Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1197/21.1S5LSB.L1-3
Relator: CRISTINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores: HOMICÍDIO
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA AGRAVADA
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
ARMA DE FOGO
LEI DAS ARMAS
CIRCUNSTÂNCIA MODIFICATIVA AGRAVANTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: - O fundamento da previsão do art.º 132º nº 2 al. h) do Código Penal radica na substancial perigosidade do meio usado para a prática do crime e do consequente acréscimo de dificuldade ou mesmo impossibilidade de defesa para a vítima, por efeito de um processo enganador, subreptício, dissimulado, com escolha das condições mais favoráveis para surpreender a vítima e a deixar indefesa, por parte do agente, ou, ainda, por arrastar consigo o perigo de lesão de uma série indeterminada de bens jurídicos.
 - O uso de arma de fogo para matar ou ferir outrem não pode ser considerado meio particularmente perigoso, para efeitos de subsunção da circunstância agravante modificativa contida no art.º 132º nº 2 al. h do CP, por não ter características diferenciadoras dos meios usuais de agressão e de violação dos bens jurídicos vida  humana, saúde e integridade física necessários para o preenchimento do tipo base de ofensa à integridade física e/ou de homicídio simples.
 - Assim, a agravante modificativa prevista no art.º 132º nº 2 al. h) do CP não pode qualificar o crime de ofensa à integridade física agravada, ao abrigo do disposto no art.º 145º nºs 1 al. c) e nº 2 do CP.
- Nos crimes cometidos com arma de fogo a circunstância modificativa agravante prevista no nº 3 do art.º 86º da Lei nº 5/2006 de 23.02 (com as alterações da Lei 17/2009, de 6.05), que impõe o agravamento das penas aplicáveis «de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr a agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma» opera «ope legis».
- Esta agravação encontra o seu fundamento num maior grau de ilicitude do facto, e, por isso tem sempre lugar se o crime, independentemente da sua natureza, for cometido com arma, de harmonia com o propósito do legislador de obviar e dissuadir à proliferação de condutas criminosas praticadas com armas função do acréscimo de perigosidade para um ou vários bens jurídicos criminalmente protegidos.
- Mesmo que o agente deva ser punido pela prática do crime de detenção de arma proibida, isso não afasta o funcionamento da agravante do nº 3 do art.º 86º citado, havendo, então, concurso real de infracções entre o crime de ofensa à integridade física agravado e qualificado pelo uso da arma, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 143º; 144º al. b) do CP e 86º nº 3 da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro e o crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art.º 86º nº 1 da mesma Lei, nas suas diversas alíneas.
(sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I - RELATÓRIO
Por acórdão proferido em 7 de Março de 2023, no processo comum colectivo nº 1197/21.1S5LSB.L1, do Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz 14, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi decidido:
A - Quanto ao Arguido CEP:
1. Absolver o Arguido da prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, cometido com arma, p.p. pelos arts. 131º e 132º nºs 1 e 2, als. e), g) e h) do Código Penal e p. e p. pelo artigo 86º nº 3 do RJAM, Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro;
2. Condenar o Arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, p. e p. pelos arts. 144º al. b), 145º nº 1 al. c) e nº 2, e art.º 132º nº 2 al. h), todos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;
3. Condenar o Arguido pela prática de 3 (três) crimes de coacção agravada, p. e p. pelos artigos 154º e 155º nº 1 al. a), todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão por cada um;
4. Condenar o Arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º nº 1 al. c), com referência ao art.º 3º nº 3 al. b) e nº 4 al. a) a contrario, todos do regime jurídico das armas e munições (L. 5/2006, 23.02), na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
5.  Em cúmulo jurídico, condenar o Arguido na pena única de 6 (seis) anos de prisão;
B - Quanto ao Arguido TFC:
1. Absolver o Arguido da prática de um crime de ofensas à integridade física qualificada, p.p. pelo artigo 143º e 145º nº1, al. a) e 132º nº 2, als. e) e h) do Código Penal;
 2.  Condenar o Arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
3. Suspender a execução da pena de prisão pelo período de 2 (dois) anos mediante sujeição a Plano Individual de Reinserção Social a elaborar pela Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais.
C - Quanto ao Arguido GS:
1. Absolver o Arguido da prática de três crimes de coação agravada, com utilização de arma de fogo, p. e p. pelos artigos 154º e 155º nº 1 do Código Penal e p. e p. pelo artigo 86º nº 3 do RJAM, Lei nº 5/2006 pelos quais vinha pronunciado.
II - Julgam-se os pedidos de indemnização cível formulados parcialmente procedentes por provados e, consequentemente,
A - Quanto ao Arguido/Demandado CEP:
1. Condenar o Arguido no pagamento ao Demandante EFS de uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros);
2. Absolver o Arguido do demais demandado por EFS;
3. Condenar o Arguido no pedido formulado pelo Demandante Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central. E.P.E. ou seja, no pagamento da quantia de €112.07 (cento e doze euros e sete cêntimos).
B - Quanto ao Arguido/Demandado TFC:
1. Condenar o Arguido no pagamento ao Demandante ES de uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de €1.000.00 (mil euros);
2. Absolver o Arguido do demais demandado por ES;
3. Absolver o Arguido do pedido formulado pelo Demandante Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central, E.P.E.
C - Quanto ao Arguido/Demandado GS:
1.  Absolver o Arguido do pedido formulado por EFS;
2.  Absolver o Arguido do pedido formulado por ES;
3. Absolver o Arguido do pedido formulado pelo Demandante Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central, E.P.E.
O arguido CEP interpôs recurso do acórdão, tendo, para o efeito, formulado as seguintes conclusões:
1. Decisão recorrida: Acórdão proferido no passado dia 7 de março com a ref. 423785125 que condenou o recorrente numa pena única de prisão de 6 anos de prisão.
2. Erro notório na apreciação da prova (artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal): entende o recorrente que existe erro notório na apreciação da prova e que esse vício resulta do próprio texto da decisão recorrida conjugada com as regras da experiência comum, na medida em que o Tribunal recorrido na motivação da matéria de facto dá como não credíveis e, portanto irrelevantes, para a formação da sua convicção o depoimento de todas as testemunhas inquiridas em sede de julgamento, com excepção do depoimento da testemunha AV que, contudo, diz a decisão recorrida, estava de costas para o local onde foi alegadamente disparado o tiro, não tendo visto quem disparou, não tendo visto a vitima EFS a ser atingida, tendo apenas e tão só ouvido o tiro.
3. Resulta do próprio texto da decisão que esta testemunha ouviu o tiro nas suas costas, mas depois resulta, de imediato e sem mais da decisão recorrida, que tal tiro “claramente, foi disparado pelo arguido CEP que atingiu o seu amigo EFS”, sem em momento algum ter justificado o porquê de assim entender.
4. Deste modo consideramos verificado o vício de erro notório na apreciação da prova pois do texto da decisão recorrida, por si só e conjugada com as regras da experiência comum, resulta como evidente, que a prova produzida – concretamente o depoimento da testemunha AV (única atendida pelo Tribunal recorrido) e até da súmula que o tribunal faz deste depoimento - não pode conduzir à decisão de facto perfilhada – de que foi o recorrente quem disparou o tiro que atingiu a vitima ES, pois a própria testemunha refere que estava de costas para o local onde foi disparado o tiro, que apenas o ouviu, que não viu nem sabe quem o disparou sendo isto também que resulta da súmula que o Tribunal faz de tal depoimento.
5. Então se o Tribunal considerou todos os restantes depoimentos como não credíveis e apenas atendeu ao depoimento da testemunha AV e tendo esta afirmado que se encontrava de costas que não viu quem disparou nem viu EFS ser atingido não podia o Tribunal com base neste depoimento afirmar que claramente foi o recorrente quem disparou a arma de fogo que atingiu EFS.
6. Mesmo que se entenda que tal não configura erro notório na apreciação da prova nos termos e para os efeitos do artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, sempre configurará erro de julgamento sobre a matéria de facto, visando o recorrente a modificação da matéria de facto nos termos do art.º 431º, alínea b) do CPP (erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida).
7. O recorrente pretende que este alto Tribunal analise o que existe e o que se pode verdadeiramente extrair da prova (documentada) produzida em audiência, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art.º 431º, al. b), do CPP.
8. O Tribunal da Relação, atento ao respeito pelo princípio da livre apreciação da prova atribuído à Primeira Instância e dentro do seu restrito papel em sede de apreciação da matéria de facto, nos casos excepcionais de erro na apreciação da prova e de desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do Tribunal recorrido sobre a matéria de facto, pode alterar a matéria de facto fixada – o que pretendemos no caso sub judice.
9. No caso em concreto, entendemos que existe efectivamente erro na apreciação da prova, sobretudo na valoração que o tribunal recorrido fez do depoimento da testemunha AV – único que o Tribunal considerou credível e que atendeu para dar como provado os factos agora impugnados.
10. Entende o recorrente, tal como entendeu o Tribunal recorrido, que tendo em conta os diversos depoimentos prestados todos eles conjugados entre si as incertezas sobre o que se passou são tantas que não se consegue, efetivamente, ultrapassar a dúvida razoável sobre os eventos em abono do princípio do in dúbio pro reo, e tais incertezas permanecem não se devaneiam com recurso ao depoimento da testemunha AV que a nosso ver não serve para fundamentar a condenação do arguido por nenhum dos crimes pelos quais vem acusado.
11. Tendo em conta a prova produzida em julgamento conjugada com a prova documental junta aos autos, entende o recorrente que não se logrou a prova dos factos quanto à autoria do disparo que atingiu o ofendido EFS, nem tão pouco que era o recorrente quem detinha, empunhou e disparou a arma de fogo de calibre 9 milímetros descrita no ponto 9 dos factos provados e, portanto, deveria o arguido ser absolvido dos crimes pelos quais vem condenado em primeira instância.
12. Tal como reconhece o Tribunal recorrido na página 15 do Acórdão recorrido que aqui damos como reproduzido muitas dúvidas se colocam e tal segmento não aparece no texto da decisão em termos gerais e abstractos, mas sim em relação aos intervenientes e declarações prestadas pelas testemunhas no âmbito destes autos em concreto, referindo expressamente o acórdão recorrido que: “os eventos em apreço são exemplares quanto à dificuldade de reconstrução da verdade judiciária, a qual se pretende tão próxima da realidade quanto possível.”
13. E este estado de dúvida em que o Tribunal a quo ficou resulta de forma expressa do próprio texto da decisão, mais concretamente, das passagens que supra transcrevemos em sede de motivação e que se encontram nas páginas 15 e 16 do acórdão recorrido não podendo tal estado de dúvida ser susceptível de ser alterado com o depoimento da testemunha AV atendendo à concreta fundamentação de facto apresentada pelo tribunal recorrido e da súmula que este faz do depoimento da testemunha AV do qual não resulta – salvo melhor opinião – nada que leve à condenação do recorrente pelos crimes pelos quais vem condenado (veja-se página 17 da decisão recorrida).
14. Assim, impugnamos a matéria de facto nos termos e para os efeitos do art.º 412º, nº 3 alínea a) e b) do CPP, tendo em conta que o depoimento da testemunha AV não permite a condenação do recorrente pelos crimes de que vem acusado, pelo que se indicam:
15. Os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art.º 412º, nº 3 alínea a) do CPP: Pontos 9, 12, 28, 29, 30, 31 dos factos provados.
16. As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (art.º 412º, nº 3 alínea b) do CPP: Depoimento da testemunha AV depoimento prestado na sessão de julgamento do dia 2/02/2023 da parte da tarde, encontrando-se o mesmo gravado com início pelas 14 horas e 36 minutos e o seu termo pelas 14 horas e 54 minutos, pois tal depoimento não permite alterar o estado de incerteza que o tribunal ficou com toda a restante prova produzida, não permitindo verificar-se para além de qualquer dúvida razoável, que tenha sido o arguido o autor do disparo que atingiu a vitima EFS.
17. As provas que devem ser renovadas (art.º 412, nº 3 alínea c) do CPP): O depoimento da testemunha AV depoimento prestado na sessão de julgamento do dia 2/02/2023 da parte da tarde, encontrando-se o mesmo gravado com início pelas 14 horas e 36 minutos e o seu termo pelas 14 horas e 54 minutos.
18. O Recorrente pretende que se proceda a «renovação da prova», quanto à testemunha AV ouvindo-a nesta Relação.
19. O recorrente requer a renovação da prova do depoimento da testemunha AV, tendo em conta que de acordo com a fundamentação da matéria de facto o Tribunal concluiu que apenas o depoimento desta testemunha é consistente, coerente e credível, tendo sido neste depoimento que o Tribunal atentou para formar a sua convicção quanto à verificação dos factos descritos nos pontos aqui impugnados e que foram dados como provados: ponto 9, 12, 28, 29, 30 e 31, sendo que o recorrente entende que o depoimento desta testemunha que se encontrava de costas para o local onde foi disparado o tiro que atingiu EFS e que afirmou isso mesmo em Tribunal, afirmando que não viu quem disparou a arma de fogo que atingiu EFS, não se tendo apercebido sequer, de imediato, que EFS tinha sido atingido por um tiro, o que só aconteceu mais tarde, não permite – sem mais – concluir-se pelos factos dados como provados nos pontos 9, 12, 28, 29, 30 e 31.
20. O tribunal recorrido apenas alicerçou, como dissemos supra, a sua convicção no depoimento de uma única testemunha AV.
21. Ou seja, o tribunal recorrido dá como provado que foi o recorrente quem disparou a arma de fogo e o tiro que atingiu EFS na sua perna esquerda porque a testemunha AV afirmou em Tribunal que ouviu um tiro nas suas costas. Ou seja, a testemunha estava de costas para o local onde foi disparado o tiro, sendo impossível – diz-nos as regras da experiência que esta, estando de costas para o local, visse quem disparou o tiro que atingiu a vítima EFS. Aliás a testemunha no seu depoimento diz isso mesmo: “não vi quem disparou, não sei quem disparou o tiro” - declarações da testemunha AV, (ficheiro 20230202143621_20493458_2871051, das 14:36h às 14:54h) gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso naquele Tribunal, prestadas no dia 02/02/2023 – que aqui damos por integralmente reproduzidas.
22. O recorrente não consegue perceber em que se fundamentou o Tribunal para afirmar que esta foi a testemunha que melhor apreendeu a realidade na qual se viu envolvida, de que não houve dispersão no seu depoimento e que a mesma não procurou preencher os espaços em branco da sua recordação, pois na verdade trata-se de um depoimento pouco claro e preciso, que não consegue nem mesmo situar, com segurança, onde se encontrava cada um dos intervenientes, ora colocando o EFS ligeiramente à sua frente, mas um pouco mais à esquerda (14:15min) e, simultaneamente também atrás de si, quando diz que não o viu a ser atingido pelo disparo (6:15min) uma vez que se encontrava de costas. declarações da testemunha AV, (ficheiro 20230202143621_20493458_2871051, das 14:36h às 14:54h) gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso naquele Tribunal, prestadas no dia 02/02/2023 – que aqui damos por integralmente reproduzidas.
23. Porém, independentemente disso, a verdade é que esta testemunha referiu sempre de forma expressa que o tirou surgiu nas suas costas, não tendo visto o tiro ou quem o disparou, nem viu o seu amigo EFS ser atingido, apenas tendo-se apercebido disso em momento posterior.
24. Em momento algum este testemunho afirmou ter sido o recorrente quem disparou o tiro que acertou na perna de EFS.
25. Face ao depoimento desta testemunha e à falta de credibilidade de todas as restantes, não podia o tribunal formar a convicção de que o tiro que atingiu o seu amigo EFS e que foi disparado nas costas da testemunha AV foi, claramente, disparado pelo recorrente.
26. Para além de não resultar do seu depoimento da testemunha AV tal realidade, a verdade é que a decisão recorrida não fundamenta porque razão conclui que tendo em conta o depoimento desta testemunha o Tribunal concluiu que “claramente” o tiro que atingiu a vítima ES terá sido disparado pelo arguido aqui recorrente, CEP, em violação do disposto no art.º 97º do Código de Processo Penal.
27. Tem o destinatário da decisão de compreender porque motivo o Tribunal decidiu da forma como decidiu – o que não acontece, de todo, no caso em apreço, e, nessa medida, o acórdão proferido pelo Tribunal de primeira instância é nulo por falta de fundamentação - nos termos do disposto nos art.ºs 379º nº 1 al. a) do CPP por referência ao disposto no art.º 374º nº 2 do mesmo CPP - na dimensão que lhe é conferida enquanto princípio fundamental decorrente do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, e como manifestação do  direito a um processo equitativo, nos termos do artigo 6.º da CEDH.
28. A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da (in)existência dos vícios do art.º 410.º, n.º 2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na al. c).do citado normativo.
29. É óbvio que qualquer leitor da decisão recorrida pode tentar determinar, quais as razões que terão levado o tribunal a considerar que foi o recorrente quem disparou o tiro que atingiu a vítima EFS, porém, é bom de ver que a exigência constitucional da fundamentação das decisões judiciais não fica satisfeita com a mera possibilidade destas tentativas de “adivinhação” das razões que terão conduzido o tribunal a decidir no sentido em que decidiu.
30. A imposição constitucional só fica satisfeita com formulação expressa das razões específicas dessa decisão, feita pelo seu próprio autor, em termos de habilitar o seu destinatário a ciente dessas razões, se conformar com a decisão ou impugná-la de forma consciente e eficiente.
31. Por todo o exposto, entende o recorrente que: A decisão recorrida sofre do vicio de erro na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, e, caso assim não se entenda, sem dúvida alguma, encontra-se ferida pelo erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida, tendo em conta que de acordo com a fundamentação da matéria de facto o Tribunal formou a sua convicção com base apenas e exclusivamente no depoimento da testemunha AV quanto à verificação dos factos descritos nos pontos aqui impugnados e que foram dados como provados: ponto 9, 12, 28, 29, 30 e 31, sendo que do depoimento desta testemunha que se encontrava de costas para o local onde foi disparado o tiro que atingiu EFS e que afirmou isso mesmo em Tribunal, afirmando que não viu quem disparou a arma de fogo que atingiu EFS, não se tendo apercebido sequer, de imediato, que EFS tinha sido atingido por um tiro, o que só aconteceu mais tarde, não permite – sem mais – concluir-se pelos factos dados como provados naqueles pontos da matéria de facto, para além de que a decisão recorrida não fundamenta porque razão assim concluiu, i. e., porque razão o depoimento desta testemunha formou no tribunal a convicção de que “claramente” o tiro que atingiu a vítima EFS foi disparado pelo arguido aqui recorrente, CEP.
32. No caso em concreto não temos prova alguma que sustente os factos dados como provados nos pontos supra indicados e que aqui impugnamos, pelo que o recorrente terá de ser, necessariamente, absolvido.
33. Assim, perante o texto da decisão recorrida, não pode deixar de concluir-se que a conclusão probatória levada pelo Tribunal recorrido se materializa numa decisão contra o arguido, insuficientemente suportada (de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido) pelos elementos probatórios em que assentou a convicção.
34. Daí que haja de concluir-se que o acórdão recorrido e a prova produzida e considerada como única a ter em conta para a decisão quanto aos factos impugnados evidencia uma dúvida para além do que é admissível em processo penal sobre a culpabilidade do arguido recorrente, dúvida que só não foi reconhecida em virtude de um erro notório na apreciação da prova, tal como prevenido na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º, do CPP, uma vez que foram dados como provados factos cuja verificação não se encontra suportada na prova produzida para além de não se encontrar minimamente  fundamentada porque razão terem tais factos sido dados como provados em vez de não provados.
35. Assim sendo, a condenação do recorrente é uma violação flagrante do disposto no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa e Princípio in dubio pro reo, pelo que se encontram errada e incorrectamente dados como provados os factos constantes dos pontos supra indicados – inconstitucionalidade que aqui se alega para todos os efeitos legais, na medida em que a fundada dúvida instalada, então, deve beneficiar o arguido, para que não prevaleça a condenação de um possível inocente.
36. Sendo assim, impõe-se prover o presente recurso nesta parte, e ser absolvido o recorrente nos precisos termos supra expostos.
37. Acresce que o julgamento realizado no âmbito dos presentes autos no dia 2/2/2023 é nulo, porque a gravação do depoimento dos assistentes ES e EFS que são precisamente as duas vitimas nos presentes autos, não são audíveis, a saber as declarações da testemunha ES, (ficheiro 20230202105026_20493458_2871051, das 10:50h às 11:25h ) gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso naquele Tribunal, prestadas no dia 02/02/2023 e as declarações da testemunha EFS, (ficheiro 20230202112546_20493458_2871051, das 11:25h às 12:00h) gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso naquele Tribunal, prestadas no dia 02/02/2023.
38. A falta da gravação (equivalente à impossibilidade de audição) é mais do que uma irregularidade - trata-se de nulidade – art.º 363º e nº 1 do art.º 364º do Código de Processo Penal.
39. Porém, querendo ouvir-se tal gravação, para efeitos de recurso, nomeadamente da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, se constata que a prova produzida em julgamento é totalmente inaudível, estamos perante uma irregularidade prevista no art.º 123º do CPP que deve ser oficiosamente declarada pelo Tribunal ad quem – o que se requer desde já.
40. O tribunal da Relação tem que criar a sua própria convicção e não se limitar a apreciar se a convicção do tribunal a quo respeitou as regras probatórias. Claro que limitado aos pontos indicados pelo recorrente.
41. O tribunal ad quem fica privado da relação de proximidade com a imagem da pessoa que intervém no julgamento, na qualidade de arguido, testemunha ou declarante. Mas dispõe do acesso directo à voz do autor dos relatos, e pode apreender tudo o que, no processo comunicacional, é transmissível através da voz (gravada).
42. Não deve falar-se por isso de uma total ausência de imediação, mesmo na parte referente à prova pessoal”.
43. Sabendo-se que os poderes do tribunal da Relação em matéria processual penal são muito limitados relativamente aos do processo civil - falta uma norma equivalente ao art.º 662.º, do Código de Processo Civil -, e até a renovação da prova está restringida aos vícios do art.º 410.º n.º 2, como determina o art.º 430.º, n.º 1, do CPP, a documentação da prova é o elemento fundamental para a apreciação do recurso da matéria de facto.
44. Tudo visto e aqui chegados, pelo actual estado da arte em matéria de impugnação da matéria de facto em processo penal, muito por força da jurisprudência do Tribunal de Estrasburgo na consagração de um processo equitativo, em que se exige que o tribunal da Relação crie a sua própria convicção, cave a fundo na prova, embora ainda limitado pelo quadro legal, a documentação da prova é a peça fundamental. E, se estivermos a pensar em prova pessoal, é de gravação da prova que se trata.
45. Afastada a nulidade, porque não invocada, há que encontrar a solução já defendida no acórdão desta Relação de Lisboa, de 30.04.2019, relator Cid Geraldo, processo n.º 824/11.3ECLSB.L1-5: a verificação da irregularidade do art.º 123.º, n.º 2, do CPP.
46. A deficiente gravação nas sessões de audiência, neste caso totalmente inaudível, impede o recurso da matéria de facto.
47. O art.º 123.º, n.º 2, do CPP, determina que se pode ordenar oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.
48. Na situação em apreço, não tendo o tribunal a quo tomado conhecimento da irregularidade verificada – falta de gravação – no momento da prática dos actos que praticou depois, não a podia ter oficiosamente suscitado porque, valha a verdade, não afectou o valor de tais actos.
49. Já o recorrente, não podendo suscitar qualquer irregularidade, mas a nulidade do art.º 363.º, do CPP, deixou passar o prazo para a arguir.
50. Resta a consequência da irregularidade para este tribunal superior.
51. É certo que o recorrente diz que o tribunal considerou incorrectamente provados os factos 9, 12, 28 a 31, só se pode concluir que está a impugnar amplamente a matéria de facto. Esta distinção é importante, na medida em que se se limitasse a invocar os vícios do art.º 410.º, n.º 2, a apreciação do recurso se bastaria com o texto da decisão recorrida conjugado com as regras da experiência, sendo despicienda a gravação da prova, salvo se se considerasse verificado qualquer dos vícios e aí, para o suprir e evitar o reenvio, seria necessário ouvir a prova documentada.
52. Por conseguinte, é dever deste tribunal ad quem apreciar a decisão sobre a matéria de facto por via do recurso amplo. Por isso tem que ouvir a prova gravada.
53. Ora, face à deficiente gravação dos depoimentos dos assistentes ES e ES, este tribunal superior está impedido de praticar o seu acto, que é, como vimos, o de apreciar o recurso da matéria de facto.
54. Cumpre, pois, a este tribunal ad quem, ao tomar agora conhecimento desta irregularidade que o impede de praticar o seu acto, o dever de a declarar, com as consequências processuais inerentes, ordenando a anulação da sessão de prova (dia 02/02/2023) e, consequentemente, do acórdão proferido, e determinar a repetição da prova produzida nessa sessão, agora com documentação, e prolação de novo Acórdão.
55. Só esta decisão garante um processo equitativo e leal.
56. Este tribunal não pode cumprir o seu dever, isto é, apreciar o recurso da matéria de facto, face à deficiente gravação da prova inteiramente imputável ao tribunal a quo.
57. Nestes termos, ao abrigo do art.º 123.º, n.º 2, do CPP, deve oficiosamente ser julgar verificada a irregularidade consubstanciada na deficiente gravação da prova na sessão de audiência do dia 02/02/2023, determinando-se, em sequência, a anulação de tal sessão de audiência, e, por via disso, da decisão condenatória proferida, devendo ordenar-se a repetição da prova produzida nessa sessão, agora com documentação, e prolação de nova decisão.
58. O tribunal deve, oficiosamente, ou a requerimento das partes, ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigurar necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, não estando, obviamente, circunscrito aos meios de prova constantes da acusação, da contestação ou da pronúncia; deve, pois, o Juiz produzir todos esses meios de prova que o habilitem a uma decisão condenatória ou absolutória;
59. No contexto da produção da prova, entende o recorrente que o tribunal recorrido deveria ter-se deslocado ao local do crime e recolher de todas as testemunhas inquiridas em julgamento a posição exacta em que cada um deles se encontravam, e isto deveria ter sido feito no local com cada uma das testemunhas, bem como o local em que se encontravam os arguidos, e proceder a uma verdadeira reconstituição dos factos.
60. As diligências em causa configuram-se como manifestamente essenciais e imprescindíveis uma vez que em sede de audiência de discussão e julgamento, no decurso dos depoimentos das várias testemunhas, questionados sobre como ocorreram os factos e o local exacto onde se encontravam todos os intervenientes foi difícil, em sala de julgamento, as testemunhas responderem a tais questões, bem como esclarecer o Tribunal das distâncias e a posição exacta de cada um dos intervenientes.
61. Importando apurar a origem e o autor do disparo que atingiu a vitima ES, torna-se necessário saber a posição de cada um dos intervenientes e dos respectivos arguidos para se apurar se tendo em conta a posição em que se encontrava o arguido e a vitima ES seria possível ter sido ele a disparar a arma, e se o tivesse feito se seria possível ter atingido a vitima no preciso local onde foi atingindo (parte traseira da sua perna esquerda (coxa esquerda traseira).
62. No nosso entender, o poder do art.º 129º, tal como o do 340º, nº 1 do Cód. Penal configura um poder-dever quando tais factos sejam essenciais para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, como é o caso;
63. O recorrente vai até mais longe: torna-se imprescindível para a descoberta da verdade dos factos não só a reconstituição dos factos, como também uma perícia para determinar se tendo em conta a posição exacta de cada um dos intervenientes e dos arguidos (o que se conseguiria através da reconstituição dos factos com a deslocação do tribunal ao local) se era objetivamente possível ter sido o recorrente a disparar a arma de fogo que atingiu ES, tendo em conta precisamente o local em que cada um se encontrava e a zona do corpo de ES que foi atingida com o disparo da arma de fogo.
64. Tal deslocação aliada aos conhecimentos técnicos especializados de uma perícia fazia com que fosse possível remover toda a dúvida que pudesse resultar da prova testemunhal realizada em sala de julgamento, concluindo-se dessa forma – se o recorrente no local onde se encontrava poderia ou não ter sido ele a disparar a arma de fogo que atingiu o assistente EFS isto atendendo à zona do corpo atingida, de modo a apurar a verdade dos factos em vez de se chegar a uma conclusão infundada por não fundamentada, sem qualquer suporte probatório e, dessa forma, condenar-se alguém a 6 anos de prisão…
65. Impunha-se ao julgador o tal apontado poder-dever de procura dos meios probatórios tendentes à demonstração da realidade da vida e das coisas, de forma a descortinar a verdade e criar os suportes de uma boa e correcta decisão da causa, de forma a “fazer justiça”, deixando de lado uma decisão baseada numa convicção que ninguém conhece e que não se mostra fundamentada ou suportada em qualquer elemento de prova.
