Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
28333/23.0T8LSB-E.L1-1
Relator: AMÉLIA SOFIA REBELO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO DO DEVEDOR
SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – Na aferição do montante dos rendimentos a excluir do objeto de cessão determinada no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante importa considerar que o sustento minimamente condigno não se reduz a um mínimo de sobrevivência física nem, por outro lado, corresponde ao que seria necessário para manter o nível de vida que o devedor detinha antes da declaração da sua insolvência, se superior ao necessário a uma vivência humanamente condigna.
II - Na tarefa da determinação do montante dos rendimentos a excluir da cessão é irrelevante a consideração do montante dos rendimentos auferidos pelo devedor posto que, independentemente de se cifrarem neste ou naquele valor, o que releva para efeitos de quantificação do rendimento excluído da cessão (o indisponível) é o montante das despesas atendíveis, que serão sempre as mesmas independentemente dos rendimentos que aufira.
III – O sacrifício a que o devedor voluntariamente se sujeita ao recorrer ao incidente da exoneração do passivo restante e que o onera a comprimir as suas despesas ao necessário a uma adaptação do padrão de vida ao estatuto conferido pela insolvência, é justificado pelo sacrifício que o benefício que dele colhe impõe aos seus credores, importando ter sempre presente que na outra face do benefício que pretende obter através deste incidente está o direito económico à propriedade privada dos credores, de verem satisfeitos os seus direitos de crédito pelo património do devedor, e que a alternativa ao sacrifício deste é o direito de os credores prosseguirem com a cobrança coerciva dos seus créditos após o encerramento do processo de insolvência, com o consequente constrangimento de ver os seus rendimentos penhorados e afetados até ao pagamento da totalidade do seu passivo.
IV - O montante necessário ao sustento minimamente condigno corresponderá à soma dos encargos de subsistência que, pela sua natureza indistintamente quotidiana, regular ou periódica se assumem comuns a todos e que, num padrão de normalidade ditada pela experiência geral, são passíveis de igual quantificação para a generalidade das pessoas, para o que o valor da RMMG (remuneração mínima mensal garantida) se tem como o necessário e suficiente enquanto expressão numérica do que o legislador ordinário, no contexto sócio-económico em que é fixado, entendeu como o mínimo para salvaguardar uma vivência condigna.
V - Às despesas gerais e comuns a todos poderão acrescer outras em função de condições sócio- familiares e profissionais particulares do devedor, como por exemplo, o número de pessoas que integram o respetivo agregado familiar e que dele dependam ou, ao invés, que contribuam com rendimentos para despesas comuns, um regime alimentar ditado por razões de saúde, a necessidade de acompanhamento e de tratamento médico e medicamentoso ditado por patologias crónicas, deslocações para o trabalho quando suscetíveis de se particularizarem em relação à generalidade das pessoas (seja pela distância, seja pela ausência de rede de transportes  públicos suscetível de servir as necessidades de deslocação do devedor), necessidade de assistência ou de prestação de cuidados por terceira pessoa, etc.
VI - Ainda que a RMMG tenda a garantir o mínimo indispensável ao sustento condigno de cada um, o encargo com o arrendamento de habitação exclui-se dessa equação, quer pelos valores atualmente praticados no mercado da habitação, quer por corresponder a despesa fixa e necessária que por regra mais onera o agregado familiar e que não é passível de compressão ou, pelo menos, de ajustamento proporcional ao número de elementos que no agregado familiar auferem rendimentos e para ela contribuem, além de que varia consideravelmente consoante a região em que se resida e da maior ou menor proximidade do local com os centros urbanos.
VII - A exclusão do valor de €1.780,00 para despesas com alimentação, vestuário, calçado, limpeza e tratamento de roupa, contratos de fornecimento doméstico, e deslocações do devedor em situação de reforma e cujo agregado familiar se reduz a ele próprio, afronta o direito dos credores à satisfação dos seus créditos à custa dos recursos patrimoniais do devedor, bem como a realidade sócio económica do país por referência ao valor do rendimento médio auferido pela maioria das pessoas, com o qual, ainda que de forma modesta, provêm ao seu sustento condigno e do respetivo agregado familiar
VIII - Entre pais e filhos existe um dever natural de assistência recíproca, mas a obrigação de alimentos a que alude o art. 2003º do C.C. só nasce em caso de necessidade do alimentando, o que pressupõe a falta ou insuficiência de recursos patrimoniais deste, e em função das possibilidades económicas do devedor, tendo em consideração, designadamente, as obrigações por ele contraídas perante outras pessoas.
IX – Na pendência do processo de insolvência a prestação de alimentos a cargo do devedor só poderá ser atribuída e fixada nos termos dos arts. 84º e 93º do CIRE.
X - Não existindo elementos que permitam considerar as despesas médicas e medicamentosas com periodicidade regular mensal a integrar no rendimento indisponível de modo genérico e indistintamente válido para todos os meses/anos, apenas deverão ser excluídas se e quanto realizadas e pelo montante em que forem documentalmente comprovadas, nos termos previstos pelo art. 239º, nº 3, al. b), iii) do CIRE.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa,

I - Relatório
1. A., divorciado, nascido em 1950, apresentou-se à insolvência por requerimento de 22.11.2023, que foi declarada por sentença de 27.11.2023, já transitada em julgado, e, simultaneamente, deduziu pedido de exoneração do passivo restante, requerendo seja excluído dos rendimentos a ceder o correspondente a 5 ordenados mínimos nacionais.
Fundamentou o montante que requereu na seguinte alegação: reside em casa do seu filho em Rua …, Lisboa; todo o seu património, incluindo a casa de morada de família, foi vendido no âmbito dos processos de insolvência das sociedades (5) das quais era sócio e gerente ou administrador; padece de problemas de saúde e necessita de acompanhamento médico regular; aufere pensão de velhice da Segurança Social no valor mensal de €3.162,50 e pensão de deficiente das forças Armadas da Caixa Geral de Aposentações no valor de €1.632,50; tem despesas fixas num valor médio mensal de €4.000,00, sendo €970,00 para comparticipação na renda para habitação, €1.180,00 para alimentação, vestuário, calçado e higiene, €750,00 de pensão de alimentos a ex-cônjuge, €200,00 para comparticipação mensal nas despesas do lar da sua mãe, €250,00 para serviços de limpeza e tratamento de roupa, €250,00 para comparticipação nas despesas com fornecimento de luz e telecomunicações, €300,00 para despesas médicas e medicamentosas, €100,00 para despesas com transportes inerentes às consultas e tratamentos médicos regulares.
Juntou documentos comprovativos das pensões, ata da conferência de processo de divórcio por mutuo consentimento com homologação de acordo de prestação de alimentos à sua ex-cônjuge, e talão de depósito em conta bancária da sua mãe.
2. No relatório a que alude o art. 155º do CIRE, apresentado nos autos em 23.01.2024, o Sr. administrador da insolvência (AI) relatou que: os rendimentos do insolvente ascendem ao valor líquido de €4.197,00 e sobre a reforma por velhice incidia penhora no montante mensal de €525,08; o agregado familiar do insolvente é constituído por ele próprio; reside na morada indicada no processo, em imóvel que foi objeto de contrato de arrendamento celebrado em julho de 2021 com sociedade da qual o recorrente era sócio e gerente único e ficou sem atividade em dezembro de 2023 e, a pedido do recorrente, foi objeto de novo contrato de arrendamento em 29.12.2023 em nome do recorrente e com renda mensal de €981,00; julgou o valor de despesas estimado pelo recorrente, de €4.000,00, excessivo para agregado familiar constituído por uma só pessoa, acrescentou que tais despesas são superiores ao atual rendimento mensal líquido do recorrente, de cerca de €3.670,00, e emitiu parecer favorável à prolação de despacho inicial de exoneração do passivo restante nos termos do art. 239º, nº 1 do CIRE.
Juntou documentos.
3. Por despacho de 26.02.2024 foi admitido o pedido de exoneração do passivo restante nos termos e para os efeitos dos arts. 237º, al a) do CIRE, transcritas as despesas alegadas pelo insolvente, consignado “que o montante global das despesas mensais, estimado pelo Insolvente, surge como extremamente excessivo para um agregado familiar constituído pelo próprio, e em exclusivo (um único elemento), sendo que as despesas mensais apresentadas pelo Insolvente são superiores aos seus atuais rendimentos mensais (= € 3 671,97), circunstância essa que não foi explicada pelo mesmo.”, e “fixando-se para os efeitos previstos na al. b), subalínea i), no caso, tendo em conta a composição do agregado, o equivalente a 2 (dois) salários mínimos nacionais; acrescidos da pensão de alimentos para a ex-mulher.
4. Inconformado, o insolvente recorreu da decisão e requereu a sua revogação no segmento em que fixou o valor a excluir da cessão, que requereu seja fixado no montante equivalente a 5 (cinco) salários mínimos nacionais como o necessário para o respetivo sustento minimamente digno e do seu agregado familiar e excluído da cessão. Mais requereu a exclusão dos rendimentos provenientes da pensão de deficiente das Forças Armadas, no valor mensal de €1.632,50, do cálculo do valor do rendimento disponível.
Formulou as seguintes conclusões:
1. (…).
- DO ERRO SOBRE OS FACTOS
2. O Tribunal “a quo” não deu a devida relevância às despesas concretamente alegadas e demonstradas pelo Recorrente e que resultam, igualmente, das regras da experiência comum, assim como também não valorizou a fase de elevada inflação da economia nacional, nem a consequente subida do preço dos bens essenciais e nem as consequências negativas da guerra entre a Rússia e a Ucrânia.
⎯ Despesas referentes a renda para habitação
3. A renda mensal invocada no valor de EUR 970,00 (entretanto, atualizada para EUR 981,00) foi devidamente demonstrada (cfr. cópia do contrato de arrendamento - cfr. Doc. n.º 4 do relatório do administrador de 23/01/2024 e cfr. último recibo de renda para demonstrar o valor atualizado para 2024, acima junto como Doc. n.º 1).
4. O valor mensal de EUR 981,00 para uma habitação na zona de residência do Recorrente (Marvila – centro de Lisboa), não se afigura ser demasiado, nem minimamente sumptuário face aos valores astronómicos praticados no mercado do arrendamento habitacional e que são inclusiva e incessantemente notícia nacional.
