Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6307/2006-7
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
MÉDICO
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
PRESUNÇÃO DE CULPA
ÓNUS DA PROVA
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
INCUMPRIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/23/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONCEDIDO PARCIAL PROVIMENTO
Sumário: I- Na responsabilidade civil contratual por acto médico, provada a violação das boas práticas médicas (lex artis )  susceptíveis de figurarem incumprimento ou incumprimento defeituoso, presume-se a culpa nos termos do artigo 799.º do Código Civil, cabendo ao médico  o ónus da prova da falta de culpa, ou seja, a prova de que, nas concretas circunstâncias, não podia e não devia ter agido de maneira diferente.
II- Este entendimento não agrava a posição processual do médico que disporá de excelentes meios de prova no seu arquivo, na ficha clínica, no processo individual do doente, além do seu acervo de conhecimentos técnicos.

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Sandra […] intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra A. […] e a […] Companhia de Seguros, S. A.” pedindo a condenação dos RR. a pagar-lhe 25.000,00 €, acrescidos de juros de mora vencidos desde a citação, à taxa legal, montante dos danos sofridos na sequência de um parto que o R., como médico obstetra, realizou.

2. A acção foi contestada e, a final, realizado o julgamento, foi proferida sentença que absolveu os RR. do pedido.

3. Inconformada, apela a A. a qual, em síntese conclusiva, diz:

Os factos provados permitem integrar um comportamento negligente por parte do R., gerador de obrigação de indemnizar, à luz dos arts. 15º e 148º, nºs 1 e 2, al. b), do CP e não das normas do CC citadas pela sentença recorrida.

4. Nas contra alegações, pugna-se pela manutenção da decisão recorrida.

5. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

6. É a seguinte a factualidade dada como provada:

O R., em 1998, era médico da PSP, em Lisboa (A).

Por sua vez a A. era casada com um agente da PSP, com direito aos serviços médicos da Corporação (B).

Para o que tinha a qualidade de beneficiária, com o número […] (C).

Por essa razão, a A., solicitou em princípios de 1997 os serviços médicos do R., tendo sido o R. que posteriormente acompanhou a sua gravidez a partir de Setembro de 1997 (D).

Para esse efeito, a A. ia mensalmente, ao consultório do R., por determinação deste (E).

Estas consultas mensais verificaram-se até à data do parto (F).

Na última consulta, ocorrida em 14 de Maio de 1998, o R. informou a A. de que o parto teria que ser provocado (G).

Para o que o próprio R. designou a data de 16 desse mesmo mês de Maio (H).

Do mesmo passo, o R. aconselhou à A. a Clínica de S. Gabriel, para o efeito (I).

Conselho que a A. seguiu, ficando internada na dita Clínica, no dia 15 do dito mês de Maio (J).

No dia seguinte, 16 de Maio, o R. provocou efectivamente o parto da A., ao qual prestou a necessária assistência clínica (K).

Tendo nascido uma criança de sexo feminino (L).

Após o parto, a placenta não saiu integralmente (1º).

Após o parto, o R. apercebeu-se que a placenta não saíra e tentou retirá-la (M).

O R. alertou a A. para a possibilidade de terem ficado no útero restos de placenta (N).

A placenta da A. era uma placenta acreta, o que não é vulgar acontecer, nem sequer é previsível ou susceptível de ser evitada (35º).

Uma placenta é acreta quando está inserida de forma anómala no útero e, como não há um plano de clivagem entre a placenta e o útero, é difícil, senão mesmo impossível, retirar a placenta na sua totalidade, ou constatar se a mesma saiu totalmente (36º).

Nestes casos de placenta acreta, nada há a fazer se não aguardar pelo desenrolar do processo de expulsão natural ou provocado (37º).

Casos há em que é necessário proceder-se a uma curetagem, ou seja, a uma raspagem do útero se, como foi o caso da A., vierem a surgir hemorragias (38º).

Em 22 de Maio, a A. voltou ao consultório do R. para retirar os pontos da sutura efectuada na sequência do parto (O).

Quando o R. tirou os pontos à A., em 22 de Maio, nada referiu relativamente a restos de placenta (4º).

Por volta de 5/6 de Julho seguinte, a A. teve uma grande hemorragia uterina, precedida de dores intensas (5º).