66. A produção de tais meios de prova, decorrente e imposta pelo princípio da investigação, não sofre os limites que a este impõe o comando legal (art.º 340º do Cód. Proc. Penal), Na verdade, eles afiguram-se como necessários para a descoberta da verdade e boa decisão da causa (princípio da necessidade), são adequados ao objecto da prova (princípio da adequação – art.º 340º, nº3 do Cód. Proc. Penal) e não são de obtenção impossível (princípio da obtenibilidade – art.º 340º, nº4, al. b) do Cód. Proc. Penal);
67. No nº 1, do art.340º do Cód. Proc. Penal está expresso o poder vinculado do Tribunal ordenar a produção dos meios de prova necessários à descoberta da verdade e boa decisão da causa. Não usando desse poder-dever, isto é, actuando em sentido negativo (não uso), violou-se o disposto em tal comando legal;
68. No contexto da produção da prova, as diligências em causa configuravam-se como manifestamente essenciais, independentemente de ser para condenar ou absolver o arguido, para a descoberta da verdade e para se obter uma decisão justa, sem recursos puramente formais ao princípio do in dúbio pro reo;
69. O Tribunal optou, de modo conformista, pela renúncia à actuação dos seus poderes de investigação para acabar por se estribar no princípio in dúbio pro reo sem que previamente tenha esgotado todas as vias de afastamento da insanabilidade da dúvida, o que viola as regras basilares em que assenta este mesmo princípio;
70. Pelo exposto, porque a decisão recorrida padece de nulidade por ter violado o disposto no art.º 340º, nº1 e 129º do Cód. Proc. Penal, deve ser revogada e substituída por outra que as declare e, em consequência, determine a repetição do julgamento e produção de prova suplementar com a deslocação do tribunal ao local, reconstituição dos factos no local e prova pericial nos termos e para os efeitos supra expostos.
71. De qualquer forma, as dúvidas sobre quem disparou o tiro que atingiu EFS parecem-nos inultrapassáveis com os depoimentos prestados em primeira instância nomeadamente, por não resultar claro, a nosso ver, a razão de ciência das conclusões a que o Tribunal recorrido chegou, mormente se conforme foi afirmado pelo Mmo. Juiz A quo se as mesmas lhe advieram só do depoimento da testemunha AV.
72. Da qualificação jurídica dos factos dados como provados: violação do princípio da dupla valoração quanto ao crime de ofensas à integridade física qualificada e agravada pelo uso da arma de fogo:
73. Entende o recorrente, antes de mais, que o n.º 3 do cit. art.º 86.º da Lei das Armas, enquanto norma de carácter geral, não é aplicável ao tipo legal de ofensas à integridade física quando estas já se encontram qualificadas pelo uso da arma, sendo esta uma norma especial.
74. Entende também o recorrente que a agravação seguida no acórdão recorrido traduz uma violação do princípio da proibição da dupla valoração e do ne bis in idem e também da igualdade, consignados nos art.ºs 29.º e 13.º da CRP.
75. A alínea h) do n.º 2 do art.º 132.º destaca a utilização na determinação da prática do crime de meio particularmente perigoso, no caso em concreto, a arma de fogo.
76. Foi essa a circunstância que qualificou o crime por que o recorrente veio a ser condenado pelo tribunal colectivo.
77. O princípio da proibição da dupla valoração ou agravação a propósito do crime de ofensas à integridade física qualificadas tem sido afirmado relativamente aos exemplos-padrão.
78. Qualificado o crime com um deles, isto é, determinada a moldura penal agravada, as respectivas circunstâncias que fazem parte do tipo de crime (tipo de culpa), já não podem ser tomadas em consideração na medida da pena, nisto se traduzindo a proibição da dupla valoração.
79. Quanto à circunstância agravativa do n.º 3 do art.º 86.º da referida Lei das Armas (“as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma”), no confronto com a circunstância prevista na alínea h) do n.º 2 do art.º 132.º quando se refere ao meio particularmente perigoso ou à prática de crime de perigo comum, como podendo integrar o uso de arma), estamos – sem dúvida alguma - perante a concorrência de qualificativas dentro do mesmo tipo e, daí, que a sua aplicação esteja dentro do alcance daquele princípio da proibição da dupla valoração.
80. Assim, a referida alínea h) do n.º 2 do art.º 132.º possa configurar o uso de arma enquanto meio particularmente perigoso ou crime de perigo comum, não dispensa, nunca, ao nível de uma maior culpa, uma especial censurabilidade ou perversidade.
81. No caso dos autos, as ofensas à integridade física foram qualificadas em razão da maior censurabilidade/perversidade pelo uso da arma de fogo (pistola), pelo que a respectiva pena não pode ser agravada nos termos do mencionado n.º 3 do art.º 86.º da Lei das Armas, sob pena de violação do princípio da dupla valoração.
82. Verifica-se assim a violação do princípio da proibição da dupla valoração ou do ne bis in idem, consagrado no n.º 5 do art.º 29.º da CRP, bem como a violação do princípio da igualdade plasmado no seu art.º 13.º da CRP.
83. Face ao exposto, e no caso de imprudência do nosso recurso em matéria de facto – o que não se admite – sempre se dirá que o recorrente jamais poderia ter sido condenado pela prática de um crime de ofensas à integridade física qualificadas pelo uso da arma de fogo (alínea h) e simultaneamente ver tal crime ainda agravado pela Lei das armas precisamente porque mais uma vez usou uma arma de fogo.
84. Em conclusão, o recorrente apenas poderia vir condenado pela prática de um crime de ofensas à integridade física qualificada nos termos do art.º 145º, nº 1 alínea c) e 132º, nº 2 alínea h) do CP.
85. Quanto à condenação pela prática dos 3 crimes de coação agravada por, segundo o Tribunal, o arguido ter apontado a arma a EFS, AV e Ni, entende o recorrente que os factos dados como provados impõem uma qualificação jurídica diferente, defendendo que estamos perante a prática de um crime de omissão de auxílio e na forma tentada.
86. Antes de mais dizer-se que o acórdão quanto a tal matéria é nulo porque dá como provado dois factos totalmente contraditórios entre si e impossíveis de acontecerem ambos em simultâneo.
87. No ponto 11 e 12 dos factos provados o tribunal dá como provado que o recorrente pretendeu mediante a ameaça de uso da arma de fogo, evitar que qualquer um deles efectuasse movimentos de defesa ou auxílio de ES, mas não obstante isso EFS avançou para os separar, levando a que o arguido CEP efectuasse um disparo que o atingiu.
88. Mas depois no ponto 32 dos factos provados o tribunal dá como provado que o arguido CEP ao empunhar a arma de fogo na direcção de EFS, (…) dizendo em voz alta “é mano a mano, ninguém se mete” actuou com intenção de os constranger a não realizar qualquer acção em defesa de ES, o que logrou conseguir.
89. Das duas uma: ou o recorrente conseguiu ou não conseguiu lograr que EFS fosse em defesa de ES, as duas coisas em simultâneo é que não pode ser.
90. Quanto à diferente qualificação: como vimos pelos factos dados como provados pelo Tribunal recorrido nos pontos 1 a 12, 14, 30 e 32 a intenção do recorrente ao empunhar a arma de fogo na direcção de EFS, AV e Ni dizendo em voz alta “é mano a mano, ninguém se mete” actuou o recorrente com intenção de os constranger a não realizar qualquer acção em defesa de ES. O tribunal dá como provado que o recorrente pretendeu mediante a ameaça de uso da arma de fogo, evitar que qualquer um deles efectuasse movimentos de defesa ou auxílio de ES. Mais deu como provado que o recorrente fez este disparo para que EFS não interviesse no auxílio ao seu amigo que estava envolvido numa luta, inexistindo qualquer outro motivo para a prática dos factos.
91. E, portanto, tendo em conta os factos dados como provados pelo tribunal entende o recorrente que estamos perante um só crime e perante o crime de omissão de auxílio p. e p. pelo art.º 200º, nº 1 do CP, na medida em que o desiderato era impedir quem ali se encontrava de socorrer, ir em auxílio, a ES que estava envolvido em luta com TC.
92. Mas mesmo que assim não se entenda e se entenda que tais factos consubstanciam a prática do crime de coação gravada (pelo uso da arma de fogo mais uma vez) sempre diremos que estamos perante um só crime de coação agravada e não de três crimes um por cada pessoa (EFS, AV e Ni). Imagine-se que os factos tinham ocorrido num estádio de futebol, durante um jogo de futebol… o recorrente seria condenado por centenas de crimes de coação, um por cada pessoa que se encontrasse no estádio? Não nos parece…
93. E, portanto, mesmo que se entenda que a qualificação jurídica esteja correcta o arguido recorrente deveria ter sido condenado por um só crime de coação.
94. Quanto à pena, sua determinação e quantitativo: Caso se   entenda que o recorrente não tem razão em nada do que supra expôs e requereu, sempre dirá agora quanto escolha da pena quanto ao crime de detenção de arma proibida e seu quantitativo relativamente a cada uma das penas parcelares e, ainda, quanto à pena única aplicada ao recorrente, que o Tribunal não ponderou todos os factos que tinha aos seu dispor, tendo decidido em prejuízo do recorrente.
95. O crime de ofensas grave e qualificada é punível com uma pena de 3 a 12 anos, cada coação agravada é punível com uma pena de 1 a 5 anos e o crime de detenção de arma proibida cm pena de prisão até 3 anos ou pena de multa.
96. Assim, e atendendo a que o recorrente do seu Certificado de Registo Criminal consta apenas uma condenação em 24.11.2020, pela prática em 03.08.2018 de dois crimes de roubo, na pena única de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano, e admitindo o crime de detenção de arma proibida a aplicação da pena de multa e não tendo o recorrente registado no seu CRC a condenação pela prática de qualquer crime após agosto de 2018 e não tendo averbado qualquer condenação por detenção de arma proibida, entende o recorrente que o Tribunal a quo deveria ter optado, ainda, pela pena de multa.
97. Mas mesmo que assim não se entenda a decisão recorrida é nula, porque opta pela pena de prisão sem mais, i.e., sem justificar – nem muito nem pouco a razão pela qual optou pela pena de prisão em detrimento da pena de multa – nulidade por falta de fundamentação que aqui se alega para todos os efeitos legais.
98. Depois, e agora, já quanto à medida concreta da pena a verdade é que o tribunal lhe aplica uma pena de 1 ano e 6 meses pela detenção da arma proibida, quando o arguido não tem averbado no seu CRC qualquer crime da mesma natureza, pelo que lhe deveria ter sido aplicada uma pena de 6 meses.
99. Relativamente ao crime de ofensas à integridade física qualificada e agravada numa moldura penal que vai dos 3 aos 12 anos de cadeia o Tribunal aplica-lhe a pena de 4 anos e 6 meses de prisão quando lhe deveria ter aplicado o limite mínimo dos 3 anos, tendo em conta os factos que foram dados como provados quanto às suas condições pessoais e que foram dados como provados nos pontos 35 a 44 dos factos provados.
100. E depois achamos mesmo muitíssimo excessiva a pena que lhe foi aplicada por cada crime de ameaça agravada. O tribunal por cada um destes crimes aplica ao recorrente a pena de prisão de 1 ano e 6 meses, num total de 4 anos e 6 meses (veja-se o tribunal condenou o recorrente à mesma pena pelos 3 crimes de coação que o condenou pela prática do crime de ofensas à integridade física qualificada e agravada) o que consideramos totalmente despropositado e incompreensível, devendo o Tribunal ter optado por aplicar ao recorrente o seu limite mínimo (1 ano).
101. Em cúmulo, quer se entenda que o recorrente tenha ou não razão quanto ao quantum das penas parcelares, independente disso – dizíamos nós - o tribunal recorrido deveria ter optado, sempre e em qualquer circunstância, por uma pena igual ou inferior a 5 anos, suspendendo-a com apertado regime de prova
102. Diz o tribunal recorrido que a moldura do cúmulo é de 4 anos e 6 meses a 10 anos e 6 meses de prisão, tendo fixado a pena no ¼ do intervalo apurado, ou seja, nos 6 anos de cadeia.
103. Pois nós entendemos que o tribunal deveria ter condenado o recorrente numa pena até 5 anos de prisão suspensa na sua execução, atendendo a que:
a) o recorrente pela primeira vez esteve privado da sua liberdade, encontrando-se em prisão preventiva desde 15 de dezembro de 2021 pelo que o período que se encontra em reclusão já o fez repensar qual o futuro que quer para si, não desejando mais voltar a uma cadeia comportando-se de agora em diante conforme o direito.
b) O recorrente tem apenas 28 anos de idade, é um jovem com uma vida inteira pela frente para poder demonstrar, com um plano adequado, que irá cumprir todas as regras que lhe forem impostas.
c) O recorrente não tem nem nunca teve problemas com drogas ou álcool.
d) Previamente à reclusão, integrava o agregado constituído pelos pais, uma irmã e de uma sobrinha, encontrando-se integrado familiarmente e tendo todo o apoio destes.
e) O recorrente sempre trabalhou para se sustentar e ajudar a sustentar o seu agregado familiar, residindo numa residência camarária.
f) O recorrente até ser preso mantinha um quotidiano estruturado, pautado pelo exercício laboral, actividade desportiva (ginásio e ao ar livre) e convívio com a família, com a namorada e com os amigos, como qualquer outro jovem da sua idade.
g) O relacionamento com a namorada é estável e perdura há cerca de dois anos, encontrando-se aquela autonomizada e inserida em termos socioprofissionais.
h) O recorrente tem o 12.º ano de escolaridade e nunca teve medo de trabalhar.
i) Com 18 anos emigrou para Inglaterra onde permanecendo durante um ano e meio como empregado de armazém no supermercado “Tesco”.
j) De regresso a Portugal, ingressou na Porto Editora, no exercício de funções na encadernação durante um ano, com contrato de trabalho temporário. Posteriormente desenvolveu outras funções num armazém de encomendas, num armazém de congelados, através da empresa de trabalho temporário Adecco, e mais tarde como motorista da Uber.
k) E, portanto, entende o recorrente que tendo em conta os concretos factos que foram dados como provados e as condições pessoais também elas dadas como provadas em relação ao recorrente entende este que o Tribunal deveria ter dado uma última oportunidade ao recorrente condenando-o numa pena única até aos 5 anos de prisão, suspensa na sua execução com um apertado regime de prova.
104. Da indemnização civil fixada quanto a danos não patrimoniais: entende o recorrente que o quantitativo da indemnização para além de não se encontrar minimamente justificado, peca por excessivo pois o quantitativo da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais terá de ser calculado segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, devendo, por isso, reflectir a censura de que é merecedor o autor do facto ilícito gerador de danos, a sua situação económica e as do lesado e do titular da indemnização, os padrões da indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, as flutuações de valor da moeda, etc. . - O que não se verifica no caso em apreço.
105. A decisão recorrida nada dá como provado quanto a dores, angústias e a sequelas permanentes da lesão, nada tendo sido dado como provado a nível de danos estéticos e/ou psicológicos, mas tão só os tratamentos e cirurgias realizadas pelo assistente ES.
106. Assim, tendo em conta não só isso, como também as condições económicas do recorrente e os padrões da indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, o valor fixado pela decisão recorrida de 25.000,00€ é exagerada e despropositada, não podendo nunca ser arbitrado um valor indemnizatório superior a 5.000,00€ (cinco mil euros) – o que se requer.
DAS NORMAS VIOLADAS:
Art.º 410º, nº 2 alínea c) do CPP
Art.º 431º, alínea b) do CPP
Art.º 127º do CPP
Art.º 379º, nº 1 alínea a) do CPP
Art.º 374º, nº 2 do CPP
Art.º 123º do CPP
Art.º 363, nº 1 do CPP
Art.º 364º do CPP
Art.º 129º do CPP
Art.º 340º, nº 1 do CPP
Art.º 86, nº 3 da Lei das Armas
Art.º 29º, 32º, 205, nº 1 e 13º da CRP
Art.º 132º, nº 2 do CPP
Art.º 6º do CEDH
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Art.º 200, nº 1 do CP
Art.º 70º e 71 e, ainda, art.º 53º do CP
O Assistente ES respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:
I. O Recorrente alega que no caso vertente houve erro notório na apreciação da prova (artigo 410º  nº 2, alínea c) do Código de Processo Penal) e admite que caso não se afigure erro notório na apreciação da prova, há erro sobre o julgamento da matéria de facto (artigo 431, alínea b) do Código de Processo Penal), não assistindo qualquer razão ao Recorrente;
II. O douto Tribunal de 1.a Instância ao proferir o douto Acórdão recorrido decidiu com convicção sobre a matéria de facto dada por provada;
III. A prova foi apreciada livremente, de acordo com os critérios constantes do artigo 127.º do Código de Processo Penal;
IV. A fundamentação do douto Acórdão recorrido é clara, objectiva, indica e pondera os meios de prova carreados para os autos, isto é, os exames e peritagens efectuados, as fotografias e demais documentos e os depoimentos testemunhais recolhidos em sede de julgamento;
V. O Acórdão recorrido é exaustivo na fundamentação usada, sendo que, na parte mais incómoda para o Recorrente, os motivos de facto expostos, a indicação e o exame crítico das provas usadas, são aquelas que qualquer cidadão normal no pleno uso das suas faculdades mentais, despido de paixões e que na percepção tida das coisas aquilo que é o comum entendimento das mesmas, não deixará de compreender e aceitar;
VI. Ao invés, é bem clara, face à matéria de facto fixada, a culpabilidade do Recorrente que não poderia deixar de ser condenado nos termos em que o foi;
VII. O Acórdão recorrido não noticiou a sucumbência a qualquer estado de dúvida e moveu-se fora desse estado. Pelo contrário, afirmou a culpabilidade do arguido/Recorrente a partir da materialidade fáctica demonstrada que teve por suficiente para o funcionamento do tipo, doloso, gerador de pena;
VIII. Pelo exame crítico que o douto Tribunal de 1.a Instância fez das provas, fica assegurado que a decisão não procede de uma actividade arbitrária do Tribunal, do capricho do julgador, mas uma convicção apurada e tendo em conta as regras de experiência comum;
IX. No douto Acórdão recorrido, na página 18, fundamentada a sua convicção, de forma cuidada e exaustiva na apreciação da testemunha AV;
X. Não tem qualquer razão e constitui mesmo um equívoco do Recorrente ao pretender a renovação da prova quanto à testemunha AV;
XI. Vejamos o depoimento da testemunha AV reproduzido a fls. 3 a 5 destas alegações;
XII. O Acórdão recorrido, com a sua fundamentação, não viola qualquer disposição legal, nomeadamente o artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa;
XIII. Face à matéria de facto fixada e à sua fundamentação, de forma clara, objectiva e exaustiva nada a apontar ao Acórdão recorrido, pelo que não deve ser reapreciada ou alterada a prova fixada pelo Acórdão recorrido, como tal deve ser negado provimento à pretensão do Recorrente;
XIV. O Recorrente alega que as gravações dos Assistentes ES e ESF são inaudíveis;
XV. As referidas gravações, contrariamente ao alegado pelo Recorrente, em grande parte são audíveis, não obstante, como é habitual, neste tipo de gravações, uma ou outra frase não ser totalmente audível;
XVI. Contudo, mesmo que se encontrem inaudíveis, o Recorrente tinha o prazo previsto no artigo 101º do Código de Processo Penal para vir arguir os vícios das gravações, pelo que, não o fazendo no referido prazo, teve um procedimento negligente, que não pode ficar abrangido por proteção legal;
XVII.  A este respeito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 13/2014, Uniformização de Jurisprudência:
«A nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o Tribunal da 1.a instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada»;
XVIII. O douto Acórdão recorrido fundamentou e bem que o Recorrente deve ser condenado pelo crime de ofensa à integridade física grave qualificada;
XIX. A este respeito, vejamos a fundamentação do Acórdão recorrido para fundamentar a autoria material do crime de ofensa à integridade física grave qualificada, reproduzido a fls. 6 e 7 destas alegações;
XX. Parece óbvio e claro que face aos factos dados por provados, que o Recorrente teve de ser condenado e bem por três crimes de coação agravada e não apenas por um crime;
XXI. Em suma, o douto Acórdão recorrido fez uma correcta qualificação jurídica dos factos, não violando qualquer preceito constitucional, devendo, também nesta parte, ser negado provimento ao Recurso interposto pelo Recorrente;
XXII.  O Recorrente limita-se a discordar do Acórdão recorrido, mas sem qualquer base de suporte legal;
XXIII. O douto Acórdão recorrido fundamenta de forma adequada e com clareza, julgando adequada a pena aplicada ao Recorrente;
XXIV. A este respeito, remete-se para a fundamentação do Acórdão recorrido, reproduzido a fls. 8 a 10 destas alegações;
XXV.  O douto Acórdão recorrido, depois de tudo ponderado, condenou o arguido/Recorrente, em cúmulo jurídico, na pena única de seis anos de prisão, não havendo qualquer reparo ou censura à decisão recorrida;
XXVI. Mais uma vez, nesta parte, as alegações do Recorrente mostram estar desprovidas de total bom senso;
XXVII. O Recorrente disparou, por motivo fútil e sem qualquer justificação, sendo autor material de acto tão censurável, provocando graves danos na saúde do Recorrido;
XXVIII. No que concerne à condenação do Recorrente relativamente aos danos não patrimoniais devidos ao ora Recorrido, o douto Acórdão recorrido fixou a indemnização em 25.000,00€ (vinte cinco mil euros), considerando como suficiente e adequada;
XXIX. Tendo em conta os factos provados nos pontos 19 a 25, com base em inúmera documentação médica, a indemnização fixada só pode, quando muito, pecar por escassa;
XXX.  O Recorrido sofreu graves danos, tendo de se sujeitar a cirurgias, sofreu fortes dores, teve um período de incapacidade total, o que só por si já é justificativo da fixação da indemnização, a título de danos não patrimoniais;
XXXI. O Recorrido vai ter de sujeitar-se, no prazo de dois anos, a uma nova cirurgia para retirar a prótese da perna;
XXXII. O Recorrido vai sofrer fortes choques na perna, provocando-lhe danos e incómodos;
XXXIII. O Recorrido ficou com limitações na sua mobilidade, pelo que ficou impedido de concorrer à PSP e de continuar a sua vida militar, como consequência dessas limitações;
XXXIV. Com a conduta dolosa, danosa e censurável do Recorrente. o Recorrido vai sofrer dores para toda a vida e fica impedido de seguir a carreira profissional que sempre sonhou na PSP ou no Exército;
XXXV. O douto Acórdão recorrido fixou a indemnização em 25.000,00€ (vinte cinco mil euros) no que concerne a danos não patrimoniais, de acordo com o juízo equitativo (artigo 496.º do Código Civil), atendendo ao grau de culpabilidade do arguido e às circunstâncias que rodearam os factos, a gravidade e a extensão dos danos provocados;
XXXVI. O valor pretendido pelo Recorrente não tem um mínimo de pudor, não tem nada a ver com a realidade, não é consentâneo com o juízo de equidade (artigo 496.º do Código Civil), não obstante reconhecer a prática dos crimes de que foi e bem condenado;
XXXVII. Por fim, importa referir que a pretensão do Recorrente, nesta parte, tem também de ver negado o recurso, na medida em que deve manter-se o valor a que o douto Acórdão recorrido condenou o ora Recorrente;
Deve assim ser negado provimento ao recurso do Recorrente, mantendo-se, na íntegra, o Acórdão Recorrido.
O Mº. Pº. apresentou resposta, na qual apresentou as seguintes conclusões:
Que o raciocínio lógico seguido pelo Tribunal, na apreciação crítica do depoimento da testemunha AV não encerra qualquer erro, nem viola regras de experiência comum, que neste caso surgem como essenciais na compreensão deste depoimento em concatenação com os restantes, pelo que deve improceder a arguição do vício comtemplado no art.º 410.º n.º 2 al. c) do C. P. Penal.
Quanto à nulidade prevista no art.º 379.º n.º 1 al. a) do C. P. Penal, por falta de fundamentação, percorrida a fundamentação de facto do douto acórdão, verifica-se que o Colectivo não se limitou a elencar os meios de prova, antes os relacionou entre si e com os factos do tipo objectivo do crime de furto dados como assentes.
Assim, face ao conteúdo da decisão nesta parte, é forçoso concluir que o dever de fundamentação foi observado, sendo expressos os motivos por que as declarações do Recorrente não mereceram acolhimento, explicitado por que motivo o depoimento da testemunha AV foi especialmente valorado, e efectuada a concatenação entre os elementos probatórios, num percurso lógico prosseguido na fixação dos factos assentes com recurso às regras de experiência, não ocorrendo assim, a nulidade referida no art.º 379.º n.º 1 al. a), do C. P. Penal.
Deve, assim, também improceder a arguição desta nulidade.
No que se refere ao erro de julgamento, o recorrente refere que os depoimentos das testemunhas ES,VBM, Ni, VN, HC e CM, médica ortopedista, foram desconsiderados pelo Tribunal que formou a sua convicção no depoimento da testemunha AV e que este é um depoimento pouco claro e preciso, que não consegue nem mesmo situar, com segurança, onde se encontrava cada um dos intervenientes, ora colocando o EFS ligeiramente à sua frente, mas um pouco mais à esquerda (14:15min) e, simultaneamente também atrás de si, quando diz que não o viu a ser atingido pelo disparo (6:15min) uma vez que se encontrava de costas”.
Ora, entre o momento em que a testemunha avança na direcção do arguido GS e agarra no seu braço e o momento em que foi desferido o tiro que atingiu o ofendido EFS, houve movimentos por parte do Recorrente, não estando o mesmo sempre na mesma posição.
Ao contrario do que o Recorrente refere a testemunha afirmou que viu o coarguido GS e o Recorrente empunhando armas de fogo.
Verifica-se assim, que o depoimento da testemunha AV não impunha fixação de facto diversa, com a absolvição do Recorrente.
Deve assim, improceder a impugnação de facto apresentada.
Quanto à irregularidade prevista no art.º 123º, nº 2, do CPP, consubstanciada na deficiente gravação da prova, cumpre referir que as gravações dos depoimentos prestados no dia 02-02-2023 é perfeitamente audível, existindo apenas curtos momentos em que a audição está comprometida, mas se extrai do restante depoimento a frase em falta.
Na determinação das penas parcelares aplicadas, o Tribunal valorou correctamente o disposto no art.º 71.º n.º 2 do C. P. Penal, atentando no grau de ilicitude dos factos, elevado, quer pelo modo de execução da conduta, quer pelas consequências devastadoras para o ofendido ES, na intensidade do dolo e no grau de culpa do Recorrente também elevado. 
As exigências de prevenção geral positiva que o caso reclama são elevadíssimas, e as exigências de prevenção especial também se fazem sentir.
A pena única resultante do cúmulo obedeceu ao disposto no art.º 77.º do C. Penal, não merecendo também qualquer censura.
O Colectivo observou o disposto no art.º 127.º, 374.º n.º 2, ambos do C. P. Penal, 71.º e 77.º ambos do C. Penal.
Por isso, deverá ser negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida.
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art.º 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador Geral da República Adjunto emitiu parecer, nos seguintes termos:
II. Nesta instância, o Ministério Público acompanha a resposta da Exma. Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância à motivação do recurso interposto pelo arguido CEP.
III. Assim, atentos os fundamentos expostos na citada resposta, emite-se parecer no sentido de que seja julgado improcedente o presente recurso, confirmando-se o acórdão proferido pelo Tribunal a quo.
Cumprido o disposto no art.º 417º nº 2 do CPP, não houve respostas.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, nos termos previstos nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre, então, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E IDENTIFICAÇÃO DAS QUESTÕES A DECIDIR:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de  apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art.º 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art.º 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art.º 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto e atentas as conclusões, as questões a tratar são as seguintes:
a) Se o acórdão é nulo por falta de fundamentação, nos termos do art.º 379º nº 1 al. a) do CPP;
b) Se se verifica uma deficiente gravação da prova e qual a sua consequência jurídica;
c) Impugnação da matéria de facto, quanto a saber se existe erro de julgamento quanto aos factos provados inseridos nos pontos 9, 12, 28, 29, 30, 31 e se devem antes ser julgados não provados;
d) Verificação da existência do vício do erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.º 410º nº 2 al. c) do CPP;
e) Violação do princípio do ne bis in idem quanto ao crime de ofensas à integridade física qualificada e agravada pelo uso da arma de fogo, em virtude de o n.º 3 do art.º 86.º da Lei das Armas, enquanto norma de carácter geral, não ser aplicável ao tipo legal de ofensas à integridade física quando estas já se encontram qualificadas pelo uso da arma, sendo esta uma norma especial;
f) Erro de direito quanto à qualificação dos três crimes de coacção agravada, porque face aos factos provados 11 e 12, o arguido recorrente apenas cometeu um crime de omissão de auxílio e na forma tentada;
g) Violação do princípio da proporcionalidade, por excesso da pena aplicada;
h) se o quantitativo da indemnização para além de não se encontrar minimamente justificado, peca por excessivo.
2.2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O acórdão condenatório sob recurso fixou os factos e fundamentou a sua convicção, quanto à prova produzida, nos seguintes termos (transcrição parcial):
1. Na madrugada de 20 de agosto de 2021, cerca das 02H15/02H30, ES e EFS estavam acompanhados por AV e Ni junto ao Bar SAAD, sito na Rua de Entrecampos, n.º 12, em Lisboa, onde se tinham dirigido com a intenção de ali entrar. 
2. Quando chegaram ao local aperceberam-se da presença dos arguidos TC, CEP e do GS.
3. Horas antes, no Bar do Tamariz, no Estoril, o arguido TC e ES, tinham tido um desentendimento.
4. Na sequência desse desentendimento, o arguido TC abordou ES junto ao Bar SAAD.
5. Após uma troca de palavras, o Arguido TC desferiu dois socos na face, do lado direito, de ES.
6. Consequentemente, ambos se envolveram em luta corpo a corpo, agarrando-se e caindo ao chão.
7. TC foi campeão mundial de Jiu-Jitsu no ano de 2021.
8. EFS tentou intervir em defesa de ES, para separar os contendores.
9. O arguido CEP empunhou uma arma de fogo, uma pistola de calibre 9x17mm, ou .380ACP, também conhecido por 9 curto (kurtz), na direcção de ES, AV e Ni.