5. O valor mediano das rendas habitacionais na freguesia de Marvila, no concelho da Lisboa, foi de EUR 13,92 por m2 no período de 12 meses terminado a 30 de junho de 2023, sendo que, em face aos 12 meses anteriores, no período terminado a 30 de junho de 2022, este valor teve um aumento de 28,65%.
6. De acordo com os valores praticados no início de 2023, o arrendamento de um apartamento de 75 m2 (tipologia T1) comportaria - apesar da sua pequena dimensão! - um encargo mensal mínimo de EUR 1.044,00, ou seja, um valor claramente superior ao valor de EUR 981,00 suportado atualmente pelo Recorrente, a título de despesas de habitação.
7. Há que notar que, o valor mensal da renda suportado pelo Recorrente absorve, por si só, mais de metade do valor do rendimento indisponível fixado pelo Tribunal ”a quo” para a sobrevivência do Recorrente (EUR 1.640,00) !
8. Depois de pago o valor da renda mensal (EUR 981,00), o Recorrente fica com o valor de apenas EUR 659,00 (EUR 1.640,00 – EUR 981,00 = EUR 659,00) para todas as restantes despesas básicas e imprescindíveis ao seu dia a dia, a saber com: alimentação, higiene, vestuário e calçado; despesas do lar da mãe; serviços de limpeza e tratamento de roupa; eletricidade, água, gás e telecomunicações; consultas médicas e medicamentos; e ainda deslocações e transportes…, o que se mostra manifestamente insuficiente.
- Despesas referentes a alimentação, higiene, vestuário e calçado
9. O Tribunal “a quo” também não podia ter desconsiderado a existência e a imprescindibilidade da despesa referente a alimentação, higiene, vestuário, calçado, no valor médio mensal de EUR 1.180,00, num contexto, ainda por cima, de inflação e de subida do preço dos bens essenciais.
10. O sector da alimentação tem sido um dos sectores mais afetados pela escalada de preços, tendo, num passado recente, alcançado subidas anuais acima dos 15%, que não foram, entretanto, de todo revertidas.
11. Os dados do Índice de Preços no Consumidor (IPC) de outubro de 2022, publicados pelo INE, revelam uma taxa de inflação de 18.58 % referente à classe de Produtos alimentares e bebidas não alcoólicas.
12. É, igualmente, do conhecimento geral, constando inclusivamente de vários estudos, que a alimentação representa uma das despesas mais elevadas do orçamento familiar.
13. Não sendo despiciendo referir que o Recorrente já privilegia a confeção de refeições em casa, furtando-se a fazer despesas em restauração, assim como também privilegia alimentos mais baratos em detrimentos de outros mais caros como a carne ou o peixe.
14. Importa, igualmente, notar que o Recorrente, na sua condição de antigo combatente e Deficiente das Forças Armadas (DFA), tem necessidade acrescida de cuidado do seu bem-estar psicológico, enquanto, por outro lado, lhe vê serem reconhecidos deveres de comportamento conformes ao serviço prestado ao Estado Português, e lhe vê ainda ser solicitada e encorajada a participação nos fóruns e movimentos associativos de antigos combatentes – factos que lhe exigem uma aparência física cuidada, assim como uma boa apresentação, quer em termos de higiene, quer em termos de vestuário e calçado.
15. Ora, as exigências de imagem e dignidade decorrentes da sua condição de antigo combatente acarretam, naturalmente, as suas despesas e, por serem condição imprescindível para a preservação da sua imagem, bem como da imagem da instituição militar que representou, e para com a qual mantém deveres legais (em particular, “honrar a camaradagem, a responsabilidade e a solidariedade”, cfr. art.º 4º, alínea b) da Lei n.º46/2020), o Recorrente não pode de as mesmas prescindir.
- Despesas referentes ao lar da mãe do Recorrente
16. No que diz respeito às despesas do lar da sua mãe, no valor médio mensal de EUR 200,00, o Recorrente juntou o correspondente comprovativo (cfr. recibo de depósito bancário mensal na conta da sua mãe, junto como Doc. n.º 6 do requerimento inicial do Recorrente de 22/11/2023).
17. Num país em que as pensões de reforma são extremamente baixas, sobretudo, as das mulheres, é consabido que os filhos são cada vez mais chamados a ajudar e a amparar os pais na velhice, sobretudo, nas situações de carência e de enfermidade, o que se verifica com a mãe do Recorrente que tem mais de 90 anos de idade e sofre da doença de Alzheimer.
18. Esta condição que, além de acentuar consideravelmente a dependência da sua mãe, bem como a imprevisibilidade do seu estado de saúde a cada dia, requer cuidados diários para tarefas quotidianas, um acompanhamento médico reforçado, com necessidades intermitentes de cuidados médicos que acarretam despesas consideráveis.
19. A mãe do Insolvente com uma idade quase centenária, apresenta carências acrescidas a vários níveis, desde medicamentosas a alimentares, e que, naturalmente, demandam uma ajuda regular por parte do seu filho.
20. A doença de Alzheimer, por ser inelutavelmente progressiva, antecipa um avolumar de despesas nos próximos meses, exigindo previsivelmente uma ainda maior ajuda financeira do Requerente.
21. O desatendimento da despesa com a comparticipação do Recorrente nas despesas do lar da sua mãe tem a potencialidade de produzir danos e efeitos irreversíveis, uma vez que impossibilita o Recorrente de continuar a prestar o referido apoio, absolutamente imprescindível à subsistência e à dignidade da sua mãe, no contexto de uma doença crónica incurável.
- Despesas com serviços de limpeza e tratamento de roupa
22. Relativamente às despesas referentes a serviços de limpeza e tratamento de roupa alegadas pelo Recorrente, no valor de EUR 250,00, impõe-se notar que, enquanto Deficiente das Forças Armadas (DFA), sujeito a Transtorno de Stress Pós-Traumático, o Recorrente tem necessidades de saúde (física e mental) que requerem condições favoráveis de conforto na sua rotina diária, incluindo o apoio na realização de certas tarefas quotidianas, designadamente a nível do serviços de limpeza e de tratamento de roupa.
23. Além do referido, impendem sobre o Recorrente exigências de apresentação pública e de comportamento condignas face ao estatuto particular que a Lei lhe atribui (enquanto antigo combatente e Deficiente das Forças Armadas) e que o Recorrente não tem plena capacidade de se assegurar a si mesmo, sem qualquer auxílio.
- Despesas referentes a eletricidade, água, gás e telecomunicações
24. Relativamente às despesas referentes a eletricidade, água, gás e telecomunicações, o Recorrente alegou uma despesa média mensal de EUR 250,00 – valor, este, que foi confirmado pelo senhor Administrador em sede de relatório.
25. Estas despesas com eletricidade, água, gás e telecomunicações não são excessivas, sobretudo, tendo em conta que o sector da energia também tem sido um dos sectores muito afetados pela escalada de preços decorrente da inflação.
26. Os preços dos produtos energéticos essenciais seguiram uma trajetória ascendente largamente imprevisível, prevendo-se que, nos próximos meses e anos, continuem a ser repercutidos aumentos extremamente gravosos nas tarifas de eletricidade e gás dos clientes domésticos, que foram até aqui, em parte, absorvidos pelo designado “défice tarifário”.
27. De acordo com os dados do índice de Preços no Consumidor (IPC) de outubro de 2022, a inflação homóloga medida no cabaz de “Produtos Energéticos” chegou a atingir os 27.6% - indicador que compreende o preço de serviços energéticos essenciais, adquiridos pelos clientes domésticos, tais como a eletricidade e o gás.
28. Acresce que, resulta do conhecimento geral e das regras da experiência comum a indispensabilidade, nos dias de hoje, não só de eletricidade, água e gás, mas igualmente e cada vez mais, de telecomunicações (internet, telemóvel, etc.).
⎯ Despesas referentes a consultas médicas e a medicamentos
29. As despesas referentes a consultas médicas e a medicamentos invocadas pelo Recorrente no valor médio mensal de EUR 300,00 estão, no caso concreto, plenamente justificadas à luz do princípio de uma subsistência condigna.
30. O Recorrente sofre de diversas doenças que importam despesas acrescidas, tais como um enfarte recente, uma depressão e diabetes - doenças, estas, que obrigam a consultas médicas frequentes e à toma diária de medicamentos.
31. Resulta, igualmente, dos autos que o Recorrente é um antigo combatente, tendo, no referido contexto, ficado, infelizmente, deficiente (cfr. cópia do cartão de deficiente das Forças Armadas e cópia do cartão de antigo combatente, ambos juntos como Doc. n.º 4 do requerimento inicial de 22/11/2023, constante dos autos).
32. Por isso, a par das doenças citadas e de outras resultantes do avançar da idade (o Recorrente tem presentemente 73 anos de idade), o Recorrente ainda sofre as mazelas da guerra (físicas e psicológicas), o que acarreta despesas adicionais de saúde, que deveriam, por isso, ter sido consideradas pelo Tribunal.
33. Enquanto Deficiente das Forças Armadas (DFA), encontra-se perpetuamente exposto ao Transtorno de Stress Pós-Traumático e a um conjunto de comorbilidades, próprias das condições de vida atrozes a que foi sujeito.
34. São danos irreversíveis, permanentes, à saúde daqueles (como o Recorrente) que serviram o Estado Português em situações de conflito e que requerem cuidados de saúde adicionais e dispendiosos.
⎯ Despesas referentes a transportes
35. Por fim, o Tribunal “a quo” não podia ter desconsiderado a existência da despesa referente a transportes no valor de EUR 100,00, porquanto as deslocações são essenciais ao Recorrente, nomeadamente, para ir às suas consultas e fazer os seus tratamentos médicos regulares, bem como para acompanhar a sua mãe nas suas próprias consultas e tratamentos médicos.
36. Trata-se, pois, de uma despesa perfeitamente razoável à luz das regras da experiência comum, do custo de vida atual e das particulares exigências de deslocação do Recorrente.
