunha BB, que confirmou que era o director-geral, mas que reportava ao arguido (e a GG enquanto vivo), o qual mandava na sociedade, tendo sido quem o contratou.
Ora, perante esta prova é manifesta a falta à verdade do arguido, inverosimilhança que resulta desde logo das suas próprias declarações, pois que não soube/quis sequer, na sua versão, explicar porque razão foi “afastado” da gerência dessa sociedade.
No que tange ao pagamento de ordenados, resulta o seu pagamento por parte da sociedade dos depoimentos das testemunhas CC, que os assegurou pagos até 2018 sem saber concretizar o último mês, DD, que os referiu pagos até Agosto de 2018, mas sem saber assegurar se recebeu os de Junho, Julho e Agosto de 2018, e BB que situou o recebimento dos seus ordenados até Jungo de 2018. Mas resulta também das testemunhas II, que trabalhou noutra sociedade pertença dos “mesmos patrões”, a Atlanticeagle, e que disse ter sido das primeiras empregadas a “suspender” o contrato de trabalho em Janeiro de 2018, não sabendo o que os demais receberam, a testemunha JJ que trabalhos na sociedade  Atlanticeagle e disse ter recebido até “por volta de Maio de 2018” e a testemunha KK que também trabalhou na sociedade Atlanticeagle e confirmou ter ido para Inglaterra e ter recebido os seus ordenados, que assim foram devidos e pagos até Abril de 2018.
Ora, perante esta prova, conjugada com a análise crítica da documentação infra, não podem subsistir dúvidas que, pelo menos, até Abril de 2018, os ordenados da sociedade Atlanticlion foram pagos, sendo que quanto aos meses seguintes, de Maio e, até, Junho de 2018, embora seja de crer tal ter ainda sucedido, por aplicação do princípio in dubio pro reo temos o pagamento desses ordenados (de Maio e Junho) por não assente.
De referir que estas testemunhas, especialmente as testemunhas JJ e KK (mas até já o arguido o havia mencionado), referiram que em 2018 os pagamentos dos ordenados foram efectuados pelo governo de Timor Lorosae nos termos vertidos na factualidade assente, nomeadamente também quanto à sociedade Atlanticlion.
Na verdade, tal pagamento por ter sido efectuado por terceira entidade nada acrescenta aos autos, pois que resulta da prova que o que foi pago foram os ordenados (na parte que nos interessa, dos empregados da sociedade Atlanticlion), não foi uma oferta de dinheiros efectuada aleatoriamente por uma terceira entidade, o próprio arguido o admitiu.
Portanto, resulta das regras da experiência comum que o dinheiro vir directamente dessa entidade para pagar ordenados da sociedade Atlanticlion decorreu de acordo com a sociedade “patroa”, sendo o mesmo que ser a “patroa” a fazer o depósito, se assim não fosse a sociedade Atlanticlion não teria sequer assumido que os ordenados foram pagos (como o arguido declarou) e não teria enviado a respectiva declaração para o ISS (conforme a testemunha NN explicou ter sido feito e consta da documentação junta nos termos infra).
Na verdade, a entender-se diversamente ter-se-ia encontrado a solução ideal para não pagar contribuições como as em causa… bastava “acordar” com as sociedades devedoras que em vez de pagarem as suas dívidas pagavam os ordenados (líquidos) dos trabalhadores e, assim, nenhuma contribuição seria devida e a sociedade “patroa” continuava a laborar e com empregados com ordenados pagos! Ou seja, na verdade o que essa terceira entidade se limitou a fazer foi a substituir a sociedade Atlanticlion em pagamentos, por acaso (ou não) os ordenados líquidos em dívida, o que a sociedade Atlanticlion aceitou (o arguido disse-o, assumindo o pagamento dos ordenados), podendo não o ter feito e, se havia dinheiro para tantos meses de ordenados, bastava pagar alguns meses menos (em termos líquidos) e pagar com esse dinheiro sobrante do total usado as contribuições, opção que não foi tomada.
Concluindo, não podem subsistir dúvidas que a sociedade Atlanticlion pagou os ordenados vertidos na factualidade assente, retendo aquelas contribuições.
Com efeito, tal resulta também, além de na análise crítica da documentação infra mencionada, dos depoimentos da testemunha NN, assistente técnica do ISS, que confirmou o recebimento no ISS das declarações por parte da sociedade Atlanticlion relativamente aos meses constantes da acusação e a falta de pagamento pela sociedade desses valores excepto quanto aos meses de Setembro e Outubro e parte de Novembro de 2017, explicando que foi accionada a garantia existente e que foi o seu valor imputado nos meses mais antigos e juros, inclusive esses, ficando em dívida o remanescente de Novembro de 2017 e subsequentes meses.
Ora, se é certo que pretende o arguido alterar a imputação efectuada pelo ISS, fazendo contas e até defendendo dever serem-lhe devolvidos valores, argumentando juridicamente, a verdade é que esta autoridade administrativa fez uma imputação do montante da garantia (garantia existente nos termos do art.º 190º do Código de Trabalho), nomeadamente nos termos esclarecidos na informação de fls. 617, e essa imputação não foi posta em causa nas instâncias competentes por quem quer que seja (aliás, a ter sido instaurado o competente processo seria a sua existência até fundamento para suspensão dos presentes autos). O arguido, aliás, sabia da imputação, insistindo apenas que não concorda com a mesma quando confrontado com a acusação dos autos, mas conformando-se com ela em termos administrativos.
Ora, no que tange aos valores concretos em causa, embora o quadro (entretanto actualizado com os pagamentos mencionados) de fls. 33, 413 a 417, 467 a 471 e 500 seja sistemático e informativo, não tem, por si só, a virtualidade de comprovar que, efectivamente, durante os períodos ali assinalados foram, além de processados, pagos os ordenados aos trabalhadores, bem como que foi em consequência efectuada a retenção, pela entidade patronal, das contribuições devidas ao ISS, mas conjugando-o com a prova supra analisada e a documentação infra mencionada, não podem quanto aos mesmos subsistir qualquer dúvida.
Termos em que a factualidade assente, por seu lado, resulta a mesma também da análise crítica da certidão da Conservatória de Registo Comercial e certidão permanente referente à sociedade Atlanticlion de fls. 7 a 10 e 34 a 42, dos extractos globais da declaração de remunerações de fls. 57 a 79, dos extractos de remuneração de fls. 180 a 333, das relações de remunerações, declarações de retenção e recibos de fls. 91 a 107, 125 a 130 e 134 a 139, do anúncio de insolvência de fls. 367 a 368, da declaração do administrador de insolvência de fls. 140 a 141 e da informação referente ao fundo de garantia salarial de fls. 142 a 147, 174 a 176, 560 e 595 a 599.