Em 6 de Julho, a A. contactou o R. queixando-se de dores e hemorragia, pelo que o R. lhe disse para ir ao seu consultório no dia seguinte, ou seja, em 7 de Julho, o que a A. fez (P).

Submetida, então, a exame o R. revelou, efectivamente, terem sido os restos de placenta que originaram a hemorragia (Q).

O R. aconselhou, por isso, a A., a ir, no dia seguinte (8 de Julho) ao Hospital S. Francisco de Xavier (R).

Onde ele R. estaria, então de serviço e a poderia examinar (S).

Tendo, efectivamente, comparecido no dia 8 de Julho, no Hospital de S. Francisco de Xavier, a A. ficou internada, durante 6 (seis) horas, para ser examinada (T).

Para esse exame e eventual tratamento, foi a A. submetida a anestesia geral (U).

Durante a qual lhe foi feita uma raspagem ao útero, para extracção dos restos de placenta que ainda lá se encontravam no útero (V).

Logo de seguida, nesse mesmo dia, foi dada alta à A. (W).

Sem que lhe tivesse sido receitado qualquer medicamento (X).

Tendo-lhe, até, sido dito não ser necessário tomar antibióticos (Y).

No regresso a casa, a A. sentiu muitas dores, tendo desmaiado já em casa (7º).

E no dia seguinte – 9 de Julho – a A., além das dores, teve de novo uma hemorragia (8º).

Alarmada, a A., por iniciativa própria, recorreu, em 10 de Julho, à urgência do Hospital Particular de Lisboa (9º).

Neste hospital, a A. foi de imediato submetida a análises e ecografias (10º).

As análises ao sangue eram compatíveis com uma ligeira anemia e uma infecção (11º).

A ecografia revelou a existência de imagens heterogéneas intra-uterinas compatíveis com restos placentários (12º).

As análises ao sangue revelaram uma velocidade de sedimentação de 54 mm/hora, o que é compatível com a existência de uma infecção (13º).

Para combater a infecção foi receitado à A., pelo médico que a assistiu, Dr. Luís Andrade Moniz, uma medicação com antibióticos, para debelar a infecção (15º).

Foi submetida a uma ecografia em 13 de Julho que revelou a existência de imagens heterogéneas intra-uterinas compatíveis com restos placentários (18º).

Em 14/07/1998, a A. foi consultada pelo Sr. Dr. L.[…] (19º).

No dia 16 de Julho, a A. foi ao Hospital Particular e fez novas análises que revelaram uma velocidade de sedimentação de 25 mm/hora (20º).

Por indicação do Dr. L.[…], a A., no dia 18 de Julho, foi à maternidade Alfredo da Costa, onde ficou internada (21º).

Aí foi submetida a exames médicos (22º).

Tendo sido submetida a A., nesse mesmo dia – 18 de Julho – a uma cirurgia com anestesia geral para lhe serem retirados os restos de placenta que ainda se encontravam no útero (23º).

A intervenção a que a A. foi submetida em 18 de Julho foi exactamente a mesma que o Réu fez e que se chama curetagem ou raspagem do útero e que, em menos de 24 horas, a doente tem alta (39º).

Dessa curetagem saíram fragmentos de diâmetro inferiores a 2 cm com peso total de 8 gramas (40º).

A placenta tem um peso de cerca de 500 gramas (41º).

Era possível que aquela quantidade de restos de placenta viesse a ser expulsa na menstruação seguinte (42º).

Do sucedido não resultou, em concreto perigo para a vida da A. (43º).

A A. teve alta da MAC em 19 de Julho de 1998 (24º).

Em 31/07/98 fez novas análises ao sangue que revelaram eritrócitos, hemoglobina e hematócrito com valores um pouco abaixo dos mínimos, e uma velocidade de sedimentação de 21 mm/hora; e em 30/07/98 fez ecografia, com resultados normais (27º).

Em consultas e exames a A. despendeu, pelo menos, 354,27 € (71.025$00) (32º).

Além de ter sentido medo dos internamentos, a A. ficou psicologicamente afectada com os riscos que pensou que corria e com a impossibilidade de prestar assistência à sua filha recém nascida (34º).

O R. transferiu a sua responsabilidade civil profissional para a […]Companhia de Seguros, S. A., através da Apólice n.º[…] com início em 1 de Janeiro de 1993, com o capital global de 329.206,61 € (Z).