37. EM SUMA, a desconsideração do valor das despesas com renda, alimentação, higiene, vestuário e calçado, comparticipação nas despesas referentes ao lar da sua mãe, serviços de limpeza e tratamento de roupa, eletricidade, água, gás e telecomunicações, consultas médicas e medicamentos e transportes alegadas pelo Recorrente é, pois, o concreto ponto de facto que o Recorrente considera incorretamente julgado (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE).
38. A notoriedade do valor de todas as referidas despesas dispensava, por si só, a apresentação de provas, mas, de qualquer modo, a cópia do contrato de arrendamento junta aos autos (cfr. Doc. n.º 4 do relatório do administrador de 23/01/2024), bem como o respetivo recibo de renda (cfr. último recibo de renda emitido acima junto como Doc. n.º 1, para demonstrar a atualização entretanto operada do valor mensal da renda para EUR 981,00), o recibo de depósito bancário mensal na conta da sua mãe, a cópia do cartão de Deficiente das Forças Armadas e a cópia do cartão de antigo combatente, impunham uma decisão diversa da recorrida (cfr. art.º 412.º, n.º 1 do CPC e art.º 640.º, n.º 1, al. b) do CPC, ambos ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE).
39. A alteração da matéria de facto, ora requerida, assume decisiva relevância ao conduzir a uma decisão diversa, uma vez que levaria necessariamente à fixação do montante de EUR 3.250,00, como o montante necessário para o sustento minimamente digno do Insolvente, ora Recorrente, acrescido do valor devido à ex-mulher a título de alimentos correspondente a EUR 750,00.
40. Face ao exposto, deve ser dada como provada a necessidade, para o sustento minimamente digno do Recorrente, das despesas suportadas pelo Recorrente acima invocadas, no valor médio mensal global de EUR 4.000,00 (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE), o que se requer.
41. De notar que os factos e despesas alegados - independentemente dos respetivos documentos comprovativos juntos com o requerimento inicial de 22/11/2023 - são também factos que o Tribunal deve conhecer enquanto instituição consciente da realidade social existente e que impunham, por isso, uma decisão diversa nos termos acima mencionados.
42. O montante correspondente a dois salários mínimos nacionais (no valor total de EUR 1.640,00), acrescido do valor da pensão de alimentos devido à ex-mulher (fixado como rendimento indisponível pelo Tribunal “a quo”) não assegura o sustento minimamente digno do Recorrente.
- DA ERRADA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA LEI
43. A Lei exclui do rendimento disponível, entre outros, o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do Insolvente e do seu agregado familiar, podendo exceder o limite de três vezes o salário mínimo nacional mediante decisão fundamentada do juiz (cfr. art.º 239.º, n.º 3, alínea b), subalínea i) do CIRE).
44. Sem contar com a pensão de alimentos devida à ex-mulher, acautelada (e bem) pelo Tribunal “a quo”, o montante correspondente a dois salários mínimos nacionais (EUR 820,00 x 2 = EUR 1.640,00) mostra-se insuficiente atendendo às demais despesas a que o Recorrente tem atualmente de fazer face mensalmente, que ascendem a um total médio de EUR 3.250,00 (sem contar com a pensão de alimentos que corresponde a uma despesa adicional de EUR
750,00).
45. O valor das despesas necessárias e atendíveis a que o Recorrente tem de fazer face todos os meses ultrapassa o montante que lhe foi conferido pelo Tribunal “a quo” como o necessário para o seu sustento minimamente digno,
46. Sendo que só as despesas comprovadas documentalmente nos autos (e sem contar com a pensão de alimentos à ex-mulher também comprovada documentalmente): (renda – EUR 981,00 e comparticipação mensal nas despesas do lar da sua mãe – EUR 200,00) perfazem o valor mensal de EUR 1.181,00,
47. O que significa que, tendo em conta o valor do rendimento indisponível fixado pelo Tribunal “a quo” ( 2 SMN = EUR 1.640,00 ), sobra ao Recorrente apenas o valor mensal de EUR 459,00 (!!) para alimentação, higiene, vestuário, calçado, serviços de limpeza e tratamento de roupa, eletricidade, água, gás e telecomunicações, consultas médicas, medicamentos e transportes, mostrando-se, assim, completamente impossível ao Recorrente fazer face às suas despesas do dia-a-dia.
48. O Tribunal “a quo” não fez a devida ponderação casuística das circunstâncias particulares do devedor, pois, face à situação factual particular do Recorrente e de modo a garantir a conformidade constitucional e prosseguir o espírito da Lei, deveria ter-lhe sido atribuído, a título de rendimento indisponível, pelo menos o montante equivalente a EUR 3.250,00, acrescido do valor a título de alimentos devidos à ex-mulher (EUR 750,00), ou seja, o montante total de EUR 4.000,00, por se mostrar ser este o montante mínimo necessário para assegurar o seu sustento minimamente digno.
49. A figura do salário mínimo nacional, perspetivada em todas as suas aplicações, visa reconhecer que há um mínimo de rendimento que deverá ser assegurado a cada indivíduo, mas esse mínimo pode e deve ser reconsiderado quando existam despesas atendíveis que justifiquem o seu aumento.
50. Não restam dúvidas de que, tendo em conta as despesas concretamente alegadas e demonstradas pelo Recorrente (cuja apreciação casuística impunha a fixação do total do valor indisponível em, pelo menos, EUR 4.000,00), a determinação que foi feita pelo Tribunal “a quo” do valor do rendimento indisponível – em apenas EUR 1.640,00, acrescido do valor a título de alimentos devidos à ex-mulher – viola o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente consagrado (cfr. artigo 18.º, n.º 2 da Constituição).
51. Face a tudo quanto antecede, a decisão ora recorrida viola as disposições conjugadas dos artigos 239.º, n.º 3, alínea b), subalínea i) do CIRE, e 1.º da Constituição da República Portuguesa, pois não permite que o Recorrente veja o seu sustento minimamente condigno assegurado,
52. Razão pela qual deverá ser substituída por outra que, aumentando o valor considerado necessário para o sustento minimamente digno do Recorrente para o montante equivalente a 5 (cinco) salários mínimos nacionais, permita assegurar a subsistência condigna do Recorrente e do seu agregado familiar.
Por outro lado,
53. Deveria o Tribunal “a quo” ter excluído do cálculo do rendimento disponível o valor recebido pelo Recorrente a título de pensão por Deficiência das Forças Armadas, no valor de EUR 1.632,50, o que não fez.
54. Aos antigos combatentes é especificamente reconhecido um conjunto de direitos de natureza social e económica, o que se justifica, em parte, pelas diversas necessidades acrescidas de cuidados de saúde física e mental.
55. No entanto, no reconhecimento de que o prejuízo incorrido por estes cidadãos, no seu serviço ao Estado português, nunca será plenamente retribuível, entendeu o mesmo Estado português definir, adicionalmente, um conjunto de benefícios pecuniários, que procuram não mais que indemnizar os danos infringidos pelo conflito, em diferentes fases da vida.
56. Este não é mais que o reconhecimento legal do princípio moral de que estes cidadãos são credores vitalícios do Estado português.
57. As prestações associadas à condição de antigo combatente (ainda por cima, tratando-se de pensão por deficiência) têm assim o propósito de suprir restrições e carências impostas dos direitos individuais e de cidadania, protegendo a sua dignidade, e o pleno respeito pelos seus direitos humanos.
58. Não têm, por isso, o propósito de remunerar (i.e., não têm uma natureza contributiva), pois são para os seus beneficiários a garantia de níveis mínimos de dignidade humana, que neste caso se dimensionam, necessariamente, de acordo com as necessidades e as circunstâncias atrozes que resultam da experiência de combate em conflitos militares.
59. Em particular, deve a dignidade humana dos antigos combatentes ser aferida em função das lesões físicas e psicológicas permanentes que aí sofreram, assim como também em função dos cuidados diários ou regulares, das condições favoráveis de conforto, e do maior auxílio na realização de tarefas quotidianas que a sua situação requer.
60. Não se vislumbra, por conseguinte, como as prestações sociais auferidas por um Deficiente das Forças Armadas possam ser sujeitas a cessão pela flagrante colisão destes, e dos direitos, com os direitos fundamentais dos seus beneficiários.
61. O valor das prestações sociais atribuído pelo Estado português ao Recorrente, enquanto antigo combatente e Deficiente das Forças Armadas deve considerado como o valor destinado a devolver-lhe uma condição de vida aproximadamente equivalente à de um qualquer outro cidadão (no sentido de procurar compensar o prejuízo permanente tanto a nível físico – não tivesse o Recorrente ficado deficiente! – como também e naturalmente a nível psicológico).
62. Por conseguinte, o Tribunal “a quo” ao integrar no cálculo do valor do rendimento disponível os rendimentos provenientes da pensão concedida por ser antigo combatente e Deficiente das Forças Armadas, violou as disposições conjugadas dos artigos 239.º, n.º 3, alínea b), subalínea i) e iii) do CIRE e 1.º da Constituição da República Portuguesa,
63. Razão pela qual a decisão recorrida deverá ser substituída por outra que: além de aumentar o valor considerado necessário para o sustento minimamente digno do Recorrente para o montante equivalente a 5 (cinco) salários mínimos nacionais – conforme acima pugnado –, também exclua do cálculo do valor do rendimento disponível os rendimentos provenientes especificamente da pensão concedida por ser antigo combatente e Deficiente das Forças Armadas, no valor mensal de EUR 1.632,50.
Com as alegações requereu a junção de recibo da renda do mês de janeiro de 2024 emitido em 23.01.2024 e para demonstração do valor atualizado da mesma.
5. Não foram apresentadas contra-alegações.
6. Por despacho da relatora, e no exercício do poder-dever de suprimento da deficiente motivação e descrição factual da decisão recorrida nos termos previstos pelo ars. 652º, nº 1 e 2, al. b) do CPC, o recorrente foi notificado para juntar documentos comprovativos de factos que oportunamente alegou.
II – Do documento junto com as alegações
Sob a epigrafe Junção de documentos e de pareceres prevê o art. 651º do CPC que As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância. Por sua vez prevê o artigo 425º do CPC que Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
A impossibilidade pressuposta pelo citado art. 425º do CPC reporta à superveniência do documento por referência, no limite, à data da prolação da decisão recorrida. Superveniência que é subjetiva se, tratando-se de documento pré-existente, a parte apenas dele teve conhecimento posteriormente ao encerramento da audiência ou, na ausência desta, à prolação da sentença. É de natureza objetiva se o documento foi produzido – e só poderia ter sido produzido – depois de cumpridos aqueles atos processuais. 