A notificação efectuada nos termos do disposto no art.º 105º, n.º 4, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias resulta de fls. 652 a 653 (cuja tempestividade e fundamento legal foi apreciado no despacho proferido que a determinou de fls. 652 a 653), resultando a falta de qualquer pagamento posterior da informação do ISS de fls. 663 a 664 e da inexistência de qualquer pagamento nestes autos (aliás, apesar da habitual falta de colaboração do ISS, e a favor do arguido, permitiu-se ao mesmo proceder ao pagamento nestes autos além do prazo de 30 dias, não tendo sido efectuado qualquer pagamento, nem mesmo das contribuições).
Os factos referentes ao elemento subjectivo resultaram provados também com base nas regras da experiência comum, pois que pertencendo ao foro íntimo do sujeito, o seu apuramento ter-se-á de apreender do contexto da acção desenvolvida.
Os factos atinentes às condições pessoais e à situação económica do(a)(s) arguido(a)(s) provaram-se com base nas suas declarações.
Finalmente, os antecedentes criminais do(a)(s) arguido(a)(s) encontram-se certificados nos autos.
*
Quanto à demais factualidade não assente, ou a mesma se encontra em contradição com aquela que ficou assente ou não foi produzida qualquer prova ou esta foi julgada insuficiente.
*
Consigna-se que não se fez constar dos factos assentes e não assentes factos conclusivos, bem como matéria irrelevante para a boa decisão da causa ou meramente instrumental para a mesma.
(…)
Vejamos, então, na perspectiva desta Relação se merece acolhimento a pretensão do arguido recorrente.
I. RECURSO DO ARGUIDO
Atenta a forma como foi suscitada a questão pelo recorrente arguido, impõem-se alguns esclarecimentos.
O tipo legal em causa – abuso de confiança visando a Segurança Social, por que foi condenado o arguido, encontra-se previsto no art.º 107º do RGIT2 e diz o seguinte:

Artigo 107 – Abuso de confiança contra a segurança social
1 - As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º
2 - É aplicável o disposto nos n.ºs 4 e 7 do artigo 105.º
_______________________________________________________

O que se prevê aqui é, como tal, que incorre na prática deste crime quem tenha deduzido as referidas verbas do salário do empregado, correspondentes a contribuições devidas, não as tendo entregue, designadamente, à Segurança Social. E diz-se, ainda, que as penas são as previstas no art.º 105º [nº 1 e 5], sendo ainda aplicável o nº 7 daquele preceito.
E o art.º 105º, por sua vez3:

Artigo 105º - Abuso de confiança
1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6 - (Revogado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro).
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.
_______________________________________________________

Como conseguimos perceber do que antecede, estamos perante um tipo legal anómalo, para o distinguir da normalidade, que se desdobra a dois tempos, sendo que o art.º 107º parece prever a chamada previsão normativa, deixando ao art.º 105º a estatuição normativa relativa àquele. Portanto, às avessas.
No entanto, não é realmente assim tão linear e nem tão relevante, senão na medida em que é a forma escolhida que permite perceber as alterações por que passou a norma.
Há, em primeiro lugar, que ter atenção à natureza das infracções aqui em causa, sendo manifesto, e resultando isso da leitura atenta de todo o RGIT, que a preocupação do legislador foi, sobretudo, a preservação da integridade financeira do Estado, seja, a recuperação de quantias devidas a título de impostos e não entregues, que se sobrepôs à dimensão ética-penal da censura para efeitos de prevenção de futuros crimes. A prevenção fica entregue, sobretudo, às decorrências da condenação e não propriamente das penas que são, genericamente, benévolas.
Dizendo de outro modo, fica claro que o que se pretende é o encaixe financeiro do Estado relativamente às quantias sonegadas4.
E isto tem diversas implicações. Desde logo, a da possibilidade de alteração do diploma consoante o interesse imediato [financeiro] do Estado que é, como se percebe, matéria muito chegada àquela que nos cumpre resolver e que se perfila anualmente, sobretudo, nas linhas traçadas pelo orçamento do Estado.
De facto, a norma que previa inicialmente o tipo legal aqui em causa, pois que, como diz Tiago Milheiro5, «(…) nos crimes (…) de abuso de confiança contra a segurança social, fruto das alterações introduzidas pelo artigo 95.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, que aprovou o orçamento de Estado para 2007, e da discussão que se despoletou, a punibilidade foi alvo de atenção, principalmente pela jurisprudência, dando origem a diversas decisões judiciais.».
Ora, na alteração assim introduzida decorrem também da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, que aprovou o orçamento para o ano de 2009, impôs-se o limite de 7.500€ a atender para efeitos do nº 1 do art.º 105º e que, como sabemos, se vem debatendo se se aplica igualmente ao abuso de confiança visando a Segurança Social.
A redacção do referido nº 4 [do art.º 105º transcrito] resulta do art.º 95º da Lei nº 53‑A/2006, de 29.12 que aprovou o Orçamento do Estado para 20076.
Assim, esta Lei, não apenas converteu a con­dição que constava do corpo desse número em alínea a), como inseriu uma nova alínea b), nos termos da qual os factos também só seriam puníveis se a prestação comunicada à administração tributá­ria através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
Como refere a decisão recorrida, introdução desta nova condição suscitou divergências doutrinais e jurispru­denciais de tal modo notadas que foi interposto recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, vindo o Supremo Tribunal de Justiça7 a fixá-la do seguinte modo:
A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53‑A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em con­sequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT).
Este acórdão do Supremo deixou muito claro o entendimento segundo o qual o agente, arguido, deve ser notificado nos termos e para os efeitos da alínea b), nº 4, do art.º 105º do RGIT sempre que tenha cumprido a obrigação declarativa a que estava obrigado para efeitos fiscais.
O crime de abuso de confiança tem como elemento implícito a apropriação das contribuições, que são efectivamente “deduzidas” nas remunerações pagas dos trabalhadores pela entidade empregadora.
Verificada essa circunstância pela investigação, atentos os demais pressupostos, desde logo o que constava da investigação relativamente à sua posição na sociedade também investigada, foi ordenada a referida notificação ao arguido [fls. 392 e 394].