10. Disse então, em voz alta "é mano a mano, ninguém se mete".
11. Pretendeu, desta forma, e mediante a ameaça de uso da arma de fogo, evitar que qualquer um deles efectuasse movimentos de defesa ou auxílio de ES.
12. Não obstante, EFS avançou para os separar levando a que o arguido CEP efectuasse um disparo que atingiu EFS na perna esquerda.
13. O arguido GS empunhou, de igual forma, algo que aparentava ser uma arma de fogo.
14. Logo após, todos os arguidos se colocaram em fuga para parte incerta e em várias viaturas.
15. Na sequência do disparo que o atingiu, EFS sofreu fractura no fémur, com uma perfuração na região interior da coxa esquerda, com porta de entrada, ficando o projéctil de 9mm alojado nos tecidos moles junto ao fémur.
16. O projéctil foi removido cirurgicamente no Hospital das Forças Armadas, no Lumiar.
17. Pois EFS foi operado nesse mesmo dia, 20.08.2021, tendo sido realizada fixação externa e remoção do projéctil.
18. Em 26.08 foi novamente sujeito a cirurgia, removido o fixador externo e realizada osteossíntese definitiva com placa.
19. Esteve hospitalizado 27 dias no Hospital Militar das Forças Armadas, onde foi sujeito àquelas duas intervenções cirúrgicas, encontrando-se, há data da dedução da acusação, a fazer fisioterapia três vezes por semana por tempo indeterminado, sem previsão para ter alta médica.
20. Nunca conseguirá recuperar a mobilidade toda.
21. Relativamente à prótese que foi colocada, perante a rejeição pelo seu organismo e o osso não estar a desenvolver nas condições prevista, terá ES de ser novamente operado para a retirar.
22. ES continua a fazer fisioterapia no Hospital Militar.
23. Devido à extensão das lesões que o impede de realizar a actividade de militar, passou à situação de reserva.
24. Deslocou-se com auxílio de duas canadianas e apresenta rigidez dolorosa do joelho esquerdo, não se encontrando a sua situação estabilizada.
25. As lesões descritas afectaram-lhe de maneira grave, quer a capacidade de trabalho, quer a possibilidade de utilizar o seu corpo, sendo previsível que o fique com lesões permanentes.
26. Na sequência das agressões ES teve necessidade de se deslocar ao hospital de São José, para receber tratamento médico, das lesões sofridas, mormente corte no lábio inferior, ferida aberta no antebraço, e dores na zona orbital direita.
27. Nenhum dos arguidos têm licença de uso e porte de arma.
28. Ao efectuar o disparo na direcção de EFS o arguido CEP queria atingi-lo na perna, como o fez.
29. Sabia que não poderia agir dessa forma, mas não se inibiu de assim actuar.
30. O arguido CEP fez este disparo para que EFS não interviesse no auxílio ao seu amigo que estava envolvido numa luta, inexistindo qualquer outro motivo para a prática dos factos.
31. Actuou tendo em vista facilitar os factos que o arguido TC estava a perpetrar.
32. O arguido CEP ao empunhar a arma de fogo na direcção de EFS, AV e Ni dizendo em voz alta "é mano a mano, ninguém se mete" actuou com intenção de os constranger a não realizar qualquer acção em defesa de ES, o que logrou conseguir.
33. O arguido TC ao desferir vários socos em ES actuou com a intenção de o molestar fisicamente.
34. Em todas as suas condutas, os arguidos actuaram de forma livre, deliberada e consciente.
Das condições pessoais dos Arguidos
- CEP -
35. CEP, de 28 anos, previamente à reclusão, integrava o agregado constituído junto dos pais, da irmã e de uma sobrinha, na morada dos autos, tratando-se de uma habitação social.
36. Profissionalmente activo desde que terminou a escolaridade, CEP mantinha actividade há cerca de dois anos como ajudante de serralharia na empresa de construção civil de que o pai é sócio.
37. CEP mantinha um quotidiano estruturado, pautado pelo exercício laboral, actividade desportiva (ginásio e ao ar livre) e convívio com a família, com a namorada e com os amigos.
38. O relacionamento com a namorada é estável e perdura há cerca de dois anos, encontrando-se aquela autonomizada e inserida em termos socioprofissionais.
39. O arguido, mais novo de uma fratria de quatro, prosseguiu um percurso escolar regular, habilitando-se com o 12.º ano de escolaridade aos 18 anos.
40. Nessa altura emigrou para Inglaterra onde permanecendo durante um ano e meio como empregado de armazém no supermercado "Tesco".
41. De regresso a Portugal, ingressou na Porto Editora, no exercício de funções na encadernação durante um ano, com contrato de trabalho temporário. Posteriormente desenvolveu outras funções num armazém de encomendas, num armazém de congelados, através da empresa de trabalho temporário Adecco, e mais tarde como motorista da UBER.
42. Preso preventivamente desde 15/12/2021 à ordem dos presentes autos, no contexto prisional tem mantido um comportamento globalmente adequado e conforme às regras, com excepção de um incidente com outro recluso datado de 22/05/2022, infracção disciplinar na qual foi punido com permanência obrigatória no alojamento pelo período de 6 dias.
43. O arguido mantém-se actualmente inactivo, não sendo integrado na escola por estar habilitado com o ensino secundário, continuando a beneficiar de apoio familiar, recebendo visitas regulares sobretudo da mãe, da irmã e da namorada.
44. Do seu Certificado de Registo Criminal consta uma condenação em 24.11.2020, pela prática em 03.08.2018 de dois crimes de roubo, na pena única de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano.
- TC -
45. TC vive sozinho, numa habitação social, inserida num bairro marcado por problemáticas de delinquência e exclusão social.
46. As despesas inerentes à habitação são suportadas por si com os rendimentos auferidos mensalmente pelo trabalho prestado na Academia onde dá aulas de Jiu-Jitsu.
47. O arguido tem um filho (…) de um ano e dois meses, de uma anterior relação, com quem mantém contacto regular, uma vez que se encontra regulado o exercício das responsabilidades parentais.
48. Os familiares do arguido (pai e irmãos) encontram-se imigrados em Inglaterra, país onde o arguido já esteve imigrado até abril de 2017, e onde trabalhou como repositor de stocks num armazém.
49. Regressou a Portugal onde residem a mãe e mais dois irmãos, com os quais mantém contactos regulares.
50. TC tem o 9º ano de escolaridade completo e frequência de um curso técnico profissional de contabilidade, com equivalência ao 12.º ano, que não completou.
51. Integrou mercado de trabalho cedo, tendo exercido funções em armazéns, como estafeta, empresas de mudanças e motorista de Uber.
52. Actualmente trabalha a recibos verdes e aufere mensalmente cerca de 800€.
53. É atleta de alta competição na modalidade de Jiu-Jitsu tendo sido campeão mundial no ano de 2021.
54. Tem o apoio da sua família.
55. Do seu Certificado de Registo Criminal consta:
i. uma condenação em 27.06.2014, pela prática em 14.12.2012, de um crime de roubo, na pena de 8 meses suspensa na sua execução; a suspensão foi revogada e cumpriu tal pena;
ii. uma condenação em 06.02.2015, pela prática em 30.12.2011, de um crime de roubo, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução;
iii. uma condenação em 20.11.2014, pela prática em 04.10.2014, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, em pena de 6 meses de prisão substituída por multa;
iv. uma condenação em 20.04.2015, pela prática em 01.06.2013, de um crime de tráfico de menor gravidade e um crime de detenção de arma, na pena de 1 ano de prisão suspensa por um ano;
v. uma condenação em 25.06.2021, pela prática em 10.06.2021, de um crime de condução sem habilitação legal, em pena de multa;
vi. uma condenação em 14.10.2021, pela prática em 11.08.2020, de um crime de condução sem habilitação legal, em pena de multa.
- GS -
56. GS, de 24 anos, é o segundo filho de um casal de origem guineense, que vive em Lisboa com os pais e tem um irmão mais velho que se encontra na Guiné.
57. A família reside numa habitação camarária, em Lisboa e as despesas da mesma são asseguradas pela mãe do arguido que se encontra integrada em mercado de trabalho.
58. O pai de GS, encontra-se em situação de desemprego por questões de saúde.
59. O arguido iniciou a actividade escolar em idade própria e frequentou um curso profissional de electrónica, automação e computadores, que lhe deu equivalência ao 12.º ano.
60. Realizou um estágio de dois anos na Rádio Popular onde depois ficou a trabalhar cerca de 7/8 meses. Trabalhou como extra em Hotéis, durante alguns meses e mais tarde integrou um serviço nos correios onde trabalhou durante 6/7 meses. Desde então, não procurou mais nenhuma actividade profissional até aos dias de hoje.
61. Encontra-se a frequentar um curso de segurança privado com perspectiva de no final ter aprovação e integrar mercado de trabalho e está igualmente a tirar a carta de condução.
62. Pratica Jiu-Jitsu há 5 anos e dá aulas da mesma modalidade a crianças numa academia em Moscavide, no entanto, o valor que recebe depende do número de alunos e é simbólico.
63. Do seu Certificado de Registo Criminal consta:
i. uma condenação em 24.11.2020, pela prática em 03.08.2018, de dois crimes de roubo, na pena única de 6 meses de prisão suspensa por um ano;
ii. uma condenação em 14.04.2021, pela prática em 03.04.2021, de um crime de condução sem habilitação legal, em pena de multa;
iii. uma condenação em 17.06.2021, pela prática em 21.05.2021, de um crime de condução sem habilitação legal, em pena de multa, posteriormente substituída por prisão subsidiária.
Dos pedidos de indemnização cível
64. GS apontou algo que aparentava ser uma arma de fogo ao Assistente ES.
65. O Assistente EFS sofre com frequência sensações de choque na perna que lhe provocam dores e incómodo.
66. O Centro Hospitalar Universitário Central de Lisboa, E.P.E. garantiu a assistência médica de urgência a ES, após o mesmo ter sido ferido pelo tiro que o atingiu.
67. Tal assistência orçou em €112,07.
*
DOS FACTOS NÃO PROVADOS
Não ficou provado que:
a) TC questionou ES perguntando "o que tens entalado contra mim" (sic), ao mesmo tempo que lhe desferia os dois socos.
b) EFS sabia que TC foi campeão mundial de Jiu-Jitsu no ano de 2021.
c) A arma empunhada por CEP era um revólver.
d) O arguido CEP efectuou vários disparos para o ar.
e) Perante o continuo avanço do ofendido EFS, o arguido GS empunhou uma arma de fogo, também tipo revolver, e apontou na direcção de EFS, AV e Ni dizendo "ninguém se mete".
f) O arguido CEP efetuou três disparos na direcção de EFS.
g) O arguido GS empunhou a arma de fogo na direcção de EFS, AV e Ni para evitar qualquer intervenção por parte destes e testemunhas na situação que estava a ocorrer.
h) EFS faz fisioterapia quatro vezes por semana.
i) Ao efectuar o disparo na direcção de EFS e considerando a zona atingida, o arguido CEP sabia que com aquela conduta e arma utilizada, poderia causar a morte do ofendido e conformou-se com tal resultado, não se inibindo de atuar.
j) CEP revelou frieza de animo ao não se inibir de disparar contra EFS pelos motivos já expostos.
k) O arguido GS ao empunhar a arma de fogo na direção de EFS, AV e Ni actuou com intenção de os constranger a não realizar qualquer acção em defesa de ES, o que logrou conseguir.
l) TC bem sabendo que beneficiava de superioridade relativamente a ES, uma vez que é campeão mundial de Jiu-Jitsu.
m) TC aproveitou-se do facto de se encontrar com os outros dois arguidos que empunhavam armas de fogo para evitar que outras pessoas fossem em auxílio de ES, o que logrou conseguir.
Dos pedidos de indemnização cível
n) O Arguido GS puxou o gatilho, mas a arma não disparou porque encravou.
o) O Arguido GS coagiu e limitou os movimentos de ES.
p) O Arguido GS encostou a arma às costas de ES.
q) Os Arguidos TC e GS agiram por motivos fúteis e pelo prazer de agredir.
r) ES tem medo de andar sozinho na rua com medo dos Arguidos.
s) O Assistente EFS tinha concorrido à Polícia de Segurança Pública e desistiu do concurso em virtude de estar hospitalizado.
 t) Está impedido de voltar a concorrer, por estar inapto fisicamente para os requisitos exigidos.
u) EFS ficou convicto que ia morrer quando viu o Arguido CEP disparar.
v) O Assistente EFS não consegue ficar muito tempo em espaços fechados, nomeadamente discotecas e convívios, ficando com muita ansiedade.
w) O Assistente terá que suportar os encargos de todas as despesas médicas e medicamentosas futuras necessárias.
Não se provou qualquer outro facto relevante para a decisão da causa.
*
FUNDAMENTAÇÃO
A convicção sobre a matéria de facto dada como provada resultou da prova produzida em audiência a qual foi livremente apreciada de acordo com os critérios estabelecidos pelo art.º 127º do Código de Processo Penal.
Os eventos em apreço são exemplares quanto à dificuldade de reconstrução da verdade judiciária, a qual se pretenda tão próxima da realidade quanto possível.
Com efeito, os intervenientes têm, todos, uma percepção dos factos perturbada pela sua própria experiência, a qual condiciona, desde logo, a apreensão da realidade dos factos vividos, como a posterior recordação. Ademais, a necessidade de racionalizar a dinâmica dos eventos, de preencher os espaços em branco recorrendo a suposições, muitas das vezes inconscientes, bem como a constante recordação, a cada vez que contaram a história, compondo os factos, reforçando aqueles que julgam mais relevantes, desprezando os outros, e assim voltando a condicionar a sua memorização, revelam-se claramente nas disparidades das versões apresentadas.
A necessidade de justificação das condutas próprias, e a tendência para responsabilizar as dos demais intervenientes, nomeadamente os do campo oposto, condicionando-se as acções de forma a serem explicados os resultados que, objectivamente se extraem a posteriori, criam um ruído no processo testemunhal que deixa o Tribunal perante uma disparidade de versões para delas extrair os factos nos quais vai assentar a sua decisão.
Por vezes, as incertezas são tantas que não se consegue ultrapassar a dúvida sobre os eventos e, em abono do princípio in dubio pro reo, não se logra a prova de factos bastantes que justifiquem uma clara condenação ou mesmo absolvição.
Não é, porém, esse o presente caso.
Com efeito, conseguiu o Tribunal, da avaliação das diferentes versões apresentadas, reconstruir uma linha de acção, no tempo e no espaço, seguida pelos diversos intervenientes. A falta de rigor quanto a detalhes mais pormenorizados, levou a que alguma da matéria descrita na acusação se quedasse por não provada. São factos que não foram suficientemente descritos por qualquer das testemunhas, de forma coerente e credível, pelo que o Tribunal não se convenceu se os mesmos ocorreram na realidade, ou com aquele encadeamento.
Vejamos, então, quem falou sobre os eventos ocorridos à porta do Bar SAAD, começando pelos Assistentes e testemunhas.
ES consegue reconstruir os eventos até ao momento em que se envolve fisicamente com o Arguido TC e leva dois socos. A partir daí a visão de túnel é evidente, e a concentração no esforço da refrega, e falamos de dois indivíduos corpulentos, com manifestas capacidades de luta, nomeadamente agarrados, não lhe permite qualquer precisão que mereça crédito por parte do Tribunal, nomeadamente quanto à acção dos outros dois Arguidos e a posse de qualquer arma.
O momento fulcral seguinte é o do disparo ouvido que tem o condão de começar a afastar os dois grupos e lhe permite ver o seu amigo EFS ferido na perna. A percepção de dois tiros também não é segura, pela envolvência da acção e porque não demonstrou segurança na sua individualização de acordo com a sequência temporal da mesma.
EFS é, dos intervenientes, aquele que tem uma percepção menos consolidada da acção. É notória a necessidade da sua memória consolidar afirmações sem que se compreenda a respectiva lógica. Adianta que logo de início viu os Arguidos CEP e GS armados, mas toda a sua actuação é pautada pela desconsideração de tal ameaça. Não se afigura lógico, num quadro em que o seu amigo não está, claramente, numa situação de risco agravado, que o Assistente desconsidere a ameaça muito mais relevante que sobre si impende, ao ser o alvo de duas armas, uma delas muito próxima. Ou que insista na sua ânsia de intervenção, mesmo depois de um tiro de aviso que afirma ter ouvido. O mesmo se diga quanto à percepção de uma avaria no disparo apontado ao ES, aliás, sem qualquer referência ao papel de AV que, como veremos, tem um depoimento mais consistente, coerente e credível.
Foi relevante o seu depoimento quanto ao que sofreu e as consequências do ferimento que importou um longo período de recuperação, ainda não totalmente conseguida.
AV foi a testemunha que melhor apreendeu a realidade na qual se viu envolvida. Tal é manifesto, nomeadamente, na falta de dispersão do seu depoimento. A testemunha não procura preencher os espaços em branco da sua recordação, e centra-se naquilo que fez, e no que viu para a determinar a agir dessa forma. Assim, após o início da luta entre ES e o Arguido TC, esta testemunha estava próxima dos dois e viu o Arguido GS apontar uma arma ao seu amigo. Ouvira CEP proferir a expressão do "mano-a-mano" e exibir, ele também, uma arma, mas aquilo que captou a sua atenção e a determinou a agir foi a arma apontada pelo Arguido GS. E que, dada a proximidade e a pulsão do momento, a leva a reagir descurando a sua segurança e a empurrar aquele Arguido, desfocando-o dos seus intentos, fossem eles quais fossem, aliás, despoletados igualmente pelo tiro ouvido nas suas costas e que, claramente, foi disparado pelo Arguido CEP e que atingiu o seu amigo EFS. A sua confirmação de um segundo tiro ouvido quando os Arguidos já se afastavam a correr mereceu o crédito do Tribunal, apesar de não ser encontrada qualquer prova física do mesmo.
VBM apresentou um depoimento incoerente e inconsistente do qual nada retirou o Tribunal. A aparente necessidade de justificar a sua inacção leva a que construa uma sequência de eventos sem paralelo nos demais depoimentos ou provas objectivas recolhidas. Tornou-se manifesto que, no momento em que a acção decorria, esta testemunha bloqueou, inclusivamente na apreensão dos eventos, e que, depois, os reconstruiu à medida que foi recuperando o sangue-frio, acabando por reter na memória uma descrição de tudo o que aconteceu sem paralelo e sem rigor.
O depoimento de Ni também não foi tido em consideração para reconstruir a sequência de eventos à porta do Bar SAAD. A testemunha foi manifestamente hostil, escudou-se numa aparente falta de memória que, afinal, e a custo, se revelou ser uma clara reserva da mesma em depor, tanto assim que a perguntas do Tribunal logrou ir respondendo até que, ao se aproximar dos factos mais relevantes, recusou descrevê-los com qualquer rigor.
VN em nada contribuiu para a decisão pois apenas apareceu no local muito após os factos. Tal com o fez a Inspectora MJA que se limitou a descrever as diligências que levou a cabo.
Pela defesa foi apresentada a testemunha HC que, também ela, não foi merecedora de qualquer crédito. As desconformidades exibidas no seu depoimento quando confrontadas com aqueles que contribuíram decisivamente para a resposta à matéria de facto, leva a questionar se viu alguma coisa ou se estava mesmo presente. De tal forma que nem na versão do Arguido CEP encontra apoio. Assim, foi tal depoimento desconsiderado.
CM, médica ortopedista militar que assistiu o Assistente EFS, não trouxe nada de novo à decisão que já não constasse da prova documental e pericial junta.
Quanto às declarações dos Arguidos cumpre dizer que CEP falou em conformidade com a sua linha de defesa, mas a sua versão dos eventos fica questionada pelos depoimentos de ES, EFS e AV que, por mais consistentes, prevaleceram sobre a versão do Arguido. No fundo, na sua versão, as armas envolvidas não teriam sido portadas por si ou por qualquer dos seus acompanhantes, mas deixa insinuada a possibilidade de ter sido o próprio Assistente EFS a levar uma arma para o confronto e que tivesse sido atingido por um disparo acidental.
A localização da ferida de entrada, a inexistência de qualquer referência a outro atirador, a circunstância de não ter sido encontrada a arma, sendo que a assistência a EFS está documentada nos vídeos realizados por alguém que, de uma janela/varanda filmou os eventos após os tiros e partilhou as imagens nas redes sociais, retiram credibilidade à versão do Arguido.
Quanto aos factos posteriores ao abandono do local pelos Arguidos, houve maior coerência, resultado da redução da tensão criada pelo confronto e que atingiu o pico aquando do primeiro disparo.
Quanto à arma empunhada e usada por CEP, sabemos o respectivo calibre, por força do projéctil recuperado na perna de EFS. Como tal projéctil corresponde ao invólucro recuperado no local, e dada a escassez de tiros a serem disparados nas ruas de Lisboa que pudessem por em causa esta coincidência, concluiu o Tribunal que projéctil e invólucro são da mesma munição. Consequentemente, a arma usada não seria um revólver, mas sim uma pistola, aliás, mais comum no uso deste calibre, e que ao completar o ciclo de fogo efectuou a ejecção deixando no chão a referida cápsula.
Não se provou que o Arguido TC se tivesse aproveitado da circunstância dos seus amigos estarem armados, pois que esta intervenção ocorre já depois de iniciado o confronto e este nasce duma clara interpelação cara a cara, um para um. Aliás, é contraditória a afirmação da acusação de que este Arguido se apresentava munido de uma superioridade tal, derivada das suas capacidades, capaz de qualificar a sua conduta, mas que, depois, o fez porque estava escudado nas armas dos companheiros.
 Quanto à superioridade derivada da prática de artes marciais, no caso concreto, entendeu o Tribunal não a dar como provada porquanto a vítima, com a qual se envolveu em luta, não se apresentou como manifestamente inferiorizada perante as capacidades do Arguido. Também ele, outrora, praticante de jiu-jitsu, como o afirmou, e trabalhando frequentemente em equipas de segurança em eventos nocturnos e locais de diversão nocturna, ES apresenta-se como fisicamente robusto e de compleição física aproximada à do Arguido. Por isso, e num contexto de rua, e não de ringue, nada garantia ao Arguido uma superioridade que justificasse qualquer tipo de mais-valia a priori.
Quanto ao motivo da sua actuação, nada revela que seja irrelevante o que, aliás, pelo seu carácter conclusivo, é uma afirmação que não pode caber nos factos provados.
Relativamente à prova pericial, foram considerados:
- o relatório de exame pericial nº 202111923-CLC, área de criminalística, de fls. 109 a 113, sem que do mesmo pudesse ser retiradas conclusões quanto a qualquer disparo, posto que os furos detectados e analisados não se afiguram compatíveis com as lesões e se mostram inconsistentes com um segundo projéctil que se tivesse perdido sem atingir a vítima; como tal, e na dúvida perante tais conclusões, não foi tal perícia útil para o esclarecimento dos factos imputados;
- O relatório de exame pericial nº 202112017-CBA, área de balística, de fls. 405 a 409, relativamente à munição usada;
- O relatório da perícia de avaliação do dano corporal de EFS de fls. 445 a 447.
No que toca à prova documental, contribuíram para a percepção do andamento da investigação o relatório de diligências iniciais e comunicação do crime da PJ, de fls. 13 a 19, os autos de apreensão, de fls. 24 e 25, 29, a informação clínica de ES, de fls. 89, a informação da PSP-DAE, de fls. 140, da qual se retira a inexistência de licenças de armas aos Arguidos; os aditamentos da PSP, a fls. 144 a 150, 151, 170; o auto de notícia da PSP, de fls. 153 e 154; o auto de apreensão de invólucro, de fls. 155; a cota da PJ sobre TC, com fotos retiradas da rede social "Instagram" onde é retratada a sua vitória no campeonato de Jiu-Jitsu, em Abu Dhabi, de fls. 250; o auto de visionamento de conteúdos de multimédia, de fls. 484 a 485, vídeos esses igualmente visionados.
Foram ainda tidos em consideração os autos de reconhecimentos pessoais positivos aos três arguidos, de fls. 282 a 293;
Relevaram igualmente a documentação clínica do Hospital das Forças Armadas, de fls. 383 a 384, a informação sobre a situação clínica do arguido ES, de fls. 486 e o apenso de Informação Clínica das vítimas.
Foram ainda tidos em conta os Certificados de Registo Criminal e os relatórios sociais juntos.
Não ficou provada a necessidade de o Assistente ES vir a suportar encargos médicos ou medicamentosos, tal como não foram pedidos tais custos relativamente aos cuidados médicos já prestados, porquanto a assistência prestada é da saúde pública, suportada pelo Estado Português.
2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
A primeira constatação a fazer da análise das conclusões do recurso é a total mistura e uma certa confusão entre erro notório na apreciação da prova, erro de julgamento e nulidade do acórdão recorrido por ausência de exame crítico da prova, tudo a partir de um único aspecto da decisão: o modo como o Tribunal valorou o depoimento da testemunha AV.
Com efeito, o recorrente CEP começa por dizer que é do próprio texto da decisão recorrida que resulta que a testemunha AV não viu o disparo que atingiu a vítima EFS, por se encontrar de costas, mas como também resulta do próprio texto da decisão recorrida foi exclusivamente com base nesse depoimento que tal facto foi imputado ao mesmo recorrente, o que é um erro notório e que ainda que assim não se entenda, precisamente porque a referida testemunha não viu o arguido CEP atirar com uma arma de fogo na direcção do corpo de EFS, há erro de julgamento e também se verifica uma nulidade, porque como o Tribunal do julgamento não fundamentou as razões por que credibilizou este depoimento, falta o exame crítico da prova.  
Quanto à nulidade do acórdão por omissão de pronúncia por falta de exame crítico da prova:
O artigo 374º nº 2 do Código de Processo Penal impõe, a propósito do requisito da fundamentação, que a mesma contenha a «exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
E o nº 3 indica quais as menções que o dispositivo deverá conter, incluindo as disposições legais aplicáveis e a decisão de condenação ou de absolvição.
A exigência de que o texto da sentença contenha o exame crítico das provas é uma decorrência das exigências constitucionais da fundamentação das decisões judiciais como mecanismos de concretização das garantias de independência e imparcialidade dos Tribunais e de sindicância do acerto da decisão, através do recurso.
A independência e a imparcialidade do Juiz devem, pois, transparecer do apuramento objectivo dos factos da causa e da interpretação válida das normas de direito, em obediência ao espírito e à letra da lei (cfr. Michele Taruffo, “Note sulla garanzia costituzionale della motivazione”, in BFDUC, ano 1979, Vol. LV, págs. 31-32).
Mais especificamente, no que se refere à sentença, o artigo 374º nº 2 do Código de Processo Penal impõe, a propósito do requisito da fundamentação, que a mesma contenha a «exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
Esta exigência está, ainda, conexionada com o princípio da livre apreciação da prova, contido no art.º 127º do CPP, na medida em que é a contrapartida da inexistência de regras legais que atribuam valor específico, pré-determinado às provas, ou que estabeleçam alguma hierarquia entre elas (com excepção da confissão integral e sem reservas do arguido; da prova pericial e dos documentos autênticos, cujo valor probatório se encontra legalmente pré-estabelecido), na admissibilidade de todos os meios de prova, em geral (de que decorre a equiparação da prova directa à prova indirecta ou por presunções judiciais), desde que não incluídos nas proibições contidas no art.º 126º do CPP, em sintonia com o princípio consagrado no art.º 32º nº 8 da Constituição.
Como a apreciação da prova é livre, mas não pode ser arbitrária, tem de alicerçar-se num processo lógico-racional, de que resultem objectivados, à luz das máximas de experiência, do senso comum, de razoabilidade e dos conhecimentos técnicos e científicos, os motivos pelos quais o Tribunal valorou as provas naquele sentido e lhes atribuiu aquele significado global e não outro qualquer.
Nesta medida, a exigência legal do exame crítico das provas, além das garantias de imparcialidade e sindicabilidade da decisão em instância de recurso, previne que estados puramente subjectivos, assentes em meras intuições, crenças ou emoções determinem a fixação da matéria de facto e obsta à violação do princípio da inadmissibilidade das proibições de prova.
A omissão do exame crítico das provas importa a nulidade da sentença, nos termos do art.º 379º nº 1 al. a) do CPP.
Como a própria expressão «exame crítico» refere, se, por um lado, a exigência de fundamentação da convicção do Tribunal quanto aos factos provados e não provados não se basta com a mera enumeração dos meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, (sendo inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1.ª instância – cfr. Acs. do Tribunal Constitucional n.º 172/94, Diário da República, 2.ª série, de 19 de Julho de 1994 e n.º 573/98, Diário da República, 2.ª série, de 13 de Novembro de 1998), por outro lado, também não deve redundar numa «espécie de assentada, em que o tribunal reproduza os depoimentos de todas as pessoas ouvidas, ainda que de forma sintética» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 258/2001, com texto integral disponível em www.tribunalconstitucional.pt e, no mesmo sentido e no mesmo site, o Ac. do TC nº 198/2004), sob pena de violação do princípio da oralidade e de também não materializar qualquer análise objectiva da prova produzida, da qual seja possível retirar qual o processo de raciocínio do tribunal na formação da sua convicção quanto aos factos, qual o escrutínio efectuado acerca do conteúdo e do valor de todos e cada um dos meios de prova disponíveis.