O documento em questão respeita a facto/despesa oportunamente alegada nos autos – renda do imóvel que constitui a habitação do recorrente – pelo que o julgamento proferido na 1ª instância não tornou necessária a sua junção.
O documento também não enquadra em qualquer uma das modalidades de superveniência na medida em que foi produzido no dia 23.01.2024 – data da sua emissão no local do portal das finanças próprio para o efeito -, coincidente com a data da junção aos autos do relatório a que alude o art. 155º do CIRE que, na tramitação legal do incidente de exoneração do passivo restante, precede a prolação do despacho inicial de admissão do incidente pelo que, à data em que este foi proferido, em 26.02.2024, o documento já existia e na esfera de conhecimento do recorrente, que nada alegou em contrário para justificar a sua junção apenas em sede de recurso e a prolação da decisão recorrida à margem do valor que documenta.
Sem prejuízo sempre se acrescenta que do contrato de arrendamento junto com o relatório do AI e ao qual reporta o recibo de renda em questão, resulta que o valor da renda corresponde ao que este documenta (€981,00).
Nestes termos, por intempestiva carece de fundamento legal a junção do documento apresentado com as alegações de recurso, motivo pelo qual vai rejeitado.
III - Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635º, nº 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida, é balizado pelo objeto desta, tal qual como surge configurado pelas partes de acordo com as questões por elas suscitadas, e destina-se a reapreciar – “a controlar e a corrigir os erros da decisão recorrida” - e, se for o caso, a revogar ou a modificar decisões proferidas, e não a analisar e a criar soluções sobre questões – de facto ou de direito - que não foram sujeitas à apreciação do tribunal a quo, correspondendo este ao sistema de reponderação da decisão adotado pelo nosso regime legal de recurso, em contraposição com o sistema de reexame do objeto do processo.  
Assim, mantendo-se o recurso reservado à função processual que a lei processual lhe assinala, de reponderação do julgamento realizado pela decisão recorrida[1], mister é que a matéria das conclusões se contenha no objeto da decisão, ou seja, nas questões que foram submetidas à apreciação do tribunal recorrido.
Como é sobejamente sabido, na delimitação do objeto do processo intervêm os princípios do pedido e do dispositivo consagrados pelos arts. 3º, nº 1 e 5º, nº 1 do CPC (e entendidos com a amplitude da teoria da substanciação), princípios que deferem às partes o ónus de propor a ação em juízo e formular o pedido através do qual identificam a tutela que demandam para os seus interesses, traduzida no efeito jurídico pretendido obter com a ação (cfr. art. 581º, nº 3 do CPC). É através do pedido que as partes configuram o objeto do processo, do contraditório, dos poderes de conhecimento do juiz e, consequentemente, o âmbito da decisão ao qual o juiz está (negativa e positivamente) vinculado em função da tutela jurisdicional requerida. Na apreciação do pedido o tribunal não fica sujeito ao alegado pelas partes quanto à determinação e interpretação das normas jurídicas aplicáveis (cfr. art. 5º, nº 3 do CPC), mas a decisão que profere só pode basear-se nos factos alegados e disponíveis no processo.
Princípios que nos mesmos moldes limitam o âmbito do poder-dever de apreciação do tribunal de recurso no sentido de dele excluir questões de facto e de direito que, não tendo sido suscitadas perante o tribunal recorrido, não podem fundamentar um qualquer pedido de reapreciação e modificação da decisão por ele proferida, ou a regra da substituição ao tribunal recorrido prevista pelo art. 665º do CPC. Nas palavras de Abrantes Geraldes, Na fase de recurso, as partes e o tribunal superior devem partir do pressuposto de que a questão já foi objeto de decisão, tratando-se apenas de apreciar a sua manutenção, alteração ou revogação. Por outro lado, a demanda do tribunal superior está circunscrita às questões já submetidas ao tribunal de categoria inferior, com exceção da possibilidade de serem suscitadas ou apreciadas questões de conhecimento oficioso, v.g. a inconstitucionalidade de normas, a nulidade dos contratos, o abuso de direito ou a caducidade em matéria de direitos indisponíveis, relativamente às quais existam nos autos elementos de facto suficientes. [2]; acrescente-se, factos alegados pelas partes perante o tribunal recorrido.
Por isso se prevê e afirma que os recursos se destinam a impugnar as decisões judiciais - com fundamento em erro de procedimento, ou em erro de julgamento – e não a criar decisões sobre matéria nova, sendo o âmbito do recurso delimitado pelo conteúdo do ato recorrido. «Destinando-se os recursos unicamente a modificar as decisões recorridas, e não a criar decisões sobre matéria nova, não lhes pode ser atribuído um âmbito que excede a sua própria finalidade[3]  O tribunal de recurso repondera a decisão sobre a causa, limitando tal reponderação às questões decididas pelo tribunal a quo e à matéria de facto que este tinha ao seu dispor nos autos. Se os fundamentos do recurso corresponderem a questões novas, não abrangidas pelo poder-dever de apreciação do tribunal recorrido, o recurso carece de fundamentos para modificar, anular ou revogar a decisão recorrida e, assim, em ultima análise, carece de objeto. A aceitar-se o contrário, (…) levaria a admitir-se, em matéria de recursos, a própria revogação de uma decisão, válida e correta, por o tribunal superior fazer intervir, na reponderação, factos de que o juiz a quo não tivera sequer conhecimento por não terem sido carreados pelas partes ao processo (sendo certo que não devia, deles, ter conhecimento oficioso). (…) O objeto do recurso é a decisão proferida, competindo ao tribunal superior julgar se foi justa ou injusta, não interessando «senão comparar a decisão com os dados que o juiz decidente possuía» (Mendes, j. Castro, Recursos, Lisboa 1972, p. 22). [4]
Em conformidade, no confronto entre as questões de facto e de direito que com o pedido de admissão do incidente de exoneração do passivo restante o recorrente submeteu à apreciação do tribunal recorrido, e os fundamentos e pretensões que deduziu em sede de recurso, surge à evidência que a exclusão do valor da pensão de deficiente das Forças Armadas do cálculo do valor do rendimento disponível corresponde a questão de direito e pedido que o recorrente não alegou nem submeteu à apreciação do tribunal recorrido nem por este foi ponderada e apreciada pelo que, nessa parte, o recurso surge sem objeto por incidir sobre questão e pedido que não integram o objeto da decisão recorrida. Efetivamente, o que se contabiliza ou não para em cada momento se apurar o concreto montante dos rendimentos a entregar à fidúcia é questão que não está abrangida, sequer implicitamente, pela fixação do montante excluído da cessão objeto da decisão recorrida que, como é habitual, o tribunal recorrido fixou por referência ao que considerou serem as despesas atendíveis (âmbito em que, para além dos encargos no montante equivalente ao dobro do salário mínimo nacional, especificou a pensão de alimentos ao ex-cônjuge do recorrente), e não por referência aos rendimentos ou ao título a que os mesmos são auferidos, sendo que não foi proferida decisão alguma a declarar que aquela pensão se contabiliza para cálculo dos rendimentos a ceder, nem o recorrente requereu o contrário perante o tribunal recorrido. Assim sendo, não cumprindo aqui antecipar o que, em primeiro grau, caberá à primeira instancia apreciar se e quando a questão for suscitada nos autos, fica excluído do objeto da apreciação a cumprir nesta instância por se apresentar como questão (e pedido) nova.
Acresce que o tribunal não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos nas alegações das partes, mas apenas das questões de facto ou de direito suscitadas que, contidas nos elementos da causa (ou do incidente), se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto.
Excluída a referida questão/pedido (de descaracterização da pensão das forças armadas como rendimento e desconsideração da mesma no cômputo dos rendimentos disponíveis), no demais, considerando o objeto da decisão recorrida e as conclusões do recurso, cumpre apenas apreciar se, conforme defende o recorrente, o valor dos rendimentos que a decisão recorrida excluiu da cessão à fidúcia fica aquém do razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno e do agregado familiar, conforme prevê o art. 239º, nº 4 al. al. b).
IV - Fundamentação
A) De Facto:
1 - Sob a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto, prevê o art. 662º do CPC que, 1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.//2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (…); c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; (…). Da conjugação dos arts. 662º nº 1 e 2, al. c) e 663º, nº 2 do CPC resulta que os poderes cognitivos da Relação em matéria de julgamento de facto abrangem o poder-dever de proceder ex offício a ampliação da matéria de facto necessária ou pertinente à boa decisão do mérito da causa caso do processo constem elementos que o permitam ou, assim não sucedendo, anular a sentença para permitir a ampliação da matéria de facto que se revele indispensável à decisão da causa. Sem prejuízo, como é avançado por A. Geraldes, P. Pimenta  L. Sousa, da produção oficiosa de “novos meios de prova em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada em 1ª instância.”, mais aduzindo que, “[q]uando estiver em causa a deficiente fundamentação da decisão da matéria de facto, a devolução do processo deve ser guardada para casos em que, além de serem efetivamente relevantes, não possam sequer ser remediados através do exercício autónomo do poder de reapreciação dos meios de prova.”[5]
Em conformidade com o exposto, com relevo para a apreciação do recurso, do alegado e documentos juntos aos autos com a petição inicial e com o relatório do AI e, nos termos determinados por despachos preliminares da relatora, nesta instância, resultam demonstrados os seguintes factos:
1. O recorrente nasceu em julho de 1950, casou com B., dela se divorciou por decisão proferida e transitada em 03.05.210, e por sentenças proferidas em 03.10.2019 e 04.01.2022 pelo Juízo de Comércio de Lisboa foi inibido para o exercício do comércio, da ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa publica ou cooperativa pelos períodos, respetivamente, de cinco anos e de três anos e dez meses.
2. No âmbito de processo de divórcio do recorrente, realizado por mutuo consentimento, a decisão que o decretou mais homologou acordo de prestação de alimentos pelo recorrente à sua ex-mulher, no valor mensal de €750,00.  