Ao que o OPC a quem foi deferido o cumprimento respondeu, a fls. 398, aquando da audição do arguido, o que se documentou a fls. 398 [veja-se fls. 430], na presença do respectivo advogado, em que o arguido foi informado da sua qualidade nos autos relativamente à referida empresa também..., como consta de fls. 398 verso.
Ora, nessa ocasião, o arguido foi devidamente informado sobre o teor da notificação que não assinou, tendo, no entanto, assinado o resto do expediente [como consta de fls. 430], mas dali resultando que entendeu perfeitamente do que se tratava, tanto assim que, baralhando o OPC, resolveu dizer que não assinava a referida notificação porque fora substituído pelo administrador de insolvência enquanto legal representante daquela, solicitando mesmo que fosse formalizada uma notificação nesses termos.
Tudo isto documenta o agente da GNR no referido auto (31.01.2022), sendo certo que este não podia saber elementos da investigação que, aliás, nem estava entregue à referida GNR.
Portanto, vamos lá falar das coisas com a seriedade das coisas sérias.
O arguido sabe perfeitamente bem, e nem podia deixar de saber, que o administrador de insolvência foi nomeado em 2019, conforme apresentação registral dessa data (fls. 467 e seguintes), sendo as dívidas para com a Segurança Social discutidas neste processo são reportadas a 2017 e 2018.
Assim, não só percebeu o teor do que lhe estava a ser transmitido na notificação como, ciente de que o OPC não estava informado sobre os factos e acederia, o informou de uma circunstância que impedia a notificação de ser feita. O que fez, aliás, na presença do seu advogado, como ali também fica documentado.
Portanto, o Tribunal a quo, em vista disto, e caso entendesse assim e fundamentasse, podia ter considerado devidamente feita a notificação, inclusivamente por considerar que o seu propósito [dar a conhecer uma realidade processual ao visado] tinha-se satisfeito com o que documentou o OPC no referido auto.
No entanto, assim não entendeu o juiz a quo.
Esta decisão não mereceu qualquer oposição, sendo mesmo secundada pela demandante, o Tribunal a quo considerou que havia dúvidas sobre se a notificação fora feita e ordenou a mesma em audiência [veja-se e oiça-se a respectiva acta].
Na sequência do que o arguido foi notificado e nada veio pagar, nem no prazo conferido e nem no seu excesso.
Pelo contrário, veio com um requerimento ao processo, na sequência da informação pedida à Segurança Social, em que se insurge contra o facto de a garantia ter sido accionada para liquidar, nas suas palavras, os juros da dívida que estava acumulada perante a Segurança Social.
Questão essa que abordaremos adiante.
Ora, nada tendo sido pago, mais uma vez, no prazo constante da notificação, e encontrando-se perfeita a notificação, estava cumprida a formalidade que constitui condição de punibilidade.
Entendendo assim o Tribunal a quo.
Mas será mesmo assim?
O crime de abuso de confiança visando a Segurança Social consuma-se com o não cumprimento de um dever, traduzido na não entrega, dolosa, do montante das contribuições deduzidas do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais, no prazo da entrega fixado para cada prestação.
Já vimos isso e já ficou resumidamente esclarecido.
Sendo um crime de omissão pura, pese embora exija num primeiro momento um facere, traduzido na dedução e retenção das contribuições, fica perfeito quando tais elementos se verificam, uma vez que é aquele momento que determina a lesão dos bens jurídicos tutelados pela norma.
Temos, como tal, logo antes da referida notificação, uma acção típica, ilícita e culposa [quer descrita pela acusação ou decisão instrutória em indiciação, quer assumida pela sentença, consoante a fase do processo a considerar].
Neste sentido, existindo tais elementos, o crime está perfeito e verificado.
E não perde essa perfeição pela necessidade de coexistência das condições objectivas de punibilidade, mais concretamente do decurso de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e do prazo de 30 dias após comunicação para o efeito, exigidas nas als a) e b), nº 4 do art.º 105º do RGIT, aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, por força da remissão do art.º 107º, nº 2 do mesmo diploma, como vimos.
Isto porque, como também sabemos, as condições [objectivas] de punibilidade são elementos situados fora da definição do crime, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção antijurídica tenha consequências penais, ou seja, seja punível efectivamente.
A notificação, sendo condição de punibilidade, portanto, entra na equação em momento posterior à verificação dos elementos constitutivos do tipo.
As condições de punibilidade não integram a tipicidade, a ilicitude ou a culpa.
Por via disso, também não sufragamos o entendimento de que a referida notificação tem e deve ter lugar em momento lógica e cronologicamente prévio à existência do facto criminoso.
Ora, a ser assim, como nos parece de maior acerto, e atento a que o art.º 105º, nº 4, al. b), do RGIT não atribuir a competência para ordenar o seu cumprimento a uma concreta entidade, a notificação pode ser ordenada em fase posterior ao inquérito/instrução, sendo, como tal, ordenada pela entidade que verificar o seu não cumprimento ou conformidade.
Nem outra coisa resulta da lei, uma vez que se previu inicialmente a possibilidade de ser determinada a notificação nesses termos, sem que o legislador impusesse um termo final a essa possibilidade ou lhe determinasse transitoriedade.
O Tribunal Constitucional, pronunciou-se sobre esta questão8:
(…)
Quando o Ministério Público, na fase do inquérito, determina essa notificação, ele visa, não a prossecução da tarefa de cobrança de receitas típica da Administração Tributária, mas o apuramento, que lhe incumbe enquanto titular da acção penal, da verificação dos requisitos que o habilitem a tomar uma decisão de acusação ou de não acusação. Similarmente, quando o juiz de instrução ou o juiz do julgamento determina idêntica notificação, ambos se limitam a praticar um acto instrumental necessário à comprovação da existência, ou não, de uma condição de punibilidade, que determinará a opção entre pronúncia ou não pronúncia e entre condenação ou absolvição (ou arquivamento). Isto é: em todas essas hipóteses, a determinação da notificação pelo Ministério Público ou por magistrados judiciais insere-se perfeitamente dentro das atribuições constitucionais dessas magistraturas (exercício da acção penal e administração da justiça, respectivamente), sem qualquer invasão da reserva da Administração, nem, consequentemente, com violação do princípio da separação de poderes, invocado pelo recorrente (quanto à alegada violação do “princípio da legalidade”, torna-se impossível proceder à sua apreciação, dada a absoluta falta de substanciação das razões por que o recorrente entende ocorrer tal violação, sendo, aliás, incerto o sentido que ele pretende atribuir a tal princípio, neste contexto).
(…)
E nem outro entendimento faria sentido.