Há, porém, que admitir que, se para cada facto for diferente o motivo da convicção do Tribunal, por também ser distinto o meio de prova que é apto a demonstrá-lo, então, a fundamentação poderá reflectir essa especificidade e, por conseguinte, conter uma motivação própria para cada um dos factos, exclusiva, autónoma e diferenciada das demais.
Tal, porém, só em casos muito excepcionais acontecerá e de qualquer modo, a lei não prevê, nem impõe esse grau de exigência na fundamentação, nem ela é necessária à prossecução das finalidades visadas, com as normas contidas nos arts. 205º da Constituição da República Portuguesa, nem nos arts. 97º nº 5 e 374º nº 2 do CPP, porque a enunciação individualizada de cada meio de prova, a propósito de cada facto, isoladamente e de forma segmentada, nem sequer dá adequada prossecução ao sentido da exigência de que o exame das provas seja crítico, porque este, para ser crítico, pressupõe, necessariamente, a indicação das razões pelas quais se atribui valor ou credibilidade a determinados meios de prova e para que factos e a outros já não é atribuída a mesma  aptidão probatória para fundamentar qualquer conclusão sobre eles ou sobre outros factos.
O exame crítico exigido pela lei não se basta com a apreciação das provas uma a uma, antes requer uma apreciação concatenada, a partir da qual sejam estabelecidas correlações internas entre elas, comparações entre as que sejam de sinais opostos, inferências, deduções, sempre contextualizadas no material probatório analisado globalmente e não em análises fragmentárias, desgarradas umas das outras e sem uma linha de raciocínio lógico-dedutivo que espelhe as opções do julgador, na matéria, bem como os motivos dessas opções.
O raciocínio lógico, motivado e objectivado na análise das provas não tem, pois, forçosamente, de implicar uma fundamentação específica e autonomizada, facto a facto, sob pena de se converter numa tarefa impossível, ou, pelo menos, repetitiva e inútil, com eventual grave prejuízo para a sua inteligibilidade e clareza e, portanto, os valores de transparência e rigor, controlo da legalidade e legitimação democrática das decisões judiciais, que a exigência de fundamentação visa assegurar, acabarem por resultar postos em crise por essa mesma fundamentação, se exacerbada ao nível de pormenorização pretendido pelo recorrente.
É certo que o exame crítico das provas tem geometria variável, tanto quanto o dever geral de fundamentação de todas as demais decisões judiciais, consoante a sua complexidade intrínseca ou a controvérsia gerada entre os sujeitos processuais, ou mesmo, a quantidade, a natureza e o conteúdo dos meios de prova disponíveis, designadamente, quanto à existência ou não de prova directa dos factos que integram a prática dos crimes pelos quais os arguidos vêm acusados, ou à necessidade de recurso a presunções naturais que podem envolver e, por regra, envolvem mesmo, um maior esforço argumentativo, pela necessidade de cruzamento de informações provenientes de diferentes fontes e da sua análise lógica e dedutiva, à luz de máximas de experiência comum, de critérios de razoabilidade humana, de determinados usos, ou de regras técnicas e científicas, pertinentes ao juízo de inferência necessário para extrair um facto desconhecido de outro facto conhecido.
O que importa para satisfazer a exigência legal do exame crítico das provas é que a fundamentação da decisão de facto expresse quais as provas cujo valor probatório se encontra pré-estabelecido na lei (v.g., a confissão do arguido, a prova pericial e a prova documental autêntica e autenticada) que foram produzidas e quais os factos que demonstram, bem como, que dessa fundamentação resulte, com clareza, quais as regras de experiência comum, os critérios de razoabilidade e de lógica, ou os conhecimentos técnicos e científicos utilizados para conferir credibilidade a determinados meios de prova e não a outros e em que medida os meios de prova produzidos oferecem informação esclarecedora e convincente que permite considerar provados os factos ou, pelo contrário, não oferecem segurança para alicerçar uma conclusão positiva acerca da verificação de determinados factos e, por isso, se justifica a sua inclusão, nos factos não provados.
O regime legal, quanto à fundamentação da decisão de facto, consagra, pois, «um sistema que obriga a uma correta fundamentação fáctica das decisões que conheçam a final do objeto do processo, de modo a permitir-se um efectivo controle da sua motivação» (Marques Ferreira, “Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal”, Livraria Almedina, 1988, pág. 228).
«Motivar uma decisão é justificar a decisão por que se optou para que possa ser controlada tanto pelos seus destinatários directos como pelos demais cidadãos, apresentar de forma inteligível, lógica, coerente e racional, o “iter” seguido no tratamento valorativo da prova» (Perfecto Ibañez, no estudo “Sobre a formação racional da convicção judicial”, publicado na Revista do CEJ, 1.º semestre, 2008, p. 167. No mesmo sentido, Rosa Vieira Neves, in Livre Apreciação da Prova e Obrigação de Fundamentação, Coimbra Ed., 2011, 151 e segs).
O tribunal dará cumprimento ao disposto no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, com indicação e exame crítico das provas, «ao identificar as provas que foram produzidas ou examinadas em audiência de julgamento e ao expor as razões, de forma objetiva e precisa, por que é que determinadas provas serviram para alicerçar a convicção e por que é que outras não serviram» (Sérgio Gonçalves Poças, “Da sentença penal - Fundamentação de facto”, Revista Julgar, ed. da ASJP, nº 3, pág. 37).
O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, variáveis consoante o acervo factual, a quantidade e qualidade dos meios de prova a apreciar e a valorar, em cada processo, sendo fundamental, mas, em qualquer caso, bastante que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual de valoração a apreciação das provas que lhe serviu de suporte, através da enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas produzidas por testemunhas ou em declarações, os motivos da credibilidade desses depoimentos e declarações, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção.
Essa aptidão de inteligibilidade dirige-se quer aos destinatários, quer às instâncias judiciais de controle e sindicância das decisões, por forma a que o exame crítico da prova torne perceptível e sindicável, em sede de recurso, a lógica do raciocínio seguido pelo Tribunal do julgamento e as razões da sua convicção, quanto aos factos. (Acs. do STJ de 30.01.2002, proc. 3063/01, de 3.10.2007, proc. 07P1779; de 19.05.2010, proc. 459/05.0GAFLG.G1.S1, de 17.09.2014, proc. 1015/07.3PULSB.L4.S1; de 14.12.2016, proc. 303/14.7JELSB.E1.S1; de 13.12.2018, proc. 308/10.7JELSB-L3.S1 e de 11.07.2019, proc. 22/13.1PFVIS.C1.S1, in http://www.dgsi.pt).
Se esse mínimo de exposição, clareza e perceptibilidade estiver assegurado, já não haverá nulidade.
Assim, o que resulta expresso do próprio texto do art.º 379º nº 1 al. a) do CPP, é que só a total falta de análise valorativa dos meios de prova disponíveis integra a nulidade ali prevista e que, aparte esta causa de invalidade da sentença, a exigência legal de motivação da convicção do Tribunal quanto aos factos considerados provados e não provados, basta-se com uma apreciação sintética, desde que abrangente e esclarecedora sobre o processo lógico-dedutivo de apreciação da prova e de fixação da matéria de facto, que permita compreender as opções do julgador e aferir da sua correcção ou conformidade com o conteúdo da prova e a valoração que dela se deve fazer, por referência aos critérios de decisão contidos nos arts. 125º a 127º do CPP (Acs. do STJ de 17.03.2004, proc. 4026/03; de 16.03.2005, proc. 05P662, de 3.10.2007, processo 07P1779 e de 26.03.2008, proc. 07P4833, Ac. da Relação de Lisboa de 10.07.2018, processo nº 106/15.1PFLRS.L1-5 in http://www.dgsi.pt; Ac. da Relação de Évora de 07.03.2017, Processo 246/10 JusNet 1781/2017; Ac. da Relação de Évora de 08.09.2020, proc. 4201/19.0T8ENT.E1, Ac. da Relação de Lisboa de 10.11.2020, proc. 7362/19.4T9SNT.L1-5, in http://www.dgsi.pt; Marques Ferreira, in "Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal", Livraria Almedina, 1988, pág. 228; Sérgio Poças, Da sentença penal – Fundamentação de facto, Revista “Julgar”, n.º 3, p. 21 e segs.).
Outra não pode ser a interpretação a retirar das expressões «tanto quanto possível completa, ainda que concisa», contida no art.º 374º nº 2 do CPP e «é nula a sentença que não contiver as menções referidas no nº 2 (…) do art.º 374º» inserta no art.º 379º nº 1 al. a) do mesmo diploma, referidas à fundamentação da decisão de facto.
Esta nulidade vem invocada nas conclusões 26 a 30 do recurso e a acusação de falta de exame crítico da prova circunscreve-se às razões de credibilização do depoimento da testemunha AV como já se referiu, que o recorrente diz resultarem desconhecidas do texto do acórdão.
A verdade é que, lendo o excerto da motivação da decisão de facto, dela consta uma súmula dos aspectos mais relevantes do depoimento da testemunha AV e bem assim as razões com base nas quais esse depoimento mereceu credibilidade ao Tribunal - «AV foi a testemunha que melhor apreendeu a realidade na qual se viu envolvida. Tal é manifesto, nomeadamente, na falta de dispersão do seu depoimento. A testemunha não procura preencher os espaços em branco da sua recordação, e centra-se naquilo que fez, e no que viu para a determinar a agir dessa forma»,  ou seja, segundo a motivação da decisão de facto inserta no acórdão recorrido, esta testemunha esclareceu o que viu e aquilo de que se recorda com preocupação de afirmar apenas o que efectivamente viu e ouviu, sem especulações, sem tentativas de preenchimento de eventuais lacunas de memória e sem hostilidade contra os arguidos e foi precisamente por considerar que a testemunha falou com verdade que o Tribunal credibilizou a sua versão dos factos, já que estava no local, quando da sua ocorrência, protagonizou parte deles, assistiu aos demais, ou porque os viu, ou porque os ouviu.
Isto mesmo foi assim também perfeitamente compreendido pelo recorrente CEP e tanto assim foi, que alicerçou o seu recurso dirigido contra a matéria de facto, exclusivamente, no depoimento desta testemunha, precisamente, por ter sido a única testemunha de cuja inquirição o Tribunal retirou informação útil e relevante para o esclarecimento dos factos objecto do processo, no que concerne à prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento.
Não há, pois, qualquer omissão da exposição sobre os motivos da convicção do Tribunal na consideração dos factos provados e não provados e a análise crítica da prova é perfeitamente inteligível e assim foi plenamente apreendida quer pelo recorrente, quer por esta instância de recurso, pelo que não há nulidade alguma.
Quanto à invocada deficiente gravação da prova e a saber qual a correspondente consequência jurídica.
Esta questão foi suscitada nas conclusões 37 a 58 do recurso e refere-se à gravação das declarações dos assistentes ES e EFS, com o argumento de que não são audíveis.
Trata-se das declarações a que correspondem o ficheiro 20230202105026_20493458_2871051, das 10:50h às 11:25h, no que se refere ao assistente  ES, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, prestadas no dia 02/02/2023 e daquelas a que corresponde o ficheiro 20230202112546_20493458_2871051, das 11:25h às 12:00h, quanto às declarações de EFS, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso naquele Tribunal, prestadas no mesmo dia 02/02/2023.
Veio o recorrente equiparar a falta da gravação a impossibilidade de audição e qualificá-las como «mais do que uma irregularidade - trata-se de nulidade – art.º 363º e nº 1 do art.º 364º do Código de Processo Penal».
Com efeito, a inaudibilidade ou ausência de perceptibilidade de um ou alguns dos depoimentos testemunhais ou de declarações de arguidos e/ou de assistentes, em parte ou na sua totalidade, mesmo que só resultantes de deficiências de funcionamento do sistema de gravação, são equiparáveis à ausência de registo da prova (arts. 363º e 364º nº1 do CPP), uma vez que um registo cujo conteúdo não se consegue apreender vale tanto como nenhum registo.
Porém, a nulidade cominada no art.º 363º do CPP como consequência da omissão pura e simples do registo da prova, ou da sua imperceptibilidade é sanável e o seu conhecimento dependente de arguição, na medida em que não se integra no elenco das nulidades insanáveis taxativamente previstas na lei (cfr. disposições conjugadas dos arts. 118º, 119º e 120º do CPP).
 E trata-se de questão a ser suscitada e decidida na primeira instância já que a obrigatoriedade da gravação da audiência está prevista, sobretudo, para servir de instrumento ao recurso da matéria de facto, como se pode concluir das disposições conjugadas dos arts. 363º, 364º, 412º nº 4 e 431º al. b) do CPP e é na fase de preparação do recurso sobre a matéria de facto que pelos interessados será detectada tal anomalia e avaliada a importância para a sua defesa dos depoimentos afectados e da necessidade da sua repetição.
«Quanto à deficiente documentação, ou seja, a documentação que não possibilite, no todo ou em parte, a captação das declarações oralmente prestadas em audiência, há que considerar duas situações possíveis».
«Caso a deficiência da documentação impeça a captação do sentido das declarações prestadas, deve ser equiparada à falta de documentação, visto se tratar, verdadeiramente, de uma documentação inexistente ou ineficaz. A nulidade daí resultante, como o conhecimento da deficiência só se torna possível ao sujeito processual com o acesso ao suporte técnico, deverá ser arguida no prazo de dez dias contados da data em que ao sujeito processual tenha sido entregue o respectivo suporte técnico, caso haja sido requerida a sua entrega - artigo 101.º, n.º 3; caso não tenha sido requerida a entrega do suporte técnico aquele prazo conta-se a partir da data do termo ou encerramento da audiência em que foi efectuada a deficiente documentação.
«Diferente será, porém, a situação em que se verifique deficiência menor, que não inviabilize a percepção do significado das declarações oralmente prestadas. Neste caso estamos perante mera irregularidade. Como o conhecimento da deficiência, como atrás referimos, só se torna possível ao sujeito processual com o acesso ao suporte técnico, o prazo de três dias para arguir a irregularidade - parte final do n.º 1 do artigo 123.º - iniciar-se-á com a entrega do respectivo suporte técnico, caso a mesma haja sido requerida; caso não tenha sido requerida a entrega do suporte técnico aquele prazo conta-se a partir da data do encerramento da audiência em que foi efectuada a deficiente documentação das declarações oralmente prestadas» (Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar et alii, 2014, Almedina, p. 1140).
A este respeito, o Supremo Tribunal de Justiça, fixou jurisprudência, no Acórdão do nº 13/2014, de 03.07.2014, segundo o qual:
«A nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o Tribunal da 1.a instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada» (Diário da República n.º 183/2014, Série I de 29.03.2014, páginas 5042 – 5050).
Por conseguinte, não havendo notícia de que o recorrente tenha suscitado a nulidade decorrente da deficiente gravação das declarações dos assistentes, mesmo que existisse, ter-se-ia sanado.
E diz-se, «mesmo que existisse», porque depois da audição da gravação da sessão da audiência do dia 2 de Fevereiro de 2023, o que se constata é que tanto as declarações do assistente ES, como as do assistente EFS são audíveis, na totalidade, com um pouco mais de dificuldade as do assistente ES por falar muito baixo, como, por algumas vezes, o Mmo. Juiz Presidente do Colectivo teve o cuidado de advertir e solicitar que falasse mais alto, mas, ainda assim, totalmente perceptíveis.
Não há, pois, nenhuma falta de perceptibilidade seja de que parte das declarações dos assistentes, pelo que também, nesta parte, o recurso improcede.
Quanto à decisão de facto.
c) Impugnação da matéria de facto, quanto a saber se existe erro de julgamento quanto aos factos provados inseridos nos pontos 9, 12, 28, 29, 30, 31 e se devem antes ser julgados não provados;
A matéria de facto pode ser sindicada em recurso através de duas formas: uma, de âmbito mais estrito, a que se convencionou designar de «revista alargada», implica a apreciação dos vícios enumerados nas als. a) a c) do art.º 410º nº 2 do CPP; outra, denominada de impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art.º 412º nºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma.
Assim, se no primeiro caso, o recurso visa uma sindicância centrada exclusivamente no texto da sentença, dirigida a aferir da capacidade do juiz em expressar de forma adequada e suficiente as razões pelas quais se convenceu e o sentido da decisão que tomou, já no segundo, o que o recurso visa é o reexame da matéria de facto, através da fiscalização das provas e da forma como o Tribunal recorrido formou a sua convicção, a partir delas.
O erro do julgamento verifica-se sempre que o Tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e, portanto, deveria ter sido considerado não provado, ou inversamente, quando o Tribunal considerou não provado um facto e a prova é clara e inequívoca, no sentido da sua comprovação.
O mecanismo por via do qual deverá ser invocado - impugnação ampla da matéria de facto – encontra-se previsto e regulado no art.º 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP e envolve a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal, na primeira instância e da prova dela resultante.
No entanto, essa reapreciação não é livre, nem abrangente, antes tem vários limites, porque, além de não importar um novo julgamento da causa, está condicionada ao cumprimento de deveres muito específicos de motivação e formulação de conclusões do recurso (Maria João Antunes, in RPCC – Ano 4 Fasc.1 – pág. 120; Acórdão do STJ n.º 3/2012, de 8/3/2012, DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012 Acs. da Relação de Guimarães de 6.11.2017, proc. 3671/13.4TDLSB.G1; da Relação de Évora de 09.01.2018 proc. 31/14.3GBFTR.E1; da Relação de Coimbra de 08.05.2018, proc. 30/16.0GANZR.C1; da Relação de Lisboa de 12.06.2019, processo 473/16.0JAPDL.L1 e de 28.04.2021, processo 4426/17.2T9LSB.L1, in http://www.dgsi.pt). 
Assim, nos termos do nº 3 do art.º 412º do CPP, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e c) as provas que devem ser renovadas».
O nº 4 do mesmo artigo acrescenta que, tratando-se de prova gravada, as indicações a que se referem as alíneas b) e c) do nº 3 se fazem por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, segundo o estabelecido no nº 6.
Assim, quanto à especificação dos concretos pontos de facto, a mesma «só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e se considera incorrectamente julgado» (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª. ed., 2009, nota 7 ao art.º 412º., pág. 1144).
No que se refere à especificação das provas concretas, o ónus previsto no art.º 412º do CPP «só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida. Por exemplo, é insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas datas ou a uma pessoa. Mais exactamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação (…) das passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento» (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª. ed., 2009, nota 8 ao art.º 412º., pág. 1144).
Este ónus de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, apresenta, pois, uma configuração alternativa, conforme a acta da audiência de julgamento contenha ou não a referência do início e do termo de cada uma das declarações e depoimentos gravados.
Assim, se a acta contiver essa referência, a indicação dos excertos em que se funda a impugnação faz-se incluindo a referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º (nº 4 do artigo 412º do C.P.P.).
Mas, se a acta não contiver essa referência, basta a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens/excertos” dos meios de prova oral gravados (Acs. da Relação de Évora, de 28.05.2013, proc. 94/08.0GGODM.E1 e da Relação de Lisboa de 22.09.2020, proc. 3773/12.4TDLSB.L1-5, in http://www.dgsi.pt).
Em qualquer das duas hipóteses, o recorrente terá de indicar, com toda a clareza e precisão, o que é que, na matéria de facto, concretamente, quer ver modificado, apresentando a sua versão probatória e factual oposta à decisão de facto exarada na sentença que impugna, e quais os motivos exactos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo que propõe, o que exige que o recorrente apresente o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida e o correlacione comparativamente com o facto individualizado que considera erradamente julgado.
Quando se trate de depoimentos de testemunhas, de declarações de arguidos, assistentes, partes civis, peritos ou consultores técnicos, se o recorrente não individualizar, no universo das declarações prestadas, quais as particulares passagens, nas quais ficaram gravadas as frases que se referem ao facto impugnado, não pode considerar-se cumprido o ónus de impugnação especificada exigido pelo art.º 412º nºs 3 als. a) e b) e nº 4 do CPP.
O mesmo tem de dizer-se em relação a documentos, ou escutas telefónicas, reconhecimentos, perícias, em suma, todos os meios de prova considerados pelo Tribunal do julgamento, para firmar a sua convicção e fixar os factos, como provados ou não provados. 
Tal forma genérica de impugnação, além de permitir converter em regra uma excepção, desvirtuando completamente o regime do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, que se traduz num reexame pontual e parcial da prova, porque restrito aos precisos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, prejudica e pode mesmo inviabilizar o exercício legítimo do princípio do contraditório pelos demais sujeitos processuais com interesse juridicamente relevante no desfecho do recurso.
Além disso, transferiria para o tribunal de recurso a incumbência de encontrar e selecionar, segundo o seu próprio critério, as específicas passagens das gravações que melhor se adequassem aos interesses do recorrente, ou seja, de fazer conjecturas sobre quais seriam os fundamentos do recurso, o que não é aceitável, porque o tribunal não pode, nem deve substituir-se ao recorrente, no exercício de direitos processuais que só a este incumbem, nos termos da lei, nem deve tentar perscrutar ou interpretar a sua vontade, interferindo, por essa via, com a própria inteligibilidade e concludência das motivações do recurso, logo, com a definição do seu objecto.
É, igualmente, inadmissível, à luz dos princípios da imediação e oralidade da audiência de discussão e julgamento, da livre apreciação da prova e da segurança jurídica, partindo da constatação de que o contacto que o Tribunal de recurso tem com as provas é, por regra e quase exclusivamente, feito através da gravação, sem a força da imediação e do exercício sistemático do contraditório que são característicos da prova produzida no julgamento.
Essa modificação será, assim, tão só a que resultar do filtro da documentação da prova, segundo a especificação do recorrente, por referência ao conteúdo da acta, com indicação expressa e precisa dos trechos dos depoimentos ou declarações em que alicerça a sua divergência (art.º 412º nº4 do CPP), ou, pelo menos, mediante «a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente» (Ac. do STJ nº 3/2012, de fixação de jurisprudência de 08.03.2012, in D.R. 1.ª série,  nº 77 de 18 de abril de 2012).
«É em face dessa prova que, em sede de recurso se vai aferir da observância dos juízos de racionalidade, de lógica e de experiência e se estes confirmam, ou não, o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos, cuja veracidade cumpria demonstrar. Caso esteja demonstrado que o juízo constante da decisão recorrida é compatível com aqueles critérios não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não estiver, então a decisão recorrida merece alteração. Com o que em nada se viola a imediação da prova, que fica acessível, imediatamente, ao juiz de recurso tal e qual como foi produzida em primeira instância» (Paulo Saragoça da Mata, in A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra 2004, pág. 253).
Trata-se, em suma, de colocar à apreciação do tribunal de recurso a aferição da conformidade ou desconformidade da decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados com a prova efectivamente produzida no processo, de acordo com as regras da experiência e da lógica, com os conhecimentos científicos, bem como com as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, com os princípios da livre apreciação da prova e «in dubio pro reo», assim como, com as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos.
Se dessa comparação resultar que o Tribunal não podia ter concluído, como concluiu na consideração daqueles factos como provados ou como não provados, haverá erro de julgamento e, consequentemente, modificação da matéria de facto, em conformidade com o desacerto detectado. 
Portanto, só os factos controvertidos por efeito das provas cujo conteúdo seja adequado à conclusão de que se impõe uma decisão diferente da recorrida, segundo a motivação do recorrente, é que são objecto de sindicância pelo Tribunal da Relação.
Porém, se a convicção ainda puder ser objectivável de acordo com essas mesmas regras e a versão que o recorrente apresentar for meramente alternativa e igualmente possível, então deverá manter-se a opção do julgador, porquanto tem o respaldo dos princípios da oralidade e da imediação da prova, da qual já não beneficia o Tribunal de recurso. Neste caso, já não haverá, nem erro de julgamento, nem possibilidade de alteração factual.
Assim, a convicção do julgador, no tribunal do julgamento, só poderá ser modificada se, depois de cabal e eficazmente cumprido o triplo ónus de impugnação previsto no citado art.º 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, se constatar que decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados quando comparada com a prova efectivamente produzida no processo, deveria necessariamente ter sido a oposta, seja porque aquela convicção se encontra alicerçada em provas ilegais ou proibidas, seja porque se mostram violadas as regras da experiência comum e da lógica, ou, ainda, porque foram ignorados os conhecimentos científicos, ou inobservadas as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, os princípios da livre apreciação da prova e «in dubio pro reo», assim como, as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão integral e sem reservas, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos (autênticos e autenticados).
«A censura dirigida à decisão de facto proferida deverá assentar “na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção (…)”.
«A reapreciação da prova, dentro daqueles parâmetros, só determinará uma alteração da matéria de facto quando do respectivo reexame se concluir que as provas impõem uma decisão diversa, excluindo-se a hipótese de tal alteração ter lugar quando aquela reapreciação apenas permita uma decisão diferente da proferida, porquanto, se a decisão de facto impugnada se mostrar devidamente fundamentada e se apresenta como uma das possíveis soluções face às regras da experiência comum, deve a mesma prevalecer, não ocorrendo, nesse caso, violação das regras e princípios de direito probatório» (Ac. da Relação de Lisboa de 10.09.2019 proc. 150/18.7PCRGR.L1-5. No mesmo sentido, Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012; Acs. do Tribunal Constitucional nºs 124/90; 322/93; 59/2006 e 312/2012, in www.tribunalconstitucional.pt e AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07-12-2005 Paulo Saragoça da Mata, in A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra 2004, pág. 253, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393 e ainda, os Acs. do STJ de 12.09.2013, proc. 150/09.8PBSXL.L1.S1 e de 11.06.2014, proc. 14/07.0TRLSB.S1; Acs. da Relação de Coimbra de 16.11.2016, proc. 208/14.1JACBR.C1; de 13.06.2018, proc. 771/15.0PAMGR.C1 e de 08.05.2019, proc. 62/17.1GBCNF.C1; Acs. da Relação do Porto de 15.11.2018, proc. 291/17.8JAAVR.P1, de 25.09.2019, processo 1146/16.9PBMTS.P1 e de 29.04.2020, proc. 1164/18.2T9OVR.P1; da Relação de Lisboa de 24.10.2018, proc. 6744/16.8L1T9LSB-3; de 13.11.2019, proc. 103/15.7PHSNT.L1, de 09.07.2020, proc. 135/16.8GELSB.L1-9, da Relação de Guimarães de 08.06.2020, proc. 729/17.4GBVVD.G1, da Relação de Lisboa de 2.11.2021, proc. 477/20.8PDAMD.L1-5, in http://www.dgsi.pt).
«Os Tribunais da Relação têm poderes de intromissão em aspectos fácticos (art.ºs 428º e 431º/b) do CPP), mas não podem sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto;
«Normalmente, esses erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar;
«Quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes» (Ac. da Relação de Lisboa de 11.03.2021, processo 179/19.8JDLSB.L1-9, in http://www.dgsi.pt).
«Se a decisão de primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções face às regras de experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, pois tal decisão foi proferida de acordo com as imposições previstas na lei [artigos 127º e 374º, nº 2 do Código de Processo Penal], inexistindo assim violação destes preceitos legais (Ac. da Relação de Lisboa de 02.11.2021, proc. 477/20.8PDAMD.L1-5 in http://www.dgsi.pt).
«Como expressamente resulta do disposto no artigo 412º, nº 3, alíneas a) e b), e nº 4 do Código de Processo Penal, quanto à impugnação da matéria de facto, para além da especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, deve o recorrente indicar ainda as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Esse desiderato não se alcança com a mera formulação de opiniões quanto à clareza ou precisão do que foi dito, na medida em que tais elementos possam permitir diferentes conclusões – só se atinge com a indicação das provas que impõem, que obrigam a decisão diversa» (Ac. da Relação de Lisboa de 03.05.2022, proc. 275/21.1PQLSB.L1-5, in http://www.dgsi.pt).
O regime do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, traduz-se num reexame pontual e parcial da prova, porque restrito aos precisos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância e não pode, nem deve ser subvertido numa repetição da audiência de discussão e julgamento realizada em primeira instância.
A forma minuciosa e exigente como está previsto e regulado este tríplice ónus de especificação ilustra como o duplo grau de jurisdição da matéria de facto não implica a formulação de uma nova convicção por parte do tribunal de recurso, em substituição integral da formada pelo tribunal da primeira instância, nem equivale a um sistema de duplo julgamento, antes se cingindo a pontos concretos e determinados da matéria de facto já fixada e que, de acordo com a prova já produzida ou a renovar, devem necessariamente ser julgados noutro sentido, justamente, de harmonia com os princípios da imediação, da oralidade e do contraditório da audiência de discussão e julgamento, que postulam a excepcionalidade das alterações ao julgamento da matéria de facto, feito na primeira instância e a concepção do recurso como um remédio jurídico e não como um outro julgamento (Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012. No mesmo sentido, Acs. do Tribunal Constitucional nºs 124/90; 322/93; 59/2006 e 312/2012, in www.tribunalconstitucional.pt e AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07-12-2005, Germano Marques da Silva, Registo da Prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001. No mesmo sentido, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393).