3. O recorrente é beneficiário de pensão de velhice pelo Instituto da Segurança Social no valor mensal de €3.162,51.
4. O recorrente é portador de cartão de deficiente das Forças Armadas homologado em 27.02.1977 com deficiência de 0,0%, e beneficiário de pensão nessa qualidade (de deficiente das Forças Armadas) desde 01.08.1983 no valor de €1.151,12 que, em novembro de 2023, ascendia ao valor de €1.632,38, pensão sobre a qual, na referida data, incidia desconto judicial no valor de €525,08.
5. Em 29.12.2023 o recorrente celebrou contrato de arrendamento de fração autónoma destinada a habitação sita na Rua … da freguesia de Marvila de Lisboa, mediante a renda mensal de €981,00 a pagar pelo recorrente na qualidade de locatário, correspondendo a fração ao local onde o recorrente já residia anteriormente ao abrigo de contrato de arrendamento celebrado em 21.07.2021 entre a locadora e o recorrente em representação da sociedade C…, Ldª, na qualidade de locatária, e por si na qualidade de fiador.
6. Na Autoridade Tributária constam inscritos a mãe do recorrente, este e dois irmãos deste, como beneficiários da herança aberta por óbito do pai do recorrente, ocorrido em 06.02.2021; em benefício da dita herança consta inscrita fração autónoma integrada em prédio sito em Algés, Oeiras, Lisboa, descrita na Conservatória do Registo Predial e aí inscrita em benefício dos pais do recorrente, com o valor patrimonial tributário de €82.854,45.
7. A mãe do recorrente tem 92 anos[6], sofre de demência, e aufere pensão de sobrevivência e complemento por dependência no valor mensal, para o ano de 2024, de €442,23.
8. Em 02.01.2023 a mãe do recorrente, este, e os seus irmãos, C. e D., celebraram contrato para alojamento e prestação de serviços de higiene e conforto pessoal e refeições em benefício da primeira em estabelecimento privado de alojamento coletivo para pessoas idosas ou em situação de dependência, no qual aquela passou a residir, com o custo mensal de €950,00, por cujo pagamento o recorrente e os seus irmãos se responsabilizaram como fiadores, incluindo pelo pagamento da aquisição de medicamentos, fraldas e transportes da sua mãe.
9. O recorrente e os seus irmãos dispõem em igual medida dos recursos monetários de cada um para, somados aos rendimentos da sua mãe, cumprirem o pagamento da totalidade do preço do Lar onde esta reside e dos medicamentos e fraldas de que esta carece.
10. O único bem/direito apreendido para a massa insolvente corresponde ao direito do recorrente na herança aberta por óbito do seu pai, que o recorrente requereu fosse dispensada da liquidação mediante o pagamento à massa insolvente da quantia de €10.356,81; dispensa que mereceu a concordância do AI por superior à proposta que a leiloeira por ele contratada para diligenciar pela venda declarou ter sido apresentada para aquisição daquele direito (€10.100,00).
11.  Da lista de créditos elaborada pelo AI constam créditos reconhecidos no montante total de €2.502.220,19, do qual €1.293.701,59 corresponde a capital e o restante a juros vencidos.
B) De Direito
1. O instituto da exoneração do passivo restante, previsto pelos arts. 235° e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, corresponde a concessão de beneficio a insolventes pessoas singulares que, esgotado que seja o património do devedor, se traduz num perdão de dívidas, sendo irrelevante para o efeito tratar-se de reduzidas ou de elevadas quantias, exonerando-os dos seus débitos com a perda e o sacrifício, para os credores, dos correspetivos créditos; beneficio que é concedido independentemente de, à data da apreciação do pedido, o devedor ser ou não titular de efetivos rendimentos e independentemente do respetivo montante, facto que a lei não erigiu a requisito da concessão do dito beneficio.
Conforme se extrai da exposição de motivos que consta do diploma preambular do Dec. Lei n° 53/2004 de 18.03 (ponto 45) e das fontes do instituto em questão, o perdão de dívidas que pelo instituto em apreço é concedido encontra justificação de ordem económico-social, visando a recuperação da pessoa singular enquanto agente económico em benefício de uma visão sistémica da economia, no ciclo e de acordo com os papéis dos que nela intervêm. Por referência à esfera jurídica do devedor, surge também justificado pelo interesse superior do direito à realização pessoal condigna de cada ser humano, sendo aquele beneficio concedido apenas se o devedor revelar conduta não desmerecedora do mesmo, a par com a reeducação, contemporânea com o decurso do período de cessão, de hábitos de consumo e poupança, com adequação do nível de vida aos rendimentos de que pode dispor e aos encargos que aquela importa, no quotidiano e em situações pontuais, mas previsíveis pela sua normalidade. Benefício/sacrifício que, nas palavras de Cláudia Oliveira Martins[7], justifica afirmar que o processo de insolvência, como primeiro pressuposto para o pedido de exoneração do passivo restante, deixou de ser o processo dos credores para passar a ser o processo dos devedores.
Assumindo o nosso legislador que o devedor não deve ser exonerado em qualquer circunstância, e sem perder de vista que este corresponde a um instituto legal ao qual o próprio decide se quer ou não recorrer, o perdão de dívidas por ele concedido não decorre automaticamente da declaração da insolvência nem da excussão do seu património, sendo concedido apenas se o devedor revelar conduta anterior não desmerecedora do mesmo, a par com a reeducação contemporânea de hábitos de consumo e poupança com adequação do nível de vida aos rendimentos de que pode dispor e aos encargos que esta importa, no quotidiano e em situações pontuais mas previsíveis pela sua normalidade, impondo-lhe para este efeito um período de ‘provação’, que o legislador designou de período de cessão do rendimento disponível. Este período corresponde a uma solução de compromisso na gestão do conflito dos interesses em evidente antítese no instituto da exoneração do passivo restante: por um lado, o interesse do devedor em libertar-se das suas dívidas, por outro lado o interesse dos credores na satisfação dos correspetivos créditos.
Na pendência do período de cessão – e, reitera-se, no contexto da voluntariedade do recurso ao instituto pelo devedor - recai sobre este o cumprimento das obrigações previstas pelo art. 239º, nº 4 como manifestação de um comportamento correto cuja inobservância pode obstar à concessão definitiva da exoneração. Na dinâmica e finalidade da exoneração do passivo, em rigor, estas obrigações enquadram-se juridicamente na figura do ónus associado ou emergente de um direito, enquanto requisito ou exigência a cumprir (pelo devedor) com vista à obtenção de um resultado em seu benefício e sob pena de o mesmo não lhe ser concedido, caso em que a sua situação se mantém inalterada para além da extinção do passivo que a execução de todo o seu património penhorável permita satisfazer.
Do conjunto dos ónus impostos durante o período de cessão[8] destaca-se com superior relevância e impacto na vida do exonerando a obrigação de ceder os rendimentos disponíveis que em cada mês (ou ano) são determinados na contraposição dos rendimentos efetivamente auferidos com os rendimentos necessários a uma subsistência humana e socialmente condigna, que ao juiz cabe quantificar e fixar por referência aos elementos de facto a respeito carreados nos autos - em benefício ou em prejuízo do interesse do devedor - vigorando aqui o princípio do inquisitório previsto pelo art. 11º do CIRE, cujo alcance abrange o âmbito do princípio da aquisição processual implícita e expressamente previsto pelos arts. 412º e 413º do CPC[9].
2. Dispõe o art. 239°, n° 3, al. b) do CIRE que Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor (...) com exclusão (...) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.”
Conforme é referido por Carvalho Fernandes e João Labareda, [a]s exclusões referidas nestas alíneas [a) e b)] assumem mais de uma modalidade, tendo diferentes fundamentos. Nesta visão, e por referência à al. b), imputa às subalíneas i) e ii) a ‘função interna do património’, enquanto suporte da vida económica do seu titular que, no contexto do conflito de interesses assinalado, prevalece sobre a função externa do património, enquanto garantia geral dos credores do respetivo titular[10]. Mais especificamente, o rendimento fixado por referência ao critério qualitativo previsto pela subalínea i) é o indissociável do instrumental e necessário à subsistência e custeio de necessidades do devedor e do seu agregado familiar, ou seja, o montante dos encargos de subsistência que, pela sua natureza indistintamente quotidiana ou periódica (alimentação, vestuário, higiene, etc.) se assumem comuns a todos e que, num padrão de normalidade ditada pela experiência geral, são passíveis de igual quantificação para a generalidade das pessoas. Dentro dessa mesma função, a exclusão prevista pela al. ii) está especificamente relacionada com a atividade profissional exercida pelo devedor e pretende salvaguardar as condições objetivamente necessárias à sua continuidade e garantir que a perceção de rendimentos do devedor não seja prejudicada, precisamente, pelo instituto que prevê a sua cessão. Tutela que aqui não se coloca uma vez que o recorrente está reformado e não alegou exercer qualquer atividade profissional.  
3. Em causa nestes autos está o item de exclusão da cessão previsto pelo art. 239º, nº 3, al. b), i), legalmente previsto por recurso a conceitos abertos e, por isso, sujeito a averiguação e concretização casuística, por reporte ao qual a decisão recorrida considerou o facto de o agregado familiar do recorrente ser constituído apenas pelo próprio, que para uma só pessoa as despesas alegadas são de valor excessivo e, sem outra fundamentação ou especificação, excluiu da cessão o correspondente a dois salários mínimos nacionais (atualmente designada de retribuição mínima mensal garantida, RMMG), acrescido da pensão de alimentos à ex-mulher do recorrente, esta no valor de €750,00 mensais. O recorrente opõe a insuficiência deste valor para suportar as suas despesas, que mantém e justifica nos termos em que inicialmente alegou e que acima se reproduziram.
Cumpre apreciar.
Por referência à pensão de alimentos ao ex-cônjuge desde já se salvaguarda que, não obstante tratar-se de direito de crédito (sobre o recorrente ou sobre a massa insolvente[11]), uma vez que a decisão recorrida a reconheceu como valor/obrigação a excluir da cessão de rendimento e que, nesta parte, não foi objeto de recurso por qualquer interessado, obsta à reapreciação dessa exclusão o princípio da reformatio in petius previsto pelo art. 635º, nº 5 do CPC, que exclui aquela questão do objeto do presente recurso.