Como se disse antes, e se tivermos atenção à chamada teoria do crime e a sua evolução até aos dias de hoje, percebemos que as condições [objectivas] de punibilidade se encontram fora dos elementos típicos essenciais.
O que também entende o legislador quando, dando por verificado o crime, nas duas alterações introduzidas e acima citadas, deixa claro que o que se pretende é dar, como também diz a decisão recorrida, uma segunda oportunidade ao infractor para pagar o que declarou e não entregou.
A infracção em causa está verificada com o termo do prazo regular para entrega das prestações.
Recordemos os factos provados:
(…)
c) No exercício dessa actividade, teve a sociedade sob a sua dependência laboral trabalhadores, recebendo estes o seu ordenado nos períodos e termos indicados na alínea i), estando sujeita à retenção na fonte das contribuições por si devidas à Segurança Social, calculadas por incidência de percentagem fixadas na lei sobre as remunerações auferidas;
d) Das remunerações por si pagas a esses trabalhadores e gerente a sociedade efectuou os descontos referentes às contribuições pelos mesmos devidas à Segurança Social nos termos estipulados;
e) Contribuições essas que deveriam ser entregues até ao dia 15 do mês seguinte àqueles a que dissessem respeito;
f) A sociedade entregou à Segurança Social as declarações de remunerações dos trabalhadores e gerente ao seu serviço;
g) Porém, deixou de cumprir a obrigação de entregar à Segurança Social tais contribuições, retidas mensalmente das remunerações pagas aos trabalhadores e gerente;
(…)
O prazo para pagar voluntariamente já há muito decorrera.
E é isso que o RGIT afirma sem hesitações logo no seu art.º 5º:
(…)
2 - As infracções tributárias omissivas consideram-se praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários.
(…)
Como tal, o ilícito estava verificado.
O prazo do art.º 105º, como o próprio legislador também assumiu, serve apenas como benefício concedido ao contribuinte faltoso para pagar num prazo suplementar, aquele que fixa, garantindo ao contribuinte que, se o fizer, não é punido pelo ilícito que cometeu.
E é a isso que se chama «condição de punibilidade», como decorre, aliás, do próprio nome.
Outra interpretação que se fizesse colidiria com aquele princípio básico.
Por outro lado, são as referidas Leis do Orçamento que deixam o assunto bem clarificado ao assumirem como finalidade principal das medidas o efectivo recebimento das quantias devidas e em dívida. Isso perpassa desses diplomas.
E se o que se pretendeu foi receber o que, sendo devido e estando já em falta, não fora entregue, embora aceite pelo contribuinte que o declarou, faz sentido fixar um prazo além do prazo regular, prevendo como incentivo que, muito embora verificada a infracção, caso seja entregue o valor com os acréscimos legais, fica ela sem ser punida. O que sempre dependeria de norma que o impusesse pois que, de acordo com o regime legal decorrente do RGIT, sempre teriam os Tribunais que condenar ou, então, socorrer-se dos mecanismos de isenção previstos, o que, de todo o modo, ficando ao critério do processo, não dava garantias suficientes de que seria um incentivo ao cumprimento das obrigações fiscais mesmo nessas condições.
As razões parecem-nos claras.
E a ser assim, a falta de notificação não impõe a rejeição da acusação ou não pronuncia e menos ainda dita a absolvição do arguido.
Resumindo e concluindo esta questão, diremos que o Tribunal a quo, tendo considerado não inequivocamente cumprida a referida notificação – tendo em consideração que não entendeu, como seria também aceitável, que o arguido se recusara a receber a notificação mas estava do seu teor devidamente informada nos termos atrás expostos -, podia e devia ter ordenado, como fez, a sua realização em fase de julgamento, sem que isso comporte qualquer vício da respectiva ordem ou da sua consideração em sede de sentença.
Daqui fluindo com meridiana evidência que improcede este fundamento de recurso.
No entanto, ainda que a propósito da mesma questão, vem o arguido, de viés, invocar ainda um suposto erro de julgamento [ao que percebemos] porque o Tribunal a quo devia ter dado o facto decorrente da notificação do referido art.º 105º como não provado e, com isso, devia ter absolvido o arguido.
Confessamos alguma perplexidade quanto a esta questão.
Não conseguimos perceber nem o início e nem o fim desta alegação.
Ou seja, olhada a invocação por um lado, parece que o arguido quer ser absolvido de um crime que aceita ter cometido, com base numa formalidade.
Mas, olhada por outro, parece que o arguido está convencido de que o Tribunal o devia ter absolvido por não se verificar sequer o crime que lhe foi imputado.
Ora, como bem se percebe e a isso bastando o que acima já se disse, nem uma e nem outra coisas estão correctas: nem o arguido deve ser absolvido e nem o facto devia ter sido dado como não provado. Aliás, no limite, resultando esse facto do processado, até era admissível que nem fosse considerado na matéria factual tal ocorrência uma vez que a notificação deve encontrar-se no processado e não nos factos que o Tribunal considerou provados ou não. Pois que é a circunstância de, feita a notificação, não ter havido pagamento que efectivamente releva.
No entanto, como se viu já também, nem o arguido ficou por notificar e nem o crime ficou por cometer.
Aliás, esta alegação do arguido é tanto mais estranha quanto, se tivesse querido cumprir com as suas obrigações legais e cívicas, teria aproveitado a notificação feita pelo Tribunal para pagar, o que não fez mesmo nessa altura. É que essa notificação não tinha apenas a natureza de condição [objectiva] de punibilidade, mas também a de, tendo sido receptivo o arguido, poder beneficiar o mesmo quanto ao desfecho do processo.
Assim, parece também evidente que, sendo válida a notificação como acima se decidiu, esse facto devia ser considerado pelo Tribunal nessa dupla dimensão: a notificação foi feita e o arguido não pagou, tal como foi.
Isto nada tem que ver com a imparcialidade do Tribunal, como pretende o arguido, argumento esse, aliás, que tange mesmo os limites da boa fé processual.
Aqui, quem incumpriu foi o arguido. E isto que fique bem claramente afirmado.
O Tribunal não deixa de ser imparcial quando faz o seu trabalho, por mais que aos arguidos incomode essa circunstância.
Pelo contrário, ao fazer cumprir a Lei, como fez quanto a ordenar a notificação, o Tribunal a quo está a garantir a todos os cidadãos a sua isenção e a reconhecer a sua natureza enquanto administrador da lei em nome do povo.