6.1. Ao abrigo do disposto no art. 659º, do CPC, por ter sido expressamente confessado pelo réu, na contestação, considera-se ainda provado que:

A raspagem ao útero, para extracção dos restos de placenta, a que se alude na al. v), foi realizada pelo réu.

7. Se há matéria delicada, à qual crescentemente se tem dedicado a comunidade jurídica, é precisamente a da responsabilidade médica, na dupla vertente da responsabilidade civil e penal.

7.1. Como observa Guilherme de Oliveira, Temas de Direito da Medicina, 92, “os médicos, para além de, em épocas longas, terem beneficiado da condição cumulativa e privilegiada de eclesiásticos, estiveram sempre tão próximos do divino quanto a própria doença: desde o velho culto de Asclépio até à mistura que ainda hoje persiste entre um saber racional e um saber mágico, toda a caminhada do sofrimento humano garantiu à medicina um estatuto superior e estabilizado que não se compadecia com a humana prestação de contas. Além disto, os conhecimentos médicos mantiveram-se estagnados durante centenas de anos, seguindo-se por toda a parte o ensinamento de dois ou três mestres antigos; este estado de conhecimentos não daria ensejo para julgar da oportunidade e da conveniência de um tratamento, sendo certo que, em regra, não havia alternativa terapêutica, ou não havia um critério seguro de julgamento.

(…)

Foi preciso esperar pela superação do conceito helenístico de pessoa, pela afirmação do indivíduo como ser moral autónomo, pela definição de uma teoria dos direitos fundamentais, pelos progressos das ciências médicas, para que a atitude social perante os médicos mudasse. Só então surgiu uma consciência social crítica relativamente à prática clínica.

(…)

Numa palavra, a Medicina foi despindo as vestes do sagrado que lhe tinham garantido a impunidade jurídica.”

7.2. Aproximemo-nos agora do caso concreto.

Entre a autora e o réu foi celebrado um contrato de prestação de serviços a que se aplicam as disposições relativas ao mandato, com as necessárias adaptações, uma vez que se está perante uma modalidade de prestação de serviços que a lei não regula especialmente (arts 1154º e 1156º do CC).

Sendo assim, como decorre do art. 799º, nº 1, do CC, dir-se-ia que impende sobre o devedor uma presunção  de culpa, que lhe cumpre elidir, se pretender furtar-se à obrigação de indemnizar por falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso.

7.2.1. Porém, no direito português (1), uma boa parte da doutrina (2) e da jurisprudência, adoptando a clássica distinção entre obrigação de meios e de resultado (3), considera que a presunção de culpa do devedor não tem – em regra – cabimento no âmbito da responsabilidade civil por acto médico, com o argumento de que a obrigação a que este se encontra vinculado é uma obrigação de meios, pois o médico estaria (apenas) adstrito a prestar ao doente os melhores cuidados, em conformidade com as leges artis e os conhecimentos científicos actualizados e comprovados à data da intervenção, mas não a cura.

Assim, por força desta especificidade, tal como na responsabilidade  extra contratual, seria o credor que teria de provar em juízo a desconformidade entre a conduta do devedor e aquela que, em abstracto, proporcionaria o resultado pretendido.

Conscientes das dificuldades que esta posição representa para os lesados, as mais das vezes impossibilitados de fazer a prova cabal dos pressupostos da responsabilidade civil, alguns autores, como por exemplo, André Dias Pereira, in O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente, Coimbra, 2004, 422 e ss, defendem que, muito embora caiba ao demandante o ónus da prova da violação da lex artis (ilicitude), no tocante à culpa, deve a mesma presumir-se, nos termos do art. 799º, do CC, cabendo ao médico o ónus da prova da falta de culpa, ou seja a prova de que, naquelas circunstâncias, não podia e não devia ter agido de maneira diferente.

Movidos também pela necessidade de suavizar a rigorosa exigência de uma prova completa dos factos a cargo do demandante que, em regra, é um paciente não dotado de conhecimentos médicos, outros autores defendem que o julgador na apreciação da prova deve levar em consideração «as naturais dificuldades da sua realização e, nessas circunstâncias, julgar suficiente uma prova que, noutra situação, não seria bastante para a prova do facto» – cfr., neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, Sobre o Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica, Direito da Saúde e Bioética, 1996, 140 e Manuel Rosário Nunes, O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil por Actos Médicos, 69.