Discute-se na jurisprudência o critério para fixação do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, sendo porém unanimemente aceite que tem como limite máximo o valor correspondente a três vezes a RMMG, que só excecionalmente poderá ser excedido, caso em que o legislador impõe ao julgador um dever acrescido de fundamentação da decisão[12]. A discussão da questão assume acuidade na definição do limite mínimo. O critério qualitativo para o efeito ali previsto e tutelado corresponde ao principio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º da Constituição da República Portuguesa), princípio universal de qualquer normativo de tutela dos direitos fundamentais que, por isso, e por imposição do princípio da igualdade de todos perante a lei - perante a qual não há ‘pessoas de primeira’ e ‘pessoas de segunda’ - é igual para qualquer cidadão, e que se impõe interpretar e integrar de acordo com o previsto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo art. 25º prevê que [T]oda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários (…). Conceção ampla que, na nossa ordem jurídica interna, subjaz ao conceito legal de alimentos definido pelo art. 2003º do Código Civil: [t]udo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário.
Na tarefa da concreta quantificação do montante a excluir da cessão, na jurisprudência produzida em primeira e segunda instâncias destaca-se o recurso à RMMG como critério quantitativo referência para o apuramento do que em cada caso concreto possa entender-se como o rendimento necessário a uma vivência minimamente condigna[13]. Com efeito, o salário mínimo nacional foi entre nós pela primeira vez instituído no pós-revolução de 25 de abril, em 1974 e, de acordo com os seus mentores e defensores, no plano dos efeitos imediatos teve como principal objetivo melhorar as condições de vida de muitos trabalhadores que, então, viviam miseravelmente. Atualmente a RMMG, refém é certo das flutuações e concertações do sistema micro e macro económico-financeiro do país, corresponde à expressão numérica do que o legislador ordinário, no contexto sócio económico em que é fixado, entendeu como o mínimo para salvaguardar uma vivência condigna e que, por isso, não poderá deixar de ser considerado como referência obrigatória na tarefa de quantificação do rendimento a excluir da cessão determinada pelo incidente da exoneração do passivo restante durante aquele período ‘de provação’ e no contexto dos interesses nele em conflito, que não contém, sequer implícita, uma qualquer dimensão punitiva do devedor.
Extrai-se do exposto que, numa abordagem material do princípio universal da dignidade humana e do que subjaz à consagração do salário mínimo nacional, aquele principio é indissociável do instrumental e necessário à subsistência e custeio de necessidades do devedor e do seu agregado familiar, e que o sustento minimamente condigno não se reduz nem corresponde a um mínimo de sobrevivência física. A dignidade da pessoa atua (ainda que não exclusivamente) como diretriz jurídico-material tanto para a definição do núcleo essencial, quanto para a definição do que constitui a garantia do mínimo existencial, que, na esteira de farta doutrina, abrange bem mais do que a garantia da mera sobrevivência física, não podendo ser restringido, portanto, à noção de um mínimo vital ou a uma noção estritamente liberal de um mínimo suficiente para assegurar o exercício das liberdades fundamentais.[14] Por outro lado, também não corresponde ao que seria necessário para manter o nível de vida que o devedor detinha antes da declaração da sua insolvência, se superior ao necessário a uma vivência humanamente condigna naqueles termos compreendida. Nesse sentido, entre outros, acórdão da Relação de Coimbra, de 31.1.2012: Não existe qualquer correspondência directa entre o valor a retirar do rendimento disponível para garantir o sustento do devedor e o montante global das despesas por aquele indicadas – a não ser assim, o legislador diria que o valor a fixar deveria corresponder ao montante global das despesas apresentadas e não fixaria um valor máximo.[15]
Com efeito, o critério a atender não corresponde, sem mais, à mera soma das despesas médias mensais do devedor e do seu agregado familiar, mas antes enquanto encaradas no quadro de um cidadão ou de uma família inserida na sociedade atual com as contingências próprias do momento que esta e aquela atravessam, considerado ainda o meio rural ou urbano e ponto do país ou outro em que reside, enquanto fatores determinantes de um maior ou menor custo de vida para aceder ao mesmo tipo ou natureza de bens e serviços. Significa que o sacrifício com que o período de cessão onera o devedor e o sujeita a comprimir as suas despesas, reduzindo-as ao necessário a uma efetiva adaptação do padrão de vida ao estatuto conferido pela insolvência - que conduz à liquidação do seu património penhorável, caso exista - e pelo instituto da exoneração do passivo restante, do qual emerge o sacrifício de ceder rendimentos em benefício dos credores da insolvência (ou, previamente e, caso subsistam, dos credores da massa), que é justificado/legitimado pelo sacrifício que com este instituto o devedor impõe aos seus credores. Importa ter sempre presente que a alternativa ao sacrifício do devedor voluntariamente se sujeitar aos ónus do período de cessão é o direito de os credores prosseguirem com a cobrança coerciva dos seus créditos após o encerramento do processo de insolvência, com o consequente constrangimento de o devedor ver os seus rendimentos penhorados e afetados até ao pagamento da totalidade do seu passivo.
Constituindo aquele um critério referência, a RMMG não detém a virtualidade de, por si só, fundamentar a fixação do respetivo valor como o necessário ao sustento minimamente digno do devedor. A concretização do principio da dignidade humana e a inviolabilidade constitucional do direito a uma retribuição mínima periodicamente atualizada (cfr. art. 59º, nº 2 da CRP) exige que na fixação do montante excluído da cessão se atenda às particularidades do caso concreto, e que aquele seja o resultado de uma ponderação casuística, suportada em premissas gerais que, além do mais, sejam aptas ao cumprimento do princípio da justiça relativa[16], que se cumpre mediante a sua adaptação às circunstâncias do caso concreto. Na ausência de específicos e concretos critérios legais para quantificação, correspondência ou reprodução certa, aritmética, e objetiva do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, os critérios a atender na fixação do rendimento a excluir da cessão à fidúcia poderão reconduzir-se a um modo de decidir segundo a equidade, figura que, nas sábias palavras de Carneiro da Frada, “aponta uma dimensão ideal da Justiça e do Direito” e ambiciona realizar uma “justiça com coração” no pressuposto de que [n]as relações humanas, nem tudo é, portanto, direito (estrito)” e que [u]ma justiça sem coração é, de resto, uma justiça mutilada.”[17]
Importa frisar que, nesta tarefa, é irrelevante a determinação e a consideração do valor dos rendimentos auferidos pelo devedor posto que, independentemente de se cifrarem neste ou naquele valor, o que releva para efeitos de quantificação do rendimento excluído da cessão (o indisponível) é o montante considerado necessário para o sustento minimamente condigno, ou seja, o montante dos encargos de subsistência que, pela sua natureza indistintamente quotidiana ou periódica (habitação e fornecimento de bens essenciais, alimentação, educação, vestuário, higiene, etc.) se assumem comuns a todos e que, num padrão de normalidade ditada pela experiência geral, são passíveis de igual quantificação para a generalidade das pessoas. Neste particular, ao remeter para o salário mínimo nacional, o legislador dispensou [o] tribunal de proceder à análise e ponderação das despesas do devedor, avaliando a sua necessidade ou pertinência, demonstrada através de comprovativos como faturas de água, gás ou electricidade, talões de supermercado e afins, o que se traduziria numa intromissão na vida privada[18]. Despesas que serão sempre as mesmas independentemente dos rendimentos que aufira. Da mesma feita, é de todo irrelevante a determinação e a consideração do valor do passivo verificado nos autos, bem como os bens apreendidos para a massa.
Às referidas despesas – alimentação, higiene, vestuário, calçado, deslocações, e consumos de água, gás e/ou energia elétrica -, comuns a todos, acrescerão outras decorrentes de particularidades ou condições especiais daquela pessoa/insolvente e do respetivo agregado familiar, a considerar nos termos do nº 2, al b), i) do art. 239º, como por exemplo, o número de pessoas que integram o respetivo agregado familiar e que dele dependam ou, ao invés, que para ele contribuam com rendimentos, um regime alimentar especial ditado por razões de saúde, a necessidade de acompanhamento e de tratamento médico e medicamentoso  ditado por patologias, crónicas ou pontuais, deslocações para o trabalho quando suscetíveis de se particularizarem em relação à generalidade das pessoas (seja pela distância, seja pela ausência de rede de transportes  públicos suscetível de servir as necessidades de deslocação do devedor), ou a necessidade de assistência ou de prestação de cuidados por terceira pessoa, etc.
Nesta matéria cumpre realçar que, em matéria de fixação do rendimento indisponível (por referência ao qual é determinado o disponível), o incidente de exoneração do passivo restante assume vestes de procedimento de jurisdição voluntária na precisa medida em que aquele é passível de ser alterado com fundamento em concretas circunstâncias supervenientes (fixas, regulares ou ocasionais) que, precisamente, pela superveniência, não foram consideradas aquando da fixação dos rendimentos indisponíveis. O impulso processual para esse efeito compete ao requerente da exoneração, constitui ónus seu de assim proceder, requerendo e submetendo a apreciação judicial a alteração e a fixação do rendimento indisponível em montante superior ao que até aí se encontra em vigor, ou tão só a ocasional ressalva/exclusão de despesas pontualmente ocorridas, cfr. art. 239º, nº 3, al. b), iii) do CIRE.