Para além disso, o processo penal português não é, ao contrário do que pensará o arguido porventura, um processo de partes, sendo ele uma delas. E nem o Ministério Público é um mero sujeito no processo, pois que a Constituição e a Lei conferem-se a natureza de Autoridade Judiciária [art.º 1º, al. b) do Cód. Proc. Penal].
Razão pela qual, quando deduz acusação, representa os interesses do Estado – leia-se, da sociedade, dos contribuintes – e não um interesse aconchegado ao seu umbigo. E quando recorre a favor do arguido não o faz para deleite deste, mas para defesa de direitos constitucionalmente consagrados para o processo penal em benefício de todos os cidadãos e da Democracia.
Ao entender, em benefício aliás do arguido, que a notificação podia não ter sido perfeitamente feita, ordenando a sua repetição – note-se: isto aconteceu 6 (SEIS) anos após o termo do último prazo legal concedido ao arguido para pagar -, e dando com isso ao arguido a possibilidade de pagar o que devia, sem que ele, ainda assim, o fizesse, o Tribunal de primeira instância foi tudo menos parcial relativamente ao Estado [porque é o Estado que ali é representado pelo Ministério Público].
Pelo que, como resulta fácil ainda aqui de concluir, improcede também nesta parte o recurso do arguido.
Como tal, resumindo, improcede totalmente o recurso do arguido.
Ora, muito embora isto, e porque o arguido veio recorrer nos termos do art.º 410º do Cód. Proc. Penal, importa conhecer ainda das questões que, nesse âmbito, possam e devam ser conhecidas e já com relevância para a apreciação do recurso da demandante.
Voltamos aos factos.
O Tribunal a quo deu como provado que9:
(…)
b) O arguido foi gerente dessa sociedade desde a sua constituição em 10.10.2014, sendo-o sozinho a partir de 12.08.2016, e até a mesma ser declarada insolvente em 29.04.2019;
c) No exercício dessa actividade, teve a sociedade sob a sua dependência laboral trabalhadores, recebendo estes o seu ordenado nos períodos e termos indicados na alínea i), estando sujeita à retenção na fonte das contribuições por si devidas à Segurança Social, calculadas por incidência de percentagem fixadas na lei sobre as remunerações auferidas;
d) Das remunerações por si pagas a esses trabalhadores e gerente a sociedade efectuou os descontos referentes às contribuições pelos mesmos devidas à Segurança Social nos termos estipulados;
(…)
f) A sociedade entregou à Segurança Social as declarações de remunerações dos trabalhadores e gerente ao seu serviço;
g) Porém, deixou de cumprir a obrigação de entregar à Segurança Social tais contribuições, retidas mensalmente das remunerações pagas aos trabalhadores e gerente;
h) Passando a sociedade a usar essas disponibilidades monetárias na prossecução de outros interesses da mesma;
i) Durante os períodos seguidamente referidos as quantias que foram descontadas dos ordenados dos trabalhadores por conta de outrem, bem como os respectivos montantes não entregues, foram as seguintes:
ANO/MÊS Trabalhador(es)
Novembro de 2017 --- € 9.443,16
Dezembro de 2017 --- € 8.543,75
Janeiro de 2018 ------ € 6.329,89
Fevereiro de 2018 --- € 4.687,53
Março de 2018 ------- € 4.197,67
Abril de 2018 --------- € 4.910,93
(…)
a) A sociedade Atlanticlion fornecia trabalhadores para a sociedade Atlanticeagle;
c) A sociedade Atlanticeagle estava a construir um navio para o governo de Timor Lorosae;
d) O governo de Timor Lorosae procedeu a pagamento de ordenados de trabalhadores da sociedade Atlanticlion;
(…)
E o Tribunal a quo deu como não provado que10:
(…)
a) Durante os períodos seguidamente referidos as quantias que foram descontadas dos ordenados dos trabalhadores por conta de outrem, bem como os respectivos montantes não entregues, foram as seguintes:
ANO/MÊS Trabalhador(es)
Setembro de 2017 ------- € 10.983,75
Outubro de 2017 --------- € 10.447,22
Novembro de 2017 ------- € 10.490,69
Maio de 2018 -------------- € 4.957,42
Junho de 2018 ------------ € 3.179,48
(…)
a) A sociedade Atlanticlion não pagou ordenados aos seus empregados entre Setembro de 2017 e Junho de 2018;
b) Foi de Setembro de 2017 a Junho de 2018 que o governo de Timor Lorosae efectuou os pagamentos.
(…)
Se bem vemos as coisas, o Tribunal a quo, na posse de dados importantes que considerou provados - como o facto de o arguido ser o responsável da empresa e decisões da empresa, que era de trabalho temporário e que a empresa aquém alocou prestadores de trabalho estava a prestar um serviço a Timor [muito embora sem se saber quando, desde quando e até quando] -, deu como não provado que nos meses que indica em a) [dos factos não provados] as quantias descontadas nos ordenados não foram entregues e, mais do que isto, que a sociedade do arguido não pagou ordenados entre Setembro de 2017 e Junho de 2018 [com relevo, Maio e Junho de 2018], assim como deu como não provado que, nesse preciso período, foi Timor que pagou ordenados.
Ou seja, o Tribunal a quo deu como assente que o arguido/sociedade tinha a obrigação de entregar à SS as retenções das contribuições, mas não apurou que tivesse pago salários nesse lapso de tempo.
Deu como provado que o reteve e não pagou nos meses referidos em i) dos factos provados, e deu como não provado que as quantias não entregues foram as referidas em a) dos factos não provados (acusação), e que não foi a sociedade que pagou salários de Setembro de 2017 a Junho de 2018, e que foi nesse período que Timor pagou (a e b da contestação).
Ou seja, o Tribunal a quo não apurou que a sociedade/arguido tenha feito a retenção e não as tenha entregue à SS.
Ora, tal como resulta do regime legal que acima assinalámos, quem se obriga perante a SS a fazer as retenções e a entregar as mesmas é a empresa empregadora, ou seja, a empresa de trabalho temporário do arguido.
Este é que é o verdadeiro sujeito passivo desta obrigação.
Independentemente de contratar com terceiros a colocação de trabalhadores.
Aliás, por esse razão precisamente e disso sabendo, o arguido comunicou à SS as retenções no período que o Tribunal a quo considerou provado.
No entanto, o Tribunal de primeira instância, diz ainda que:
(…)
Ora, perante esta prova, conjugada com a análise crítica da documentação infra, não podem subsistir dúvidas que, pelo menos, até Abril de 2018, os ordenados da sociedade Atlanticlion foram pagos, sendo que quanto aos meses seguintes, de Maio e, até, Junho de 2018, embora seja de crer tal ter ainda sucedido, por aplicação do princípio in dubio pro reo temos o pagamento desses ordenados (de Maio e Junho) por não assente.