O recorrente CEP veio invocar que os factos provados nos pontos 9, 12, 28, 29, 30, 31 deviam ter sido dados como não provados, porque o único meio de prova em que o Tribunal se alicerçou para dar tais factos como provados – o depoimento da testemunha AV – não é credível, porque esta testemunha encontrava-se de costas para o local onde foi disparado o tiro que atingiu ES e que afirmou isso mesmo em Tribunal, afirmando que não viu quem disparou a arma de fogo que atingiu EFS, não se tendo apercebido sequer, de imediato, que EFS tinha sido atingido por um tiro, o que só aconteceu mais tarde.
Para o efeito, indicou o depoimento testemunhal na sua totalidade, outra não podendo ser a interpretação a retirar quer das motivações do recurso, nas quais o recorrente diz «encontrando-se o mesmo gravado com início pelas 14 horas e 36 minutos e o seu termo pelas 14 horas e 54 minutos», da transcrição quase integral do mesmo depoimento de páginas 20 a 24 do requerimento de interposição do recurso e das conclusões 8 a 25, 31 e 71 do recurso.
Os factos cujo julgamento como provados foi posto em crise no recurso são os seguintes:
9. O arguido CEP empunhou uma arma de fogo, uma pistola de calibre 9x17mm, ou .380ACP, também conhecido por 9 curto (kurtz), na direcção de EFS, AV e Ni.
12. Não obstante, EFS avançou para os separar levando a que o arguido CEP efectuasse um disparo que atingiu EFS na perna esquerda.
28. Ao efectuar o disparo na direcção de EFS o arguido CEP queria atingi-lo na perna, como o fez.
29. Sabia que não poderia agir dessa forma, mas não se inibiu de assim actuar.
30. O arguido CEP fez este disparo para que EFS não interviesse no auxílio ao seu amigo que estava envolvido numa luta, inexistindo qualquer outro motivo para a prática dos factos.
31. Actuou tendo em vista facilitar os factos que o arguido TC estava a perpetrar.
A impugnação destes factos tal como está feita, no presente recurso, é totalmente ineficaz para determinar seja que alteração na decisão de facto.
Em primeiro lugar, porque da circunstância de o Tribunal se ter alicerçado a sua decisão num único depoimento testemunhal não resulta, por si só, qualquer erro de julgamento.
Num sistema, como o processual penal português, de livre apreciação da prova, não tem qualquer eficácia jurídica o aforismo “testis unus testis nullus”, pelo que, um único depoimento, mesmo sendo o da própria vítima, pode ilidir a presunção de inocência e fundamentar uma condenação, do mesmo modo que as declarações do arguido por si só, isoladamente consideradas, podem fundamentar a sua absolvição.
«É hoje consensual que um único testemunho, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorram: a) ausência de incredibilidade subjectiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança – o testemunho há-de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória; c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (Nesse sentido, cfr., entre outros, António Pablo Rives Seva, La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo, Pamplona, 1996, pp.181-187)» (Ac. da Relação de Guimarães de 07.12.2018, processo 40/17.0PBCHV.G1, in http://www.dgsi.pt).
E o que é, igualmente, certo é que um testemunho pode não ser necessariamente todo verdadeiro, nem necessariamente todo falso e ainda assim ser perfeitamente válido para fundamentar a convicção do Tribunal na consideração como provados de todos ou parte dos factos sobre que tenha incidido, desde que, à luz das regras de experiência comum, dos critérios de razoabilidade humana, das regras da ciência ou da técnica ou do valor probatório pleno de determinados meios de prova pré catalogados pela lei com essa especial eficácia, nas correlações que o Tribunal possa estabelecer com os demais meios de prova, tal depoimento se mostre credível e consistente.
Ora, foi o próprio tribunal do julgamento que começou por constatar a falta de credibilidade de todos os depoimentos testemunhais e explicou os motivos pelos quais tais depoimentos e mesmo alguns aspectos das declarações do arguido CEP e dos assistentes ES e EFS não lhe mereceram a confiança necessária para em conformidade com as suas versões, fixar os factos.
Simplesmente, o mesmo Tribunal superou a incerteza ou a dúvida que poderiam advir dessas contradições de versões nuns casos, e das hesitações e mesmo incongruências noutros, com recurso a critérios de razoabilidade, de lógica das coisas e a regras de experiência e senso comum, que expôs com detalhe e de forma clara, com base nos quais atribuiu credibilidade à versão apresentada pela testemunha AV.
Em segundo lugar, porque o recorrente acabou por não cumprir integralmente o ónus de impugnação especificada imposto pelo art.º 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, em virtude de não ter verdadeiramente especificado as razões pelas quais, da comparação entre o depoimento da testemunha AV e a decisão da matéria de facto resulta a insustentabilidade lógica, ou a arbitrariedade da decisão de dar como provados aqueles factos 9, 12 e 28 a 31, nem porque é que a versão probatória e factual alternativa proposta no recurso – a de considerar aqueles factos não provados - é que é a correcta.
Com efeito, o recorrente centra as fragilidades que aponta ao depoimento da testemunha AV em três afirmações fundamentais cuja autoria imputou a esta testemunha:
Que sempre disse de forma expressa que o tiro surgiu nas suas costas;
Que não viu o tiro ou quem o disparou;
Que não sabe quem foi o autor do disparo.
Para além de não ter especificado em que excertos do depoimento da testemunha AV encontrou estas afirmações como o revela a menção à totalidade do mesmo, feita, por exemplo nas conclusões 21 e 22 (ficheiro 20230202143621_20493458_2871051, das 14:36h às 14:54h, sendo que esta é a duração total deste meio de prova, como se pode verificar da audição do mesmo, no sistema media studio do Citius), cumpre sublinhar que da audição do depoimento da testemunha em análise resulta muito mais do que o recorrente pretende fazer crer, no seu recurso.
 É certo e corresponde ao conteúdo do que a testemunha disse na sessão da audiência de discussão e julgamento do dia 2 de Fevereiro de 2023, que só ouviu o tiro e que não viu quem disparou, porque não estava a olhar para trás e antes a olhar para o arguido GS quando foi disparado o primeiro tiro que foi aquele que atingiu o assistente EFS.
Mas explicou ainda que:
Nessa noite, antes dos acontecimentos ocorridos nas imediações da entrada do bar/discoteca SAAD, em Lisboa, já tinham ocorrido desavenças no bar do Tamariz em Cascais entre o seu grupo, composto por ela e seu namorado, o assistente ES, a testemunha Ni e o assistente EFS, por um lado e os arguidos GS, TC e CEP, por outro.
Quando se dirigiram ao bar SAAD da Rua de Entrecampos, constataram que os três arguidos também ali se encontravam à porta e se preparavam para entrar.
Permaneceram no interior dos veículos em que se tinham feito deslocar e quando perceberam que os três arguidos se haviam afastado do local, dirigiram-se para a porta do referido bar.
Enquanto aguardavam para entrar, o arguido TC abordou o assistente ES, pedindo a este para falarem, na sequência do que ambos se afastaram mais para o meio da rua, altura em que o arguido TC agrediu o assistente ES, na cara ou com um murro ou com uma estalada, envolvendo-se então ambos em confronto físico.
Ao verem esta contenda, a testemunha AV, tal como a testemunha Ni e o assistente EFS dirigiram-se em direcção ao local onde estavam em luta o arguido TC e o assistente ES, para os separarem e acabar com aquele confronto, mas foram travados pelo arguido CEP que empunhando uma arma de fogo se atravessou à frente deles, dizendo «ninguém se mete! é mano a mano! ninguém, se mete! é mano a mano!».    
Entretanto, viu que o arguido GS veio por detrás de si, empunhando uma arma na direcção das costas do assistente ES que continuava a lutar com o arguido TC, pelo que empurrou a mão do arguido GS na qual este tinha a arma de fogo apontada ao ES, para o impedir de disparar, o que conseguiu.
Mas, conforme, empurrou a mão do GS, ouviu um tiro, vindo também detrás de si.
E, quando olhou para trás, viu o assistente EFS já caído no chão, a testemunha Ni de pé, à frente da arma que o arguido CEP empunhava e, natural e logicamente, este último, empunhando a referida arma.
Para além do relato dos acontecimentos posteriores, designadamente, quanto à sua tentativa de obter socorro junto do INEM sem sucesso, do auxílio que terceiras pessoas lhes deram para socorrer o assistente EFS e conduzi-lo ao hospital e a fuga dos três arguidos que desataram a correr do local, logo que o assistente EFS foi baleado, altura em que a testemunha AV ouviu mais um tiro, esta testemunha ainda esclareceu que as duas únicas pessoas que estavam na posse de armas de fogo e as exibiram e empunharam pelas formas que descreveu, naquelas circunstâncias de tempo e lugar, eram os arguidos GS e CEP, que o arguido GS nunca apontou a arma na direcção do assistente EFS. Só apontou a arma de fogo que trazia com ele na direcção das costas do assistente ES e não conseguiu disparar porque a testemunha o impediu com o tal empurrão. No momento do empurrão, o arguido GS estava à frente da testemunha AV.
Mais, esclareceu que já conhece o ruído específico de disparos de armas de fogo, porque já ouviu tiros noutras ocasiões ao longo da sua vida, que havia mais pessoas no local, mas todas elas tentavam separar o arguido TC e o assistente ES e apaziguar aquela contenda e que o tiro que ouviu ser disparado por detrás de si e que atingiu o EFS, veio do local onde o arguido CEP se encontrava.
Jamais em todo o seu depoimento a testemunha afirmou que não sabia quem foi o autor desse disparo.
Essa pergunta nunca chegou a ser-lhe feita de forma expressa, já que a única Sra. Advogada, Sra. Dra. AA, que a tentou fazer – cfr. passagem 17:15 a 17:30m, sensivelmente, do depoimento – até mais em jeito de afirmação do que de pergunta, foi de tal impedida pelo Mmo. Juiz Presidente do Colectivo, no uso dos seus poderes de direcção da audiência, com fundamento na circunstância de já ter explicado o que tinha visto e ouvido, quanto às circunstâncias em que foi disparado o primeiro tiro.
Com efeito, essa pergunta era totalmente desnecessária, em face de tudo o que a testemunha AV esclareceu quando à sequência cronológica dos acontecimentos daquela madrugada de 20 de Agosto de 2021, cerca das 02H15/02H30, junto ao Bar SAAD, sito na Rua de Entrecampos, n.º 12, em Lisboa e aos comportamentos de cada um dos intervenientes, nesses acontecimentos.
É que, se as duas únicas pessoas envolvidas naquele conflito que detinham armas de fogo eram os arguidos GS e CEP, se o arguido GS, embora empunhando uma arma de fogo, além de estar à frente da testemunha AV a apontou na direcção de outra pessoa e foi impedido de a usar, por efeito do empurrão que a mesma testemunha lhe deu, na mão onde tinha a arma apontada, se só foi disparado um tiro, até o assistente EFS ter caído ao chão, já ferido na perna esquerda, precisamente, por ter sido atingido por esse tiro, se esse tiro veio do local onde estava o arguido CEP e, quando a testemunha AV olhou para trás, logo que ouviu um tiro ser disparado atrás de si, viu o arguido CEP com uma arma de fogo empunhada, a testemunha Ni à frente do mesmo arguido, assim como o assistente ES caído no chão e ferido, a questão que cumpre colocar é, mas afinal qual é a dúvida acerca de a autoria desse disparo ser imputável ao referido arguido CEP?
E a resposta é: nenhuma.
Isto, porque só por uma muito extraordinária e de todo em todo improvável coincidência é que, naquelas circunstâncias de tempo, modo e lugar, se poderia ter concluído ou que não foi o arguido CEP o autor daquele primeiro tiro ou, como pretende o recorrente, que existe alguma incerteza ou lacuna na prova que não permita imputar ao arguido CEP a autoria do disparo com arma de fogo que atingiu o assistente ES, na perna esquerda.  
Assim sendo o que resulta desta impugnação ampla da matéria de facto é que a versão probatória e factual alternativa que o recorrente CEP apresenta, em substituição daquela que considera ter sido julgada de forma incorrecta, afinal, não assenta num erro de julgamento, mas antes na mera discordância do recorrente quanto ao sentido final da decisão proferida pelo Tribunal do julgamento, porque ao contrário do decidido, quer ser absolvido. Ora, sem demonstrar a insustentabilidade lógica ou a arbitrariedade da decisão de facto, por efeito da correlação crítica e comparativa entre os meios de prova produzidos e os factos fixados pelo Tribunal, com indicação de razões convincentes que concretizem a fonte e a natureza do desacerto do julgamento dos factos impugnados, não há a menor hipótese de se alterar a matéria de facto provada e não provada. 
Esta impugnação do recorrente CEP não tem a virtualidade de impor uma decisão oposta, ainda, porque parte dos excertos do depoimento invocado como sendo a origem do erro de julgamento, também foram levados em consideração pelo Tribunal e percepcionados com aquele exacto conteúdo, não se descortinando que tenha sido produzida alguma prova ilegal ou proibida, ou que tenham sido violadas as regras da experiência comum e da lógica, ou, ignorados conhecimentos científicos, ou inobservadas regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, os princípios da livre apreciação da prova e in dubio pro reo, nem as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como seria o caso da confissão, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos (autênticos e autenticados). Isto, no que se refere às afirmações proferidas pela testemunha AV de que não viu o primeiro tiro ser disparado, só ouviu o disparo que foi feito, atrás de si. 
Já a afirmação imputada à mesma testemunha de que não sabe quem efectuou o disparo, a mesma nem sequer tem correspondência no conteúdo do depoimento, pois a testemunha AV nunca afirmou que não sabia quem foi o autor do disparo que atingiu o assistente EFS, no seu corpo e saúde.
E a circunstância de também nunca ter afirmado expressamente que foi o arguido CEP quem disparou o tiro que feriu aquele assistente, além de não permitir afirmar qualquer dúvida ou incerteza probatória quanto à identidade do autor desse tiro, face a todo o conteúdo do relato que fez dos factos, só reforça a credibilidade do depoimento da testemunha AV, na medida em que revela a sua preocupação de falar com verdade e de afirmar apenas o que viu e o que ouviu, naquele local, naquele dia e naquela hora.
Tudo o mais que pode retirar-se deste depoimento e que foi concluído pelo Tribunal do julgamento, está plenamente respaldado em regras de experiência comum, de dedução lógica e de juízos de prognose póstuma sobre o que é normal e expectável acontecer em situações como a presente.
A prova indirecta é aceitável e usada como alicerce da convicção em plano de igualdade com a prova directa, desde que verificados determinados pressupostos.
Exigir a prova directa implicaria o fracasso na luta contra o crime, ou para essa consequência se evitar, o recurso à confissão, o que significaria o levar ao máximo expoente o valor da prova vinculada, taxada, e a tortura enquanto efeito à vista se a confissão redundasse em insucesso (cfr. Carlos Clement Durán, La Prueba Penal, 1999, págs. 575 e 696 , J.M. Ascensio Mellado, in Presunção de Inocência e Prueba Indiciária, 1992, citado por Clement Durán a págs. 583).
O juízo de inferência converter-se-á em verdade convincente se a base indiciária, plenamente reconhecida mediante prova directa, foi integrada por uma pluralidade de indícios (embora excepcionalmente possa admitir-se um só se o seu significado for determinante), que no confronto outros possíveis contraindícios, estes não neutralizem a  eficácia probatória dos factos indiciantes e que a associação de uma regra da ciência, uma máxima da experiência ou uma regra de sentido comum  sustente uma conclusão inteiramente razoável face a critérios lógicos do discernimento  humano ( neste sentido, Euclides Dâmaso Simões, em «Prova indiciária», na Revista Julgar, n.º 2, 2007, pág. 203 e ss., José Santos Cabral, «Prova indiciária e as novas formas de criminalidade», na Revista Julgar, n.º 17, 2012, pág. 13, Marta Sofia Neto Morais Pinto, em «A prova indiciária no processo penal, na Revista do Ministério Público, n.º 128, out.-dez. 2011, pp. 185-222; Paulo de Sousa Mendes, A prova penal e as Regras da experiência, Estudos em Homenagem ao prof. Figueiredo Dias, III, p.1002).
O artigo 127º do Código de Processo Penal permite o recurso a presunções judiciais, é compatível com a presunção de inocência, consagrada no artigo 32º nº 2 da Constituição, e ainda com o dever de fundamentar as decisões judiciais, imposto pelo artigo 205º nº 1 da Constituição (Ac. Tribunal Constitucional nº 391/2015, em DR nº 224, II Série, de 16/11/2015, e Ac. do TC nº 521/2018 de 17 Out. 2018, Processo 321/2018 http://www.tribunalconstitucional.pt/tc//tc/acordaos/20180521.html).
Tal como as presunções judiciais são meios de prova, também o princípio «in dúbio pro reo», corolário do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido, contemplado no art.º 32º nº 2 da Constituição, é um princípio de prova.
Ambos são mecanismos de resolução dos estados de incerteza, na convicção do julgador, quanto à verificação dos factos integradores de um crime.
O primeiro pressupõe que a dúvida se mantenha insanável, depois de esgotado todo o iter probatório e feito o exame crítico de todas as provas e resolve a dúvida cominando-lhe como consequência a consideração dos factos como não provados e a consequente absolvição do arguido.
A segunda, através da inferência lógico-dedutiva, a partir de indícios ou factos circunstanciais ou colaterais ao objecto do processo resolve essa dúvida contra o arguido, superando a aplicação do in dúbio pro reo, pois permite afirmar um facto desconhecido a partir de um facto conhecido, para além de qualquer dúvida razoável.
Assim, a concatenação entre os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo e o da admissibilidade da prova indirecta, através de presunções judiciais em Direito Penal, implica que as dúvidas acerca da demonstração de determinados factos, sejam resolvidas em benefício do arguido, conduzindo à sua absolvição, mas a questão da existência da dúvida e consequente aplicação deste princípio só pode colocar-se depois de esgotado todo o iter probatório, ou seja, quando o non liquet persiste, mesmo depois de analisadas todas as provas directas e de concluído todo o esforço lógico-dedutivo inerente ao apuramento dos factos através de presunções judiciais.
Ora, num ambiente de conflito e hostilidade, em que dois dos intervenientes se socorrem de armas de fogo para resolverem as suas divergências e em que um tiro é disparado precisamente a partir do local onde está uma das duas únicas pessoas envolvidas que se encontra armada, estando a outra pessoa armada em local diverso e a ser observada por uma testemunha que garante do modo credível não ter sido esta outra quem efectuou esse disparo e mais, que logo após ouvir o tiro, olha para trás, na direcção de onde lhe chegou o som do correspondente disparo e vê essa pessoa ainda a empunhar a arma e a que foi atingida, ferida e caída no chão, pouco mais à frente, não há qualquer margem para dúvidas ou incertezas, no sentido de afirmar que a autoria do disparo é dessa pessoa.
Foi precisamente o que sucedeu no caso vertente, com o relato da testemunha AV Vitória que oferece credibilidade pela sua veracidade intrínseca e verosimilhança e porque à luz das regras de livre apreciação da prova, segundo a convicção do julgador objectivada em critérios de lógica e de razoabilidade e em presunções judiciais é suficiente e bastante para alicerçar a convicção do Tribunal.  
Contrariamente ao que o recorrente afirmou na conclusão 40 do seu recurso, o Tribunal da Relação não tem que criar a sua própria convicção. Apenas se limita a apreciar se a convicção do Tribunal do julgamento está em consonância com as regras que regulam a produção e a valoração da prova.
Mesmo que seja uma de várias convicções possíveis sempre será a prevalecente, por se encontrar ancorada nos princípios da imediação da oralidade e do contraditório que vigoram no sistema processual penal português, com especial relevo, tempo e local de concretização na audiência de discussão e julgamento, desde que, como acontece, neste processo, o recorrente não consiga demonstrar a arbitrariedade, a insustentabilidade lógica ou a ilegalidade da decisão de facto.
O duplo grau de jurisdição em sede de decisão matéria de facto prossegue uma única finalidade que é a de corrigir erros de julgamento e não a substituição da convicção do Tribunal pela do recorrente, alicerçada numa mera divergência quanto à fase final da formação da convicção e ao sentido global da prova e da fixação dos factos, apenas porque não pretende sofrer uma condenação e as suas consequências, que é o que sucede, no presente recurso que, nesta parte, tem por isso mesmo, de ser julgado improcedente.
d) Verificação da existência do vício do erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.º 410º nº 2 al. c) do CPP:
O art.º 410º nº 2 do Código de Processo Penal, estabelece a possibilidade de o recurso se fundamentar na insuficiência da matéria de facto provada para a decisão; na contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, ou no erro notório na apreciação da prova, «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito».
Trata-se de vícios estruturais cuja apreciação não envolve nem pode envolver qualquer sindicância à prova produzida, no Tribunal de primeira instância, porque só o texto da decisão recorrida os pode evidenciar. Referem-se apenas à forma como a decisão se encontra redigida, pelo que a indagação da sua existência faz-se, exclusivamente, a partir da análise do respectivo texto, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, ainda que constem do processo, com excepção das regras de experiência comum.
São vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Vícios da decisão, não do julgamento (Maria João Antunes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).
O erro notório na apreciação da prova supõe que do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com o senso comum, deflua de forma fácil, evidente e ostensiva, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, que a factualidade ali exarada é arbitrária, contrária à lógica mais elementar, a regras científicas ou de experiência comum, ou assenta na inobservância de regras sobre o valor da prova vinculada, ou das leges artis, sendo notórias as distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária e de todo insustentável, consequentemente incorrecta da matéria de facto.
«Verifica-se erro notório na apreciação da prova quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que está notoriamente errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando de um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum (…)» (Leal-Henriques e Simas Santos no Código de Processo Penal Anotado, vol. II, 2ª edição, pág. 740, em anotação ao artigo 410º.
«É o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta» (Germano Marques da Silva – Curso de Processo Penal, Vol III, pág. 341), ou seja, a um juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.
«O “erro notório na apreciação da prova” constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio» (Ac. do STJ de  06.10.2010 Proc. n.º 936/08.0JAPRT.P1.S1.. No mesmo sentido, Acs. do STJ de 20.11.2014, processo 87/14.9YFLSB, de 12.03.2015, proc. 724/01.5SWLSB.L1.S1, de 24.02.2016, proc. 502/08.0GEALR.E1.S1, de 07.06.2017, proc. 516/13.9PKLRS.L1.S1, de 06.12.2018, proc. 22/98.0GBVRS.E2.S1 e de 13.03.2019, processo 2400/11.1TASTB.E1.S1, ambos in http://www.dgsi.pt).
«A existir erro notório (…), ele teria de ser evidente, detectável espontaneamente no texto da decisão, e resultar deste, ou do encontro deste com as regras da experiência comum. Pois o erro notório traduz-se em considerar provado algo notoriamente errado, que não poderia ter acontecido, algo de ilógico, arbitrário ou notoriamente violador das regras da experiência comum. Seria uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si (…) Há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se respeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 74)» (No mesmo sentido, Acs. da Relação de Évora de 09.01.2018, proc. 31/14.3GBFTR.E1, da Relação de Coimbra de 10.07.2018, proc. 26/16.2GESRT.C1, da Relação de Lisboa de 10.11.2020, proc. 9/18.8GBALM.L1-5, in http://www.dgsi.pt).
«A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas e apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da “experiência comum”.» (Ac. do STJ de 13.03.2019, processo 2400/11.1TASTB.E1.S1 in http://www.dgsi.pt).
O erro notório na apreciação da prova tem de ser ostensivo, resultar de forma notória e evidente do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras de experiência comum e nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correcta face à prova produzida em audiência de julgamento, porque esta refere-se ao princípio da livre apreciação da prova, à forma como o Tribunal valora as provas e forma a sua convicção a partir delas, em suma, ao erro de julgamento, nos termos previstos no art.º 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, o qual só poderá ser apreciado e conhecido, se no recurso for suscitada a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto.
O erro de julgamento refere-se à apreciação e valoração da prova produzida, enquanto que o erro notório é um vício estrutural da própria decisão, cuja verificação abdica da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, portanto, tem de ser feita sem a utilização de elementos externos à decisão (salvo se os factos forem contraditados por documento que faça prova plena), não sendo, por isso, admissível recorrer a quaisquer outros elementos que eventualmente constem do processo.
«O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação.» (Ac. da Relação do Porto de 09.01.2020, processo 1204/19.8T8OAZ.P1, in http://www.dgsi.pt.  No mesmo sentido, Ac. da Relação de Lisboa de 22.09.2020, proc. 3773/12.4TDLSB.L1-5, Ac. da Relação de Guimarães de 25.10.2021, proc. 870/18.6PBGMR.G1, Ac. da Relação de Évora de 25.01.2022, proc. 114/19.3T9STR.E2, na mesma base de dados).
Para aferir da existência do erro notório na apreciação da prova, é preciso ter presente, desde logo, a descrição dos factos provados e não provados e as correlações que possam estabelecer-se entre eles, do ponto de vista físico ou natural, à luz da possibilidade real da sua ocorrência e bem assim daquilo que geralmente acontece, em seu resultado (o chamado «id quod plerumque accidit»).
Complementarmente, é ainda necessário, analisar o texto da fundamentação da decisão de facto, quanto aos motivos da convicção, à espécie de meios de prova obtidos e valorados, bem como aos processos intelectuais em que assentam as conclusões formuladas.
Se depois de tudo visto, se puder afirmar a integridade do processo racional e lógico de formação da convicção sobre a prova, a consequência será a inexistência do erro notório. Se, ao inverso, resultar a irrazoabilidade, a arbitrariedade, ou impressionismo da convicção sobre os factos, haverá erro notório na apreciação da prova.
No caso vertente, o recorrente centrou o que considera como erro notório, na circunstância de «o Tribunal recorrido na sua motivação da matéria de facto dá como não credíveis e, portanto irrelevantes, para a formação da sua convicção quanto à autoria do disparo que atingiu a vitima EFS o depoimento de todas as testemunhas inquiridas em sede de julgamento, com excepção do depoimento da testemunha AV que, contudo, diz a decisão recorrida, estava de costas para o local onde foi  alegadamente disparado o tiro, não tendo visto quem disparou, não tendo visto a vítima EFS a ser atingida, tendo apenas ouvido o tiro», acrescentando que «resulta do próprio texto da decisão que esta testemunha ouviu o tiro nas suas costas resultando também de imediato e sem mais da decisão recorrida que tal tiro “claramente, foi disparado pelo arguido CEP que atingiu o seu amigo EFS”, sem em momento algum ter justificado o porquê de assim entender».   
Ora, não é porque o Tribunal credibilizou o depoimento da testemunha AV e por essa credibilização resultar do próprio texto da decisão recorrida, que há erro notório.
É óbvio que essa tomada de posição tinha de resultar evidenciada no texto da decisão recorrida, porquanto a forma escrita é a que é própria das sentenças e acórdãos e é da sua redução a escrito que emergem a sua fundamentação de facto e de direito e sentido final de decisão, bem como a possibilidade de sindicar os seus requisitos de forma e conteúdo que, segundo o CPP, são condições essenciais da sua validade e eficácia e bem assim, os fundamentos da apreciação das questões relativas ao mérito da causa.
Os argumentos dos quais o recorrente retira a conclusão de que há erro notório são, ainda e sempre, a incompatibilidade que, com base na sua convicção, julga encontrar entre a prova produzida e a decisão do tribunal, ou seja, a forma como o processo de análise crítica da prova e de formação da convicção do julgador se formou a partir da prova produzida, especialmente, por ter credibilizado o depoimento de uma determinada testemunha, AV, à qual o recorrente não reconhece fidedignidade com o argumento de esta não viu o recorrente disparar o tiro que atingiu o assistente EFS.
 Só que esta matéria refere-se ao mérito do julgamento em matéria de facto e não a vício manifesto da própria sentença, analisada exclusivamente no seu teor literal e nas regras de experiência comum. É, por conseguinte, ainda e sempre impugnação ampla da matéria de facto.
Lendo o texto da decisão recorrida, não se vislumbra, seja em que excerto da mesma, qualquer incongruência, ambiguidade, obscuridade, nem se mostra que tenha sido retirado de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, ou que tenha sido considerado como provado algo que notoriamente está errado, nem que algum facto dado como provado seja incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto contido na sentença recorrida, nem se mostram inobservadas as regras sobre o valor da prova vinculada, nem as regras da experiência, nem as legis artis em matéria de livre apreciação da prova.
Incidentalmente, a propósito quer do erro de julgamento, quer do erro notório na apreciação da prova, o recorrente, foi também invocando a violação do princípio «in dúbio pro reo».
Na sua formulação constante do art.º 32º nº 2 da Constituição da República, o princípio da presunção de inocência surge articulado com o princípio in dúbio pro reo, na medida em que, quando aplicado à apreciação da matéria de facto, impõe a absolvição, quando haja dúvida acerca da culpabilidade do arguido (esta culpabilidade, na acepção de facto criminalmente punível, abrangendo, pois, todos os elementos constitutivos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime,  circunstâncias agravantes e excludentes da ilicitude e da culpa).
A dúvida relevante para a aplicação do princípio in dubio pro reo terá de ser a que corresponde a «um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva» (Perris, “Dubbio, Nuovo Digesto Italiano, apud, Giuseppe Sabatini “In Dubio Pro Reo”, Novissimo Digesto Italiano, vol. VIII, págs. 611-615), mas desde que seja positiva e racional, que ilida a certeza contrária, enfim, que seja uma dúvida impeditiva da convicção do tribunal.