4. Feito este enquadramento, dele resulta que o RMMG, atualmente fixado em €820,00[19], se tem como o necessário e suficiente para fazer face às despesas com alimentação, vestuário, calçado, contratos de fornecimento doméstico e deslocações, ou seja, despesas quotidianas comuns à generalidade das pessoas que mensalmente se repetem sem relevante diferenciação. Diferenciação que não decorre nem é legalmente reconhecida pela qualidade de ex-combatente das forças armadas posto que esta não lhe confere qualquer especial estatuto ou prorrogativa nestas matérias, que respeitam ao exercício da liberdade de iniciativa económico privada, a relações jurídicas de natureza patrimonial, e a obrigações que no âmbito das mesmas o recorrente contraiu e assumiu – se, como qualquer outro cidadão, exerceu em toda a plenitude aquele direito através, conforme alegou, da aquisição da qualidade de sócio e da assunção do cargo de gerente de cinco sociedades, das quais, ou em acumulação com outras, granjeou rendimentos que lhe proporcionam uma pensão de reforma por velhice muitíssimo superior à média nacional (que, em 2022, era de €6.184,00/ano[20]) e se, em consequência do exercício desse direito, incorreu em situação de insolvência e, nesse contexto, decidiu recorrer ao benefício da exoneração do passivo restante, terá igualmente que sujeitar-se às condições que a lei indistintamente prevê para a sua concessão, sendo certo que só a ele cabe decidir se mantém ou não interesse no incidente que requereu, posto que o benefício que no seu termo proporciona é precedido do cumprimento dos ónus indistintamente estabelecidos para a sua concessão. O recorrente parece esquecer que, na outra face do benefício que pretende obter, está o direito económico à propriedade privada da banda dos credores, igualmente tutelado pela lei fundamental (art. 62º da CRP), no sentido de verem cumprida a expetativa da maior satisfação possível dos seus direitos de crédito pelo produto do património do devedor. O sacrifício que, nos limites assinalados, o período de cessão lhe impõe, designada e principalmente, através da entrega dos rendimentos que aufere e que excedam o necessário à subsistência condigna de qualquer cidadão, é o mínimo para assegurar o equilíbrio dos interesses em presença[21].
De resto, o rol de direitos que o estatuto de antigo combatente concede[22] - isenção de taxas moderadoras, gratuitidade do passe intermodal nos transportes públicos das área metropolitanas e comunidades intermunicipais, gratuitidade da entrada nos museus e monumentos nacionais – facultam-lhe o acesso a serviços sem encargo (transporte na área da sua residência) ou com encargo reduzido (supressão das taxas moderadoras). O mesmo com os direitos emergente do estatuto de deficiente das forças armadas[23], que incluem redução de 75% nos transportes dos caminhos-de-ferro e 50% nos voos TAP de cabotagem, tratamento e hospitalização gratuitos em estabelecimentos do Estado, e concessões especiais para aquisição de habitação própria.
 Sem prejuízo do que em contraposição com o exposto já resulta, consigna-se expressamente a irrazoabilidade, o desajustamento dos valores que o recorrente pretende salvaguardar para si a título de despesas com alimentação, vestuário, calçado, limpeza e tratamento de roupa, contratos de fornecimento doméstico e deslocações, no total de €1.780,00 (€1.180+€250+€250+€100), que afrontam o direito dos credores à satisfação dos créditos à custa dos recursos patrimoniais do recorrente que, sem dúvida, excedem em largas centenas de euros o necessário à sua subsistência condigna, e a realidade sócio económica do país, designadamente, dos valores dos rendimentos auferidos pela maioria das pessoas com os quais, ainda que de forma modesta, provêm ao seu sustento condigno e do respetivo agregado familiar. Com efeito, o valor que o recorrente reclama como o necessário para despesas suas e que não incluem encargo com habitação nem outras pessoas ao seu encargo - designadamente, filhos menores ou filhos maiores a frequentar o ensino superior -, é superior à remuneração bruta total mensal média por trabalhador no primeiro trimestre de 2024, que se cifra em €1.443,00[24]. Acresce que as taxas de inflação (de 18,58% na alimentação e de € 27,6% nos consumos da habitação por referência ao índice de preços no consumidor) que o recorrente invoca para demonstrar a escalada dos preços e justificar os valores que reputa de necessários ao seu sustento reportam ao ano de 2022 e são contrariadas pela atual taxa de inflação que, de acordo com a informação divulgada pela Comissão Europeia[25], “desacelerou consideravelmente em 2023, caindo de um pico de 10,2% (base anual) no 4º trimestre de 2022 para 2,4 % (base anual) no 4º trimestre de 2023. Prevê-se que a inflação anual medida pelo IHPC caia de 5,3 % em 2023 para 2,3 % em 2024 e 1,9 % em 2025, valores inferiores às previsões do outono para ambos os anos.” Prognose muito próxima da informação contida no Boletim mensal de estatística de Maio de 2024 do Instituto Nacional de Estatística.[26] Neste particular, uma despesa de €250,00 especificamente para limpeza e tratamento de roupa sequer pode considerar-se como necessária a uma vivência digna, sendo certo que a execução dessa tarefa pelos seus próprios meios – ao invés de recorrer a prestação de serviços - não é em qualquer circunstância indigno, nem o recorrente invoca limitações de mobilidade que o impeçam de a realizar.
5. Das despesas comuns a todos e que não carecem de alegação nem de específica quantificação exclui-se o encargo com habitação que, na proporção com as demais, incluindo as despesas de alimentação, corresponde à que por regra mais onera as famílias em Portugal e, particularmente, as que dependem dos rendimentos de uma só pessoa ou, como é o caso do recorrente, dos que vivem sozinhos ou sem ninguém ao seu encargo, circunstância que se impõe valorar, assim como o local da residência do devedor, por ser facto publico e notório que o valor das rendas varia consideravelmente consoante a região em que se resida e da maior ou menor proximidade do local com os centros urbanos.
Assim, como circunstância ou despesa particular concreta a considerar e a valorar considera-se o facto de o recorrente residir em fração arrendada sita na cidade de Lisboa, mediante a renda mensal documentada de €981,00. Circunstância que releva de sobremaneira por ser facto público que o valor mediano das rendas para habitação na área metropolitana de Lisboa é superior ao valor mediano do país, não existindo elementos que permitam afirmar que as características, dimensão ou tipologia do imóvel arrendado pelo recorrente são além das necessárias a assegurar-lhe uma habitação condigna, ou que no mercado de arrendamento no concelho onde reside tem à sua disposição locais de habitação condignos e ajustados às suas necessidades com renda substancialmente inferior à por ele atualmente suportada. Ao invés, aproxima-se dos valores de rendas máximas para o ano de 2024 publicados pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana para efeitos do Decreto Lei nº 90-C/2022 de 30.12[27] que, para a cidade de Lisboa, indica valor máximo de €900,00,00 para arrendamento de habitação de tipologia T1[28].
A respeito do encargo com habitação refira-se que, ainda que a RMMG tenda a garantir o mínimo indispensável ao sustento condigno de cada um, a renda suportada com a habitação exclui-se dessa equação, não só pelos valores atualmente praticados no mercado da habitação, mas também por corresponder a despesa fixa e necessária que, no contexto de um agregado familiar integrado por um casal, são da responsabilidade e assumidas por ambos os elementos, para elas contribuindo com os rendimentos por cada um auferidos - ainda que cada um aufira apenas a RMMG, aquelas despesas, que são únicas e comuns em cada mês, não são suportadas apenas por uma, mas com a contribuição de duas remunerações. No reverso, a realidade e normalidade da vida revela que despesas há que não sofrem compressão ou decréscimo proporcional às que a esse mesmo título se impõem a uma família monoparental, que as assume e suporta singularmente com os rendimentos de uma só pessoa, para o que, por regra, aí sim, um salário mínimo é claramente insuficiente. É o que sucede com a renda da habitação.
O encargo da renda que o recorrente suporta pela sua habitação representa e consome cerca de 60% do valor dos rendimentos indisponíveis fixado pela decisão recorrida, correspondente ao dobro da RMMG, pelo que restaria ao recorrente cerca de €660,00 para assegurar todas as suas demais despesas, o que, concede-se, fica aquém do necessário a uma vivência minimamente condigna de acordo com os atuais padrões de vida que, para além da subsistência básica com alimentação, higiene e vestuário e calçado estritamente necessário), inclui o encargo mensal com o consumo de bens essenciais associados à habitação (eletricidade, gás, água, telecomunicações), pelo que por referência a estas despesas e ao concreto valor da renda da habitação, mais se adequará o correspondente a 2,2 a RMMG[29].
6. No requerimento inicial o recorrente mais indicou como sua despesa a quantia de €200,00 a título de comparticipação no pagamento do custo mensal do lar de terceira idade onde a sua mãe reside e de outras despesas desta com fraldas e medicamentos, a par com igual comparticipação de cada um dos seus irmãos.
Com efeito, resulta dos factos assentes que o rendimento mensal da mãe do recorrente é inferior ao encargo e despesas que esta tem, sendo certo que, pela idade e patologia de que padece, facilmente atingirão e poderão superar os €1.000,00. Certo é também que, conforme se prevê no arts 1874º, nº 1 do Código Civil (CC), entre pais e filhos existe um dever natural de assistência recíproca, que assenta no princípio da solidariedade familiar e inclui a obrigação de prestar alimentos. A obrigação de alimentos a que alude o art. 2003º do C.C. configura uma estrita obrigação de alimentos, de carácter eventual, pois, conforme prevê o ar. 2004º do CC, só nasce em caso de necessidade do alimentando e em função das possibilidades económicas do devedor, e visa prover ao sustento do familiar na medida do indispensável e pela ordem prevista no art. 2009º do CC. O conceito de necessidade do alimentando depende de cada caso concreto e pressupõe a impossibilidade ou incapacidade de o alimentando prover à sua subsistência ou à satisfação das necessidades da vida que a sua existência em concreto impõe, seja por que não pode trabalhar o bastante para o seu sustento, seja porque não tem bens que possam ser convertidos em pecúnia para acorrer às suas necessidades. Assim, para definir a necessidade do familiar credor atender-se-á ao valor dos seus bens e ao montante dos seus rendimentos, às dívidas que porventura tenha contraído, à circunstância de ter ou não outras possibilidades de ganhar a vida, à sua condição social, estado de saúde, etc. Outrossim, na apreciação das possibilidades do obrigado, deve atender-se às respetivas receitas e despesas, isto é, à parte disponível dos seus rendimentos normais, tendo em atenção as obrigações do devedor para com outras pessoas.
Ora, por referência à possibilidade de a mãe do recorrente prover aos seus encargos por recurso ao respetivo património, resulta assente que é cônjuge meeira de património integrado por um imóvel sito em Algés e com valor patrimonial superior a €80.000,00, património sobre o qual mais detém quinhão hereditário na proporção de 1/8 (considerando que concorre com três filhos à meação do outro cônjuge meeiro, autor da herança) pelo que, partindo do pressuposto que a herança é integrada apenas por aquele imóvel e que o seu valor de mercado não será inferior ao referido valor patrimonial, daí resulta que a mãe do recorrente é titular de direitos que, alienados ou vendido o património sobre os quais incide, poderão ser convertidos em cerca de pelo menos €50.000,00, quantia que permitiria custear as despesas atuais da mãe do recorrente por mais de 3 anos, soçobrando assim o fundamento legal da obrigação de prestação de alimentos (necessidade).