Por sua vez, no Estudo sobre a Responsabilidade Médica em Portugal, BMJ 332, pags. 21 e ss., Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, defendem que, ao invés de fazer recair a prova da culpa sobre o lesado, o juiz pode ter em conta na apreciação da prova as chamadas presunções judiciais» e que se inspiram nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos dados da intuição humana.

Refira-se, finalmente, que alguma doutrina (4) defende a aplicação do nº2, do art. 493º, do CC, sempre que se utilizem, no decurso, do acto médico, coisas ou instrumentos perigosos, tais como aparelhos de «raios x», ondas curtas ou ressonâncias magnéticas.

7.2.2. Pela nossa parte, perfilhamos o entendimento de que, na responsabilidade por acto médico, não há razões que levem a afastar a regra (geral) consagrada no art. 799º, nº1, do CC, que faz recair sobre o devedor uma presunção de culpa. (5)

Com efeito, como afirma Álvaro Gomes Rodrigues, Reflexões em torno da Responsabilidade Civil dos Médicos, Revista Direito e Justiça, 2000, XIV, 182 e ss. e 209:

"Sendo o contrato médico um contrato de prestação de serviços, como a doutrina e a jurisprudência afirmam, o «resultado» a que alude a art. 1154º, do nosso diploma substantivo fundamental, parece dever considerar-se não a cura em si, mas os cuidados de saúde, já que o objecto do contrato de saúde não é a cura, mas a prestação de tais cuidados ou tratamentos.

Sendo assim, será de pensar se verdadeiramente se está ante uma obrigação de meios ou de resultado, tudo dependendo da deslocação do centro de gravidade da questão, ou seja, do próprio conceito de resultado no contrato de prestação de serviços que se estabelece entre o médico e o doente.

A outra nota a extrair é que, consagrando o art. 799º, nº 1, do C. Civil, uma presunção de culpa do devedor, caso se considere que a obrigação do mé­dico é uma obrigação de meios, sobre este recai o ónus de prova de que agiu com a diligência e perícia devidas, se se quiser eximir à sua responsabilidade, pois o resultado do seu trabalho intelectual e manual é o próprio tratamento e não a cura.”

(...)

"Cremos que no domínio da responsabilidade contratual não militam quaisquer razões de peso específicas, da responsabilidade médica, que abram uma brecha na presunção de culpa do devedor consagrada no nº1, do art. 799º, do C. Civil, quer se entenda que a obrigação contratual do médico é uma obrigação de meios, quer se considere que a mesma é uma obrigação de resultado.

O ónus da prova da diligência  recairá sobre o médico, caso o lesado faça prova da existência do vínculo contratual e dos factos demonstrativos do seu incumprimento ou cumprimento defeituoso.

Com isto em nada se está a agravar a posição processual do médico, que disporá de excelentes meios de prova no seu arquivo, na ficha clínica, no pro­cesso individual do doente, além do seu acervo de conhecimentos técnicos.

Por outro lado, tal posição tem o mérito de não dificultar substancialmente a posição do doente que, desde logo, está numa posição processual mais debilitada, pois não sendo, geralmente, técnico de medicina não dispõe de conhecimentos adequados e, doutra banda, não disporá dos registos necessários (e, possivelmente, da colaboração de outros médicos) para cabal demonstração da culpa do médico inadimplente."

Sobre esta problemática, também o Prof. Sinde Monteiro entende que, estabelecendo-se entre médico e paciente um contrato, sobre o médico recai, por força da aplicação do regime da responsabilidade contratual, em caso de incumprimento, a presunção de culpa que o art. 799º, do CC prevê. (6 

Na jurisprudência, este entendimento foi acolhido no Ac. do STJ de 17/12/2002, ITIJ, SJ200212170040576, de que foi relator o Juiz Conselheiro Afonso de Melo, nos seguintes termos:

“O médico, e é esta a actividade profissional que importa considerar aqui, põe à disposição do cliente a sua técnica e experiência destinadas a obter um resultado que se afigura provável.

Para isso compromete-se a proceder com a devida diligência.
Esta conduta diligente é assim objecto da obrigação de meios que assume.

Quando o cliente se queixa que o médico procedeu sem a devida diligência, isto é, com culpa, está a imputar-lhe um cumprimento defeituoso.