O in dubio pro reo tem a sua oportunidade de aplicação circunscrita à ocorrência de factos incertos e não é mais do que o resultado da aplicação do princípio da presunção de inocência à actividade judicial de valoração da prova e de resolução de dúvidas dela emergentes quanto à verificação dos factos que integram o objecto do processo.
É um princípio de prova e um mecanismo de resolução dos estados de incerteza, na convicção do julgador, quanto à verificação dos factos integradores de um crime ou relevantes para a pena. Pressupõe que a dúvida seja razoável e se mantenha insanável, mesmo depois de esgotado todo o iter probatório e feito o exame crítico de todas as provas. Resolve a dúvida, cominando-lhe como consequência a consideração dos factos como não provados e a consequente absolvição do arguido, ou, em qualquer caso, a decisão da matéria de facto, sempre, no sentido que mais favorecer o arguido.
«Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª ed., pág. 203).
«O tribunal deve dar como provados os factos favoráveis ao arguido, quando fica aquém da dúvida razoável, apesar de toda a prova produzida» (Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 2016, Almedina, p. 171).
«O principio in dubio pro reo aplica-se sem qualquer limitação, e, portanto, não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude (v. g. a legitima defesa), de exclusão da culpa. Em todos estes casos, a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido» (Figueiredo Dias in Dt.º Processual Penal, I, 1974, p. 211).
Constituí, deste modo, um limite normativo ao princípio da livre apreciação da prova, previsto no art.º 127º do CPP, na medida em que a dúvida que lhe subjaz, sendo insuperável, impõe-se com carácter vinculativo, impedindo o juiz de decidir uma parte do objecto do processo: precisamente, a que se refere aos factos incertos que sejam desfavoráveis ao arguido.
«Não adquirindo o tribunal a "certeza" (a convicção positiva ou negativa da verdade prática) sobre os factos (...), a decisão tem de ser, por virtude do princípio in dubio pro reo, a da absolvição. Neste sentido não é o princípio in dubio pro reo uma regra de ónus da prova, mas justamente o correlato processual da exclusão desse ónus» (Castanheira Neves in Processo Criminal, 1968, p. 55/60).
Nesta medida, é também o correlato processual do princípio da culpa – nulla poena sine culpa - porquanto o seu desiderato último é garantir que sem a demonstração suficiente dos pressupostos de facto de tal decisão, jamais haverá lugar à aplicação de qualquer pena ou medida de segurança (cfr.  Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e «in Dubio Pro Reo», Studia Juridica 24, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1997, p. 11).
A violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser conhecida como vício do texto da decisão, na modalidade de erro notório na apreciação da prova, como previsto no art.º 410º nº 2 al. b) do CPP assumindo, nesta vertente, uma natureza subjectiva de dúvida histórica que o tribunal do julgamento, deveria ter tido e não teve.
Assim, se é o estado de dúvida subjectivamente sentida pelo julgador aquando da valoração e exame crítico dos meios de prova que constitui o pressuposto específico do princípio in dubio pro reo, o mesmo não se mostrará violado quando o tribunal de julgamento não se confrontou com dúvida séria sobre a demonstração do facto desfavorável ao arguido e a aferição da sua existência é feita, como é próprio dos vícios decisórios previstos no citado art.º 410º, exclusivamente, através da análise do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, mas sem qualquer recurso à prova produzida, ou a qualquer outro elemento exterior.
«A violação do princípio in dubio pro reo, que dizendo respeito à matéria de facto (…) devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art.º 410º nº 2 do CPP, só se verifica quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção» (ac. do STJ de 27.04.2011, proc. 7266/08.6TBRG.G1.S1 in http://www.dgsi.pt).
«A violação do princípio in dubio pro reo pressupõe que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de incerteza, de dúvida, quanto aos factos dados como provados e não provados, o que não sucede se não se detecta na leitura da decisão recorrida, nomeadamente, da fundamentação da matéria de facto, qualquer dúvida quanto aos factos que se devia dar por provados ou não provados» (Ac. do STJ de 27.04.2017, proc. 452/15.4JAPDL.L1.S1, in http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido e na mesma base de dados, v.g., Acs. da Relação de Coimbra de 25.02.2015, proc. 28/13.0GAAGD.C1 e de 18.03.2020, proc. 93/18.4T9CLB.C1 e Ac. da Relação de Lisboa de 04.02.2020, proc. 478/19.9PBPDL.L1).
Mas o princípio in dubio pro reo também pode e deve ser entendido objectivamente, ou seja, desgarrado da dúvida subjectiva ou histórica, postulando uma análise da sua violação já não como vício decisório, mas como erro de julgamento.
Nos termos do art.º 428º do CPP, os poderes de cognição do tribunal da Relação incluem os factos fixados na primeira instância e, na medida em que o in dubio pro reo é uma vertente processual do princípio nulla poena sine culpa, a sua inobservância também pode e deve ser apreciada como um erro de julgamento, nos termos regulados pelo art.º 412º do CPP.
Com efeito, a impugnação ampla da matéria de facto, visando os chamados erros de julgamento, habilita o Tribunal da Relação, fora dos limites apertados dos vícios decisórios previstos no art.º 410º do CPP a aferir da conformidade ou desconformidade da decisão sobre os factos impugnados com a prova efectivamente produzida no processo, de acordo com as regras da experiência e da lógica, com os conhecimentos científicos, bem como, com as regras específicas e os princípios vigentes em matéria probatória, entre os quais se incluem, naturalmente, os princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo.
Nesta perspectiva, o enquadramento da violação do in dubio pro reo como erro de julgamento,  postula uma concepção objectiva da dúvida quanto aos factos desfavoráveis ao arguido, que é, de resto, a que melhor se coaduna com os princípios da culpa e da livre apreciação da prova, perante as dúvidas sobre os factos desfavoráveis ao arguido, no sentido em que, se o Tribunal tem a máxima liberdade, mas também a máxima responsabilidade na forma como deve, com objectividade, efectuar o exame crítico e global das provas, adquirir a sua convicção quanto aos factos provados e fundamentar a sua decisão, também a dúvida relevante para a aplicação do princípio in dubio pro reo terá de ser motivada, segundo critérios de razoabilidade e de lógica, igualmente sindicáveis e passíveis de impugnação em via de recurso.
«Só a uma convicção objectivável e motivável terá de corresponder uma dúvida também ela objectivável e motivável (…) ao pedir-se ao juiz, para a prova dos factos, uma convicção objectivável e motivável, está-se a impedi-lo de decidir quando não tenha chegado a esse convencimento; ou seja: quando possa objetivar e motivar uma dúvida. (…). Não importa tanto saber se aquela concreta pessoa teve ou não dúvida sobre o facto – do que para a ciência e discernimento que deve possuir em comum com qualquer outro julgador e o há-de levar, portanto, a uma avaliação da prova admissível por todos (ao menos no seu conteúdo essencial). Um “juiz” médio (neste sentido) ter-se-ia convencido da veracidade daquele testemunho, da autenticidade daquele documento, da espontaneidade daquela confissão? Ou, pelo contrário, não poderia deixar de duvidar, com razoabilidade, da ocorrência de determinado facto perante a prova produzida?
«O princípio da livre apreciação da prova, entendido como esforço para alcançar a verdade material, como tensão de objectividade, encontra assim no “in dubio pro reo” o seu limite normativo, ao mesmo tempo que transmite o carácter objectivo à dúvida que acciona este último.
«Livre convicção e dúvida que impede a sua formação são face e contra-face de uma mesma intenção: a de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» (Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e «In Dubio Pro Reo», Coimbra Editora, 1997, pp. 51-53).
Assim sendo, também haverá violação do princípio in dubio pro reo, sempre que o tribunal do julgamento tenha julgado provado facto desfavorável ao arguido, não obstante a prova disponível não permitir, de forma racional e objectiva, à luz das máximas de experiência comum, das regras da lógica, dos conhecimentos científicos aplicáveis, ou das normas e princípios legais vigentes em matéria de direito probatório, com o grau de certeza ou convencimento «para além de toda a dúvida razoável», dar por verificada a realidade desse facto,  mesmo que do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras do senso comum, não resulte que o Tribunal se tenha confrontado, subjetivamente, com qualquer dúvida insuprível, no momento da decisão (cfr. nesse sentido, Acs. da Relação de Évora de 19.08.2016, processo 36/14.4GBLLE.E1 e da Relação de Lisboa de 29.11.2016, processo 18/14.6PFLRS.L1-5; de 07.05.2019, processo 485/15.0GABRR.L2 e de 22.09.2020, proc. 3773/12.4TDLSB.L1 in http://www.dgsi.pt).
No entanto, para que o Tribunal da Relação possa detectar a violação do in dubio pro reo, como erro de julgamento e segundo a concepção objectiva da dúvida, nos termos acima expostos, é preciso que o recorrente cumpra cabalmente os ónus primário e secundário de impugnação especificada de que o art.º 412º faz depender o êxito da pretensão de reavaliação da prova produzida e de subsequente sindicância da convicção do Tribunal do julgamento sobre essa prova produzida em primeira instância.
Ora, o Tribunal teve todo o cuidado em afirmar a dúvida onde ela subsistiu, depois da prova produzida e em retirar dela toda a informação útil relevante de forma crítica e com assento em critérios de dedução lógica e de prova indirecta por presunções judiciais, sendo certo que não se debateu com a menor dúvida, no que se refere à dinâmica dos acontecimentos de que resultou a imputação dos crimes pelos quais foi condenado ao arguido recorrente, tal como ilustrado no excerto da motivação da decisão de facto que refere:
«Por vezes, as incertezas são tantas que não se consegue ultrapassar a dúvida sobre os eventos e, em abono do princípio in dubio pro reo, não se logra a prova de factos bastantes que justifiquem uma clara condenação ou mesmo absolvição.
«Não é, porém, esse o presente caso.
«Com efeito, conseguiu o Tribunal, da avaliação das diferentes versões apresentadas, reconstruir uma linha de acção, no tempo e no espaço, seguida pelos diversos intervenientes.
«A falta de rigor quanto a detalhes mais pormenorizados, levou a que alguma da matéria descrita na acusação se quedasse por não provada. São factos que não foram suficientemente descritos por qualquer das testemunhas, de forma coerente e credível, pelo que o Tribunal não se convenceu se os mesmos ocorreram na realidade, ou com aquele encadeamento.».
Já segundo uma concepção objectiva da dúvida razoável, como a propósito da impugnação ampla da matéria de facto, já se referiu, o acerto da decisão de facto é total, por ser total a coincidência entre a informação útil e relevante que pode extrair-se de forma directa do depoimento da testemunha AV Vitória e aquela que, por via das presunções judiciais, foi possível obter desse mesmo depoimento.
Assim, nem o texto da fundamentação do acórdão recorrido evidencia qualquer dúvida sobre a decisão da matéria de facto, nem face à análise da prova produzida existe qualquer fundamento válido para chamar à colação tal princípio, sendo de manter integralmente a factualidade impugnada pelo recorrente.
Não foi, pois, violado o princípio «in dúbio pro reo».
O recorrente pretende a renovação da inquirição da testemunha AV.
O art.º 412º nº 3 al. c) do CPP, prevê a possibilidade de renovação da prova, ou seja, daquela que já haja sido produzida durante a fase de discussão e julgamento da causa, na primeira instância. Não se trata de produzir prova nova.
Esta norma tem de ser articulada com as regras contidas no art.º 430º do CPP, o que implica que a renovação da prova, só é legalmente admissível se se verificarem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artigo 410º e houver razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo, como estabelecido no nº 1, acrescentando o nº 2 que «a decisão que admitir ou recusar a renovação da prova é definitiva e fixa os termos e a extensão com que a prova produzida em 1.ª instância pode ser renovada».
A renovação da prova realiza-se em audiência, sendo aplicável, correspondentemente, o regime da discussão e julgamento em primeira instância - art.º 430º nºs 3 e 5 do CPP.
«Assim o recorrente ao impugnar a decisão da matéria de facto conforme o artigo 412.º, n.º 3, se pretende a renovação de algumas das provas, desde logo, deve invocar de forma precisa, mas completa a existência de alguns dos vícios do artigo 410.º; depois deve identificar devidamente as provas a renovar e a matéria sobre que deve incidir a inquirição das testemunhas.
«Finalmente o recorrente deve fundamentar devidamente por que é que entende que há razões para crer que a renovação da prova, aquela concreta renovação, permitirá evitar o reenvio do processo» (Sérgio Gonçalves Poças, Processo Penal Quando o Recurso Incide Sobre a Decisão da Matéria de Facto, Revista Julgar - n.º 10 – 2010, p. 33 e 34).
Na medida em que o acórdão recorrido não apresenta qualquer dos vícios decisórios previstos no art.º 410º nº 2 als. a) a c) do CPP, também não há lugar a qualquer renovação da prova.
 Do mesmo modo, não se compreende qual seria a necessidade argumentada nas conclusões 58 a 70 do recurso, de realização de uma perícia para averiguar factos que não carecem de quaisquer conhecimentos científicos ou técnicos especializados e antes são apreensíveis de forma directa e imediata pelos próprios sentidos, como é o caso de averiguar quais eram os posicionamentos relativos dos três arguidos, dos dois assistentes e das duas testemunhas Ni e AV, nos momentos que antecederam o primeiro tiro com arma de fogo que atingiu a perna esquerda de ES e no exacto momento desse disparo.
Quanto à reconstituição de factos, no local, só mesmo a insurgência contra a credibilização do depoimento da testemunha AV e a vontade de lançar dúvidas onde elas nem sequer existem, pode justificar um tal pedido.
A testemunha AV explicou com detalhe e sem qualquer hesitação essas localizações relativas de todos os intervenientes e sobre os motivos da credibilização deste depoimento e do seu valor probatório para dar como verificados os factos que constam descritos como tal no acórdão recorrido, nada mais há a acrescentar ao que já foi ali dito e agora, redito, na presente decisão do recurso.
O Tribunal não sentiu necessidade de realizar quaisquer outras diligências probatórias, para além das que foram realmente levadas a cabo e muito bem, porquanto a decisão de facto está correcta, por ser totalmente compatível com a prova produzida e com as regras inerentes ao princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127º do CPP e por se mostrar correctamente expresso o processo de motivação da decisão de facto, sem lacunas, ambiguidades, incongruências ou qualquer outro vício.   
Diga-se, de resto, que a realização dessas diligências suplementares de prova nos termos previstos no art.º 340º do CPP, se era assim tão importante para o recorrente, sempre teria de ter sido requerida perante o Tribunal do julgamento e não agora, em sede de recurso, extrapolando completamente do âmbito de atribuições e competências do Tribunal da Relação e da natureza dos recursos penais como meros remédios jurídicos para corrigir e colmatar os erros das decisões judiciais e dos procedimentos adoptados na primeira instância, segundo a discriminação que for feita pelos sujeitos processuais.
Ora, nem na contestação apresentada pelo recorrente (cfr. referência Citius 34372130), nem depois, durante a audiência de discussão e julgamento (cfr. actas com as referências Citius 422826247, 422841367, 423451283 e 423785152), foi apresentado seja que requerimento, no sentido da realização de tais diligências probatórias adicionais.
Por isso, não vale a pena vir agora invocar a nulidade por omissão dessas diligências, porquanto, mesmo que fosse o caso, a violação do art.º 340º, nº 1 do CPP e por via dela, a violação do princípio da investigação, na sequência do indeferimento de requerimento de produção de diligências probatórias adicionais, só poderia dar lugar a uma nulidade sanável, a enquadrar no art.º 120º nº 2 al. d) do CPP e sujeita ao regime de arguição previsto no nº 3 do mesmo artigo, como consequência dos princípios da legalidade e da tipicidade das nulidades (art.º 118º do CPP).
Assim, tendo o arguido e a sua Ilustre Defensora estado presentes na audiência de julgamento e nada tendo requerido, nesse sentido, não podem vir agora suscitar uma questão nova, colocando o Tribunal da Relação na contingência de se pronunciar em matérias que não estão incluídas no universo daquelas que lhe compete julgar em primeira instância, ou seja, de actuar «contra legem».
Por fim, «na renovação da prova a efectuar no Tribunal da Relação não cabe o pedido de produção de um meio de prova que podendo ser pedido e ser efectuado na 1ª instância não foi pedido nem produzido» (Ac. da Relação do Porto de 25.02.2015, proc. 1582/12.0JAPRT.P1, in http://www.dgsi.pt).
e) Violação do princípio do ne bis in idem quanto ao crime de ofensas à integridade física qualificada e agravada pelo uso da arma de fogo, em virtude de o n.º 3 do art.º 86.º da Lei das Armas, enquanto norma de carácter geral, não ser aplicável ao tipo legal de ofensas à integridade física quando estas já se encontram qualificadas pelo uso da arma, sendo esta uma norma especial.
O art.º 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa consagra o princípio “ne bis in idem”, ou seja, o princípio de que ninguém pode ser julgado, nem condenado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, o que significa que é proibido aplicar mais de uma sanção com base na prática dos mesmos factos que integrem a prática de um crime e também a proibição de realizar uma pluralidade de julgamentos criminais com base no mesmo facto delituoso.
Em contrapartida, a proibição de dupla valoração do mesmo «substracto material», impõe um «mandado de esgotante apreciação de toda a matéria tipicamente ilícita submetida à cognição do tribunal num certo processo penal» (Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, tomo 1, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, 41/ § 2, p. 978).
Também tem consagração em instrumentos internacionais, aceites e vinculativos para a Ordem jurídica portuguesa (art.º 8º CRP) como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 (art.14º) Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais de 22.11.1984 (4º do protocolo nº 7) e Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (art.º 50º) e tem como fundamento a exigência da liberdade do indivíduo e por finalidade limitar o poder de perseguição e de julgamento do Estado.
Através da consagração deste princípio concretiza-se, ainda, um valor essencial, na relação do cidadão com Estado, que é a segurança jurídica, pois que, se, por um lado, gera a figura do “caso julgado”, evitando-se que o Tribunal seja colocado na situação de proferir duas decisões, eventualmente, até contraditórias, sobre uma mesma situação de vida, por outro lado, encerra um direito fundamental do homem contra o arbítrio do poder punitivo do Estado.
«O que é proibido é que ao mesmo facto jurídico (o segundo idem) se aplique mais do que uma sanção punitiva, isto é, que corresponda mais do que um julgamento punitivo (bis), quando subjacente às sanções ou aos julgamentos esteja a tutela do mesmo interesse jurídico ou a mesma função de defesa social (primeiro idem)» (Inês Ferreira Leite, Ne (idem) bis in idem. Proibição de dupla punição e de duplo julgamento: contributos para a racionalidade do poder punitivo público, Lisboa: AAFDLisboa, 2016, vol. I, p. 786).
«O princípio “ne bis in idem” comporta duas dimensões: como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); Como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, em anotação ao art.º 29º. No mesmo sentido, Luís Carmo Mota, O ne bis in idem como fundamento de recusa do cumprimento do mandado de detenção europeu (Tese de mestrado em Ciências Jurídico-Criminais, Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa, 2010).
«O caso julgado penal (total) desenvolve primordialmente um efeito negativo – o ne bis in idem, a consumação da acção penal – e o efeito positivo de viabilizar a «execução penal» (…). O caso julgado penal em relação a futuros processos (penais) tria um efeito meramente negativo – a obrigação, para o juiz, de declinar a decisão sobre a questão já resolvida» (Damião Cunha, José Manuel, “O caso Julgado Parcial. Questão da culpabilidade e questão da sanção num processo de estrutura acusatória. Publicações Universidade Católica, Porto, 2002, p. 59).
Na vertente subjectiva o ne bis in idem «proíbe a imposição plural de consequências jurídicas sancionatórias sobre a mesma infração. O Tribunal Constitucional tem afirmado que o referido princípio impede que o mesmo facto seja valorado duas vezes, isto é, que uma mesma conduta ilícita seja apreciada com vista à aplicação da sanção mais do que uma vez. A esta aplicação subjaz a ideia segundo a qual a cada infração corresponde uma só punição, não devendo o agente ser sujeito a uma repetição do exercício do poder punitivo do Estado» (Ac. do TC nº 319/2012, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
A Constituição da República Portuguesa prescreve que a identidade do objecto para efeitos de ne bis in idem reporta-se ao mesmo crime.
O crime será o mesmo quando um determinado comportamento humano, ou acontecimento histórico coincide em dois processos, quer na sua vertente naturalística, quer na sua vertente normativa, ou seja, por referência ao bem jurídico e aos pressupostos de que depende a sua relevância jurídico-penal, isto, independentemente, da sua qualificação jurídica como um ou outro crime, no primeiro ou no segundo processo instaurado.  
«O crime deve considerar-se o mesmo quando exista uma parte comum entre o facto histórico julgado e o facto histórico a julgar e que ambos os factos tenham como objecto o mesmo bem jurídico ou formem, como acção que se integra na outra, um todo do ponto de vista jurídico» (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 3.ª ed. págs. 48).
Assim, o conceito de mesmo crime tem que ver essencialmente não apenas com o mesmo agente (sem o qual nunca será o mesmo) e com a mesma vítima, mas também com o mesmo facto histórico localizado no tempo e no espaço, pois que, se as vítimas forem diferentes, poderão ser vários os crimes (v.g., se o bem jurídico for eminentemente pessoal), do mesmo modo que, se o facto histórico for praticado noutro local e noutro tempo, o crime já não será o mesmo.
Agente, facto legalmente descrito e bem jurídico agredido são os três crivos de identificação da identidade do acontecimento que se pretende submeter a um processo.
Só perante a identidade destes três conjuntos de elementos (agente, facto legalmente descrito e bem jurídico) é que se pode afirmar que o facto que se pretende submeter a um certo processo é o mesmo ou é distinto de outro facto submetido, anteriormente ou concomitantemente, a outro processo.
Verdadeiramente, pois, o que importa é saber se se está perante a «prática do mesmo crime» ou perante um concurso real ou ideal de infrações, porquanto sendo o concurso de crimes efectivo, e não meramente aparente, a dupla penalização não afronta o princípio constitucional do «ne bis in idem».
Mas a proibição da dupla agravação incluí a concorrência de circunstâncias qualificativas, ou de elementos constitutivos de mais de um exemplo padrão, qualquer um deles determinante de uma moldura penal agravada e também se aplica na ponderação da circunstância qualificativa ao nível da medida concreta da pena, em termos globais e verificar-se-á sempre que as agravações correspondam a uma mesma dimensão da ilicitude, ou da culpa, em violação do princípio non bis in idem.
Nestas situações, precisamente para evitar a dupla valoração, impõe-se «a eleição de uma das circunstâncias como decisiva para a determinação da moldura penal aplicável, enquanto a outra será tomada em consideração, como agravante, na fixação da medida concreta da pena» (Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, § 42, pág. 45 e Teresa Serra, Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa e Medida da Pena, 1990, pág. 50).
O arguido CEP foi condenado:
Pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, p. e p. pelos arts. 144º al. b), 145º nº 1 al. c) e nº 2, e art.º 132º nº 2 al. h), todos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;
Pela prática de 3 (três) crimes de coacção agravada, p. e p. pelos artigos 154º e 155º nº 1 al. a), todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão por cada um;
Pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º nº 1 al. c), com referência ao art.º 3º nº 3 al. b) e nº 4 al. a) a contrario, todos do regime jurídico das armas e munições (L. 5/2006, 23.02), na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.
O crime de ofensa à integridade física, tem uma matriz ou tipo fundamental, que é a sua forma simples, tipificada no art.º 143º do Código Penal.
A sua consumação verifica-se com qualquer acção ou omissão adequada a produzir uma perturbação ilícita do normal funcionamento do organismo humano, a nível anatómico ou fisiológico, estando abrangidos quaisquer danos ocasionados por alguém à integridade física ou saúde de outrem, independentemente de produzirem ou não ferimentos ou contusões visíveis.
Este tipo consuma-se com a simples acção ou omissão produtiva da lesão corporal, mesmo que não perdure além da actividade causal.
«Trata-se de crime material e de dano. O tipo legal em análise abrange, com efeito, um determinado resultado que é a lesão do corpo ou saúde de outrem, fazendo-se a imputação objectiva deste resultado à conduta ou à omissão do agente de acordo com as regras gerais» (Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, p. 204).
O tempo de doença e de incapacidade para o trabalho que da agressão possam resultar são circunstâncias que não integram o tipo de ilícito em causa, devendo antes ser tidas em conta na medida da pena.
Com efeito, mesmo que a vítima não sofra qualquer lesão corporal, incapacidade para o trabalho ou qualquer sofrimento físico, por via da agressão, esta sempre integrará o crime de ofensa à integridade física, desde que acompanhada da vontade consciente e livre de atingir a pessoa, no seu corpo ou saúde (nesse sentido, por todos, o Ac. do STJ de 18.12.91, D.R., Série I-A de 08.02.92, hoje com o valor de acórdão uniformizador de jurisprudência, que se mantém actual, na medida em que a revisão de 1995, não alterou o art.º 142º antigo, quanto aos elementos objectivos do tipo).
Perfilam-se, pois, «sempre como ofensas corporais simples, todas aquelas de que apenas resultaram consequências temporárias, independentemente do tempo de doença e de impossibilidade para o trabalho» (Fernando Oliveira e Sá, “As Ofensas Corporais no Código Penal: uma perspectiva médico-legal”, RPCC n.º 3, 1991, pág. 421).
«O tipo legal do artigo 143º do CP fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento causados ou de uma eventual incapacidade para o trabalho. Por outro lado, não relevam os meios utilizados pelo agressor, ou a duração da agressão, se bem que todas essas circunstâncias devam ser tidas em conta na determinação da medida da pena» (Ac. da Relação de Coimbra de 26.06.2013, proc. 349/11.7PATNV.C1. No mesmo sentido, Acs. da Relação do Porto de 02.04.2014, proc. 261/12.2GDVFR.P1; da Relação de Lisboa de 10.07.2004 e de 14.02.2011, proc. 3705/08.4TDLSB.L1-5; Acs. da Relação de Coimbra de 23.03.2011, proc. 759/09.0PAOVR.C1; de 07.03.2012, proc. 486/10.5GBAND.C1; de 09.05.2012, proc. 79/10.7SBGVA.C1; de 13.01.2016, proc. 569/13.0PBCTB.C1; da Relação de Guimarães de 23.03.2015, proc. 224/13.5GBPVL.G1, in http://www.dgsi.pt).
Quanto ao elemento subjectivo do tipo, o art.º 143º citado exige a vontade de ofender corporalmente o lesado, o que vale por dizer que a consumação destes crimes depende da imputação subjectiva dos mesmos com base no dolo, directo, necessário ou eventual (art.º 14º do C.P.).
Nas ofensas à integridade física graves, previstas no art.º 144º do Código Penal, diversamente, já o tempo de doença e de incapacidade para o trabalho são elementos preponderantes para aferir da gravidade das lesões, as quais, para esta incriminação, revestem quatro modalidades – as lesões no corpo, previstas na alínea a), que incluem a supressão de órgão ou membro, a ponto de estes ficarem impedidos de realizar a sua função como parte integrante do corpo humano e a desfiguração, ou seja, a alteração substancial da aparência da vítima, desde que com carácter duradouro ou cujos efeitos perdurem por tempo indeterminado; as lesões funcionais referidas na alínea b), na qual estão abrangidas a perda completa ou a diminuição de certas funções biológicas, como sejam, a capacidade de exercício da força laboral; a capacidade intelectual, ao nível da inteligência e da vontade, de procriação e, em geral, dos sentidos de audição, de visão, de olfacto, paladar, tacto, de linguagem; as lesões da saúde, na alínea c), que se referem a doenças causadas por ofensa à integridade física, em atenção à intensidade da dor que provocam, aferida pelo tipo de tratamentos médicos e respectiva duração, à duração dos efeitos nocivos sobre a saúde e à impossibilidade ou dificuldade de os evitar ou reverter, a anomalia psíquica grave, de acordo com a intensidade do mal provocado e, na alínea d), as situações em que a lesão da integridade física envolve risco para a vida, entendido este como um perigo concreto, aferido à luz da natureza das lesões efectivamente causadas, por confronto com os conhecimentos médicos, de que resulte, com elevado grau de probabilidade, a iminência da morte (sem que, porém, esta se verifique) e ainda que só por um curto lapso de tempo tal perigo se manifeste.
Quanto ao elemento subjectivo do tipo de ofensa à integridade física grave o art.º 144º citado também exige, além da vontade de ofender corporalmente o lesado, o dolo tem também de abranger as consequências que o qualificam, nem que seja apenas a título de dolo eventual, o que vale por dizer que a consumação deste tipo de ilícito previsto no art.º 144º depende da imputação subjectiva do mesmo com base no dolo, directo, necessário ou eventual (art.º 14º do C.P.) (Neste sentido, Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, págs. 210 e 223 a 234 e Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, edição da AAFDL, ano 2007, páginas 101 a 107. No mesmo sentido, Acs. do STJ de 26.10.1994; de 16.11.1995; de 9.10.1996; Acs. da Relação do Porto de 31.10.2001; de 26.06.2002; de 06.05.2009; Ac. da Relação de Coimbra de 14.07.2010, proc. 106/08.8SAGRD.C1; Ac. do STJ de 13.10.2011, proc. 878/02.3TASTB.S1 Ac. da Relação de Lisboa de 11.07.2013 proc. 1208/10.6GCALM.L1-1-3, Ac. da Relação do Porto de 29.04.2014 proc. 510/12.7JAPRT.P3, in http://www.dgsi.pt).
O crime é qualificado se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente (art.º 145º nº 1 do C. Penal), sendo susceptíveis de revelar estas qualidades, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do art.º 132º do C. Penal.