De referir que estas testemunhas, especialmente as testemunhas JJ e KK (mas até já o arguido o havia mencionado), referiram que em 2018 os pagamentos dos ordenados foram efectuados pelo governo de Timor Lorosae nos termos vertidos na factualidade assente, nomeadamente também quanto à sociedade Atlanticlion.
Na verdade, tal pagamento por ter sido efectuado por terceira entidade nada acrescenta aos autos, pois que resulta da prova que o que foi pago foram os ordenados (na parte que nos interessa, dos empregados da sociedade Atlanticeagle), não foi uma oferta de dinheiros efectuada aleatoriamente por uma terceira entidade, o próprio arguido o admitiu.
Portanto, resulta das regras da experiência comum que o dinheiro vir directamente dessa entidade para pagar ordenados da sociedade Atlanticlion. decorreu de acordo com a sociedade “patroa”, sendo o mesmo que ser a “patroa” a fazer o depósito, se assim não fosse a sociedade Atlanticlion não teria sequer assumido que os ordenados foram pagos (como o arguido declarou) e não teria enviado a respectiva declaração para o ISS (conforme a testemunha NN explicou ter sido feito e consta da documentação junta nos termos infra).
Na verdade, a entender-se diversamente ter-se-ia encontrado a solução ideal para não pagar contribuições como as em causa… bastava “acordar” com as sociedades devedoras que em vez de pagarem as suas dívidas pagavam os ordenados (líquidos) dos trabalhadores e, assim, nenhuma contribuição seria devida e a sociedade “patroa” continuava a laborar e com empregados com ordenados pagos! Ou seja, na verdade o que essa terceira entidade se limitou a fazer foi a substituir a sociedade Atlanticlion em pagamentos, por acaso (ou não) os ordenados líquidos em dívida, o que a sociedade Atlanticlionaceitou (o arguido disse-o, assumindo o pagamento dos ordenados), podendo não o ter feito e, se havia dinheiro para tantos meses de ordenados, bastava pagar alguns meses menos (em termos líquidos) e pagar com esse dinheiro sobrante do total usado as contribuições, opção que não foi tomada.
(…)
Como percebemos, em causa está saber se a factualidade constante da acusação e não provada [relativamente aos meses indicados pela demandante], ainda assim obrigava o Tribunal a quo a condenar o demandado na parte respectiva do pedido, uma vez que essa obrigação se impõe, até mesmo quando não se verifiquem os pressupostos da responsabilidade criminal.
Pelo que conhecemos agora do:
RECURSO DA SEGURANÇA SOCIAL.
Convém começar por esclarecer um ponto formal que fará aqui toda a diferença.
Não há recurso [da matéria de facto] interposto com cumprimento das formalidades referidas no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, razão pela qual este Tribunal limita a conhecer das questões que resultem da decisão qua tale, seja, sem analise de prova além desse conteúdo, portanto, e no âmbito do disposto pelo art.º 410º do Cód. Proc. Penal.
Nesta medida, impõe-se ver se a demandante recorrente tem, em face do que resulta da sentença recorrida, razão.
E a sentença do Tribunal a quo refere o seguinte:
(…)
No que tange ao pagamento de ordenados, resulta o seu pagamento por parte da sociedade dos depoimentos das testemunhas CC, que os assegurou pagos até 2018 sem saber concretizar o último mês, DD, que os referiu pagos até Agosto de 2018, mas sem saber assegurar se recebeu os de Junho, Julho e Agosto de 2018, e BB que situou o recebimento dos seus ordenados até Jungo de 2018. Mas resulta também das testemunhas II, que trabalhou noutra sociedade pertença dos “mesmos patrões”, a Atlanticeagle, e que disse ter sido das primeiras empregadas a “suspender” o contrato de trabalho em Janeiro de 2018, não sabendo o que os demais receberam, a testemunha JJ que trabalhos na sociedade Atlanticeagle e disse ter recebido até “por volta de Maio de 2018” e a testemunha KK que também trabalhou na sociedade Atlanticeagle e confirmou ter ido para Inglaterra e ter recebido os seus ordenados, que assim foram devidos e pagos até Abril de 2018.
Ora, perante esta prova, conjugada com a análise crítica da documentação infra, não podem subsistir dúvidas que, pelo menos, até Abril de 2018, os ordenados da sociedade Atlanticlion foram pagos, sendo que quanto aos meses seguintes, de Maio e, até, Junho de 2018, embora seja de crer tal ter ainda sucedido, por aplicação do princípio in dubio pro reo temos o pagamento desses ordenados (de Maio e Junho) por não assente.
De referir que estas testemunhas, especialmente as testemunhas JJ e KK (mas até já o arguido o havia mencionado), referiram que em 2018 os pagamentos dos ordenados foram efectuados pelo governo de Timor Lorosae nos termos vertidos na factualidade assente, nomeadamente também quanto à sociedade Atlanticlion.
(…)
Portanto, resulta das regras da experiência comum que o dinheiro vir directamente dessa entidade para pagar ordenados da sociedade Atlanticlion decorreu de acordo com a sociedade “patroa”, sendo o mesmo que ser a “patroa” a fazer o depósito, se assim não fosse a sociedade Atlanticlion não teria sequer assumido que os ordenados foram pagos (como o arguido declarou) e não teria enviado a respectiva declaração para o ISS (conforme a testemunha NN explicou ter sido feito e consta da documentação junta nos termos infra).
(…)
Em face do que acaba de se citar, percebe-se que o Tribunal a quo, confrontado com uma incerteza quanto aos referidos meses, relevando, de Maio e Junho de 2018 e não tendo apurado com certeza se o pagamento das remunerações aos trabalhadores foi efectivamente feito pela empresa do arguido, entendeu beneficiar o mesmo por aplicação do princípio in dubio pro reo.
Absolveu o arguido nessa parte quanto à parte criminal [o que se diluiu atento o facto de apenas lhe vir imputado um crime] e, por via disso, quanto ao mesmo período temporal, absolveu-o do pedido de indemnização.
Ora, o Tribunal a quo explica que depoimentos e incertezas contribuíram para esta falta de esclarecimento e a sua interpretação não é posta em causa pela recorrente que se limita a dizer que resulta da prova o contrário.
Quando, de facto, porém, a demandante nem indica de que prova concreta resulta a sua certeza, e nem, por outro lado, demonstra factualmente o erro que imputa [sem nomear] ao Tribunal a quo.