Da banda do recorrente temos que sobre ele recai passivo superior a €2M, do qual o recorrente requer ser exonerado, pelo que não pode pretender agravar o sacrifício dos seus credores através da prestação de assistência monetária à sua mãe que, além do mais, na pendência do processo de insolvência só poderia ser atribuída e fixada nos termos dos arts. 84º e 93º do CIRE, sem prejuízo de a parte da comparticipação do recorrente recair sobre os demais obrigados nos termos do art. 2010º, nº 2 do CC.
Termos em que se conclui pela ausência de fundamento legal para a requerida exclusão da cessão quantia de €200,00 a título de comparticipação nas despesas da sua mãe.
7. O recorrente mais requer a exclusão da quantia mensal de €300,00 a título de despesas médicas e medicamentosas ou terapêuticas para tratamento de doenças e mazelas da guerra.  Nesta parte sublinha-se antes de mais que a alegação na petição inicial de doenças crónicas, física e mental, não foi acompanhada de qualquer documento que as comprovasse, nem de qualquer despesa médica ou medicamentosa, que só nesta instância, e sem que a notificação ordenada pela relatora os incluísse, veio a juntar (fatura recibo de duas consultas médicas, uma de medicina física e de reabilitação em abril/24 e outra de nutrição em março/24, faturas recibo da aquisição de aparelho auditivo em abril de 2024, e de tratamentos realizados em abril e maio/24 e faturados ao recorrente ao abrigo de subsistema publico das forças armadas, IASFA).
Assim, não obstante as despesas médicas e medicamentosas decorrerem de circunstâncias/vicissitudes que a vida (malograda e invariavelmente) traz, não existem elementos/fundamentos que as permitam enquadrar no rol de despesas com periodicidade regular mensal e integrar no rendimento indisponível de modo genérico e indistintamente válido para todos os meses/anos, pelo que apenas deverão ser excluídas se e quanto realizadas e pelo montante em que forem documentalmente comprovadas, nos termos previstos pelo art. 239º, nº 3, al. b), iii) do CIRE.
Em conclusão, para além da assinalada e ponderada relevância da despesa com a renda da habitação e da salvaguarda de despesas médicas e medicamentosas prescritas e documentadas, no cotejo do alegado pelo recorrente não existem elementos que permitam concluir por outras circunstâncias excecionais ou particulares na vida do recorrente que justifiquem a fixação do rendimento indisponível no montante por ele requerido, correspondente a cinco vezes a RMMG.
Termos em que se conclui pela parcial procedência do recurso, com a fixação do rendimento excluído da cessão no correspondente a 2,20 a RMMG, acrescido das despesas médicas e medicamentosas prescritas e devidamente documentadas, mantendo-se a exclusão do montante da pensão de alimentos de €750,00 paga pelo recorrente à sua ex-cônjuge.

V - Decisão:
Por todo o exposto, os juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa decidem julgar a apelação parcialmente procedente, com consequente revogação da decisão no segmento recorrido, que se substitui por outro, a fixar o valor do rendimento a excluir da cessão no montante correspondente a 2,2 o RMMG, acrescido das despesas médicas e medicamentosas prescritas e documentalmente comprovadas, mantendo-se a exclusão da quantia de €750,00 decretada pelo tribunal recorrido a título de pensão de alimentos paga pelo recorrente à sua ex-cônjuge, e que não foi objeto de recurso.
Custas do recurso a cargo da recorrente na proporção do respetivo decaimento que, nos termos dos arts. 527º, º 2 e 300º do CPC, correspondente à diferença líquida entre o valor que requereu excluído da cessão (5x a RMMG) e o valor que lhe foi concedido (2,2 a RMMG, mais €750,00), vezes doze meses do ano e, o produto assim obtido, vezes três, o número de anos do período de cessão.

Lisboa, 11.07.2024
Amélia Sofia Rebelo
Manuela Espadaneira Lopes
Nuno Teixeira
_______________________________________________________
[1] Vd. J. Castro Mendes e M. Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, vol. I, p. 130
[2] Recursos em Processo Civil, Almedina, 6ª ed., p. 29-30.
[3] Ac. RL de 04.10.68, Jurisprudência das Relações, 14º, 568, apud Fernão Fernandes Thomaz e António Colaço Canário, in O Objeto do Recurso em Processo Civil, disponível em https://portal.oa.pt/upl/%7Bfa0c2156-0c4c-4ea9-b86b-7d8ca606ed43%7D.pdf
[4] Fernão Fernandes Thomaz e António Colaço Canário, obra cit.
[5] CPC Anotado, GPS, Vol. I, Almedina, 2ª ed., pp. 824 e 826.
[6] Considerou-se a idade da mãe do recorrente na data em que este nasceu, cfr. consta do assento de nascimento do recorrente.
[7] In Revista de Direito da Insolvência, Almedina 2016, p . 215.
[8] Entre nós inicialmente previsto com a duração de cinco anos, mas que as alterações introduzidas pela Lei nº 9/2022 de 11.01, em vigor desde 11 de abril, reduziram a três anos.
[9] Cumpre porém anotar que o princípio do inquisitório previsto pelo art. 11º do CIRE não oblitera o princípio do dispositivo; isto é, não desresponsabiliza os devedores do ónus de alegarem e demonstrarem os elementos de facto que no seu interesse e benefício pretendem sejam considerados em sede de valoração e fixação, inicial ou superveniente, do montante dos rendimentos a excluir da cessão.
[10] CIRE Anotado, Vol. II, 2005, p. 194.
[11] Vd. a respeito desta questão acórdão da RP de 08.05.2023 e da RL de 07.05.2024.
[12] Nesse sentido, entre outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2012, e da Relação de Lisboa de 11.07.2013, ambos disponíveis na página da dgsi).
[13] No dizer do Sr. Conselheiro Fonseca Ramos, Salvo o devido respeito, não entendemos que o “sustento minimamente digno” equivalha à atribuição de um mínimo pecuniário de estrita sobrevivência; de outro modo negar-se-ia ao instituto da exoneração a sua finalidade precípua de regeneração do insolvente para voltar à inclusão económica e social, expurgado de um passivo que não consegue solver.//As interpretações punitivas da lei correspondem, quantas vezes, a preconceitos e, num domínio em que o conceito de dignidade e a ideia de subsistência são primordiais, o padrão a adoptar deve ser aquele que, sem descurar os direitos dos credores, não afecte o devedor, remetendo-o aos limites de uma sobrevivência penosa, socialmente indigna, sob pena de a proclamada intenção de o recuperar economicamente constituir uma miragem.//O salário mínimo nacional, (SMN) pese embora não ter sido actualizado entre 2009 e 2014, deveria ser considerado o montante mínimo para acudir às despesas inerentes a uma vida que se pretende que seja vivida com dignidade, tendo em contas despesas, essas sim de sobrevivência, como são as relacionadas com a habitação, alimentação, vestuário, consumos de bens essenciais (água, luz, transportes) e assistência médica.//Nesta perspectiva consideramos que, em regra, o SMN é o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, no contexto da cessão de rendimentos pelo insolvente a quem foi concedida a exoneração do passivo restante, ou seja, nenhum devedor pode ser privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar uma vida digna. esse sentido (acórdão do STJ de 02.02.2016, proc. nº 3562/14.1T8GMR.G1.S1). No mesmo sentido, acórdão da RC de 06.07.2016, proferido no processo n.º 3347/15.8T8ACB-D.C1, relatado por Falcão de Magalhães, ambos disponíveis na página da dgsi, sendo que neste ultimo mais se justifica a não consideração do rendimento social de inserção como critério para apuramento do rendimento minimamente condigno.
[14] Tânia Sofia Marques de Almeida in Insolvência: exoneração do passivo restante Um olhar crítico quanto à fixação do sustento minimamente digno, Dissertação apresentada para a obtenção do grau de Mestre em Ciências Jurídico Forenses, consultável em file:///C:/Users/MJ01760/Desktop/Insolvência_exoneração%20do%20passivo%20restante.pdf.
[15] Nesse sentido, entre muitos outros, acórdão da RC de 09.01.2024.
[16] Entre outros, acórdão da RL de 27.02.2018, proc. nº 809/17.1T8BRR.L1-7, relatado por Higina Castelo.
[17] Em A EQUIDADE (OU A “JUSTIÇA COM CORAÇÃO”) A propósito da decisão arbitral segundo a equidade, disponível em https://www.oa.pt/upl/%7Ba83fee07-fbee-44a1-86d7-bef33f38eb86%7D.pdf
[18] Cláudia Oliveira Martins, in Revista de Direito da Insolvência, Almedina 2016, p. 222
[19] Decreto-Lei n.º 107/2023, de 17.11.
[20] Informação consultada no portal do Instituto Nacional de Estatística, acessível através do link https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_indicadores&indOcorrCod=0008248&contexto=bd&selTab=tab2&xlang=PT
[21] Vd. entre outros, acórdão da RE de 08.05.2024.
[22] Previstos no Estatuto aprovado pela Lei nº46/2020 de 20.08.
[23] Aprovado pelo Decreto Lei nº 43/76 de 20.01.
[24] Informação consultada no portal do Instituto Nacional de Estatística, acessível através do link https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_publicacoes&PUBLICACOESpub_boui=436982573&PUBLICACOESmodo=2
[25] Acessível e consultada através do link https://portugal.representation.ec.europa.eu/news/previsoes-economicas-do-inverno-de-2024-retoma-tardia-do-crescimento-num-contexto-de-abrandamento-da-2024-02-15_pt
[26] Informação consultada no link indicado na nota 21, pp. 25 e 27
[27] Diploma aprovado para alteração de outros inseridos no Programa de Apoio ao Arrendamento (“programa Porta 65” e “programa de apoio ao arrendamento”).
[28] Informação consultada no link https://www.portaldahabitacao.pt/web/guest/rendas-maximas-por-municipio.
[29] Vd. acórdão da RG de 04.04.2024.