O art.º 145º do C. Penal importou para o campo das ofensas corporais o fundamento da qualificação do homicídio, ou seja, a ideia da especial censurabilidade ou perversidade do agente, bem como a técnica dos exemplos-padrão.
À semelhança do que sucede com a configuração do crime de homicídio, também, as normas incriminadoras contidas no art.º 145º preveem formas qualificadas dos tipos de ofensa à integridade física, na sua forma simples, assim como na forma grave tipificada no art.º 144º e em relação ao tipo contido no art.º 144º A, fazendo-o com recurso à combinação entre uma cláusula geral extensiva e assente em conceitos indeterminados – a especial censurabilidade ou perversidade –, no seu nº 1 e entre os exemplos-padrão, nas diversas alíneas do nº 2 do art.º 132º, por remissão do nº 2 mesmo art.º 145º, que mais não são do que circunstâncias indiciadoras dessa especial perversidade ou censurabilidade, referindo-se umas aos factos, outras ao seu autor, mas sempre, em ambas as modalidades, elementos constitutivos de um tipo de culpa estratificado, relativamente ao qual, os tipos base (ofensa à integridade física simples e grave) funcionam, por assim dizer, como tipos de culpa “normal”.
«Também no domínio dos crimes contra a integridade física optou-se por uma sistemática mais coerente, operando-se uma considerável simplificação: fazer incidir critérios de agravação e de privilégio sobre a base de existência de um crime de ofensa à integridade física simples. De referir ainda a consagração de um tipo de ofensa à integridade física qualificado por circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente, a exemplo do que sucede no homicídio» (preâmbulo do Decreto-Lei nº 48/95. No mesmo sentido, Rui Carlos Pereira, no estudo publicado nas “Jornadas sobre a revisão do Código Penal”, AAFDL, 1998, pág. 189; Augusto Silva Dias, Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, 2ª Ed., AAFDL, 2007, 25 e ss.; Costa Andrade, in “Sobre a reforma do Código Penal Português”, RPCC, Ano 3.º 2.º a 4.º (Abril-Dezembro de 1993), pág. 455).
Efectivamente, a especial censurabilidade refere-se às componentes da culpa relativas ao facto, enquanto que a especial perversidade tem por objecto as componentes da culpa referentes ao agente.
Haverá especial censurabilidade quando «as circunstâncias em que a morte (ou a agressão ao corpo e saúde) foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores», podendo afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às «componentes da culpa relativas ao facto», fundando-se, pois, «naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude». Haverá especial perversidade quando se esteja perante «uma atitude profundamente rejeitável», no sentido de «constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade», estando aqui em causa as «componentes da culpa relativas ao agente» (Teresa Serra Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998, páginas 63 e 64. No mesmo sentido, Fernando Silva, Direito Penal Especial – Crimes Contra as Pessoas, págs. 48 e ss.; Eduardo Correia, Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Especial, 1979, pág. 25).
Como resulta da cláusula geral contida no nº 1 desse preceito, a agravação só se verificará, se e quando, a agressão for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, enunciando, depois, no nº 2, circunstâncias cuja verificação objectiva poderá dar lugar a essa agravação.
A introdução da expressão «entre outras» naquele nº 2, implica, desde logo, que a enumeração de circunstâncias aí contida não é taxativa, mas meramente exemplificativa.
Por outro lado, estas circunstâncias agravantes modificativas não são de funcionamento automático, como resulta da inclusão da expressão «é susceptível», no mesmo preceito.
Assim sendo, nem sempre a prova de factos integradores de alguma das circunstâncias expressamente previstas no nº 2 do art.º 132º desencadeará a agravação, do mesmo modo que, da não verificação de qualquer delas, não se segue que não possam descortinar-se outras que justifiquem a qualificação da ofensa à integridade física.
Com efeito, mesmo que alguma das circunstâncias enumeradas naquele nº 2 se verifique, sem a especial censurabilidade ou perversidade, não haverá agravação, sendo a sua existência também que justifica a qualificação da ofensa à integridade física, quando da valoração global dos factos ela resulte evidenciada, mesmo que estes não integrem qualquer das alíneas do mesmo nº 2 do art.º 132º.
«A verificação de um exemplo-padrão, por si só, não conduz à qualificação, sendo necessário que a circunstância nele descrita seja ponderada à luz da cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade; e que (ii) a qualificação também não se produz com base direta e exclusiva na referida cláusula geral, sendo necessário que esta se ache indiciada por circunstâncias subsumíveis num exemplo-padrão (ou, pelo menos, análogas na sua «estrutura axiológica» a circunstâncias subsumíveis num exemplo-padrão)» (Acs. do TC nºs 852/2014 e 20/2019, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
A qualificação enunciada no art.º 132º do Código Penal supõe, pois, a imputação de um especial e qualificado tipo de culpa, reflectido, no plano da atitude do agente, por uma conduta em que se revelem formas de realização do facto especialmente desvaliosas (especial censurabilidade), ou aquelas em que o especial juízo de culpa se refere directamente aos factos, mas destes emergem qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas (especial perversidade), mas sempre dependente de demonstração dessa densificação da culpa, a partir da análise concreta das circunstâncias de cada caso (cfr. Eduardo Correia e Figueiredo Dias, Actas, p. 29 e seguintes, Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 2ª ed. p. 49; Cristina Líbano Monteiro, RPCC, 1996, p. 122 e seguintes; Ac. da Relação de Évora de 27.06.2006, in http://www.dgsi.pt; Acs. do STJ de 01.03.2000, Colectânea de Jurisprudência, ASTJ, Tomo I, p. 219, da Relação do Porto de 18.10.2000, Colectânea de Jurisprudência, Tomo IV, p. 234; Ac. da Relação de Coimbra de 06.04.2005, Colectânea de Jurisprudência, 2005, Tomo II, p. 47 e da Relação de Porto de 25.01.2006, este in http://www.dgsi.pt; Acs. do STJ de 16.09.2008, Rel. Henriques Gaspar, de 18.02.2009, Rel. Arménio Sottomayor; de 27.05.2010, Rel. Souto Moura; de 14.10.2010, Rel. Manuel Braz; de 09.06.2011, de Rel. Pais Martins; de 30.03.2013, Rel. Pires da Graça; Acs. da Relação de Évora de 30.06.2015 proc. 1340/14.7TAPTM.E1; Ac. da Relação de Coimbra de 09.03.2016 proc. 31/13.0GBLMG.C1, estes in http://www.dgsi.pt).
Trata-se, pois, de um tipo de crime autónomo que, por recurso à chamada técnica dos exemplos – padrão, expressamente prevista para o crime de homicídio, encerra um tipo agravado de culpa.
É, aliás, a existência de um especial tipo de culpa que constitui a matriz da agravação, que além do argumento de ordem literal acima exposto, justifica também o não funcionamento automático dos exemplos – padrão.
A conjugação dos dois números do artigo 132.º do CP produz um «resultado qualitativamente novo» e é ela que assegura a «inteira compatibilidade» do modelo com o princípio da legalidade (Teresa Serra, Homicídio Qualificado: Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 2003, p. 122 e 127).
Ao nível da imputação subjectiva, a mesma é exclusivamente feita com base no dolo, nalguma das três modalidades – directo, necessário ou eventual – previstas no art.º 14º do Código Penal.
Entre esses exemplos-padrão do nº 2 do art.º 132º, contam-se, na alínea h), praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum.
O recorrente CEP acusou o acórdão recorrido de violação da proibição de dupla valoração, em virtude de primeiro ter qualificado o crime de ofensa à integridade física por que condenou o mesmo recorrente, pelo uso da arma de fogo, ao abrigo do art.º 132º nº 2 al. h), ex vi do art.º 145º nº 1 al. c) e nº 2 do CP e, de seguida, fazer incidir sobre a mesma conduta a agravação pelo uso da mesma arma de fogo, prevista no art.º 86º nº 3 da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro.
A primeira constatação que há a fazer é a de que esta qualificação não tem correspondência, nem na fundamentação, nem no dispositivo do acórdão recorrido, pois que não foi aplicada a agravante modificativa prevista no art.º 86º nº 3 do Regime Jurídico das Armas e Munições, mas apenas a qualificativa contida no art.º 132º nº 2 al. h) do Código Penal.
Do que não se segue que esta qualificação jurídica esteja correcta.
Na medida em que, no que se refere ao disparo que atingiu a perna esquerda do assistente ES, o arguido CEP agiu sozinho, não está sequer em causa, a subsunção à primeira parte da mencionada alínea h).
Resta, assim, saber se o uso da arma se integra no meio particularmente perigoso ou na prática de crime de perigo comum.
O fundamento da previsão do art.º 132º nº 2 al. h) radica na substancial perigosidade do meio usado para a prática do crime e do consequente acréscimo de dificuldade ou mesmo impossibilidade de defesa para a vítima, por efeito de um processo enganador, subreptício, dissimulado, com escolha das condições mais favoráveis para surpreender a vítima e a deixar indefesa, por parte do agente, ou, ainda, por arrastar consigo o perigo de lesão de uma série indeterminada de bens jurídicos.
«A arma (no caso, uma pistola de calibre 7,65) não pode ser considerada meio insidioso, porque não tem as características de dissimulação na sua influência maléfica, no sentido de meio traiçoeiro e desleal em que a vítima nada desconfia e é apanhada desprevenida» (Ac. do STJ de 04.05.1994, processo n.º 45661, BMJ n.º 437, pág. 154).
«Meio particularmente perigoso é sinónimo de meio muito desproporcional a causar o resultado pretendido pelo agente (…) é aquele que permite causar o resultado pretendido pelo agente e, além disso, coloca, ou tem virtualidade de colocar, em perigo outros bens em enorme desproporção com aqueles que era necessário e suficiente colocar em perigo para obter o fim pretendido pelo agente. É meio diferente dos instrumentos usuais de agressão que são aptos a produzir o resultado querido pelo agente e que não são susceptíveis de colocar em perigo muitos outros bens que não são objecto de referência do dolo do agente (….) é ainda o meio excessivamente eficaz a produzir o resultado típico, resultando essa sua enorme eficácia num perigo enorme e desnecessário para o bem jurídico visado e/ou para outros bens jurídicos não compreendidos no tipo em causa.» (Ac. do STJ de 13.12.2000, proc. 2753/00-3.ª, in http://www.dgsi.pt).
Sabido, como é, que a generalidade dos meios usados para matar e para ferir são perigosos e mesmo muito perigosos, a referência da lei a «meios particularmente perigosos» não incluí os revólveres, as pistolas, as facas ou outros vulgares instrumentos corto – contundentes, já que estes são, normalmente, utilizados para a prática de crimes de homicídio e também de ofensa à integridade física - exigindo-se, por um lado, que o meio utilizado pelas suas características, além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios habitualmente usados para matar e ferir e, por outro lado, a determinação rigorosa e com elevado grau de exigência sobre se, da natureza do meio empregue e só deste, isolado de outras circunstâncias concomitantes, resulta uma especial censurabilidade ou perversidade do agente (Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 37, Leal Henriques Simas Santos, Código Penal Anotado, II, 3ª edição, pág. 69, Maia Gonçalves Código Penal Português, 14ª edição, págs. 448 a 451, Fernanda Palma, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, 1983, pág. 65,  e, na jurisprudência, Acs. do STJ de 18.02.1998, processo n.º 1086/97-3.ª; de 01.03.2000, proc. 17/2000, SASTJ, Edição Anual 2000, pág. 43; de 27.09.2000, proc. 292/00-3.ª, de 13.12.2000, proc. 2753/00-3.ª, CJ do STJ, Tomo III, págs. 179 e 241, respectivamente, de 17.01.2001, proc. 2843/00-3.ª, SASTJ 2001, n.º 47, pág. 68; de 21.11.2001, proc. 2447/01-3.ª; de 15.05.2002, proc. 1214/02 – 3.ª; de 15.10.2003, proc. 03P2024; de 05.05.2004, proc. 487/04 de 10.03.2005, proc. 05P224; de 13.07.2005, processo n.º 1833/05-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 244, de 02.03.2006, proc. 472/06-5.ª, de 05.09.2007, proc. 2430/07-3.ª, de 23.02.2012, proc. 123/11.0JAAVR.S1; Acs. da Relação de Évora de 20.10.2015, proc. 89/11.7TARMR.E1, da Relação de Guimarães de 6.02.2017, Proc. 1802/14.6TAGMR, da Relação de Évora de , in http://www.dgsi.pt).
«A alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º do CP prevê, não apenas meio perigoso, mas meio particularmente perigoso, sendo assim definido o que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, é susceptível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes. Por outra palavras, tem de ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para matar, são já de si perigosos ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente.
«Estão, assim, afastados da qualificação do crime os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou mesmo muito perigosos (facas, pistolas, instrumentos contundentes) não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão» (Ac. da Relação de Coimbra de 10.07.2018, proc. 198/17.9PFCBR.C1, in http://www.dgsi.pt).
Quanto ao meio que traduza a prática de crime de perigo comum, refere-se àqueles que, como tal, são qualificados nos arts. 272º a 286º do Código Penal e cujo uso se associe à «falta de escrúpulo em princípio revelada pela utilização de um meio adequado à criação ou produção de um perigo comum» (Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 37), ou seja, não pode ser desligado da tal exponencial dificuldade de defesa ou aumento de vulnerabilidade para a vítima, decorrente de formas inesperadas, ocultas ou dissimuladas de agressão ao bem jurídico.
O recurso a armas de fogo é somente uma das diversas formas possíveis de consumação do tipo fundamental de homicídio, porventura até a mais comum, considerando, pela sua própria natureza, a específica vocação das armas de fogo para ferir e matar, sendo que para além desta finalidade, nem sequer prosseguem qualquer outra função útil.
O art.º 131º do CP não exige um específico modo de execução, logo, qualquer acto ou omissão desde que ligado ao resultado, por um nexo de imputação, à luz da teoria da causalidade adequada, nos termos do art.º 10º do Código Penal, é susceptível de conduzir ao resultado antijurídico.
Por fim, dada esta sua vocação natural, ou idoneidade intrínseca das armas e comummente conhecida para atentarem contra a vida humana e, na medida em que para o preenchimento do tipo legal de homicídio é indiferente o modo como o resultado morte é produzido, na qualificativa «através de crime de perigo comum» não podem, pois, ser incluídos os crimes previstos no art.º 86º nº 1 als. a) a e) e nº 2 da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro.
Assim, a mera detenção ilegal de arma ou a posse de arma proibida e o seu uso para tirar a vida de alguém não têm densidade empírica nem normativa, tão-pouco autonomia configurativa para alicerçar um juízo agravado de culpa, pelo facto ou pela personalidade do agente, à luz do art.º 132º nº 2 al. h) do CP, nem com fundamento na sua qualificação como meio particularmente perigoso, nem pela sua qualificação como crime de perigo comum (Maia Gonçalves, Código Penal Anotado e Comentado, Almedina, 18.ª ed., 2007, p. 516, e Simas Santos/Leal Henriques, Código Penal Anotado, Rei dos Livros, Vol. III, 4.ª ed., 2016, p. 74; Acs. do STJ de 15.10.2003, proc. 03P2024; 05.05.2004, proc. 487/04; de 07.05.2015, proc. 2368/12.7JAPRT.P1.S2, de 25.03.2020, proc. 1636/18.9JAPRT.P1.S1, de 11.03.2021, proc. 75/20.6JAFAR.S1, de 9.03.2022, proc. 874/20.9JAPRT.S1, de 29.06.2023, proc. 15/11.3PEALM.L5.S1, in http://www.dgsi.pt).
Em matéria de qualificação jurídica do comportamento do arguido CEP que se refere ao disparo do tiro que atingiu o assistente ES na perna esquerda, o Tribunal do julgamento, considerou que o mesmo preencheu o crime de ofensa à integridade física grave qualificada e, ainda, um crime de detenção de arma proibida.
No que concerne à qualificação da ofensa à integridade física, o acórdão recorrido discorreu assim (transcrição parcial):
«A ofensa à integridade física tem vários níveis de previsão, da simples, à qualificada, à privilegiada, à agravada.
«De acordo com os factos, a ofensa em apreço foi grave, pois retirou à vítima capacidade para o trabalho (144.º/al. b); mas igualmente qualificada porque reveladora de especial censurabilidade ao ser utilizado para o efeito um meio particularmente perigoso (art.º 145.º/1 al. c) e 132.º/2 al. h) do Código Penal).
«Assim, face ao exposto, entende-se ser de absolver o Arguido da incriminação de homicídio qualificado tentado, mas de o condenar pelo crime de ofensa à integridade física grave qualificada, cuja previsão, quer objectiva quer subjectiva se contém naquele, sendo nesta qualificação um minus relativamente à imputação da pronúncia».
Acontece que, em face do que ficou exposto, o uso da arma de fogo com que o arguido CEP disparou o tiro que atingiu o assistente ES, naquela madrugada de 20 de Agosto de 2021, não pode subsumir-se ao conceito de «meio particularmente perigoso» inserto no art.º 132º nº 2 al. h) por não ter características diferenciadoras dos meios usuais de agressão e de violação dos bens jurídicos vida  humana, saúde e integridade física necessários para o preenchimento do tipo base de ofensa à integridade física e/ou de homicídio simples.
Assim, a agravante modificativa prevista no art.º 132º nº 2 al. h) do CP não pode manter-se e, por via, dela, também a qualificação do crime de ofensa à integridade física agravada, ao abrigo do disposto no art.º 145º nºs 1 al. c) e nº 2 do CP.
Porém, subsiste em aberto da possibilidade de qualificação do crime ao abrigo do preceituado no art.º 86º nº 3 da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, que vinha imputada na acusação, embora com referência ao crime de homicídio qualificado tentado.
Nos crimes cometidos com arma de fogo a circunstância modificativa agravante prevista no nº 3 do art.º 86º da Lei nº 5/2006 de 23.02 (com as alterações da Lei 17/2009, de 6.05), que impõe o agravamento das penas aplicáveis «de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr a agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma» opera «ope legis».
Esta agravação encontra o seu fundamento num maior grau de ilicitude do facto, e, por isso tem sempre lugar se o crime, independentemente da sua natureza, for cometido com arma, de harmonia com o propósito do legislador de obviar e dissuadir à proliferação de condutas criminosas praticadas com armas função do acréscimo de perigosidade para um ou vários bens jurídicos criminalmente protegidos (Acs. do STJ de 31.03.2011, proc. 361/10.3 GBLLE; de 21.03.2013, proc. 2024/08.0PAPTM.E1.S1; da Relação da Lisboa de 23.04.2013, proc. 279/12.5TAALM.L1-5; da Relação do Porto de 30.09.2015 proc. 1223/14.0JAPRT.P1; da Relação de Coimbra de 14.09.2016 proc. 403/14.3GASEI.C1, in http://www.dgsi.pt).
Mesmo que o agente deva ser punido pela prática do crime de detenção de arma proibida, isso não afasta o funcionamento da agravante do nº 3 do art.º 86º citado.
E é assim porque, tal como resulta do nº 4 do mesmo normativo, a agravante modificativa produz esse efeito, mesmo que o agente esteja devidamente autorizado a ser portador da arma e esta se encontre «dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente» e também porque, de acordo com o critério teleológico consagrado no art.º 30º nº 1 do CP em matéria de unidade e pluralidade de infracções as dimensões de ilicitude e de culpa e os correspectivos bens jurídicos são diversos e justificam plenamente a autonomia das condenações pelo crime de ofensa à integridade física agravado e qualificado pelo uso da arma, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 143º; 144º al. b) do CP e 86º nº 3 da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro e o crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art.º 86º nº 1, nas suas diversas alíneas.
Com efeito, o bem jurídico da segurança da comunidade face aos riscos da livre circulação e detenção de armas, engenhos e matérias explosivas ou instrumentos que objectivamente sejam considerados perigosos para a segurança e integridade física das pessoas, tutelado pela incriminação da posse de armas fora das condições legais em que é permitida a sua detenção ou mesmo de armas proibidas do art.º 86º nº 1 e nº 2 da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro não fica protegido por efeito da qualificativa prevista no nº 3 do art.º 86º necessariamente reportada a um outro crime, no caso, o de ofensa à integridade física agravada, cujo bem jurídico protegido é a saúde e a integridade física (cfr. neste sentido o Acórdão do STJ de 18.01.2012, proc. 306/10.0JAPRT.L1.S1, a propósito do crime de homicídio e os Acs. do STJ de 18.12.2013, Processo n.º 137/08.8WLSB.L1.S1, 5ª Secção; de 03.07.2014, proc. 417/12.8TAPTL.S1; de 15.01.2015, proc. 92/14.5YFLSB, de 23.04.2015, proc. 86/14.0YFLSB, de 11.02.2016, proc. 205/14.7PLLRS.L1.S1 e de 20.02.2021 proc. 469/18.7JAVRL.G1.S1, in http://www.dgsi.pt).
Assim diversamente do que foi invocado pelo recorrente não se trata de «uma qualificação e uma agravação com base no mesmo facto: o arguido usar arma de fogo num mesmo momento», porque só teria havido dupla valoração do mesmo facto, se, como argumentou o recorrente, o Tribunal recorrido tivesse agravado duas vezes a utilização da arma: uma à luz do art.º 132º nº 2 al. h) do CP e outra à luz do art.º 86º nº 3 da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro e não foi o caso, porque, embora com desacerto, só optou por uma circunstância agravante qualificativa, precisamente aquela que não se verifica e que é a prevista no art.º 132º nº 2 al. h) do CP.
Assim, o recurso procede, em parte, embora por razões diversas das invocadas, pois que o crime cometido pelo arguido não foi o de ofensa à integridade física agravada qualificada pelo art.º 132º nº 2 al. h), ex vi do art.º 145º nº 1 al. c) e nº 2 do Código Penal, mas sim, o crime de ofensa à integridade física agravada, p. e p. pelos arts. 143º e 144º al. b) do CP qualificada pelo art.º 86º nº 3 do RJAM e a questão não é de dupla valoração, mas antes de erro de direito, em virtude de o uso da arma de fogo não poder ser considerado meio particularmente perigoso, para efeitos de subsunção da circunstância agravante modificativa contida no citado art.º 132º nº 2 al. h do CP.  
f) Erro de direito quanto à qualificação dos três crimes de coacção agravada, porque face aos factos provados 11 e 12, o arguido recorrente apenas cometeu um crime de omissão de auxílio e na forma tentada.
O crime de coacção encontra-se tipificado no art.º 154º nº 1 do CP, o qual dispõe que, «quem, por meio de violência ou de ameaça, com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.»
O crime de coacção tipificado no art.º 154º do Código Penal constitui o tipo fundamental dos crimes contra a liberdade de decisão e de acção.
Constitui, por assim dizer, o tipo genérico que tutela a liberdade de decisão e de acção e, inclusive, de omissão, nas diversas manifestações humanas que esse direito fundamental pode revestir e que não se encontram autonomizadas em tipos de ilícito específicos, como é o caso da liberdade sexual (protegida pelo art.º 163º), da liberdade de escolha de membros de órgãos constitucionais (tutelada no art.º 333º), ou da liberdade pessoal funcional de funcionários públicos, cuja lesão é incriminada no art.º 347º, todos do mesmo diploma. 
Com efeito, o crime consuma-se no momento em que alguém é violentado a fazer, a omitir ou a suportar o que não quer, o que exige e pressupõe, portanto, uma efectiva perda da liberdade de determinação da vítima.
O bem jurídico protegido com a incriminação contida no citado art.º 154º é, pois, é a liberdade de autodeterminação (de decisão e de acção), em todas as suas possíveis e legítimas manifestações que não as especificamente contempladas noutros tipos legais, quer se trate da chamada «vis compulsiva» (acções que apenas constrangem ou condicionam a liberdade de acção e decisão), quer da «vis absoluta» (acções que incidem nos próprios pressupostos psicológicos em que se funda o processo de decisão, coarctando a própria capacidade de decidir) encontrando o seu fundamento no propósito legal de defesa dos indivíduos contra qualquer força ou ameaça à sua personalidade física ou moral, que contenda com a liberdade de determinação e que não sejam obrigados legalmente a suportar (art.º 70º do C. Civil) e radica na própria Constituição, concretamente, no art.º 24º nº 1, que consagra a inviolabilidade da integridade moral e física dos cidadãos (Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I., pág. 340; M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio in Código Penal: Parte Geral e Especial, anotação ao artigo 154º).
«Pressuposto do crime de coacção (...) é a perda de liberdade de determinação, o constrangimento de alguém que é levado a praticar um acto que não deseja, e a um "non facere" contra a sua vontade de agir, ou, finalmente, a ter de suportar, contra a sua própria vontade, uma actividade alheia (...) e isto em consequência de violências (físicas ou morais) ilegítimas que lhe são feitas (…)» (Ac. do STJ de 17.4.91 citado no C.P. Anot. por Leal Henriques e Simas Santos, 2º vol., p. 196. No mesmo sentido, Ac. do STJ de 25.01.1996, CJSTJ Tomo I, p. 187; Acs. da Relação do Porto de 10.03.1999; de 23.10.2002; da Relação de Coimbra de 10.09.2002; da Relação de Lisboa de 25.05.2006, Ac. do STJ de 25.10.2006; Ac. da Relação de Lisboa de 27.05.2008; Ac. da Relação de Coimbra de 20.05.2009, Ac. do STJ de 28.11.2007; Ac. da Relação de Lisboa de 22.10.2014, proc. 1090/11.6GLSNT.L1-5; Acs. da Relação de Coimbra de 07.03.2012, proc. 110/09.9TATCS.C1; de 05.02.2014, proc. 65/12.2GAPCV.C1, de 02.03.2016, proc. 320/13.4GATBU.C1, Ac. da Relação de Évora de 24.05.2016, proc. 24/14.0PAPTM.E1 in http://www.dgsi.pt).
Sujeito passivo deste crime pode ser qualquer pessoa singular ou colectiva e os concretos e específicos meios de execução do crime são dois: a violência e/ou a ameaça com «mal importante».
A violência tanto pode dirigir-se à própria vítima, como a terceiros que à primeira estejam vinculados por uma relação de parentesco, de amizade, de carácter laboral ou de outra espécie negocial, em suma, ligados por uma proximidade existencial ou aquilo a que os autores alemães designam de «simpatia». E também pode consistir numa intervenção sobre bens patrimoniais.
«Para efeitos do disposto no artigo 154º nº1 do Código Penal (crime de coacção), "violência" deve ser entendida não só como emprego de força física, mas também como pressão moral ou intimidação, bastando que estas tenham potencialidade causal para compelir outrem à prática ou omissão de um acto» (Ac. da Relação do Porto de 01.03.2000. No mesmo sentido, Acs. da Relação de Coimbra de 19.04.2006, do STJ de 25.10.2006, da Relação de Coimbra de 22.10.2008; Ac. da Relação do Porto de 7.01.2009, proc. 6766/08; da Relação de Guimarães de 30.05.2011, proc. 264/09.4GAPCR.G1 e de 08.09.2014, proc. 476/10.8GAFAF-A.G1; da Relação de Coimbra de 02.10.2013, proc. 141/10.6GBPCV.C1, de 05.02.2014, proc. 65/12.2GAPCV.C1, todos in http://www.dgsi.pt).
«Por violência deve entender-se não só o emprego de força física, mas também a pressão moral ou intimação. E não se exige que a força física ou a intimidação sejam irresistíveis; basta que tenham potencialidade causal para compelir a pessoa contra quem se empregam à prática do acto ou à omissão ou a suportar a actividade. (…)
«Também deve ser entendido não ser necessário que a violência actue directamente sobre as pessoas, podendo ser exercitada sobre as coisas, desde que seja sentida e actue mediatamente sobre as pessoas do modo a coagi-las, coarctando-lhes a sua liberdade a ponto de as constranger como neste artigo se prevê» (Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 18ª ed., pág. 598 e 599).
A ameaça como meio de execução do crime de coacção tem as mesmas características que a ameaça relevante para a incriminação pelo art.º 153º do Código Penal – o anúncio de um mal, dirigido quer à pessoa (integridade física, honra ou consideração pessoais), quer ao património do visado, que seja futuro, o que vale por dizer, que não esteja iminente ou em começo de execução (sob pena, de se tratar de tentativa de execução do próprio acto violento) e que a ocorrência desse mal dependa da vontade do próprio agente, segundo um critério objectivo-individual, que atenda, por um lado, às características gerais e comuns do chamado «homem médio» e, por outro, às condições específicas (idade, sexo, sensibilidade pessoal e social, estado de saúde) da pessoa concretamente ameaçada. 
Quanto à referência a «mal importante» em que tem de traduzir-se a ameaça relevante, para efeitos da consumação do crime de coacção, terá de ter acentuado relevo, ser um mal a que comunitariamente se é sensível, censurado pelo dano relevante ao nível físico ou psíquico a que a coacção conduz, «ou seja um mal que tenha um acentuado relevo, um mal que a comunidade repele e censura pelo dano relevante que causa ou pode causar» (Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 18ª ed., pág. 598 e 599).
Mas não tem necessariamente de revestir carácter ilícito.
Pode até ser lícito, ponto é que, o anúncio de verificação futura desse mal, além de incidir sobre bens pessoais ou patrimoniais da vítima e revestir as características acima apontadas, seja adequado a «vencer» a vontade livre e consciente do coagido e a fazer vergá-la perante a exigência do autor do facto, no sentido de adoptar ou omitir determinado comportamento ou a tolerar uma determinada actividade.