Limita-se a dizer que resulta da prova que as declarações foram entregues nesse período e, tratando-se de responsabilidade aquiliana, impendendo sobre a sociedade e arguido a obrigação de entrega, deve ser o mesmo condenado também nessa parte do peticionado.
Em teoria, de facto, o arguido pagou salários, fez deduções, declarou-as e tinha de entregar os meios de pagamento respectivos [e foi condenado na parte em que essa teoria se concretizou em prova].
Essa teoria é, pois, confirmada na prática relativamente a toda a factualidade provada, como explica o Tribunal a quo, excepto quanto aos meses de Maio e Junho de 2018, nos quais, não havendo certezas desses pagamentos, e menos ainda por parte da sociedade gerida pelo arguido, também não pode logicamente haver certezas quanto à necessidade de pagar aquilo que não se prova ter sido deduzido.
É certo que o crime é um crime omissivo puro, [por isso] consuma-se com a não entrega dolosa, no tempo devido, à segurança social das contribuições deduzidas pela entidade empregadora dos salários dos trabalhadores e dos corpos sociais, mas também é certo que no direito penal não existe imputação objectiva e nem responsabilidade civil fora do quadro do modelo de adesão que vigora, daí decorrendo que [salvas excepções previstas expressamente na lei, que não se verificam aqui] os factos têm de ficar inequivocamente provados enquanto criminalmente relevantes, de cuja ilicitude resulte provada também a substância da obrigação indemnizatória. Caso não fiquem provados esses factos, caso o juiz que analisa a prova fique com uma réstia de dúvida, por mais ténue que seja, tem de absolver quanto ao crime [na respectiva parte] e, por maioria de razão, quanto à indemnização correspectiva.
Mas será que existe aqui uma aparência enganosa?
Improcedendo os argumentos do arguido, sendo por isso improcedente o seu recurso, importa ver se, atentas as características do tipo de crime, não tem mesmo razão a demandante quando recorre da parte da absolvição [parcial do pedido de indemnização].
Atente-se.
Como explica o Tribunal a quo, das testemunhas ouvidas, diversas referem o limite dos pagamentos algures por aqueles meses e há mesmo uma que diz que em 2018 os pagamentos dos ordenados foram efectuados pelo governo de Timor Lorosae, o que equivale a dizer que, não tendo o Tribunal a quo apurado com a certeza e segurança devidas que a empresa pagou e, como tal, tinha a obrigação de proceder às retenções e de as entregar depois, ainda que tivesse declarado, o facto de não ter pago salários e retido o respectivo montante impedem a verificação da consequência pretendida pela demandante.
Devia o Tribunal a quo, ainda que sem a prova desses factos da acusação, condenar nessa parte do pedido porque o crime se consumara na mesma?
E qual a relevância daquela falta de prova relativamente à demanda cível?
Quanto à primeira questão, convém recordar que no direito penal não existe imputação objectiva relevante.
Por vezes, até no Direito as coisas não são o que aparentam.
O crime de abuso de confiança contra a segurança social é um crime de omissão pura, que se consuma com a não entrega, no prazo legal, à Segurança Social, das contribuições deduzidas pela entidade empregadora dos salários dos seus trabalhadores e membros dos órgãos sociais (veja-se o art.º 107º, nº 1 do RGIT).
E também é certo que o Legislador optou por formular um tipo penal omissivo em que a apropriação é tipicamente irrelevante por não ser elemento objetivo do tipo e que se consuma no momento da não entrega nos cofres do Estado das prestações tributárias deduzidas nos termos da lei e que de que havia a obrigação legal de entrega.
Não é, em nosso modestíssimo entender, a formulação mais adequada, mas é a que temos legalmente imposta e aquela com que temos de trabalhar.
Naturalmente que se trata de crime doloso mas restringe-se o seu efeito a um dolo genérico que pode envolver qualquer das suas formas, dolo directo, necessário ou eventual, implicando isto que o agente tem que representar – e apenas - os elementos do tipo, que se limitam a ser a obrigação de entrega, o desconto e a não entrega.
Logo, é igualmente irrelevante para a integração no tipo penal saber a que título psicológico agiu o arguido quando preencheu aqueles três elementos do tipo, pois que hoje já é dispensável saber se o agente/contribuinte se apropriou da quantia e quando e porquê inverteu o título de posse sobre a quantia retida e não deduzida. Basta para preencher o dolo que o agente, conhecendo o dever de entregar aquela quantia efectivamente retida, não a entreguou dentro de determinado prazo.11
Ora, é certo que a Segurança Social vem reclamar um crédito a este processo.
No entanto, fá-lo ainda ao abrigo do princípio da adesão (art.º 71º do Cód. Proc. Penal), ou seja, fazendo depender o pedido da matéria criminalmente relevante [porque o direito à indemnização assenta na prática de ilícito criminal], e a sua apreciação das regras do processo penal (art.º 74º, nº 1 e 2 e art.º 71º, ambos do Cód. Proc. Penal).
E em processo penal e direito penal não vigora, como se disse antes, o princípio da imputação objectiva.
Este propósito é afirmado pelo Cód. Penal, no seu art.º 13º, que deixa claro que o facto relevante penalmente é culposo a título de dolo e só excepcionalmente a título de negligência.
Não estamos, como é bom de ver, no âmbito da segunda.
E quando se diz que não existe imputação objectiva, designadamente no âmbito da criminalidade fiscal [que é aquela em que se tem tentado ultrapassar os limites da culpa penal, havendo mesmo quem anseie pela imposição de uma espécie de teoria do risco que justificasse aqui também uma espécie de responsabilidade objectiva], quer-se dizer que só há verificação típica com a prova dos elementos típicos relevantes.
Mais demoradamente: o facto de o declarante obrigado [pela lei] ser a empresa de trabalho temporário e o facto de ter essa empresa, e o seu responsável, ainda assim, entregue a declaração de retenção das quantias devidas à Segurança Social não equivale, automaticamente, à verificação do tipo. Desde logo, porque as circunstâncias relevantes para a verificação da tipicidade têm de se verificar também, entre elas, a circunstância de esse declarante ter efectivamente procedido ao pagamento de salários e retenções.
Ou seja, ainda que o sujeito da obrigação de entregar à Segurança Social seja o arguido [a sociedade], e ainda que o mesmo tivesse declarado àquela que nos meses de Maio e Junho de 2018 [relevando e atento o pic] procedeu a essas retenções, tal não significa que foi o pagador desses salários e o beneficiário, como tal, da não entrega dos meios do respectivo pagamento.