Não se vê assim qualquer razão para não fazer incidir sobre o médico a presunção de culpa estabelecida no art. 799º, nº1, do C. Civil.

O que é equitativo, pois a facilidade da prova neste domínio está do lado do médico.”

No mesmo sentido, pode ver-se o Ac. STJ de 22/5/2003, ITIJ, SJ200305220009123, relatado pelo Juiz Conselheiro Neves Ribeiro.

Também no Ac. Rel Porto de 20/7/2006, ITIJ, RP200607200633598, relatado pelo Juiz Desembargador Gonçalo Silvano, se acolheu o entendimento de que sobre o médico recai a presunção de culpa a que alude o art. 799º, do CC. e, a propósito da distinção que é habitual fazer-se em obrigação de meios e de resultado, escreveu-se:

“Também Carlos Ferreira de Almeida – Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico, Direito da Saúde e Biomédica – 1996, AAFDL, pág.111, refere a este propósito que no nosso direito a distinção entre obrigações de meios e de resultado pode constituir elemento de perturbação face à presunção de culpa do devedor genericamente estabelecida pelo art. 799º nº 1 do CC, considerando que, podendo ser fonte de confusões ou imprecisões que pretenderia evitar, é preferível renunciar a ela.

Portanto a nossa opção vai no sentido de que estamos em presença de um contrato de prestação de serviços, sendo a obrigação do réu uma obrigação de meios, havendo que em matéria de ónus da prova da culpa que observar o disposto nos arts 799º, nº 1 e 2 e 487º, nº 1 e 2 do CC.”

8. In casu:

8.1. Dos factos provados resulta, no essencial, que:

A autora contratou os serviços médicos do réu, que a assistiu na gravidez e realizou o parto.

Após o parto, o réu constatou que a placenta não saíra totalmente, por ser acreta, e alertou a autora para a possibilidade de terem ficado no útero restos de placenta. Não sendo expulsos naturalmente, há então que provocar a sua saída, fazendo uma raspagem no útero, se surgirem hemorragias.

No início de Julho de 1998, queixando-se a autora de dores intensas e sofrendo de grande hemorragia uterina, o réu, depois de a observar, constatou a necessidade de realizar uma curetagem do útero, com a finalidade de retirar os restos de placenta que eram a causa daqueles padecimentos.

No dia aprazado, o réu realizou a referida curetagem, com anestesia geral, para extracção dos restos de placenta e, no próprio dia, deu «alta» à autora.

Acontece, porém, que, dias após a «alta» médica, a autora voltou a ter dores e a sofrer hemorragias uterinas, apresentando anemia e uma infecção. Foi então observada por outro médico que lhe prescreveu um tratamento com antibiótico, para debelar a infecção, e realizou nova curetagem, com anestesia geral, tendo retirado fragmentos de placenta que continuavam no seu útero.

8.2. Quid juris?

Em face da factualidade apurada, quer se entenda que o réu – médico especialista (7) – está vinculado a uma obrigação de resultado (no sentido clássico do termo, como sucede, em regra, no campo das cirurgias estéticas, com fins de embelezamento, dos exames laboratoriais ou de intervenções de menor complexidade, em que o risco está muito circunscrito e balizado), ou a uma obrigação de meios, (no sentido de estar apenas adstrito a uma obrigação de diligência, tendo em vista a obtenção de um certo resultado, o qual, contudo, não chega a integrar o conteúdo da obrigação, sempre sobre o réu impende o ónus da prova de que agiu com a diligência e perícia exigíveis pela boa técnica, se quiser eximir-se à responsabilidade.

Note-se que, em qualquer das situações, a obrigação do médico compreende o dever de vigilância após a prática do acto médico, tendo em vista reduzir ou eliminar o risco de ocorrências anómalas com efeitos nefastos para a saúde do doente.

8.3. Em conclusão:

Não tendo o réu provado que tomou todas as medidas exigíveis ao caso, conformes à “lex artis”, de modo a evitar o resultado danoso, nem tão pouco, no que respeita ao nexo de causalidade, que houve uma situação de caso fortuito, excludente da relação de causalidade entre a conduta censurável e o dano, não pode deixar de se considerar que agiu com culpa.

9. O montante da indemnização

Nos termos do disposto no art. 798º, do CC, «o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor».

Por sua vez, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562º, CC), tendo em conta que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria se não fosse a lesão (art. 563º, do CC).