O critério da importância do mal reconduz-se ao critério da sua aptidão, à luz do pensamento fundamental da causalidade adequada a retirar ou comprimir a liberdade de decisão e de acção.
E ambos são critérios objectivo-individuais.
Objectivos, na medida em que são aferidos tendo por referência o juízo do homem comum.
Individuais, porque também têm de ser tidas em conta as circunstâncias concretas em que é proferida a ameaça, nomeadamente, as sub-capacidades (económicas, mentais, etc.) do ameaçado (quando conhecidas ou quando, se não conhecidas, o agente tinha o dever de as conhecer).
Com efeito, tanto a violência, como a ameaça com mal importante têm é de estar relacionados, por um nexo de efectiva causalidade, quer com o constrangimento da vítima, causando-lhe medo, inquietação ou perturbação da liberdade de determinação, quer com o comportamento adoptado por esta, de acordo com a exigência do coactor (Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, p. 358; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, pág. 416; Acs. do STJ de 01.02.2006; de 25.10.2006; da Relação de Coimbra de 22.10.2008; de 20.05.2009; Acs. do STJ de 28.11.2007 e de 26.03.2008, Acs. da Relação de Lisboa de 21.10.2014, proc. 1090/11.6GLSNT.L1-5; da Relação de Coimbra de 13.01.2016, proc. 53/13.1GESRT.C1; de 02.03.2016, proc. 320/13.4GATBU.C1; da Relação do Porto de 30.09.2015, proc. 775/13.7GDGDM.P1; de 13.04.2016, proc. 445/14.9GBOAZ.P1; da Relação de Évora de 24.05.2016, proc. 24/14.0PAPTM.E1, in http://www.dgsi.pt).
«Se a conduta (acção, omissão ou tolerância de uma determinada acção) do sujeito passivo, isto é, do destinatário da coacção - apesar de coincidente com a que o coactor impunha - foi livremente decidida ou devida a apelo de terceiros (p. ex., forças policiais, familiares ou amigos) e, não consequência ou resultado directo da acção de coacção, isto é, do medo da concretização da ameaça (o que se verifica, quando o sujeito passivo estava decidido a não ceder às exigências comportamentais do coactor), não há consumação, mas apenas tentativa» (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 358).
Trata-se de um crime de resultado em que a acção, a omissão ou a tolerância de uma determinada actividade são efeito directo, à luz da causalidade adequada, da perda da liberdade de acção e decisão, por efeito, do constrangimento exercido sobre o sujeito passivo, pelo autor do facto típico.
O crime de coacção centra-se num constrangimento ilícito, na conduta do agente, em resultado da qual, a vítima é tolhida, na sua autonomia de íntima formação da vontade ou na livre actuação da mesma ou liberdade física e, por essa via, compelida a fazer o que não quer ou a não fazer o que pretende ou, ainda, a suportar uma actividade.
Por conseguinte, a consumação deste crime exige que a pessoa objecto da acção de coacção tenha, efectivamente, sido constrangida a praticar a acção, a omitir a acção ou a tolerar a acção, de acordo com a vontade do coactor e contra a sua vontade, bastando, para o efeito, o mero início da execução da conduta coagida.
«Se o objecto da coacção foi a prática de uma acção, a coacção consuma-se quando o coagido iniciar esta acção. Se o objecto da coacção for a omissão ou a tolerância de uma determinada acção, a coacção consuma-se no momento em que o coagido é, por causa da violência ou da ameaça, impedido de agir ou reagir» (Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, Tomo I, pág. 359. No mesmo sentido, Acs. da Relação de Guimarães de 26.01.2015, proc. 696/11.8GAFAF.G1 e de 07.09.2015, proc. 1163/13.OTABRG.G1; da Relação de Coimbra de 02.03.2016, proc. 320/13.4GATBU.C1, in http://www.dgsi.pt).
Trata-se de um crime doloso, requerendo, pois, para a sua consumação, a vontade do agente de violentar outrem a fazer ou a suportar o que não quer ou a omitir o que quer.
Basta, pois, para a incriminação, que o agente tenha consciência de que a violência que exerce ou a ameaça que profere é susceptível de obrigar o destinatário a actuar contra a sua vontade livre e se conforme com esse resultado.
Ora, foi exactamente o que aconteceu, na madrugada do dia 20 de Agosto de 2021, quando, o assistente EFS e as testemunhas AV e Ni ao verem que o arguido TC e o assistente ES se encontravam se agrediam fisicamente entre si, se aprestavam para intervir no sentido de os separarem, foram abordados pelo arguido CEP.
Nesse momento, o arguido recorrente empunhava a arma de fogo descrita em 9, tendo-lhes dito «É mano a mano! ninguém se mete!».
Ora este comportamento, quer pela natureza da frase, quer pela utilização do uso da arma, tem uma natureza claramente intimidatória e um objectivo claro – o de neutralizar qualquer intervenção daquelas três pessoas e demovê-las do propósito exteriorizado de separarem os contendores e colocarem fim às agressões entre o arguido TC e o assistente ES – significado este, reforçado pelo contexto envolvente de hostilidade e conflito entre os três arguidos, por um lado, e o grupo composto pelos dois assistentes e as testemunhas Ni e AV, por outro lado.
De resto, tendo resultado demonstrado nos pontos 11 e 32 da matéria de facto provada que o arguido CEP pretendeu, desta forma, e mediante a ameaça de uso da arma de fogo, evitar que qualquer um deles efectuasse movimentos de defesa ou auxílio de ES e que, ao empunhar a arma de fogo na direcção de EFS, AV e Ni dizendo em voz alta "é mano a mano, ninguém se mete", o mesmo arguido actuou com intenção de os constranger a não realizar qualquer acção em defesa de ES, o que logrou conseguir, o que está em causa, é apenas forçar estas três pessoas, contra a sua vontade, a deixarem prosseguir aquele confronto físico, forçando-as a não intervirem através do uso de ameaça contra as suas vidas, como resulta inequívoco à luz das regras de experiência comum, da exibição de uma arma de fogo.
Por isso é que cometeu três crimes de coacção, tantos, quantas as pessoas constrangidas pelo arguido a omitir qualquer reacção às agressões físicas recíprocas em que o arguido TC e o assistente ES estavam envolvidos, dada a natureza eminentemente pessoal dos bens jurídicos protegidos pela incriminação contida no art.º 154º do CP e o preenchimento integral dos elementos constitutivos do tipo, por este concreto comportamento do arguido CEP.   
Contrariamente ao que o recorrente afirma na conclusão 87 do seu recurso, não há qualquer contradição entre os pontos 11 e 12 dos factos provados quanto à demonstração de que o arguido CEP pretendeu mediante a ameaça de uso da arma de fogo, evitar que qualquer um deles efectuasse movimentos de defesa ou auxílio de ES e à circunstância igualmente demonstrada de que, não obstante isso, o assistente EFS avançou para os separar, levando a que o arguido CEP efectuasse um disparo que o atingiu, porque a aptidão da ameaça para constranger o assistente EFS a não intervir para auxiliar o outro assistente ES é evidente e mais do que evidente, no caso até se concretizou – pois o arguido ameaçou-o com uma arma de fogo e perante o avanço do assistente EFS atingiu-o com um tiro para o neutralizar – e porque além dessa idoneidade causal a comprimir ou retirar a liberdade de acção e decisão do referido EFS, houve um começo de execução evidenciado na descrição daqueles pontos 11 e 12, na medida em que para agir como pretendia, o assistente teve de vencer a resistência que lhe foi oposta pelo arguido CEP, que é quanto basta à completude da execução do crime de coacção.
De resto, o que também resultou provado, nos pontos 30 a 32, foi que o arguido CEP fez este disparo para que EFS não interviesse no auxílio ao seu amigo que estava envolvido numa luta, inexistindo qualquer outro motivo para a prática dos factos, que actuou tendo em vista facilitar os factos que o arguido TC estava a perpetrar e, ainda que, ao empunhar a arma de fogo na direcção de EFS, AV e Ni dizendo em voz alta "é mano a mano, ninguém se mete" actuou com intenção de os constranger a não realizar qualquer acção em defesa de ES, o que logrou conseguir.
Ou seja, o arguido CEP completou todo o iter criminis necessário à consumação dos três crimes de coacção, de acordo com a descrição constante do art.º 154º do Código Penal.
O recorrente até tem razão quanto à possibilidade de lhe ser imputada a prática do crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo 200º nº 2 do CP, já que o comportamento subsequente do arguido CEP, ao fugir do local, depois de ter atingido a tiro a perna esquerda do assistente EFS, segundo o relato da testemunha AV, consubstancia a falta do cumprimento do dever de auxílio adequado a afastar o perigo (concreto) - para a vida ou a integridade física da vítima - que criou, em consequência do disparo.
Mas isto só seria assim, se a acusação contivesse a descrição factual em conformidade e a correspondente qualificação jurídica, dada a estrutura acusatória do processo penal, sendo certo que sempre seria um outro crime, em relação de concurso real de infracções, com os três crimes de coacção e praticado num outro momento temporal.
O recurso improcede, pois, nesta parte.
g) Violação do princípio da proporcionalidade, por excesso da pena aplicada.
Dos fins das penas anunciados no art.º 40º do Código Penal e do princípio da proporcionalidade consagrado no art.º 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa (na sua tripla vertente, necessidade da pena, adequação e proporcionalidade em sentido estrito e nas suas manifestações de proibição do excesso e de proibição de protecção deficiente), as linhas orientadoras em matéria de escolha e determinação concreta da pena são as seguintes:
As penas servem finalidades exclusivas de prevenção geral e especial;
A pena concreta tem como limite máximo inultrapassável, a medida da culpa;
A medida da culpa constituí o fundamento ético da pena;
Tendo por referência esse limite máximo inultrapassável da culpa, a pena concreta é fixada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva ou de integração, cujos limites mínimo e máximo são, respectivamente, o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e as exigências mínimas de defesa da ordem jurídica penal, correspondendo às exigências básicas e irrenunciáveis de restabelecimento dos níveis de confiança por parte da sociedade, na validade da norma incriminadora violada;
Dentro desta moldura de prevenção geral positiva ou de integração, a dosimetria concreta da pena terá de resultar do que se mostrar necessário e ajustado às exigências de prevenção especial, em regra, positiva ou de socialização, ou em casos excepcionais,  negativa, de intimidação ou de segurança individual (Figueiredo Dias, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, págs. 65-111 e na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Abril - Dezembro 1993, páginas 186 e 187. No mesmo sentido, Anabela Miranda Rodrigues, O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril/Junho de 2002, pág. 147 e ss., Claus Roxin, Culpabilidad y Prevención en Derecho Penal, p. 113; Eduardo Correia, BMJ nº 149, p. 72 e Taipa de Carvalho, Condicionalidade Sócio-Cultural do Direito Penal, p. 96 e ss.).
É função da pena salvaguardar a reposição e a integridade dos bens jurídicos violados com a prática dos crimes, introduzir um efeito de confiança, no seio da comunidade, acerca da validade e eficácia das correspondentes normas jurídicas incriminadoras e produzir um efeito dissuasor da criminalidade, nos cidadãos em geral, induzindo-lhes a aprendizagem da fidelidade ao direito.
Também é função da pena assegurar, no âmbito da prevenção especial, em regra, positiva ou de socialização, a reintegração do agente na sociedade, excepcionalmente negativa ou de intimidação, prevenindo a reincidência.     
«A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial» (Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, edição 1998, AAFDL, pág. 25).
No que respeita à decisão sobre a pena, mormente à sua medida, começa por lembrar-se que os recursos não são novos julgamentos da causa, mas tão só remédios jurídicos. Assim, também em matéria de penas, o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.
A actividade jurisdicional de escolha e determinação concreta da pena não corresponde a uma ciência exacta, sendo certo que além de uma certa margem de prudente arbítrio na fixação concreta da pena, também em matéria de aplicação da pena o recurso mantém a sua natureza de remédio jurídico, não envolvendo um novo julgamento. O tribunal de recurso só alterará a pena aplicada, se as operações de escolha da sua espécie e de determinação da sua medida concreta, levadas a cabo pelo Tribunal de primeira instância revelarem incorrecções no processo de interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais vigentes em matéria de aplicação de reacções criminais. Não decide como se o fizesse ex novo, como se não existisse uma decisão condenatória prévia.
E sendo assim, é preciso ter sempre em atenção que o Tribunal recorrido mantém incólume a sua margem de actuação e de livre apreciação, sendo como é uma componente essencial do acto de julgar.
A sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso, abrange, pois, exclusivamente, a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais previstos nos arts. 40º e 71º do CP, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas já não abrange «a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada» (Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídicas do Crime 1993, §254, p. 197; Acs. da Relação de Lisboa de 11.12.2019, proc. 4695/15.2T9PRT.L1-9, da Relação do Porto de 13.10.2021, proc. 5/18.5GAOVR.P1 in http://www.dgsi.pt).
«Daqui resulta que o tribunal de recurso intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorrecções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar» (Ac. do STJ de 19.05.2021, proc. 10/18.1PELRA.S1. No mesmo sentido Ac. do STJ de 3.11.2021, proc. 206/18.6JELSB.L2.S1, ambos in http://www.dgsi.pt).
«A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas, ou mantidas, pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a situação económica do agente, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada, ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares» (Ac. da Relação de Lisboa de 11.12.2019, proc. 4695/15.2T9PRT.L1-9, in http://www.dgsi.pt).
Quanto à questão das penas, cumpre dizer antes de mais que, por efeito da alteração da qualificação jurídica, quanto ao crime de ofensa à integridade física agravada qualificada imputável ao arguido CEP, p. e p. pelos arts. 143º nº 1, 144º al. b) do CP e 86º nº 3 da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, a moldura penal abstracta a considerar tem como limites mínimo e máximo dois anos e oito meses e treze anos e quatro meses (dois a dez anos de prisão previstos no art.º 144º do CP agravados de um terço, nos seus limites mínimo e máximo pelo art.º 86º nº 3 da Lei 5/2006), respectivamente e já não  a de três a doze anos prevista no art.º 145º nº al. c) e nº 2 do CP.
O recorrente pretende que as penas parcelares são excessivas, embora não diga quais seriam as que entende ajustadas ao seu grau de culpa e à exigências de prevenção, acusa a decisão recorrida de nulidade por não ter explicado porque é que optou pelas penas de prisão sem qualquer esforço argumentativo quanto às razões da não aplicação da multa e acusa ainda o acórdão condenatório de ter decidido em prejuízo do arguido, sem levar em consideração o seu trajecto de vida, a sua inserção pessoal, familiar, social e laboral.
Em matéria de escolha e determinação concreta das penas, o acórdão recorrido discorreu o seguinte (transcrição parcial):
«Na determinação da medida da pena há que atender ao critério estabelecido no art.º 71.º do Código Penal.
«Desde já, e apesar do teor do art.º 70.º do mesmo Código, não se opta pela pena não privativa da liberdade quando prevista, uma vez que, atentas as circunstâncias dos factos, se julga inadequada e insuficiente para atingir as finalidades da punição.
«Assim, e em primeiro lugar, há que atender à culpa. Sendo o juízo de culpa uma ponderação valorativa do processo de formação da vontade do arguido, tendo como critério aquilo que uma pessoa (enquanto homem médio com características pessoais similares à condição do agente) colocada na posição daquele faria perante a mesma situação, não poderemos deixar de a considerar muito elevada para o Arguido CEP e elevada para o Arguido TC, no caso que nos ocupa.
«No fundo, o juízo de culpa releva, necessariamente, da intuição do julgador, sendo este assessorado pelas regras da experiência que lhe permitem proceder à valoração nos termos descritos. No caso vertente, o arguido CEP deliberadamente violou normas que punem actos de conhecida gravidade, socialmente perniciosos pelos riscos intrínsecos ao uso não autorizado de armas de fogo, ao visar outra pessoa como alvo, ao criar um clima de insegurança e alarme social. E o Arguido TC, envolvendo-se em luta aberta na rua, conhecedor das implicações de um confronto físico porque não é alheio ao mesmo em ambiente desportivo, contribuiu igualmente para o alarme social.
«Será ainda de ponderar:
«- o grau de ilicitude dos factos, muito elevado no caso do Arguido CEP e elevado para o Arguido TC;
«- as repercussões, gravíssimas no particular caso do tiro que atingiu EFS;
«- a intensidade do dolo, directo;
«- as condições pessoais de cada arguido, suas habilitações literárias e situação económica, beneficiando ambos de apoio familiar e integração positiva;
«- a sua conduta anterior e posterior ao facto, traduzida nos respectivos Certificados de Registo Criminal.
«Face ao exposto, julga o Tribunal adequadas as seguintes penas:
«Ao Arguido CEP -
«- pelo crime de ofensa à integridade física grave qualificada - a pena de 4 anos e 6 meses de prisão;
«- por cada um dos três crimes de coacção agravada - a pena de 1 ano e 6 meses de prisão;
 «- pelo crime de detenção de arma proibida - a pena de 1 ano e 6 meses de prisão».
Ao contrário do que o recorrente pretende, o acórdão tomou posição especificada e explicou os motivos da não opção por penas de multa quanto aos crimes puníveis com as duas espécies de penas principais em alternativa e a razão é óbvia e pretende-se com a gravidade e multiplicidade de crimes, quer do ponto de vista da importância e diversidade de bens jurídicos ofendidos, quer das consequências gravosas dos mesmos para terceiros quer do grau de censurabilidade da conduta adoptada pelo arguido, como é depois, perfeitamente ilustrado, na fixação concreta das penas, aliás, até bastaria a mera descrição dos factos provados para assim concluir, pelo que, além de não haver nulidade alguma, porque houve efectiva tomada de posição quanto à não opção por aplicação de pena de multa aos crimes em que tal seria possível, o acerto da decisão é total.
Depois, também ao contrário do que o recorrente invoca, do texto acima transcrito conjugado com o elenco dos factos provados, defluí de forma evidente que o Tribunal Colectivo teve todo o cuidado na análise da gravidade dos factos, do grau de ilicitude e culpa do arguido, das exigências de prevenção geral e especial, ponderou-os e sopesou-os na comparação com as condições pessoais e sociais do arguido e, com equilíbrio e proporcionalidade, fixou as penas de prisão.
Nada há, pois, a alterar nas penas parcelares fixadas, nem mesmo à aquela que foi aplicada ao crime de ofensa à integridade física agravada qualificada, segundo a alteração da qualificação jurídica agora decidida, pois que peses embora o limite mínimo seja inferior, à moldura pena abstracta  sopesada no acórdão recorrido, o tempo de diferença são apenas quatro meses, portanto, sem expressão significativa e a haver alguma alteração, se fosse possível a «reformatio in pejus» e não é, até seria no sentido da agravação da pena, em face do significativo aumento do limite máximo da moldura penal abstracta (de dez para treze anos e quatro meses) pois que, tal como assinalado no acórdão recorrido, o comportamento do arguido recorrente é gravíssimo, quer ao nível do desvalor da acção, quer do resultado, pelo uso de armas de fogo, em plena via pública, num local onde estavam várias pessoas, ausentando-se do local em fuga e desinteressando-se das consequências dos seus actos na esfera do assistente EFS que ficou caído, ferido na perna esquerda e ao nível do desvalor do resultado, traduzido nas graves consequências que as lesões infligidas ao mesmo assistente implicaram para este, em tempo de doença em incapacitação para a sua actividade profissional como descrito nos pontos 15 a 25 da matéria de facto provada e intensíssimo o seu grau de culpa e de violação dos deveres de respeito aos outros que ali se lhe impunham.
As exigências de prevenção geral são fortíssimas em virtude do alarme social e sentimentos de insegurança que este tipo de comportamentos provoca, como também assinalado no acórdão.
O recurso improcede, pois, nesta parte,  
O cúmulo jurídico tem uma moldura abstracta cujo limite mínimo quatro anos e seis meses, resultantes da pena mais grave aplicada, e como limite máximo, a soma das penas parcelares aplicadas, ou seja, dez anos e seis meses de prisão.
É verdade que o arguido apenas tinha 28 anos à data dos factos e tinha a sua vida familiar, social e laboral organizadas, como concretizado nos pontos 35 a 44, de que se destacam as circunstâncias de previamente à reclusão, CEP integrar o agregado constituído junto dos pais, da irmã e de uma sobrinha, na morada dos autos, tratando-se de uma habitação social, estar profissionalmente activo desde que terminou a escolaridade, mantendo actividade há cerca de dois anos como ajudante de serralharia na empresa de construção civil de que o pai é sócio.
Também se demonstrou que CEP mantinha um quotidiano estruturado, pautado pelo exercício laboral, actividade desportiva (ginásio e ao ar livre) e convívio com a família, com a namorada e com os amigos e que mantinha um relacionamento com a namorada estável, que dura há cerca de dois anos, encontrando-se aquela autonomizada e inserida em termos socioprofissionais
Porém, isso não o impediu de praticar crimes com tão elevado desvalor de ilicitude e com um intensíssimo grau de culpa como os que praticou, revelando um grande à vontade com o uso de violência física e de cariz intimidatório contra outras pessoas e para mais, durante o período de duração da suspensão da execução da pena de nove meses de prisão que lhe havia sido imposta em 24 de Novembro de 2000, pela prática de dois crimes de roubo, como referido no facto provado 44.
Em linha de coerência com a circunstância de já ter sofrido uma condenação por estes dois crimes de roubo praticados pouco mais de dois anos antes destes factos e de já ter saído de casa, para sair à noite com amigos, munido de uma arma de fogo, os crimes por si cometidos que são objecto deste processo revelam, na personalidade do recorrente, um total desrespeito por valores essenciais ao convívio social em liberdade como é o caso da liberdade de acção e decisão de terceiros e, mais grave ainda, pela integridade física e pela vida dos outros, já que por razões totalmente supérfluas como avultou quer das declarações dos arguidos, dos assistentes e da testemunha AV (tudo tendo começado com insistentes trocas de olhares e em tom de desafio recíprocos, num contexto de saída à noite em que o quer era suposto era conviverem entre amigos, ouvir música e divertir-se), com grande facilidade e ligeireza, utilizou uma arma de fogo para ameaçar e ferir outras pessoas.
Estes comportamentos ilustram bem como a censura dos factos e a ameaça da pena subjacentes à suspensão da execução da pena de prisão que lhe havia sido aplicada dez meses antes, não surtiram qualquer efeito dissuasor da prática de novos crimes, nem qualquer ressonância crítica para passar a comportar-se de modo socialmente responsável.
Os factos apreciados na sua imagem global revelam pois, características de personalidade do arguido muito desvaliosas a que acrescem as enormes e intensas razões de prevenção geral relacionadas com o alarme social que situações como a dos autos e com este tipo de desfechos provocam nas comunidades, por gerarem sentimentos de medo e insegurança e de prevenção especial, dada a incapacidade revelada pelo arguido para se comportar e adoptar um modo de vida em conformidade com a ordem jurídica.
O Colectivo fixou a pena única em seis anos, que é apenas mais um ano e seis meses do que o limite mínimo da moldura do concurso.
Também, quanto à pena única, na medida em que não se trata de uma ciência exacta e que a mesma reflecte bem o peso relativo e conjunto de todas as circunstâncias agravantes e atenuantes, a imagem global dos factos e a personalidade do agente, nenhuma alteração será feita, em virtude de ter sido fixada com equilíbrio e proporcionalidade.
Por estas razões o recurso não merece provimento, nesta parte.
h) se o quantitativo da indemnização para além de não se encontrar minimamente justificado, peca por excessivo.
Nas conclusões 104 a 106, o recorrente insurgiu-se contra o montante de €25.000,00 fixado no acórdão recorrido e considerou como ajustado em alternativa o de €5.000,00.
Alicerçou esta sua discordância e montante alternativo nas circunstâncias de que o quantitativo da indemnização para além de não se encontrar minimamente justificado, peca por excessivo pois a decisão recorrida nada dá como provado quanto a dores, angústias e a sequelas permanentes da lesão, nada tendo sido dado como provado a nível de danos estéticos e/ou psicológicos, mas tão só os tratamentos e cirurgias realizadas pelo assistente EFS.
Sobre este aspecto, o acórdão recorrido diz o seguinte (transcrição):
«EFS deduziu pedido no valor de €105.000,00. Cumpre saber se o mesmo é procedente, agora apenas quanto ao Arguido CEP.
«Provou-se que este Arguido foi o autor do disparo que feriu o Demandante. Tal disparo importou a condenação do Arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, pelo que temos um facto, ilícito, imputável a este demandado.
«Como consequência desse facto, sofreu o Demandante lesões que lhe importaram dores, limitações de mobilidade, sujeição a tratamentos, fisioterapia e perda de capacidades que conduziram inclusivamente à passagem à reserva. Estes danos, não patrimoniais, provaram-se e existe um nexo de causalidade directa entre os mesmos e a acção do Arguido ora Demandado. Como tal, procede a demanda, ainda que cumpra verificar em que medida.
«No que toca aos danos patrimoniais invocados, de despesas futuras, não resultaram os mesmos provados pelo que, nessa parte, improcede o pedido.
«O montante da indemnização, no que respeita aos danos não patrimoniais deverá ser fixado de acordo com o juízo equitativo do tribunal (art.º 496.º do Código Civil). Assim, julga o Tribunal que para o caso concreto, atendendo ao grau de culpabilidade do arguido e circunstâncias que rodearam os factos, a gravidade e extensão dos danos provados, e as repercussões dos mesmos na vida do Demandante, a quantia de €25.000,00 é indemnização suficiente e adequada.»
«Danos não patrimoniais – são os prejuízos (como dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de prestígio ou de reputação, complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a honra, o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização» (Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 6ª edição, volume I, p. 571).
O único requisito de que o art.º 496º do Código Civil faz depender a ressarcibilidade desta espécie de danos é a sua gravidade. Mas, como a gravidade do dano não patrimonial é um conceito vago e relativamente indeterminado, terá de ser preenchido valorativamente, de forma individualizada, caso a caso, de acordo com o concreto acervo factual adquirido.
Em atenção a tal exigência, só serão indemnizáveis os danos não patrimoniais que afectem profundamente valores ou interesses da personalidade física ou moral, medindo-se a gravidade do dano por um padrão objectivo, embora tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, mas excluindo-se, tanto quanto possível, a subjectividade inerente a alguma particular sensibilidade humana e apreciando-se a gravidade em função da tutela do direito; o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado (neste sentido, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, volume I, 7.ª edição, p. 600 (e 10.ª edição, p. 606); Vaz Serra, RLJ, ano 109.º, p. 115; Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, p. 459, Jorge Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, 2003, volume I, p. 491; Dário Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, Almedina, 1980, p. 268).
«Como ponto de partida, a “gravidade” não deve ter a ver com o montante: apenas com a seriedade – ou melhor: a juridicidade – da situação. Na presença de um direito de personalidade, tal “gravidade” tem-se como consubstanciada: a indemnização deve ser arbitrada» (Meneses Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo III, Pessoas, Almedina 2004, p. 112).
O montante pecuniário da compensação deve fixar-se equitativamente, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias a que se reporta o artigo 494º do Código Civil (artigo 496º nº 3, primeira parte, do Código Civil).
E as circunstâncias a que, em qualquer caso, o artigo 496º nº 3, manda atender são o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
Ao contrário do que sucede com os danos patrimoniais em que impera o princípio da reconstituição natural e, subsidiariamente, o da indemnização por equivalente, como forma de repor a esfera jurídica do lesado, no estado em que estaria, se não fosse a verificação dos danos, quando estes têm natureza não patrimonial, do que se trata é de mitigar o sofrimento provocado, de proporcionar ao lesado determinadas satisfações que contrabalancem as dores causadas pela lesão.
Daí que não seja imperioso que se tenham apurado dores, angústias e sequelas permanentes da lesão, porque estas são algumas das múltiplas espécies de prejuízos ressarcíveis em sede de compensação monetária e também não é pela circunstância de não se terem apurado que tal determina a redução do montante fixado nos termos pretendidos pelo recorrente.
Do próprio texto do acórdão também não avulta essa imputada falta de fundamentação, sendo perfeitamente perceptíveis as razões de facto e de direito em que assentou a fixação do montante de 25.000,00€, o qual, até peca por se encontrar quantificado bem aquém da gravidade das lesões, do grau de culpa do responsável civil, e da repercussão a longo prazo que as sequelas e a incapacitação para o trabalho delas resultantes, trouxe à vida do lesado e ao seu futuro, comprometendo irremediavelmente a sua carreira militar, pelo que não será alterado e só não é aumentado, porque o assistente dele não recorreu.
III – DECISÃO
Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa:
Em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:
Absolver o arguido CEP da agravante qualificativa prevista nos arts. 145º nº 1 al. c) e nº 2 e 132º nº 2 al. h) do Código Penal;
Condenar o mesmo arguido CEP como autor material de um crime de ofensa à integridade física agravada qualificada, p. e p. pelos arts. 143º nº 1, 144º al. b) do Código Penal e 86 nº 3 da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, na pena de quatro anos e seis meses de prisão.
No mais, julgar o recurso improcedente, confirmando, a parte restante do acórdão recorrido.
Sem Custas – art.º 513º do CPP.
Notifique.
*
Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art.º 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Mmos. Juízes Adjuntos.

Tribunal da Relação de Lisboa, 8 de Novembro de 2023
Cristina Almeida e Sousa
Jorge Raposo
Adelina Barradas de Oliveira