Seria um contrassenso no direito penal considerar que quem não pagou e, como tal, não reteve, é obrigado a pagar a retenção que devia ter feito.
E é um contrassenso porque, independentemente da responsabilidade fiscal ou para fiscal que tenha, não cometeu qualquer ilícito porque o ilícito pressupõe aquele pagamento e vontade de não pagar à SS.
E a este respeito o Tribunal a quo foi muito claro: não estabeleceu sem dúvidas essas circunstâncias.
E não o tendo feito, razão porque absolveu nessa parte criminalmente [ainda que se verificasse o crime que vinha imutado por prova da demais factualidade], também não pode condenar nessa parte do pedido de indemnização. Não se mostrando [parcialmente] provada a conduta penalmente relevante, que passa pelo pagamento de salários por parte do indicado infractor, não há como estabelecer a vinculação da obrigação indemnizatória na respectiva parte.
Assim, e ainda atento que quanto ao pedido cível e à nulidade da sentença por omissão dos factos relativos ao pagamento de contribuições a matéria esteja já estabilizada em função do afirmado supra quanto à inexistência de impugnação factual, sempre se dirá que o não estabelecimento da factualidade relevante não permite estabelecer um vínculo de responsabilidade que justifique, seja por que forma for, a condenação nessa parte do pedido em processo criminal, por isso sendo essa parte improcedente, como bem julgou o Tribunal a quo.
É certo que, ao retirar relevância típica à apropriação, o Legislador cortou o tipo, dando-lhe uma aparência presuntiva que pode confundir. Mas isto prende-se, nessa opção legislativa, mais com finalidades políticas ou de política criminal do que com a ciência do direito.
A apropriação típica do crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, ocorre quando a entidade empregadora deduz uma quantia da remuneração de um seu trabalhador, ou órgão social, com a finalidade de a entregar à Segurança Social e não a entrega, invertendo título da posse dessa quantia, passando a dispor da mesma como se fosse sua, afetando-a a outra finalidade; A motivação ou finalidade do agente e a consequente afectação que fez das quantias de que se apropriou são irrelevantes, pode até prosseguir o mais elevado dos fins, o que não releva para a questão de saber se houve ou não abuso de confiança12.
No entanto, convém ter presente que (…) aquilo que se pretende obter por via do pedido cível em processo penal é no caso, muito clara e obviamente, o pagamento de contribuições devidas à segurança social, que segue um regime parafiscal. Logo, não se trata aqui de qualquer “responsabilidade extracontratual” a encarar de foram clássica, trata-se da simples constatação que o instituto da segurança social vem pedir, com base na responsabilidade tributária, o pagamento de um tributo por via da possibilidade de o solicitar – igualmente – através do princípio de adesão ao processo penal e devido à prática de um crime (para)fiscal.
Esta verificação da realidade não pode ser escondida com grandes construções teóricas que apenas servem para ficcionar que esta responsabilidade tributária pode ser equiparada a uma qualquer responsabilidade civil extra-contratual. Trata-se, simplesmente, de cobrar um (para)tributo usando o meio processual de declaração de direito à indemnização pensado para a responsabilidade civil extra-contratual, que a prática de um crime conexo permite.13
A circunstância de o obrigado perante a Segurança Social não ter pago as retribuições aos trabalhadores, ou porque não se apurou que pagou ou porque outro alguém devia ser o pagador nessas circunstâncias, impede a verificação do tipo legal. Só faz sentido ser responsável pelo que declarou se se recebeu, porque só nessa medida se é devedor [em sentido próprio, enquanto agente a quem incumbe esse dever].
Não podendo a demandante neste caso obter resultado através de uma alteração da matéria de facto provada, sendo estes o cerne da acusação que se estabilizou por ausência de recurso que impugnasse nessa dimensão, o que se verifica é, ainda assim, um mesmo resultado – a actuação do arguido provada não integra, quando ao referido período temporal, os elementos típicos relevantes, medida em que, por maioria de razão, não integra os pressupostos da obrigação indemnizatória [ainda que sob a forma de pagamento das obrigações perante a Segurança Social] que sempre dependeria da verificação desse facto criminalmente relevante.
Razão pela qual, sem demorar o assunto, se impõe concluir pela improcedência também do recurso da demandante.
Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente não providos ambos os recursos – do arguido AA e do Instituto da Segurança Social, IP, mantendo-se a decisão do Tribunal a quo.
Custas pelos recorrentes, fixando a taxa de justiça em 4 UC’s e demais encargos legais para cada um deles, sem prejuízo da isenção de pagamento legalmente prevista.

Lisboa, 09 de Outubro de 2024
Hermengarda do Valle-Frias
M. Elisa Marques
João Bártolo
Texto processado e revisto.
Redacção sem adesão ao AO

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1. O destaque é nosso.
2. Considerando-se sempre a referência para a Lei nº 15/2001, de 05 de Junho - REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS.
3. Destaque nosso.
4. Susana Aires de Sousa em Os Crimes Fiscais, Análise dogmática e reflexão sobre a legitimidade do discurso criminalizador [Coimbra Editora, pp. 136 e 137] é clara em afirmar que são sobretudo razões de política criminal que sustentam aquele preceito legislativo. Desde logo, e em primeiro lugar, o legislador terá atendido ao facto da entrega, ainda que fora do prazo, pôr fim ao prejuízo patrimonial do Estado provocado pelo agente; por outro lado, aquela norma constitui um incentivo ao pagamento das prestações em falta e permite ainda evitar os custos que o procedimento criminal acarreta para a administração fiscal; por último, esta alteração legislativa foi sensível à necessidade de um certo lapso temporal que permita à administração fiscal o tratamento das informações fiscais relevantes, designadamente que dizem ao respeito ao não cumprimento dos deveres fiscais.
5. Da punibilidade nos crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a segurança social, revista julgar, nº 11 – 2010, p. 59.
6. Antes desta alteração a norma dispunha apenas que os factos des­critos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.
7. Acórdão do Supremo Tri­bunal de Justiça nº 6/2008 de 09.04.2008 - Diário da República, I Série, nº 94 de 15.05.2008, p. 2672.
8. Acórdão nº 409/2008
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080409.html.
9. Destaques nossos.
10. Destaques nossos.
11. Ac do TRE de 12.10.2021 – www.dgsi.pt\tre.
12. Ac do TRE de 12.10.2021 – www.dgsi.pt\tre.
13. Ac do TRE de 12.10.2021 – www.dgsi.pt\tre.