No que respeita aos danos não patrimoniais (8), há que ter em conta o disposto no art. 496º, nºs 1 e 3, do CC, onde se estabelece que, na fixação da indemnização, deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, sendo o respectivo montante fixado equitativamente tendo em conta o grau de culpabilidade do responsável, a situação económica do lesante e do lesado e as demais circunstâncias do caso.

Por seu turno, a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo, que tenha em conta o circunstancialismo de cada caso, e não por padrões subjectivos, resultantes de uma sensibilidade particular, cabendo ao tribunal dizer, em cada caso, se o dano, dada a sua gravidade, merece ou não tutela jurídica – cfr. Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", vol. I, 7ª edição, pág. 600 e Almeida Costa, "Direito das obrigações", 5ª edição, pág. 484.

In casu, atenta a factualidade provada a indemnização por danos patrimoniais deve ser fixada em €354,27. Quanto aos danos não patrimoniais, surge como equilibrado o montante de €12.500, cômputo reportado à data da citação.

Os juros de mora, à taxa legal, serão devidos desde a data da citação (cfr. AC. STJ n.º 4/02, in D.R. I-A de 27/6/02).

E, sendo vários os responsáveis (por contrato de seguro, o réu transferiu a sua responsabilidade civil para a ré seguradora) pelo pagamento da indemnização, é solidária a sua obrigação, pois como se sabe, a tal não obsta o facto de os diferentes condevedores solidários poderem estar obrigados em termos e por causas diversas (cfr. arts. 497º, nº1, do CC., bem como nos arts. 100º e 425º e ss. do Cód. Comercial).

10. Nestes termos, concedendo parcial provimento ao recurso, acorda-se em condenar os réus, solidariamente, a pagar à autora, a quantia de €12.854,27 (doze mil, oitocentos e cinquenta e quatro euros e vinte sete cêntimos), acrescidos de juros de mora, à taxa legal, devidos desde a data da citação até integral pagamento.

Custas pelas partes, na proporção do decaimento.

Lisboa, 23 de Janeiro de 2007

(Maria do Rosário Morgado)
(Rosa Ribeiro Coelho)
(Arnaldo Silva)



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1.-Sobre os entendimentos históricos do enquadramento jurídico da intervenção médica a nível penal e civil v. António Silva Henriques Gaspar – in CJ – Ano III – 1978 – Tomo I, pág. 335 e ss e Álvaro da Cunha Rodrigues – Reflexões em torno da responsabilidade civil dos médicos – In Direito e Justiça – Volume XIV, tomo 3-2000.

2.-Cfr., a este propósito, Manuel Rosário Nunes, O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil por Actos Médicos, 48 e ss. e João Álvaro Dias, Procriação Assistida e Responsabilidade Médica, Coimbra Editora, 225.

3.-A obrigação de meios existe quando “o devedor apenas se compromete a desenvolver prudente e diligentemente certa actividade para a obtenção de determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza”.
Existe obrigação de resultado “quando se conclua da lei ou do negócio jurídico que o devedor está vinculado a conseguir um certo efeito útil”. [Cfr. Almeida Costa - Direito das Obrigações - 5ª edição, pág. 886].

4.-Cfr. Lopes Rocha, Responsabilidade Civil do Médico, Separata da Revista Tribuna e Justiça, nº3, 1987, 48 e ss.

5.-Apesar da resistência de alguns profissionais de saúde, de que nos dá conta Manuel Rosário Nunes, ob.cit., 84, dando como exemplo o texto que o Comité Permanente dos Médicos da Europa enviou à Comissão Jurídica do Parlamento Europeu, chamando a atenção para a necessidade de evitar uma medicina defensiva que pudesse privar os doentes dos avanços da ciência.

6.-Cfr. Manuel Rosário Nunes, ob. cit., 48, nota 89.

7.-V. o Ac. do STJ de 5-07-2001, CJ/STJ, 2001, tomo II; pág. 169 que sustenta a tese de que, tratando-se de médico especialista, atentas as suas habilitações específicas, pode considerar-se estar o mesmo adstrito a uma obrigação de resultado.

8.-No sentido da admissibilidade de fixação de indemnização, a este título, em sede de responsabilidade contratual, cfr. o Ac. STJ de 22/9/2005, ITIJ, SJ200509220026682.